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Gil Gonçalves - Península Rubro-Negra – F.A.I. e o iberismo libertário no Entre Guerras (1927-1936).
História. Revista da FLUP. Porto. IV Série. Vol. 10 nº 1. 2020. 29-52. DOI:
10.21747/0871164X/hist10_1a3
Península Rubro-Negra – F.A.I. e o iberismo libertário no Entre Guerras (1927-
1936)
The Red-Black Peninsula – F.A.I. and the libertarian iberism during the interwar
years (1927-1936)
La Péninsule Rouge-Noir – F.A.I. et l’ibérisme libertaire pendant la période de
l’entre-guerres (1927-1936)
La Península Rubro-Negra – F.A.I. y lo iberismo anarquista en el período entre las
guerras (1927-1936)
Gil Gonçalves
IHC-NOVA-FCSH)
gilgoncalves65@yahoo.com
Resumo: O presente artigo explora a dimensão iberista da Federação Anarquista Ibérica (F.A.I.) e, por
extensão, do pensamento libertário português e espanhol, dos anos vinte e trinta. Num primeiro momento,
são historiadas as relações entre os movimentos anarquistas dos dois países - convocando debates coevos
em torno de princípios como a solidariedade e o internacionalismo -, não sendo ignoradas as especificidades
das respetivas conjunturas. De seguida, o enfoque recai sobre os anos de atividade da F.A.I., refletindo-se
acerca do contexto que ditou a sua formação e mapeando-se o caminho que, finalmente, ditaria o seu ocaso,
bem como o de todo o movimento libertário peninsular. Marcada que foi pela sua participação na Guerra
Civil espanhola, muita da historiografia que se debruçou sobre a F.A.I. tende a ignorar a dimensão
transnacional que esteve no seu gérmen. Ainda que de forma sumária e fragmentária, preencher essa lacuna
pode contribuir para aprofundar significativamente a história do anarquismo peninsular. Para além de na
sua formação terem estado envolvidos os principais vultos dos movimentos libertários de ambos os lados
da fronteira, os debates tidos no seio da F.A.I. tornam-se indispensáveis para compreender a evolução das
estratégias adotadas pelos anarquistas ibéricos perante conjunturas progressivamente mais repressivas.
Contrariando um nacionalismo metodológico, particularmente danoso quando aplicado a movimentos com
um carácter iminentemente internacionalista e anti-estatal, este artigo pretende destacar o lugar da F.A.I.
simultaneamente enquanto solução de recurso e ideal internacionalista.
Palavras-chave: F.A.I, anarquismo, iberismo, entre guerras.
Abstract: This article explores the Iberist character of the Anarchist Iberian Federation (F.A.I.) and of the
Portuguese and Spanish libertarian thinking during the 1920’s and 1930’s. Initially, we record the relations
between the anarchist movements in both countries – resorting to debates around the principles of solidarity
and internationalism – while also considering the particularities of their respective conjunctures. We then
turn our focus to the years of the F.A.I., reflecting on the context that brought it about and mapping the path
that lead to its dissolution. Marked by its participation in the Spanish Civil War, most historians tend to
ignore F.A.I.’s transnational dimension. Filling that gap can contribute to a significant deepening of the
history on the Iberian anarchist movement. Besides having involved the most notorious figures of the
libertarian movements on both sides of the border in its formation, the debates that took place in the F.A.I.
prove indispensable to understand the strategies adopted in the context of increasingly repressive scenarios.
Fighting methodological nationalism (particularly prejudicial when applied to movements with an
imminently internationalist and anti-state character), this article seeks to underline the place of the F.A.I.
as both a last resort solution and internationalist ideal.
Keywords: F.A.I., anarchism, Iberism, interwar years.
Abstract : Cet article explore le caractère ibériste de la Fédération Anarchiste Ibérique (F.A.I.) et de la
pensée libertaire portugaise et espagnole pendant les années vingt e trente. Dans un premier moment, on
fait l’histoire des relations entre les mouvements anarchistes des deux pays – en convoquant des débats
leurs contemporains sur les principes de la solidarité et de l'internationalisme –, sans ignorer les spécificités
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de ses respectives conjonctures. Après cet encadrement, l’approche se dirige vers les années d’activité de
la F.A.I., en réfléchissant sur le contexte qui a dicté sa fondation et en cartographiant le chemin qui a,
finalement, provoqué sa chute. Marquée par sa participation à la Guerre Civile espagnole, la plupart des
historiens ignorent sa dimension transnationale. Même par cette analyse sommaire, combler ce vide peut
contribuer à approfondir l’histoire du mouvement anarchiste ibérique. Au-delà du fait que les figures plus
notables des mouvements libertaires des deux côtés de la frontière ont participé à sa fondation, les débats
qu’ont eu place à la F.A.I. sont indispensables pour comprendre les stratégies adoptées en face d’une
conjoncture de plus en plus répressive. En combattant le nationalisme méthodologique, particulièrement
nocif quand appliqué à mouvements internationalistes et anti-état, cet article veut souligner la place de la
F.A.I. comme, simultanément, solution de derniers recours et idéal internationaliste.
Mots-clés : F.A.I., anarchisme, ibérisme, l’entre-guerres.
Resumen: Este artículo explora el carácter iberista de la Federación Anarquista Ibérica (F.A.I.) y del
pensamiento libertario portugués y español en los años veinte y treinta. En primer lugar, son historiadas las
relaciones entre los movimientos anarquistas de los dos países - convocando debates coevos en torno de los
principios de solidaridad e internacionalismo – sin ignorar las especificidades de sus respectivas coyunturas.
El enfoque incide enseguida sobre los años de actividad de la F.A.I., reflejando el contexto que ha dictado
su fundación y mapeando el camino que, finalmente, ha dictado su ocaso, bien como el de todo el
movimiento anarquista peninsular. Marcada que ha sido por su participación en la Guerra Civil, la
historiografía que se ha debruzado sobre la F.A.I. tiende a ignorar la dimensión transnacional que estuvo
en su germen. Aun que, de forma sumaria y fragmentaria, llenar ese hueco puede contribuir para profundar
significativamente la historia del anarquismo peninsular. Además de ter contado con el envolvimiento de
las principales figuras del movimiento anarquista de los dos lados de la frontera en su formación, los debates
que tuvieran lugar en la F.A.I. son indispensables por comprender la evolución de las estrategias adoptadas
pelos anarquistas ibéricos delante de coyunturas progresivamente más represivas. Contrariando un
nacionalismo metodológico particularmente nocivo cuando aplicado a movimientos con carácter
internacionalista y anti-estatal, este articulo pretende destacar lo lugar de la F.A.I. tanto como solución de
recurso como ideal internacionalista.
Palabras clave: F.A.I., anarquismo, iberismo, entre las guerras.
«É preciso que se deixe de tomar a sério a fronteira como até aqui»
A Comuna, 1924
«Abrazados, forjamos nuestra consciencia e idealidad revolucionaria, ahí en una
barcaza mecida por el cauce hondo y la corriente del Tajo, con la creación histórica del
movimiento libertario ibérico»
Tierra y Libertad, 1931
Introdução
O anarquismo assume como desiderato o fim dos Estados, recusando modelos de
organização da sociedade que promovam a divisão e o antagonismo entre povos unidos
por lutas e anseios partilhados. No entanto, tentar coordenar ou conceptualizar estratégias
de associação que transcendam, de forma duradoura, os limites espaciais impostos pelos
estados-nação, expõe um conjunto de dificuldades, tanto de natureza prática como teórica.
As relações internacionais do movimento, em virtude da repressão generalizada ou devido
à necessidade de criar sistemas de representação num quadro ideológico que os renega,
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acabavam frequentemente por se revelar infrutíferas. Ainda assim, passar ao lado desses
diálogos seria esquecer uma das dimensões fundamentais do movimento libertário, tão
mais relevante quanto aparentemente contraditória, conflitual e intangível – o
internacionalismo. Houve momentos em que esbater fronteiras pareceu possível e, no
contexto ibérico (após anos de tentativas) foi criada uma federação com o propósito de
congregar militantes portugueses e espanhóis, até então separados por uma linha
imaginária que, à luz das suas aspirações comuns, pouco dividia.
A proposta deste artigo passa por mapear os caminhos que conduziram às
aproximações entre os movimentos anarquistas de ambos os países, tendo em conta tanto
as realidades partilhadas como as particularidades que os distinguiam. Num primeiro
momento, são discutidos os mecanismos de solidariedade transfronteiriços - tanto as
formas que assumiam como a sua eficácia -, apurando-se o peso dessas redes na
construção de um espaço comum de resistência. De seguida, será dada particular atenção
à questão da unidade interna do movimento, dilema que atinge de forma diferenciada
libertários portugueses e espanhóis e que será uma das mais relevantes motivações para
a criação da Federação Anarquista Ibérica, organismo cujo período de atividade será alvo
de especial enfoque. Afinal, que dividendos foi possível retirar da comunhão de esforços
que a F.A.I. representou durante os anos 20 e 30 do século XX?
Deste modo, espera-se contribuir para aprofundar tanto os estudos acerca da
questão iberista como aqueles que se dedicam à análise do pensamento e ação anarquista
peninsular. Por um lado, trazer o iberismo para o estudo do movimento libertário permite
alargar o tema a grupos que não elites – intelectuais ou políticas - vinculadas ao
pensamento federalista liberal do século XIX. Por outro, serve também para contrariar as
teses de autores como Garner (2016) e Gómez Casas (1986), que secundarizam o lugar
dos anarquistas da região portuguesa no quadro das estruturas federais ibéricas,
circunscrevendo-as ao estado espanhol e ignorando os seus desígnios fundadores.
Solidariedade, Internacionalismo e Iberismo
As relações entre grupos libertários portugueses e espanhóis começam na segunda
metade do século XIX, sendo o momento fundador da primeira secção da Associação
Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) em Portugal revelador do quão profícuos foram
esses diálogos transfronteiriços seminais. Tentando contornar a repressão intempestiva
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de Sagasta no rescaldo da Comuna, o Conselho Federal da Federación Regional de
España de la A.I.T. (F.R.E.) parte, no início de junho de 1871, para o exílio em Lisboa. É
na capital portuguesa que três das suas figuras mais destacadas (Francisco Mora, Anselmo
Lorenzo e Tomás González Morago) vão iniciar contactos com o Centro Promotor
português (onde pontuavam José Fontana, Antero de Quental e Nobre França) e ajudar a
criar a Fraternidade Operária, que toma os estatutos bakuninistas da Aliança. Em
fevereiro do ano seguinte inicia-se a publicação d’O Pensamento Social (onde colabora
também Oliveira Martins) e, em julho, existiam já secções em Lisboa, Porto, Alcobaça e
Leiria, totalizando perto de 8 mil membros (Termes, 1977: 140-141).
Se os primeiros contactos foram fruto indireto da repressão que se abatia sobre
estes “agitadores”, forçando estadas de anarquistas espanhóis em Portugal e vice-versa,
cedo se começaram também a realizar encontros mais premeditados. Os primeiros
congressos que reúnem militantes dos dois países têm lugar na cidade galega de Tuy em
1901, em Viana do Castelo em 1902 e em Braga em 1903. Tratava-se dos “Congresos
Obreros Galaico-Portugueses” (Freire, 2017:196) e tiveram como intuito “desenvolver
uma acção comum de propaganda, organização e resistência nas duas regiões irmãs”
(Sousa, 1976: 56). Seria preciso, no entanto, passar mais de uma década para que se
voltasse a organizar um encontro do género, novamente na Galiza - no Ferrol - entre os
dias 29 e 30 de abril de 1915. O “Congresso Internacional Pró-Paz, promovido pelo
Ateneo Obrero Sindicalista de Ferrol, tinha a ambição de reunir organizações operárias
de todo o mundo por forma a estabelecer as linhas para uma ação coordenada dos
trabalhadores contra a guerra, de acordo com as teses de neutralidade propaladas por
Malatesta. Tendo mobilizado militantes italianos, latino-americanos e estado-unidenses
(muitos deles expulsos após a proibição do congresso, que, ainda assim, avançaria
clandestinamente), não deixaram de se tomar decisões respeitantes à cooperação entre
anarquistas portugueses e espanhóis. É o delegado português Ernesto Costa Cardoso
quem começa por destacar a necessidade de um “Pacto de Solidariedade” entre os dois
países, uma posição que seria subscrita pelo delegado do Comité de Propaganda Social
de Lisboa
1
. Destaquem-se os dois primeiros pontos das deliberações do congresso sobre
essa matéria:
1
“El Proletariado ante la guerra – Congreso Internacional de Ferrol”, Solidaridad Obrera, 13 de Maio de
1915, 1.
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1. «Que este congresso nomeie um comité composto por delegado de Espanha e
Portugal»;
2. «Que se trate de estreitar os laços de solidariedade entre o proletariado de
ambos os países, dando-se assim princípio à organização da Federação Ibérica, célula
inicial da Federação Internacional dos Sindicatos Operários, contra a guerra, contra todas
as guerras, contra a exploração capitalista e contra a tirania do Estado» (Sousa, 1931:
108).
Pelo menos para os militantes portugueses, esse estreitar de laços parecia ser um
dos mais relevantes pontos da ordem de trabalhos
2
. A ideia de formar essa federação
comum foi bem acolhida e quis-se até ir mais longe e alargar o projeto, constituindo uma
“Associação Internacional de Sindicatos Operários”
3
. Mas este espírito voluntarista
rapidamente esmoreceu e, em virtude da repressão e da conjuntura internacional
desfavorável (a paz ainda tardaria), nenhum tipo de organização formal se constitui. Além
disso, do lado espanhol, a prioridade estava na reorganização da C.N.T., tendo o encontro
sido aproveitado para discutir as alterações dos seus quadros dirigentes (Abelló Güell,
1997: 76). Ainda assim, a ideia não seria esquecida e, mesmo que de forma não
sistemática, delegados espanhóis e portugueses começariam a participar nos congressos
sindicais realizados em ambos os países.
Não tendo esses encontros resultado numa transposição formal da fronteira, a
proximidade entre os anarquistas ibéricos vinha já sendo continuamente reforçada por
campanhas de solidariedade alheias a qualquer delimitação estatal. As suas mais
reconhecíveis demonstrações enquadram-se naquilo a que Durkheim chamaria
“solidariedade mecânica” (Durkheim, 1960: 179), isto é, aquela que tem lugar entre
elementos de grupos com grandes afinidades entre si, partilhando objetivos, valores,
experiências e mundividências. Acreditando na “absoluta autonomia, auto-suficiência e
competência revolucionária dos trabalhadores”, era a estes e às suas organizações que
cabia coordenar a luta contra um sistema capitalista internacional. Luta que,
forçosamente, teria de ignorar fronteiras e estados, rumo à construção de uma sociedade
federalista administrada pelos trabalhadores eles mesmos (Thorpe, 1989: 1). Foi esse
credo internacionalista, consagrado na Primeira Internacional, que guiou o movimento
operário do século XIX e fez de episódios como a Comuna de Paris ou a Revolta de
2
“Congresso de Ferrol”, Germinal, 25 de Abril de 1915, 1.
3
“Congresso de Ferrol”, Germinal, 30 de Maio de 1915, 3.
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Haymarket marcos indeléveis para qualquer militante libertário. O carácter universalista
do movimento fazia com que aquelas lutas deixassem de pertencer apenas a este ou àquele
país, passando a ser um património de todos os anarquistas e socialistas radicais - e, no
entender destes, da própria “Humanidade”.
Em 1909, também a Península Ibérica será palco de mais um desses episódios
tragicamente célebres. Em resposta ao recrutamento para a guerra de Melilla, estalam um
conjunto de revoltas violentas e alimentadas por um descontentamento motivado por
muito mais do que o conflito em Marrocos. Para as autoridades, à procura de responsáveis
dos quais fazer exemplo, Ferrer y Guardia, um pedagogo anarquista que, poucos anos
antes, fora acusado de envolvimento em conspirações regicidas, desempenhou o papel de
ideólogo instigador das perturbações da ordem. Ferrer acabaria fuzilado, tornando-se o
símbolo de uma repressão arbitrária que ficaria para a história como a “Semana Trágica”.
É também a partir dessa decisão discricionária que o anarquismo, como movimento de
massas, passa para o primeiro plano da luta política em Espanha (Álvarez Junco, 1985:
194).
A comoção provocada por esses dias uniu no repúdio ao governo de Maura
anarquistas, socialistas e republicanos, muito para lá dos contextos peninsulares e
europeus, numa demonstração de vitalidade daquilo que todos entendiam ser a
“consciência humana universal”.
Em Portugal, apesar de um contexto também ele repressivo, vários grupos fizeram
questão de manifestar a sua solidariedade, dando-se conta de uma mobilização muito
pouco usual
4
. Constituiu-se em Lisboa um comité de apoio às vítimas do despotismo com
o propósito de, para além de organizar protestos e sessões de propaganda, angariar fundos
destinados a auxiliar presos, perseguidos e suas famílias a fazer face às inúmeras
privações a que estavam sujeitos. Numa “quête” aberta n’A Sementeira, foram recolhidos
cerca de 128 mil réis, tendo-se dedicado dois números do mensário integralmente à
propaganda do trabalho de Ferrer – uma vez que muitos foram aqueles que se propuseram
a fundar escolas baseadas no modelo da Escola Moderna, necessitando “o maior número”
de ser esclarecido a respeito dos propósitos desta
5
. Foram publicados diversos opúsculos
e obras do pedagogo catalão e os movimentos contrários à monarquia dinamizam-se. De
4
“Pró vítimas de Espanha”, A Sementeira, Setembro de 1909, 2.
5
“Escola Moderna”, A Sementeira, Outubro de 1909, 12.
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resto, pode ser pertinente ponderar as consequências que estes episódios terão tido na
mobilização popular que, pouco mais de um ano depois, contribuiria para implantar a
República em Portugal - talvez a desconsideração pela instituição monárquica não se
baseasse meramente em fatores endógenos.
Contudo, este tipo de mobilização era, no lado português, pontual, havendo um
historial de campanhas semelhantes, mas pouco consequentes. Meses antes do caso
Ferrer, e aderindo à pressão internacional que exigia a libertação dos presos de Alcalá del
Valle que ainda se encontravam encarcerados após uma greve geral nessa localidade, o
semanário O Protesto apela ao boicote aos produtos oriundos de Espanha. Em qualquer
contexto, uma iniciativa dessa envergadura seria sempre audaciosa, mas é o
reconhecimento a priori do seu fracasso no mesmo artigo que a lança que revela o estado
da mobilização anarquista nos últimos tempos da monarquia, dando conta de uma
solidariedade impossível:
«Verdade é que o proletariado em Portugal está completamente desorganizado
e que esta forma de protesto não se fará sentir como era desejável (…). Mas nós, que
sentimos e pensamos, nós que estamos acima da massa anónima, não desanimamos, por
isso, devemos boicotar quanto possível tudo o que cheire a Espanha oficial»
6
.
Na larga maioria das vezes, estes gestos eram meramente simbólicos e, se nos
primeiros anos da República o cenário se modifica positivamente, passado o fulgor inicial
vêm à tona as dificuldades de sempre, o que não impediu que, pelo menos até 1926, se
continuassem a promover subscrições públicas e comícios como forma de enviar
solidariedade àqueles que dela precisassem.
Em todo o caso, isoladamente, estes gestos dizem-nos pouco quanto à presença de
um iberismo libertário. João Freire descreve este tipo de mobilizações como fruto de uma
“solidariedade ibérica”, enquadrada por um internacionalismo mais lato. Afirma que “não
se trata tanto de práticas de «iberismo», mas antes de recursos de proximidade” (Freire,
2017: 207), lembrando também que não se encontram vestígios de iberismo nos
programas políticos do movimento. Até certo ponto, podemos acompanhar esta tese. Mas,
se é verdade que não são frequentes as declarações explícitas em defesa do iberismo nos
programas e órgãos libertários, permanecendo o internacionalismo como o valor
6
“Alcalá del Valle”, O Protesto, 20 de Março de 1909, 4.
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dominante, não se deve descartar tão prontamente a hipótese de uma influência iberista
mais discreta, mas nem por isso irrelevante. Há, afinal, vários pontos de contacto
possíveis entre projetos iberistas e princípios e valores libertários
7
. Para Antero de
Quental, por exemplo, não foi difícil conciliar os dois ideários a partir da valorização de
modelos de organização política federais. O jovem poeta, marcado por Proudhon,
considerava que não havia para portugueses e espanhóis outro ideal que não o da
democracia e federalismo, passando a resposta à crise da sua época (económica, mas
também cultural e moral) por uma revolução que contrapusesse à burguesia e à
centralização a democracia e a federação (Marques, 2007: 77). Antes dele, já Henriques
Nogueira, outro dos precursores das ideias republicanas e socialistas em Portugal, havia
destacado as afinidades entre os povos peninsulares, defendendo um federalismo ibérico
capaz de articular um pensamento municipalista herdado de Herculano com as ideias
proudhonianas e as teses de Sinibaldo de Mas (Matos, 2017: 41-42). Por sua vez, do lado
espanhol, Pi i Margall, presidente na efémera Primeira República Espanhola e também
discípulo de Proudhon
8
, seria um dos mais prolixos defensores de um projeto federalista
ibérico descentralizado, o que lhe valeria a popularidade nos sectores anarquistas
9
. Já nos
primeiros anos do século XX, o iberismo catalanista, teorizado por Ribera i Rovira e Prat
de la Riba, seria responsável por uma renovada projeção do federalismo ibérico,
sobretudo junto dos sectores republicanos de ambos os países (Martínez-Gil, 1997: 120).
O movimento operário peninsular recebeu o iberismo por via do federalismo
10
,
estando o ideal de uma federação ibérica inscrito em tradições republicanas e socialistas
desde meados do século XIX. Não é, por isso, crível que os anarquistas portugueses e
espanhóis fossem inteiramente alheios a sensibilidades iberistas. Sensibilidades essas que
não estiveram ausentes aquando da formação da F.A.I., a realização mais palpável de uma
unificação entre movimentos políticos análogos de ambos os estados.
7
Não por acaso, alguns dos detratores do iberismo em Portugal fizeram questão de o vincular
ideologicamente à Primeira Internacional (Matos, 2017: 147).
8
Do filósofo político e económico francês traduziria a obra Do Princípio Federativo, aludindo no prólogo
à União Ibérica no quadro dos nacionalismos expansionistas (Rocamora, 1994: 103).
9
Que lhe reconheciam ainda o seu papel determinante no desenvolvimento das ideias libertárias em
Espanha (Rocker, 1998: 144).
10
De resto, o primeiro espanhol a assistir a um congresso da Internacional fá-lo enquanto representante da
“Legião Ibérica” (Rocamora, 1994: 103).
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Mas como pode o sentimento iberista coabitar com a defesa arreigada de valores
internacionalistas? Em boa verdade, a relação do movimento libertário com a ideia de
pátria (mesmo que entendida como uma pátria-consciência, desvinculada de uma
dimensão material e estatal de nacionalidade) sempre foi complexa. Se, em determinados
momentos, os seus militantes pareciam responder a chamamentos de pendor universalista,
outros houve em que se manifestavam outro tipo de vínculos, bem mais particularistas.
Afinal, para os anarquistas o inimigo primordial era o Estado e não a nação, não sendo
rara a associação da nacionalidade a laços de fraternidade pervertidos pela exploração
capitalista.
A manifestação mais paradigmática dessas posturas ambíguas surge aquando da
Primeira Guerra Mundial, quando muitos militantes anarquistas e socialistas aceitam os
termos em que se colocava o conflito, indo para a frente combater os seus congéneres em
defesa de valores pátrios dos quais não pareciam abdicar com a veemência e coerência
esperada. Muitos dos que, durante décadas, professaram teses anti-militaristas, acabaram
por rever as suas posições - contando-se entre eles Kropotkine
11
, produtor de discursos
assentes num muito leviano anti-germanismo, defendendo a causa dos aliados com a
convicção, retrospetivamente ingénua, de que uma derrota das potências centrais serviria
como propulsor da Revolução anarquista na Europa (Levy, 2004: 335).
Podemos rastrear estes posicionamentos a um dos “pais” do movimento,
Bakunine. Este afirmaria, num dos primeiros debates fraturantes que tiveram lugar na
Primeira Internacional, que a nação era um produto de comunidades estabelecidas há
muito, anteriores ao capitalismo e ao Estado, e cujos valores se viram conspurcados pelo
advento da industrialização. Além disso, são célebres os seus comentários de teor racial,
presentes nomeadamente nas suas teses pan-eslavistas. Bakunine entendia que o
proletariado e o campesinato eslavos eram, essencialmente, contrários à organização
estatal, uma característica que partilhariam com os povos que rotulava como “latinos” –
referindo-se sobretudo a Itália e Espanha (Levy, 2004: 335)
12
.
11
Co-autor do Manifesto dos Dezasseis, em apoio dos aliados, que contava ainda com a assinatura de outros
anarquistas proeminentes, como Jean Grave ou Charles Malato.
12
Eram teses das quais se afastariam imediatamente Marx e seus partidários, que argumentavam que as
nações nada mais eram que criações políticas ao serviço das elites (Forman, 1998: 22).
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Adotando um tom semelhante, o historiador Juan Díaz del Moral afirmaria que
são os diferentes contextos socioeconómicos e culturais que explicam que nos países
industriais, com sociedades “estruturadas, de elevada cultura” tenha vingado o socialismo
científico, tendo o anarquismo mobilizado os “países agrícolas, individualistas,
inorgánicos, de cultura retrasada, las regiones del sol, los pueblos de tipo oriental, parte
de Francia, Itália, la Península Ibérica, la América española y la portuguesa” (Díaz del
Moral, 1995:95). Estas últimas estariam mais recetivas ao “optimismo ingenuo y utópico”
de um Bakunine, que punha a conquista de um paraíso terreno no plano imediato, por
oposição ao pessimismo de certas conceções marxistas. A adesão maioritária de
portugueses e espanhóis à fação bakuniniana da Internacional não seria, pois, um acidente
histórico.
Já no século XX a popularização do iberismo vai continuar a encontrar eco em
pensadores anarquistas de ambos os lados da fronteira, cientes desses vários fatores que
justificavam uma luta comum. Em Portugal, Francisco Quintal é um daqueles em que
essas influências são mais visíveis. O redator do periódico O Anarquista e membro do
Comité Nacional da U.A.P. promoveria ativamente lugares comuns do iberismo
oitocentista, lembrando que a geografia nada dividia e que, na sua forma anarquista, o
iberismo “é uma aurora muito mais deslumbrante, mais um aspeto de urna ideologia que
se alia com a ciência de organização social” (Rocamora, 1990: 582). Do lado espanhol,
destaca-se Diego Abad de Santillán, um dos mais ativos elementos da F.A.I., que via na
Ibéria uma “unidade histórica, geográfica e social”, sem barreiras espirituais ou
ideológicas, (Rocamora, 1990: 732) - termos não muito distintos do pan-eslavismo
bakuniniano e de outros nacionalismos expansionistas da época. Não existia, para estes
teóricos, uma contradição entre um pensamento iberista e um ideal internacionalista,
defendidos simultaneamente. A Ibéria era vista como um espaço separado de forma
antinatural e sem respeitar a história partilhada de um povo, sendo o iberismo apenas um
passo para a formulação de uma união ou federação mais abrangente, reunindo, no limite,
toda a Humanidade.
Apesar das proximidades ideológicas, geográficas e, segundo se cria, culturais e
históricas, nunca foi fácil manter relações sistemáticas e produtivas que diluíssem a
fronteira. Não houve uma evolução linear dos contactos entre os vários coletivos ibéricos
39
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e, quando estes se federaram, as adversidades sobrepuseram-se a desígnios ideais ou
sentimentos de irmandade.
A questão da Unidade – das dificuldades internas à viragem iberista
Antes da análise aos anos da F.A.I., importa refletir acerca das motivações que,
para lá do plano ideal, estimularam o projeto federal ibérico. A falta de eficácia dos
mecanismos de solidariedade já analisados deve-se à incapacidade que o movimento
anarquista português revelou em alcançar uma unidade interna, acontecendo o mesmo
com os seus correligionários espanhóis e de outras partes do globo.
Nos primórdios do movimento anarquista, dada a repressão generalizada, as
tentativas de centralizar as suas atividades eram vistas como estando condenadas ao
fracasso. A partir do Congresso de Londres de 1881, com a criação de uma inoperante
Internacional Libertária, venceria a corrente que valorizava a acção individual ou em
pequenos grupos como forma de conseguir mobilizar apoios. Populariza-se a ideia da
propaganda pelo ato enquanto forma de ação violenta, capaz de “despertar as massas”
para o seu desígnio revolucionário através do estalido das bombas (Maitron, 1981: 11).
Um otimismo revolucionário que, para além de ter gerado profundas críticas internas,
reforçou o isolamento dos seus militantes, que tinham agora não só que combater a
repressão estatal como procurar recuperar a confiança de uma opinião pública que,
mesmo no meio operário, se dissociava dessas práticas. Vista como desumana e inútil, a
aposta nessa forma de militância, promovida por aqueles que criticavam a moderação do
sindicalismo, afastaria muitos operários dos próprios ideais internacionalistas (Abelló
Güell, 1997: 51).
É em resposta a esta conjuntura hostil que se começa a teorizar o Sindicalismo
Revolucionário como meio de chegar à revolução. Por um lado, tratava-se de uma
estratégia de aproximação ao proletariado, por outro, era uma forma de combater a
crescente burocratização e partidarização de um movimento sindical que se via como um
fim em si mesmo, tendo por objetivo pequenas melhorias alcançadas através de lutas
quotidianas e não o derrube do sistema capitalista.
A influência destes princípios, consagrados na Carta de Amiens de 1906, teve
diferentes consequências de um lado e doutro da fronteira. Em Portugal, produz-se uma
rutura entre o sindicalismo socialista e o de pendor anarquista, sendo que este último
40
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rapidamente se torna hegemónico (Fonseca, 1988: 31). A cisão fica consagrada no
congresso de Tomar de 1914 com a formação da União Operária Nacional que, reunindo
as duas fações, seguia os modelos de organização do sindicalismo revolucionário,
nomeadamente a independência face aos partidos e o reconhecimento da autonomia dos
sindicatos aderentes (Teodoro, 2013: 35). No Congresso de Coimbra, em 1919, a U.O.N.,
vista desde a sua fundação como transitória, daria lugar à Confederação Geral do
Trabalho que seria, até à sua extinção em 1927, a única estrutura sindical de alcance
nacional no país. Mas essa unidade sindical era praticamente um caso único na Europa,
sendo que em Espanha o cenário era radicalmente diferente.
Quando em 1910 é fundada a C.N.T., existia já, desde 1888, uma estrutura sindical
nacional controlada pelos socialistas (a UGT), permanecendo ambas a operar em
simultâneo, com todos os custos que essa mesma divisão acarretava. No entanto, garantia-
se uma maior unidade no interior da própria C.N.T., dominada absolutamente pelos
anarco-sindicalistas que gozavam de espaço suficiente para radicalizar as suas posições,
ao passo que quer a U.O.N. quer a C.G.T. se viram a braços com disputas internas que
reduziam a sua capacidade de ação.
Não obstante, os primeiros anos da C.N.T. foram árduos. Logo em 1911 é
ilegalizada, mantendo-se nessa condição inoperacional até 1915. Por essa altura, procede
a uma profunda reorganização aumentando significativamente o número de
sindicalizados (aproveitando da melhor maneira a greve geral de 1916 e a conjuntura
proto-revolucionária do Triénio Bolchevique). Contudo, o período que alimentou este
dinamismo não se saldou na derrota das forças capitalistas e, assim sendo, abateu-se sobre
a C.N.T. uma nova vaga repressiva cuja violência levou a que muitos dos recém-filiados
abandonassem novamente a militância ativa.
Após uma breve acalmia, a paralisação dos transportes em Barcelona em 1923
serviu de justificação para a intervenção militar liderada por Primo de Rivera e para o
subsequente estabelecimento da ditadura. Apesar dos esforços despendidos para formar
uma frente de resistência que unisse C.N.T. e U.G.T., a vontade demonstrada pelo partido
socialista em aderir ao regime que se inaugurava (Gómez Casas, 1986: 69)
impossibilitaria a unidade sindical e fomentaria novas divergências. Abria-se caminho
não só à desmobilização, mas também ao crescimento das alternativas comunistas e
socialistas. Com muitos dos seus dirigentes mortos e presos, a C.N.T. vê-se, a partir de
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1924, impossibilitada de continuar a ser um organismo verdadeiramente nacional,
transformando-se numa conglomeração de federações locais sem qualquer tipo de
disciplina coletiva (Christie, 2002: 25).
Em Portugal os problemas que se punham eram de outro tipo. Não houve um
equivalente ao Triénio Revolucionário nem a subsequente dinamização da C.G.T. Bem
pelo contrário. Quando a 18 de novembro de 1918 se convoca uma greve geral com
intenções revolucionárias, cedo se percebe que se trata de uma iniciativa condenada ao
fracasso (Teodoro, 2013: 41). A mobilização não é notável e a repressão é eficaz, tendo
o insucesso da démarche provocado o “desalento nas massas trabalhadoras” e o descrédito
da própria Central de Sindicatos (Teodoro, 2013).
Quanto às discussões em torno do que deveria ser a atividade sindical, os mais
intensos debates organizavam-se em torno de duas posições distintas: por um lado, havia
os que acreditavam que se tinha tornado necessário associar o sindicalismo a um projeto
de tomada de poder (do parlamento) e, por outro, havia os que continuavam a defender
uma via completamente dissociada de ligações partidárias. Estas disputas internas terão
dificultado o reforço do movimento sindical em Portugal, ao ponto de, em 1923, se poder
afirmar que “a acção anarquista mal se faz sentir”
13
. Surgem propostas frentistas como
forma de fazer face às divisões internas, reunindo socialistas, anarquistas e comunistas,
mas são, regra geral, mal acolhidas. A esse respeito, publica-se no semanário A Comuna
um artigo ilustrativo do clima que reinava na C.G.T.:
«(…) a frente única só será um facto, depois de sofrermos a dura prova da reacção
que se avizinha com o seu sinistro cortejo de prisões, assassinatos, deportações, etc.
Assim que todos os militantes sofrerem os ímpetos da onda reaccionária, acabarão por
abandonar o eterno comodismo, e outros deixarão de fazer a sua nefasta obra divisionista
no seio do proletariado. Se a frente única não se tem realizado a culpa não cabe aos
anarquistas, mas sim a todos os que desconfederam os seus sindicatos, ou
propositadamente se atrasam no pagamento das cotizações confederais para sabotar a
C.G.T. (...)»
14
.
Por esta altura, a ditadura de Primo de Rivera em Espanha era um assunto
incontornável e suscitava as maiores preocupações no meio libertário português.
13
A acção anarquista só será verdadeiramente produtiva se for bem coordenada por uma consciente
organização, A Comuna, 11 de Novembro de 1923, 2.
14
“Frente única?” A Comuna, 28 de Outubro de 1923, 3.
42
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Impunha-se uma reorganização e um reagrupamento, objetivo para o qual se reunira,
também em 1923, a Conferência de Alenquer. Dela nasce a U.A.P. (União Anarquista
Portuguesa), com o propósito de estimular a organização e a propaganda num país onde
esta parecia continuar num estado tão “embrionário” como vinte anos antes (Sousa, 1989:
96). No entanto, meses depois da sua realização, as iniciais proclamações de sucesso
revelavam-se infundadas aos olhos de alguns observadores:
«(…) pouco depois, nalguns anarquistas o entusiasmo esfriou, recolhendo-se à
sua anterior inacção. Muitos dos aderentes à conferência e que nela demonstraram a
necessidade da acção anarquista têm feito justamente o contrário. (…)»
15
.
Este ambiente de desagregação era propício tanto para as forças mais
conservadoras como para aquelas que queriam reforçar a sua posição na disputa pela
hegemonia no seio do movimento sindical e operário. Se nos primeiros tempos após a
Revolução Russa os sectores comunistas permaneceram minoritários (como demonstrara
o Congresso da Covilhã de 1921
16
), tornar-se-iam progressivamente uma ameaça mais
concreta. Ainda assim, e já em 1925, a C.G.T. adere por votação maioritária à A.I.T.,
afastando-se da I.S.V. (Internacional Sindical Vermelha ou Profintern) e reforçando a sua
posição anti-partidária. Enquanto isso, é dado pelos militares um primeiro aviso do que
estava por vir com a revolta de 18 de abril de 1925, sem que essa chamada de atenção
tenha servido para atenuar as animosidades internas e impedir que, a 28 de Maio de 1926,
se consumasse o início de uma ditadura de quase meio-século.
Também em Espanha os comunistas procuraram trazer para a sua esfera de
influência a C.N.T., mas sem sucesso, apesar de o seu peso ser já muito mais significativo
do que em Portugal (Garner, 2016: 109). Com os principais líderes encarcerados, as lutas
internas entre grupos minoritários da C.N.T. prosperaram e, entre finais de 1920 e inícios
de 1921, os comunistas chegam a controlar a confederação que, até à Conferência de
Zaragoza em 1922, se vinha aproximando da I.S.V. (Abelló Güell, 1997: 100). Em ambos
os países parece ficar claro que o movimento comunista começa a ganhar vantagem sobre
15
A Acção anarquista só será verdadeiramente produtiva se for bem coordenada por uma consciente
organização, A Comuna, 11 de Novembro de 1923, 2.
16
Ainda que já então o veneno moscovita havia separado mais ou menos ostensivamente alguns militantes,
que para aquele congresso levaram, sem o pensarem, o espírito da cínica sentença de Lenine (Sousa, 1931:
178).
43
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o anarquista durante a ditadura, conseguindo organizar-se clandestinamente
aparentemente com muito mais eficácia. Os números de militantes que por essa altura
transitaram do campo anarquista para aderirem à causa bolchevique são bem ilustrativos
(Freire, 1992: 267).
Será, pois, num período em que ambos os países estão a braços com uma duríssima
repressão governamental e com paralisantes cismas internos que nascerá, em 1927, a
Federação Anarquista Ibérica, concretizando o desígnio de longa data de unir o
movimento anarquista na península. O que nunca acontecera quando os tempos eram mais
propícios seria agora posto em prática sob regimes ditatoriais, improvisadamente e como
forma de dar resposta a um cenário pouco auspicioso.
Os anos da F.A.I. (1927-1936)
Os passos decisivos para a constituição formal de uma federação ibérica começam
a ser dados no início dos anos vinte. Em dezembro de 1919, realiza-se em Madrid um
congresso nacional da C.N.T., tendo Manuel Joaquim de Sousa representado a C.G.T.
Revela-se satisfeito com a receção e, em conjunto com alguns camaradas espanhóis, lança
as bases para a criação de uma Confederação Latina que, tendo como células iniciais as
confederais portuguesa e espanhola, se estenderia idealmente à francesa e italiana. A
receção da ideia nesses dois últimos países seria muito pouco entusiástica por
considerarem a conjuntura adversa, no entanto, o plano manteve-se de pé a nível
peninsular. Nos congressos nacionais que se seguiram (Covilhã e Zaragoza, em 1922)
sairá reforçada a ideia de unir esforços (Garner, 2016: 217).
Um dos mais significativos passos na evolução destas relações surge em 1923 com
a realização da Conferência das Organizações Operárias de Portugal e Espanha em Évora.
Nesse encontro, em que estão presentes vários delegados da C.G.T. e da C.N.T., Manuel
Joaquim de Sousa e Manuel Pérez terão proposto a “unificação do Movimento
Confederal e Libertário da Península Ibérica, englobando anarquistas espanhóis e
portugueses” (Rodrigues, 2007: 17). Edgar Rodrigues vê nesse momento o gérmen do
que viria a ser a F.A.I., ainda que outros, como Gómez Casas (1986) nunca lhe façam
referência. Mas, novamente, essa tentativa de impulsionar as relações entre os dois países
cairia por terra, algo que se terá devido aos desenvolvimentos políticos que ocorrem em
Espanha nesse mesmo ano. Espelho dessas dificuldades, a 24 de dezembro, Silva Campos
44
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e Manuel Joaquim de Sousa, enviados pela C.G.T. a Sevilha para se encontrarem com os
congéneres da C.N.T. espanhola, são detidos pela Guardia Civil, permanecendo nessa
condição até Março de 1924. O pretexto da detenção seria a suspeita de preparação de um
complot comunista - acusações duplamente aviltantes, por um lado pela arbitrariedade
“torquemadesca” da repressão, por outro pela ignorância das forças de ordem do país
vizinho, que pareciam não compreender as nuances ideológicas dos movimentos sociais
que contra elas se insurgiam
17
. A este respeito, veja-se uma nota publicada n’A Comuna:
«E assim, o ditador daquela nação fradesca e sanguinária, julga-se descansado,
porque supõe ter para sempre arredado o perigo da união ibérica do proletariado… (...)
Mas os verdugos da reacção capitalista poderão obstar a que a vontade revolucionária dos
povos se realize? Não, a união ibérica, como a americana, hão de ser um facto - a despeito
de todas as violências… E assim se caminhará para a fusão da família humana…»
18
.
Se o projeto de uma Central Sindical comum parecia sofrer um golpe terminal, o
mesmo não acontecia com a ideia de Federação Ibérica. Em 1925 há novo encontro
clandestino em Barcelona, no qual representantes dos dois países voltam a discutir o
assunto e, em maio de 1926, em Marselha (devido ao número de militantes exilados em
França e à impossibilidade de reunir em Espanha), é aprovada a criação da Federação
Anarquista Ibérica, oficializada por um Comité organizador residente em Lisboa “dada a
situação anormal de Espanha”. Dias depois se ficaria a saber que a situação em Portugal
também se complicara, dificultando a ação do comité e impossibilitando a realização de
um primeiro Congresso Ibérico. Este só se realiza nos dias 24 e 25 de junho de 1927, em
Valência, tendo os anarquistas portugueses desistido de o organizar em virtude da
repressão. É essa a data comummente aceite para a fundação da F.A.I., onde estiveram
Germinal de Sousa e Francisco Quintal, secretário da U.A.P.
Estes primórdios da federação foram geralmente negligenciados, sendo o papel
dos anarquistas portugueses remetido, na melhor das hipóteses, para uma nota de rodapé.
Esse esquecimento tem muito que ver com o desenrolar dos acontecimentos em Espanha,
com a implantação da Segunda República e o início da Guerra Civil - conjunturas que
rapidamente consumiriam todas as energias dos anarquistas desse lado da fronteira. Nesse
17
“As infâmias dos governantes espanhóis”, A Comuna, 20 de Janeiro de 1924, 5.
18
“Revista Internacional - confederações operárias Ibérica e Americana”, A Comuna, 20 de Janeiro de
1924, 6.
45
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contexto subalternizado dentro da F.A.I., importa perceber como viam os libertários em
Portugal o seu papel no organismo e que dividendos sentiam ou não estar a retirar.
Sobre a participação portuguesa na F.A.I., Jason Garner diria o seguinte:
“Although they played a leading role in the preparations prior to the foundation of the
federation, the influence of the Portuguese in the F.A.I. was limited. The F.A.I. was
effectively a Spanish organization” (Garner, 2016: 214). De facto, assim parecia ser. Mas
até que ponto essa subalternização na recém-criada federação não foi consentida? Os
problemas internos arrastavam-se há muito e a chegada da ditadura militar apenas serviu
para agravar os projetos dos anarquistas portugueses que mais e mais se pareciam
conformar com a sua impotência. O esforço despendido para convencer os camaradas
espanhóis a aderir à F.A.I., passando Portugal a ser considerado dentro desta como uma
Região com os mesmos estatutos, direitos e liberdades de uma Catalunha ou Andaluzia,
seria uma forma de mitigar dificuldades, permitindo uma cooperação mais próxima com
as demais regiões, podendo estas fornecer recursos que, autonomamente, não podiam ser
obtidos. Simultaneamente, a maioria dos libertários portugueses acreditava que a
revolução social em Espanha estava iminente
19
, permanecendo na expectativa e com a vã
esperança de esta se estendesse a Portugal, criando um momento oportuno para partir à
conquista da Anarquia. Se internamente reinava um realismo entorpecedor, em relação
ao exterior a ilusão era completa. Veja-se o seguinte excerto, retirado d’O Anarquista:
«Mudando em Espanha a sociedade desta maneira, a única possível, a única
admissível, Portugal não pode continuar nesta caricata atitude, neste equívoco social, e
os dois povos da Península têm de unir-se num só povo, fronteira rasa, abraçados por um
ideal comum. Eis porque a Península deve ser breve o teatro duma nova e grandiosa
revolução»
20
.
Já nos anos trinta, e após a derrota do movimento do 26 de Agosto de 1931, o
“canto do cisne” do reviralhismo, Mário Castelhano
21
abraçaria essa ideia, afirmando que
“a Revolução em Portugal será acompanhada ou precedida pelo proletariado de Espanha.
Dificilmente se poderá concebê-la vitoriosa e perdurável isoladamente, lá como cá”
19
“O Golpe de Estado Espanhol”, A Comuna, 21 de Outubro de 1923, 7). Não se teceram muitos
comentários no mesmo sentido para a ditadura portuguesa.
20
“A Revolução Social na Ibéria”, O Anarquista, 14 de Março de 1926, 1.
21
Redactor d’A Batalha até 1927 e, na altura, clandestino em Lisboa depois de em 1928 ter sido enviado
para o exílio em Angola.
46
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(Farinha, 1998: 200). No entanto, para que de Espanha pudessem vir os bons ventos
necessários ao “casamento” das revoluções nos dois países, faltavam elementos
essenciais. Nomeadamente, impunha-se que os militantes anarquistas estivessem a par
dos desenvolvimentos políticos de ambos os lados da fronteira. Se o otimismo dos
anarquistas portugueses em relação à evolução dos acontecimentos em Espanha era já
indicativo de um certo desconhecimento de causa, do lado espanhol as leituras sobre a
conjuntura em Portugal evidenciavam uma ainda mais flagrante ignorância. A forma
como dois dos principais periódicos anarquistas espanhóis (incluindo o Tierra y Libertad,
órgão oficial da F.A.I.) noticiavam eventos como a Revolta das Ilhas ou o 26 de Agosto
é particularmente ilustrativa. Fala-se de “un golpe de muerte a la Dictadura republicana”,
afirmando-se que “de Norte a Sur de Portugal brilla la llama del fuego revolucionario que
pulverizara el despotismo de Carmona y sus secuaces”
22
, chegando a dar-se conta do
assassinato de Carmona por parte dos revoltosos
23
. Quando assim se descrevem episódios
cujo quase imediato fracasso apenas permitiria à ditadura reforçar a sua posição na
administração, no exército e até na opinião pública, tornam-se ainda mais prescientes os
apelos feitos pelos militantes portugueses à federação ibérica, exigindo uma maior
atenção ao que se passava em Portugal.
Na Conferência da F.A.I. de Junho de 1931, os delegados portugueses já tinham
reclamando demonstrações mais concretas de solidariedade, sugerindo que a F.A.R.P.
tivesse acesso a uma página do órgão oficial da federação para divulgar questões relativas
à situação portuguesa
24
, algo que nunca se materializa. No pleno de regionais da F.A.I.,
realizado em Madrid entre 31 de Julho e 3 de Agosto de 1932, o delegado da Aliança
Libertária Portuguesa aproveitaria para recordar que a criação da F.A.I. se devia aos dois
países e que algo deveria ser feito para apoiar a luta contra a ditadura que por lá se
consolidava, levantando ainda a questão do apoio ao jornal gerido pela F.A.P.E.
(Federação Anarquista de Portugueses Exilados)
25
, o Rebelião. O pleno aprova as
propostas, mas a publicação do periódico continuará a ser irregular, para grande
22
“Arenga Portugueses!”, Tierra y Libertad, 5 de Setembro de 1931, 1.
23
“La Revolucion en Portugal”, Solidaridad Obrera, 28 de Agosto de 1931, 5.
24
“Final de la grandiosa Conferencia de la F.A.I. – dictamen sobre la cuestión sindical”, Tierra y Libertad,
27 de Junho de 1931, 2.
25
Fundada em 1932 servia como elo não apenas com grupos espanhóis, mas também com franceses, norte-
americanos, argentinos, brasileiros, entre outros (Freire, 2007: 198).
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desagrado da sua redação, que entendia que este poderia ter um peso capital na
informação e agitação do proletariado português. O delegado insiste ainda na necessidade
de fundir a C.G.T. com a C.N.T. numa Confederação Geral do Trabalho Ibérica, mas,
novamente, não se ouve falar mais do assunto
26
.
Havia quem considerasse que o derrube da ditadura em Portugal era do maior
interesse para as forças progressistas em Espanha, uma vez que assegurava que, no caso
de a revolução se dar, o país vizinho não se tornaria num ponto de apoio das forças
reacionárias (como eventualmente se tornou)
27
. A missão dos libertários lusos seria, por
isso, defender a revolução espanhola, algo que chega a ser pensado minuciosamente,
listando-se quais os pontos do país onde a ação anarquista deveria concentrar os seus
esforços subversivos do ponto de vista da estratégia paramilitar.
Partia-se sempre de um postulado simples. A revolução em Portugal, conseguida
autonomamente, era impossível, trazendo tal realização consigo uma dose de resignação
e conformismo que não tinha lugar num movimento que se afirmava como vanguarda.
Um dos que assim julgou foi Germinal de Sousa que, na carta de demissão do cargo que
ocupava no secretariado a Aliança Libertária de Lisboa, escreve o seguinte:
«(…) os acontecimentos que por todo o mundo se sucedem, num precipitar
desconcertante, colocam perante a classe operária um problema decisivo: a sua
capacidade para a gestão da sociedade que vem. Aos anarquistas, pelas responsabilidades
que lhes cabem de tantos anos de propaganda, não pode de forma alguma ser indiferente
esta questão, aguardando que os acontecimentos determinem o que se deve fazer. (...) E,
sejamos francos, uma vez, ao menos: estão os anarquistas portugueses preparados para
esse trabalho? Têm os anarquistas de Portugal, neste momento, capacidade suficiente para
promoverem e desenvolverem um movimento de carácter revolucionário? Ou, mais
simplesmente, estão os anarquistas preparados para, de um movimento político, tirarem
ineludíveis vantagens para a causa que defendem?»
28
.
A resposta era negativa. Não só em virtude da repressão governamental, mas
também dada a perda de contacto direto com o povo, “fundamental para a obra anárquica
se realizar”. A proximidade conseguida através da influência no mundo associativo e
26
A.H.S., Espólio da FARP-FAI, N61 cx. 1.
27
Feita a Revolução em Espanha, ela não terá possibilidades de triunfo desde que Portugal continue em
regime estatal-capitalista. (…) Estudada a questão da defesa, de certo que o nosso primeiro passo deve
ser secundar, não importando que sacrifícios custe, o gesto dos trabalhadores espanhóis. Extracto retirado
do relatório do delegado da A.L.P. ao Pleno de Regionais da F.A.I., realizado em Madrid nos dias 31 de
Julho e 1, 2 e 3 de Agosto de 1932, A.H.S., Espólio da FARP-FAI, N61 cx. 1.
28
Carta datada de 18 de Julho de 1932, A.H.S., Espólio da FARP-FAI, N61 cx. 1.
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comunitário era o mais importante trunfo de um movimento que, no que às suas estruturas
diz respeito, revelou dificuldades para se estabilizar. Num contexto em que o acesso ao
espaço público se encontrava vedado como nunca, vieram ao de cima as suas
insuficiências.
No mesmo documento, fica claro que a ameaça “bolchevique” era já muito mais
séria do que no passado, algo que só se agravaria com o triunfo da Frente Popular e
durante os anos da Guerra Civil. Uma carta enviada pela F.A.P.E. à C.G.T. a 26 de junho
de 1936 mostra até que ponto o Partido Comunista tinha conseguido superiorizar-se ao
movimento anarquista na clandestinidade:
«(…) recebemos ainda uma carta dos camaradas de Angra em que eles se
queixam da situação em que se encontram. Isto é: dizem que enquanto os comunistas
recebem todos os meses auxílio material e todos os meses chega ali a imprensa comunista,
aos nossos camaradas nada chega. Claro que isto não é mais que um desabafo e nisto não
há qualquer espírito de censura para os camaradas que estão à frente da CGT. Mas
atendendo a estas coisas é que nós víamos a necessidade de ver se aqui em Espanha era
possível conseguir-se algo. Sobretudo conseguir alguma ajuda para os presos e para
regularizar a saída da “BATALHA”. (…)»
29
.
Mas, com o conflito a pender para o lado franquista, também os exilados
percebiam que já lhes restavam poucas opções
30
. Apesar de, a partir de Portugal, se ter
tentado dar alento às forças republicanas, desde o desaire do “Soviete da Marinha
Grande” que se revelava impossível mobilizar as massas em ações concertadas. Espanha
iria deixando de representar a esperança numa revolução mundial e a eclosão da II Guerra
Mundial parecia pôr um ponto final na ideia de que esta pudesse ser alcançada no tempo
breve.
Conclusões
As relações entre anarquistas portugueses e espanhóis foram motivadas por
impulsos heterogéneos, que poderiam passar por deveres de solidariedade, sentimentos
iberistas, problemas internos ou esperanças depositadas no exterior. Qualquer um destes
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De resto, acontece ainda que a maioria dos camaradas espanhóis, imensamente preocupados com a
guerra que têm em casa, não se dão conta da tragédia que vai em casa do vizinho… Por todos estes motivos,
entendemos que, além de tudo que nós possamos fazer aqui a favor dos nossos camaradas, é necessário
fazer muito mais lá fora. Carta da FAPE para o Comité de Relações da FARP, datada de 12 de Maio de
1938, A.H.S., Espólio da FARP-FAI, N61 cx. 1.
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aspetos poderia ser desenvolvido em maior detalhe, mas a análise fractal tem um
propósito: atestar a importância de pensar a história do movimento libertário na sua
dimensão transnacional, sem ignorar as relações ambíguas mantidas com sensibilidades
nacionalistas ou regionalistas. Não se trata apenas de comparar os contextos próprios de
cada um dos lados da fronteira, mas antes de perceber como estes se mesclam à revelia
de linhas imaginárias, incapazes de impedir o fluxo das ideias. Nesse sentido, este artigo
procurou deixar claro que o anarquismo manteve efetivamente uma orientação iberista e
que esta não era vista como contraditória ante os valores internacionalistas do movimento.
De resto, os laços entre Portugal e Espanha são apenas dos mais óbvios. Seria igualmente
relevante refletir, de forma mais detalhada, sobre os contactos que se estabeleciam com o
resto da Europa (nomeadamente com aquela que poderia ter integrado uma eventual
Confederação Latina) ou com as Américas (nomeadamente com Brasil, Argentina e
E.U.A.), tendo em vista a realização de um projeto libertários iberoamericanista.
Além disso, urge aprofundar o tema da militância sem fronteiras, analisando a
forma como esta evidencia o desrespeito pelas fronteiras dos Estados e a pertença
simultânea a diferentes espaços sensíveis (os espaços da prática, os espaços ideais e os
espaços institucionais). Nesse domínio, a leitura de memórias e de correspondência
privada de alguns militantes permite ter acesso a discursos ocultos, ausentes dos
organismos oficiais com os quais contrastam, por vezes, dramaticamente.
Em suma, se para os anarquistas dos anos vinte e trinta era imperativo que se
deixasse de levar a sério a fronteira, para aqueles que se propõem a estudar o movimento
o mesmo se aplica.
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