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Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e Desenvolvimento • Belém • v.14 , nº1 • p. 75-100 • jan-jun 2020
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Mercados da pecuária familiar no sul do
Brasil: convenções e canais de
comercialização da bovinocultura de
corte
MATTE, et al.
RAF. v.14 , nº 1 / jan-jun 2020, ISSN 1414-0810
O desenvolvimento da agricultura familiar e sua inserção na cadeia produtiva
do leite na região de Imperatriz: principais características e desafios
socioeconômicos
1
The development of family-based agriculture and its insertion in the productive chain in the
Imperatriz region: main characteristics and socioeconomic challenges
Jonatha Farias Carneiro, Doutorando, UFMA, fcjon@yahoo.com.br;
Marcelo Sampaio Carneiro, Doutor, UFRJ, marcelosc@uol.com.br;
Evaristo José de Lima Neto, Doutor, UFMA, ejlneto@gmail.com.
Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar a
organização da atividade pecuária realizada por
agricultores familiares na região de Imperatriz,
no estado do Maranhão, destacando o processo
de estruturação da atividade, no âmbito da
unidade familiar, e a relação que esses
produtores vêm estabelecendo com outros
agentes da cadeia produtiva do leite nessa
região. O argumento está estruturado a partir de
dois eixos metodológicos. Em um primeiro
momento, faremos uma discussão geral das
características relacionadas à atividade
pecuária familiar, na região de Imperatriz para,
em seguida, nos concentrarmos na análise
específica do comportamento dos agricultores
familiares do assentamento São Jorge,
envolvidos na atividade pecuária. A partir desse
levantamento de dados, foi possível identificar
o papel desempenhado pela produção de leite e
derivados na reprodução da agricultura familiar
regional, bem como destacar a existência de um
processo de diferenciação social entre esses
agricultores, que envolve a oposição entre
produtores em processo de especialização, na
atividade pecuária, e produtores que combinam
policultivo com a criação bovina.
Palavras-chave
Agricultores familiares; cadeia produtiva do
leite; pecuária familiar.
Abstract
This paper aims to analyze the organization of
cattle farming activities by small family
farmers in the Imperatriz region, Maranhão
state, Brazil. The study seeks to highlight how
the activity is structured within the family unit
and discuss the relationship between farmers
and other agents in the regional milk supply
chain. Our main arguments were constructed
on the basis of two methodological axes. First,
we present a general discussion on the
characteristics cattle production by family
farmers in the Imperatriz region. Second, we
focus on the specific analysis of farmers’
behavior in the São Jorge settlement, analyzing
those who are involved in cattle production.
Data allow us to identify the role that the milk
and dairy industry plays in the reproduction of
family farming enterprises in the region.
Results also highlight social differentiation
processes between farmers involved in the
study, including tensions between those who
are in the process of specializing in cattle and
those who produce various crops in
conjunction with cattle.
Keywords
Family farmers; milk production chain;
smallholder cattle production.
1
A realização deste trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão (FAPEMA)
que, através do edital de auxílio à pesquisa (Edital Universal 206) disponibilizou os recursos necessários para a
realização da pesquisa “A organização da cadeia produtiva da pecuária de leite Microrregião Homogênea de
Imperatriz e o desafio da inserção da agricultura familiar”.
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O desenvolvimento da agricultura
familiar e sua inserção na cadeia
produtiva do leite na região de
Imperatriz: principais características e
desafios socioeconômicos
CARNEIRO, Jonatha Farias
CARNEIRO, Marcelo Sampaio
NETO, Evaristo José de Lima
1. Introdução
Esse artigo tem por objetivo analisar a organização da atividade pecuária realizada por
agricultores familiares na região de Imperatriz, no estado do Maranhão, destacando o processo
de estruturação da atividade, no âmbito da unidade familiar, e a relação que esses produtores
vêm estabelecendo com outros agentes da cadeia produtiva do leite nessa região.
Ao estabelecermos esse recorte temático, situamos nossa reflexão no debate mais
amplo sobre as possibilidades de reprodução da agricultura familiar (LAMARCHE, 1993;
VAN DER PLOEG, 2016), tendo como foco duas questões centrais: as relações assimétricas
estabelecidas com diferentes agentes, no interior de cadeias produtivas específicas (em nosso
caso a cadeia produtiva do leite), e o dilema entre a manutenção de um sistema produtivo
diversificado ou a opção pela especialização na produção de leite.
Para dar conta dessas questões, trabalharemos com dois níveis de análise:
primeiramente, as características mais gerais da atividade pecuária e da cadeia produtiva do
leite nessa região; no segundo momento, nos concentramos na dinâmica específica da
pecuária familiar, utilizando os dados que vimos coletando ao longo de pesquisas realizadas
nos últimos anos (CARNEIRO, 2015; CARNEIRO, 2016; LIMA NETO, 2017), a partir de
observações e entrevistas realizadas com agricultores do assentamento de reforma agrária São
Jorge, situado no município de Cidelândia.
Para a análise do cenário regional, utilizaremos principalmente os dados do Censo
Agropecuário de 2017, que foram disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Contudo, vale destacar que na disponibilização dessas informações pela
plataforma SIDRA (Sistema IBGE de Recuperação Automática), o referido Instituto
substituiu a categoria Microrregião Homogênea, substituindo-a pelas categorias Região
Geográfica Imediata e Região Geográfica Intermediária (IBGE, 2017). Destarte, o recorte
territorial de nosso estudo será baseado na Região Geográfica Imediata de Imperatriz,
conforme a nova classificação do IBGE que, grosso modo, corresponde à antiga Microrregião
Homogênea de Imperatriz2.
2 Pela nova classificação, a RGI de Imperatriz incorporou os municípios que pertenciam à antiga MRH de Porto
Franco (Porto Franco, Estreito, Campestre e São João do Paraíso), mas perdeu alguns municípios que agora
passam a integrar a RGI de Açailândia e que antes integravam a MRH de Imperatriz – caso de São Francisco do
Brejão, Açailândia e Itinga do Maranhão.
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familiar e sua inserção na cadeia
produtiva do leite na região de
Imperatriz: principais características e
desafios socioeconômicos
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CARNEIRO, Marcelo Sampaio
NETO, Evaristo José de Lima
Uma última observação diz respeito à definição de pecuária familiar utilizada no
artigo. Nossa pesquisa utiliza o conceito de agricultura familiar tal como estabelecido pela
tradição de estudos que veem a família camponesa como uma unidade de produção e consumo
(CHAYANOV, 1990), ou, em termos mais recentes, que trabalham a noção de exploração
familiar como equivalente à de “uma unidade de produção agrícola onde propriedade e
trabalho estão intimamente ligados à família” (LAMARCHE, 1993, p.15). No que concerne
aos dados agregados para a RGI de Imperatriz, utilizamos as informações da tabulação feita
pelo IBGE, que separa no Censo Agropecuário os estabelecimentos agropecuários
pertencentes ou não à agricultura familiar, considerando os critérios estabelecidos pelo
Decreto n⁰ 9.064, de 31 de maio de 20173.
Os produtores de leite que pertencem à agricultura não-familiar e que não são objeto
do presente artigo, podem ser classificados de diferentes formas (agricultores patronais,
agronegócio do leite, etc). Contudo, acreditamos que a tipologia estabelecida por Veiga et al.
(2015), em estudo para a região da transamazônica, é a que mais se aproxima da observada
na RGI de Imperatriz. Nesse sentido, além dos agricultores familiares teríamos também os
chamados “fazendeiros” – que possuem na pecuária de corte sua atividade principal –, e um
grupo que poderíamos designar como de “médios produtores”4 que se dedica à pecuária de
leite e possui propriedades na faixa de 300 a 500 hectares.
O artigo está organizado em três seções, além desta Introdução e de uma conclusão.
Na primeira, apresentamos o processo de desenvolvimento da pecuária leiteira no Maranhão
e na Região Geográfica Imediata de Imperatriz, procurando identificar os principais fatores
que favoreceram a expansão dessa atividade, a partir dos anos 2000, na região. Na seção
seguinte, analisamos o processo de organização da pecuária leiteira no assentamento São
Jorge, procurando destacar, a partir da consideração da dinâmica da unidade de produção
familiar, os principais aspectos que levaram os produtores a se engajarem nessa atividade. Já
na terceira, nosso foco se orienta para a questão da inserção da produção de leite desses
3 De acordo com esse decreto, a Unidade Familiar de Produção Agrária (UFPA) é definida pelas seguintes
características: i) área de até 4 módulos fiscais; ii) utilizar ao menos metade da força de trabalho familiar na
produção e geração de renda, iii) obter (no mínimo) a metade de sua receita a partir do estabelecimento ou
empreendimento familiar e, iv) que esse estabelecimento ou empreendimento seja gerido de forma familiar.
4 De acordo com Veiga et al. (2015, p.88), esses médios produtores seriam compostos por “famílias
capitalizadas, comerciantes, funcionários públicos” que constituíram um bom estoque de capital e investiram na
atividade pecuária de corte. No caso da RGI de Imperatriz, acreditamos que o investimento tenha sido
principalmente na pecuária de leite, dada a forte presença da cadeia produtiva do leite.
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agricultores em diferentes circuitos de comercialização. Na conclusão, retomamos as questões
centrais indicadas nesta Introdução, que nos parecem centrais para o futuro da agricultura
familiar na região.
2. O desenvolvimento recente da produção de leite no Maranhão e na Região Geográfica
Imediata de Imperatriz
De forma semelhante ao que ocorreu no cenário nacional (SORIO, 2018), a produção
leiteira maranhense teve forte incremento nos anos 2000, estimulada pela ampliação do
rebanho bovino e pelo aumento do poder de compra das famílias e do crescimento do consumo
de produtos lácteos (Gráfico 1).
Gráfico 1: Evolução da produção de leite (em mil l) no Maranhão e Brasil -1997-2017
Fonte: Produção da Pecuária Municipal (IBGE).
Esse forte incremento na primeira década do presente século também foi registrado no
estudo de Bezerra et al. (2017) que, trabalhando com dados para o período de 2000 a 2015,
identificaram uma taxa de crescimento da produção maranhense de leite da ordem de 9,48%
ao ano, e estabeleceram uma correlação desse crescimento com o aumento do número de
vacas ordenhadas (6,24% ao ano) e da produtividade do rebanho (10,65% ao ano).
Na Tabela 1 a seguir, apresentamos a distribuição da produção maranhense de leite e
dos estabelecimentos que produzem leite, de acordo com as principais regiões geográficas
imediatas. Como pode ser verificado, a maior parcela da produção de leite estadual é
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2010
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2014
2015
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Brasil Maranhão
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originária da RGI de Imperatriz que, de acordo com dados do Censo Agropecuário de 2017,
responde por cerca de 31% da produção de leite, sendo seguida pela região de Açailândia que,
na divisão anterior do IBGE, compunha a MRH de Imperatriz. Em termos do número de
estabelecimentos que produzem leite, a hierarquia entre as regiões se modifica um pouco, com
a RGI de Imperatriz em primeiro, vindo em seguida as regiões de Barra do Corda, Balsas e
Bacabal.
Tabela 1: Estabelecimentos produtores de leite e produção de leite segundo as principais Regiões
Geográficas Imediatas no estado do Maranhão - 2017
Região Geográfica
Imediata
Produção de leite
(em mil l)
Em %
Número de
estabelecimentos
Em %
Imperatriz
57.937
31,0
3.022
18,0
Açailândia
46.313
24,0
1.520
9,0
Bacabal
12.571
7,0
1.941
11,0
Pedreiras
12.555
7,0
1.215
7,0
Santa Inês
12.609
7,0
1.330
8,0
Barra do Corda
11.932
6,0
2.734
16,0
Balsas
11.337
6,0
2.164
12,0
Outras RGIs
23.050
12,0
3.230
19,0
Total
188.304
100,0
17.156
100,0
Fonte: Censo Agropecuário do IBGE (2017).
Outro aspecto que deve ser destacado, é que as regiões geográficas de Imperatriz e
Açailândia apresentam uma produtividade mais elevada que as demais do estado, com uma
produção média anual de leite por vaca de, respectivamente, 1.247,70 litros e 1.323,07 litros,
ao passo que a média maranhense ficou na casa dos 1.180,98 litros por vaca/ano, segundo dos
dados do Censo Agropecuário de 2017, corroborando, assim, o verificado em levantamentos
anteriores (BEZERRA et al., 2017).
2.1 O desenvolvimento da produção de leite na RGI de Imperatriz
O processo de implantação da atividade pecuária na região de Imperatriz está
relacionado com transformações ocorridas no espaço agrário, nas décadas de 1970 e 1980.
Essas mudanças foram provocadas principalmente pela política de incentivos à empresa
agropecuária, por intermédio das Superintendências de Desenvolvimento da Amazônia
(SUDAM) e do Nordeste (SUDENE) e pelo desenvolvimento de diferentes fluxos migratórios
para a região (CARNEIRO, 1994). Esses fluxos migratórios, iniciados com a abertura da
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rodovia Belém-Brasília, trouxeram agricultores e fazendeiros com experiências diferenciadas
para a região, dentre os quais, alguns com tradição na atividade pecuária.
No entanto, o impulso principal para o desenvolvimento da produção leiteira na região
ocorreu em período mais recente, na primeira metade da década dos anos 2000, como mostra
o gráfico abaixo, e deve ser associado com outro processo social, que incidiu na transformação
da estrutura fundiária regional com a expansão da chamada pecuária familiar que, ao contrário
da grande empresa agropecuária, voltada para a pecuária de corte5, tem na produção de leite
seu foco principal, como veremos na próxima seção do artigo.
Gráfico 2: Evolução da produção de leite (em mil l) e das vacas ordenhadas na região de Imperatriz -
1997-2017
Fonte: Produção da Pecuária Municipal (IBGE).
Nesse sentido, se as modificações iniciais do espaço agrário nos anos 1970/1980,
foram no sentido da concentração fundiária (ASSELIN, 1982), a partir dos anos 1990 foi
possível observar movimentos em sentido contrário – com o ressurgimento do Movimento
Sindical de Trabalhadores Rurais (MSTR)6 e a implantação do Movimento dos Trabalhadores
5 O processo de implantação da grande empresa agropecuária na região remonta aos anos 1970, com o apoio da
política de incentivos fiscais das Superintendências de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e da Amazônia
(SUDAM). Como mostrou Carneiro (1994), uma parte do fluxo migratório que ocupou a região com a abertura
da rodovia Belém-Brasília, composto de mineiros, baianos e capixabas, tinha experiência na atividade pecuária
em suas regiões de origem e se estabeleceram como fazendeiros na região, enquanto outra parte desse fluxo,
composta por camponeses, se orientou para atividade agrícolas, principalmente para a rizicultura.
6 Esse ressurgimento do movimento sindical de trabalhadores rurais esteve relacionado com a implantação do
Centro de Treinamento e Educação Rural (CENTRU) em João Lisboa. Essa entidade não governamental,
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Produção de Leite (mil l) Vacas Ordenhadas
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Sem Terra (MST) na região –, o que levou ao incremento de ocupações de terra e crescimento
do número de assentamentos de reforma agrária em municípios cujo predomínio do latifúndio
era, até então, inconteste (ALMEIDA, 2010).
Além desse crescimento do número de agricultores familiares com terra, outro fator
importante para o desenvolvimento da atividade pecuária foi o desenvolvimento de ações de
apoio à agricultura familiar na região, através da disponibilidade de recursos para a aquisição
de reses e formação de pastos, através das linhas de crédito do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), que possibilitou a formação de rebanhos
de aptidão específica para a produção de leite.
Essa expansão da produção explica o desenvolvimento da bacia leiteira pelo lado da
oferta, contudo, é preciso considerar também as mudanças que ocorreram pelo lado da
demanda. Nesse caso, é importante destacar o forte incremento no consumo de produtos
lácteos no Brasil, principalmente na venda de queijos, cujo consumo passou de 1,71 kg por
habitante em 2005, para 3,75 kg por habitante em 2016 (NARDY et al., 2019). Essa ampliação
do consumo de queijos e de derivado de leite, que foi fruto da melhoria dos padrões de renda
dos trabalhadores durante a década de 2000 (SORIO, 2018), serviu de base para a expansão
da cadeia produtiva do leite na região de Imperatriz, cujos laticínios estão orientados para o
abastecimento do mercado consumidor de centros urbanos na região Norte e Nordeste7,
conforme entrevistas realizadas com gestores dessas empresas. Na tabela a seguir (Tabela 2),
apresentamos a evolução do consumo de produtos lácteos na região Nordeste, de acordo com
dados da Pesquisa de Orçamento Familiar entre 2002 e 2008. A partir dos seus dados, é
possível verificar que embora tenha ocorrido uma redução na quantidade de produtos lácteos
consumidos por habitante (passou de 29,02 para 27,47 kg/pessoa/ano), essa diminuição
ocorreu somente no subgrupo “Leite e Creme de leite”, ao passo que os subgrupos “Queijos
e Requeijão” e “Outros produtos lácteos” tiveram incremento no consumo durante o período.
liderada por Manoel da Conceição, preparou lideranças sindicais e apoiou a organização de chapas sindicais que,
posteriormente, venceriam eleições para os principais Sindicatos dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais
(STTRs) da região, como o STTR de Imperatriz (ALMEIDA, 2010).
7 Em março de 2019, visitamos e entrevistamos gestores e/ou diretores técnicos de sete laticínios da região de
Imperatriz, que pediram para não terem seus nomes mencionados. De acordo com essas entrevistas, todos os
laticínios estavam passando por processo de ampliação e diversificação de produtos, e os principais mercados
visados incluíam as seguintes cidades: São Luís/MA, Fortaleza/CE, João Pessoa/PB, Recife/PE e Belém/PA.
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Tabela 2: Aquisição alimentar domiciliar per capita anual (em quilogramas), segundo o grupo de
produtos lácteos – Região Nordeste -2002 e 2008
Tipo de produtos
2002
2008
Variação
Leite e creme de leite
26,362
23,537
- 2,82
Queijos e requeijão
1,14
1,549
+ 0,40
Outros produtos lácteos
1,59
2,391
+ 0,80
Total
29,092
27,477
- 1,62
Fonte: IBGE (2004; 2010)
Vale destacar, ainda, que dentre os produtos fabricados pelos laticínios da região,
tiveram incremento na quantidade consumida os seguintes alimentos: queijo tipo muçarela
(passou de 0,17 para 0,31 kg/pessoa/ano), iogurte (passou de 1,08 para 1,54 kg/pessoa/ano) e
leite fermentado (passou de 0,10 para 0,43 kg/pessoa/ano) (IBGE, 2004; 2010).
2.2 O perfil dos produtores de leite na RGI de Imperatriz
De acordo com os dados do último Censo Agropecuário do IBGE, os estabelecimentos
classificados como pertencentes à agricultura familiar responderam, em 2017, por 56,3% do
leite produzido, por 57,46% do número de vacas ordenhadas e por 73,85% do número de
estabelecimentos com produção de leite de vaca na RGI de Imperatriz (Tabela 3).
Tabela 3: Número de estabelecimentos, de vacas ordenhadas e produção de leite segundo o tipo de
pecuária, RGI de Imperatriz - 2017
Número de
estabelecimentos que
produzem leite de vaca
Número de vacas
ordenhadas
Produção de
leite (mil l)
N⁰
Em %
N⁰
Em %
N⁰
Em %
Agricultura familiar
2.232
73,85
26.684
57,46
32.615
56,29
Agricultura não-familiar
790
26,15
19.751
42,54
25.323
43,71
Total
3.022
100,00
46.435
100,00
57.937
100,00
Fonte: Censo Agropecuário do IBGE (2017).
Em termos de distribuição por tamanho da área dos estabelecimentos agropecuários,
a produção de leite da pecuária familiar na RGI de Imperatriz concentra-se em áreas de 5 a
menos de 50 hectares (38,04%), de 50 a menos de 100 hectares, e de 100 a menos de 200
hectares. Vale destacar que como o módulo fiscal na região é de 75 hectares, e a definição
legal de agricultura familiar estabelece o limite de até 4 módulos fiscais, a tabulação do IBGE
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não considera áreas acima de 300 hectares como pertencentes à agricultura familiar. No que
concerne à agricultura não-familiar, a maior parte da produção de leite se concentra nos
estratos de 200 a menos de 500 hectares (42,58%).
Tabela 4: Quantidade de leite produzido por estabelecimentos por tipo de agricultura e Grupos de Área
Total na RGI de Imperatriz - 2017
Agricultura Familiar
Agricultura não-familiar
Quantidade
Em %
Quantidade
Em %
Produtor sem área
0
0
0
0
Mais de 0 a menos de 5 hectares
130
0,39
46
0,18
De 5 a menos de 50 hectares
12.409
38,04
1.520
6,00
De 50 a menos de 100 hectares
8.513
26,10
2.023
7,98
De 100 a menos de 200 hectares
8.717
26,72
2.938
11,60
De 200 a menos de 500 hectares
2.846
8,72
10.785
42,58
De 500 hectares ou mais
0
0
8.011
31,63
Total
32.615
100,00
25.323
100,00
Fonte: Censo Agropecuário do IBGE (2017).
Por fim, vale destacar que a pecuária familiar da região de Imperatriz também realiza
a venda de bovinos para cria, e participa do circuito de recria ou engorda, ainda que de forma
menos acentuada que na produção de leite8. Esta atividade representa importante
complemento na economia dos agricultores, pois garante uma renda anual proveniente dos
ciclos reprodutivos dos rebanhos, tendo em vista os valores pagos por um bezerro na região,
considerado satisfatório do ponto de vista dos criadores.
3. A organização da pecuária leiteira no assentamento São Jorge
A ocupação da área hoje denominada assentamento São Jorge se confunde com a
trajetória dos agricultores da microrregião de Imperatriz, pois foi construída a partir de uma
lógica que permeia diversas referências e trajetórias sociais de agricultores maranhenses e
nordestinos. Sua ocupação se iniciou na década de 1990, por meio do estabelecimento de
8 A partir dos dados preliminares do Censo Agropecuário de 2017 foi possível fazer uma estimativa dessa
participação, contudo, na última versão desse recenseamento, disponibilizada na base de dados SIDRA-IBGE,
essas variáveis desapareceram. De acordo com os dados da versão preliminar, foi possível constatar que os
estabelecimentos da agricultura familiar responderam por cerca de 20% dos bovinos vendidos para abate e por
cerca de 40% dos bovinos vendidos para cria, recria ou engorda.
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grupos familiares vindos de outras regiões do Maranhão, e dos estados do Ceará, Sergipe e
Paraíba.
O processo de ocupação do assentamento se deu a partir das mobilizações e ações
coletivas de luta pela terra, organizadas pelo Centro de Educação e Cultura do Trabalhador
Rural (CENTRU), nessa região. Em 1997, após um período marcado pelo conflito entre os
agricultores e um fazendeiro que reivindicava a posse da terra, o Instituto Nacional de
Colonização (INCRA) desapropriou a área e a transformou em assentamento de Reforma
Agrária, com uma área total de 4.841,56 hectares (Figura 1).
Figura 1: Mapa do assentamento São Jorge com a distribuição dos lotes
No momento de sua criação, foram assentadas 94 famílias, para uma capacidade de
assentamento de 96 lotes, e foi definida uma área de reserva legal coletiva de cerca de 232
hectares, que até hoje se mantém. Apesar da ocorrência de algumas vendas informais de lotes,
esse número de assentados vem se mantendo constante ao longo do tempo, graças ao trabalho
organizativo que esteve presente no processo de ocupação da fazenda e ao acompanhamento
técnico que foi desenvolvido pelo CENTRU.
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O desenvolvimento da agricultura
familiar e sua inserção na cadeia
produtiva do leite na região de
Imperatriz: principais características e
desafios socioeconômicos
CARNEIRO, Jonatha Farias
CARNEIRO, Marcelo Sampaio
NETO, Evaristo José de Lima
3.1 O desenvolvimento da atividade pecuária de leite no assentamento São Jorge
De acordo com informações do Relatório Final do Plano de Consolidação do Projeto
de Assentamento São Jorge (IICA, 2006), o plantio de lavouras anuais – com destaque para
as produções de arroz, feijão e milho –, apareciam como as principais atividades produtivas
dos agricultores locais (nos anos 1990). Ou seja, a atividade pecuária não esteve presente
desde o momento da constituição do assentamento, de forma que para compreendermos a sua
incorporação pelos agricultores é necessário considerar o processo de crise da produção
agrícola tradicional (arroz e mandioca) e identificar os fatores que favoreceram o
desenvolvimento da produção de leite.
Durante um longo período, as vendas de arroz e farinha foram as principais alternativas
comerciais para a agricultura familiar na região, no entanto, no final dos anos 2000, o plantio
da primeira cultura se tornou inviável, por conta do desenvolvimento de uma praga, a
cigarrinha das pastagens (COUTO, 2015), e do que alguns produtores chamaram de
“enfraquecimento da terra”, pois o uso intensivo da mesma área de roça levou à perda de
fertilidade do solo. A produção de farinha, por sua vez, sofreu um declínio significativo,
devido a uma queda do preço nos mercados locais, desestimulando a produção de mandioca
em larga escala e a fabricação do produto para venda.
Diante dessa situação, os agricultores partiram para o desenvolvimento de atividades
econômicas alternativas, dentre as quais se destacou a produção de leite bovino, o que foi
favorecido tanto pela disponibilidade de financiamento público (Pronaf) para aquisição de
rebanho e formação de pastagens, quanto pela existência de uma cadeia regional de laticínios
demandando a matéria-prima leite.
Os primeiros rebanhos se formam no final da década de 1990, com a compra de
algumas reses para a produção de leite. No início, por conta da pequena quantidade produzida,
o leite era um produto destinado ao consumo dos grupos familiares e para composição de
alimentação animal (suinocultura). Entretanto, com o passar do tempo, os rebanhos foram
crescendo e a produção de leite se intensificou, o que levou os agricultores a estabelecerem
contatos comerciais com queijeiras e laticínios instalados na região de Imperatriz.
O primeiro grande comprador de leite do assentamento foi uma “queijeira” (laticínio
não formalizado) localizada no povoado do São João do Andirobal, distante cerca de oito
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quilômetros da sede do assentamento. Contudo, esse canal de comercialização enfrentou
problemas com a vigilância sanitária e foi fechado, o que levou os produtores a estabelecerem
contato com um laticínio formalizado, também localizado nas proximidades do assentamento
– o laticínio Bethe.
A partir desse contato, no ano de 2007, foi instalado um tanque de recepção de leite
no assentamento, localizado na sua principal área residencial, e que ficou sob a
responsabilidade da associação dos produtores locais. Desde então, vários outros
compradores, entre eles atravessadores, laticínios e queijarias, procuraram também
estabelecer relações com produtores de leite do PA São Jorge. No entanto, nenhum conseguiu
se prolongar por um longo período, como no caso observado do laticínio Bethe, o que pode
ser explicado pelas condições de pagamento estabelecidas por esse laticínio, o qual,
diferentemente da maioria dos outros compradores, possui uma política de pagamento
baseado na quinzena e na relação de confiança construída junto aos assentados.
3.2 A atividade pecuária no assentamento: caraterísticas gerais
Uma característica importante do assentamento São Jorge, e que favorece o
desenvolvimento da atividade pecuária por parte dos assentados, é o fato de que a área é bem
servida de cursos d’agua (em oposição, por exemplo, ao assentamento vizinho, PA Itacira,
que se encontra localizado em um “trecho seco”), e que o tamanho inicial dos lotes, quando o
assentamento foi criado, correspondia à dimensão estabelecida pelo módulo fiscal municipal
(75 hectares). Todavia, de acordo com levantamento realizado por Carneiro (2016), entre os
assentados, com o processo de entrada e saída de agricultores, atualmente, a maior parte dos
lotes possui 50 hectares.
O tamanho do rebanho dos agricultores é diversificado. Como pode ser visto na
Tabela, a seguir, a maior parcela dos produtores possui um rebanho no intervalo entre 30 e 39
reses (27,58%), mas com a presença importante de produtores com mais de 60 reses (24,13%)
e daqueles com 40 a 49 reses (17,24%).
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Tabela 5: Agricultores do assentamento São Jorge por tamanho do rebanho - 2019
Menos de
10 reses
10 a 19
reses
20 a 29
reses
30 a 39
reses
40 a 49
reses
50 a 59
reses
Mais de
60 reses
Número
1
4
3
8
5
1
7
em %
3,44
13,79
10,34
27,58
17,24
3,44
24,13
Fonte: Pesquisa de campo
Pensando em termos de estratégias econômicas, podemos dizer que cerca de ¼ dos
agricultores do assentamento, aqueles com mais de 60 reses, estão numa trajetória de
especialização, em um processo que pode levá-los a se tornarem, basicamente, produtores de
leite, como foi o caso do produtor Alberto9. Esse agricultor, atualmente é o maior produtor de
leite do assentamento, possui cerca de 300 reses, possui terra alugada para manutenção do seu
rebanho fora do assentamento e emprega dois assalariados rurais para cuidarem do gado.
No que concerne aos dados sobre a distribuição dos agricultores por área de pastagem,
verificamos que a maior parcela se encontra na faixa de 10 a 29 hectares de área de pastagem
(34,48%). Chama a atenção, porém, o fato de cerca de ¼ dos produtores possuírem área de
pastagem de 40 hectares ou mais, de forma bastante semelhante ao identificado na Tabela
anterior.
Tabela 6: Agricultores do assentamento São Jorge por área de pastagem - 2019
Menos de
10 hectares
10 a 19
hectares
20 a 29
hectares
30 a 39
hectares
40 a 49
hectares
50 a 59
hectares
60
hectares
ou mais
Número
1
10
6
5
4
1
2
em %
3,4
34,48
20,68
17,2
13,79
3,4
6,9
Fonte: Pesquisa de campo
No que concerne à venda de leite pelos produtores, através da informação com o
responsável pela gestão do tanque de resfriamento do laticínio que compra a maior parte da
produção do assentamento, observamos, no período do inverno, uma coleta diária média de
968,57 litros que, no verão, cai para 791,46 litros. Por produtor individual, esse valor
corresponde a 56,97 litros/dia no inverno e 46,55 litros/dia no verão. Contudo, vale destacar
9 O nome desse e dos demais produtores citados neste artigo são fictícios.
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que essa estatística se refere somente a 17 agricultores que, no momento da coleta dos dados,
vendiam leite de forma regular para o referido laticínio.
3.3 A organização da produção e comercialização de leite no assentamento
Para compreensão do funcionamento do sistema de produção e comercialização da
produção leiteira do assentamento São Jorge, é de fundamental importância descrever alguns
agentes centrais desse processo. Dito isto, faz-se necessário entender o papel do freteiro na
dinâmica da produção, logística e comercialização do leite no assentamento.
O freteiro é um assentado que, a contrato da empresa de laticínios, cuida do tanque de
resfriamento que recebe e armazena a produção diária de leite. Ele se ocupa também do
transporte do leite – cujos produtores, devido à quantidade produzida e à distância, não podem
levá-lo até o tanque –, e ainda faz o controle e registro da quantidade de leite entregue por
cada produtor diariamente10. Depois de coletado e armazenado no tanque de resfriamento, o
leite é transportado através de um veículo especialmente adaptado para essa atividade – um
caminhão isotérmico. A coleta do leite pelo tanque de resfriamento é feita a cada dois dias
por esse caminhão, que transporta o leite até a sede do laticínio.
O uso dos serviços do freteiro pelos assentados é importante, pois possibilita uma
maior autonomia na gestão de tempo do trabalho nos estabelecimentos agropecuários,
permitindo ao produtor o investimento de sua força de trabalho em outras atividades, como o
plantio de roça, a manutenção de um cercado ou pasto, segundo nos relatou o produtor
Roberto:
Porque na verdade, a gente paga 5 centavos (por litro) pra ele (freteiro) ir
pegar lá (a produção leiteira diária). Mas no final das contas, eu ganho mais.
Por que eu tiro o meu leite, e estou liberado pra cuidar de outra coisa, né...
de outro serviço. Aí, sempre pra deixar o leite aqui na vila (local onde fica
o tanque de resfriamento), você perde muito tempo. E aí esse tempo, que
venho deixar o leite aqui, eu estou trabalhando na minha roça. (Entrevista
com produtor Roberto em 30/11/2015).
10 No caso do assentamento São Jorge, a remuneração do freteiro é feita pelo laticínio, que paga um salário
mínimo mais um adicional de cinquenta centavos por litro de leite coletado. Porém, esse adicional é descontado
no pagamento do leite aos assentados, de forma que podemos dizer que parte da remuneração do freteiro é feita
pelos produtores de leite.
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Como outras atividades agropecuárias, a produção do leite também se caracteriza por
sua sazonalidade. Ou seja, ela sofre uma forte variação em função do calendário climático
que, na região, se diferencia entre um período seco (julho a dezembro) e outro chuvoso
(janeiro a junho). De acordo com essa sazonalidade, no período seco (chamado de verão) a
produção de leite diminui, enquanto no período chuvoso (inverno) a produção de leite é
incrementada, como destacado no final da seção anterior.
Para os agricultores do assentamento, existe uma clara distinção entre o período do
inverno e o do verão. No primeiro período, as condições climáticas favorecem a formação de
um pasto de qualidade, uma alimentação mais abundante para o rebanho bovino e, por
conseguinte, o aumento na quantidade de leite produzido. De forma inversa, o verão é a época
do ano em que tais condições desfavorecem a produção e a formação de um pasto considerado
viável do ponto de vista dos produtores. Nesse sentido, a dualidade entre inverno/verão
comanda o ritmo do trabalho no interior dos lotes e influencia, de forma significativa, na
produção e dinâmica econômica da atividade leiteira local. No período do inverno, por
exemplo, o preço pago pelo laticínio por litro de leite sofre uma diminuição considerável,
época em que a produção de leite dos agricultores encontra-se em crescimento. Tal
conformação econômica sofre uma dinâmica contrária no período do verão, época em que a
qualidade dos pastos diminui, o preço do litro do leite sofre aumento e há pouca produção
diária11.
Não só os rendimentos com a produção de leite sofrem alterações durante as épocas
do ano: os agricultores orientam e reorientam sua rotina de trabalho em torno da sazonalidade
climática e econômica pelas quais são submetidos. No período do inverno, por exemplo, o
tempo dedicado à ordenha precisa ser maior do que no período do verão, e o auxílio do freteiro
torna-se mais premente, uma vez que aumenta a quantidade da produção diária do leite.
3.4 A economia do leite e a divisão do trabalho familiar no assentamento
Como indicado anteriormente, os agricultores familiares do assentamento São Jorge
conjugam a pecuária leiteira com um conjunto de outras atividades que incluem o cultivo de
11 De acordo com as últimas informações coletadas, o preço pago pelo litro do leite variou entre R$ 0,80 centavos
no inverno, e R$ 1,20 no verão.
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produtos agrícolas (arroz, mandioca, milho e feijão), a criação de pequenos animais
(suinocultura e avicultura) e a produção de hortaliças.
Apesar disso, a forte presença da pecuária leiteira no assentamento e a sua importância
na composição da renda monetária desses agricultores nos permite afirmar que esta atividade
econômica aparece como a principal alternativa de comercialização, e é fundamental na
complementação da renda dos grupos familiares locais.
Minha avaliação é que o gado está sendo o carro-chefe de emprego e renda
pra boa parte das famílias que moram aqui. Não é todo mundo, mas boa
parte das famílias que mora aqui vive dessa questão aí. É do leite, da venda
de um bezerro. Não é a atividade única, eles têm lá o plantio de milho,
feijãozinho, é esse aí o complemento. Mas, de quinze em quinze dias, todos
fazem sua dívida pra pagar com aquele dinheiro do leite, certo? (Entrevista
com produtor Gilvan, em 25/11/2012).
Ao mesmo tempo, atividades ligadas ao plantio de mandioca e de grãos como o arroz,
feijão e milho, a produção de hortaliças e a criação de animais como a suinocultura e
avicultura, funcionam como fonte de subsistência desses grupos familiares, sendo
comercializados eventualmente.
Compreendemos assim a organização econômica dos grupos familiares presentes no
assentamento São Jorge a partir de sua inserção em múltiplas atividades, o que permite uma
maior autonomia e capacidade de ajustamento desses produtores a diferentes contextos
econômicos e à utilização de forma diversificada de sua força de trabalho, de meios de
produção e outros recursos disponíveis.
Nesse sentido, é possível afirmar que as unidades produtivas em estudo respondem ao
que Carneiro (1998) chamou de “pluriatividade do núcleo familiar”, pois tais famílias são
capazes de garantir a manutenção de suas formas tradicionais como estratégia de autonomia
em relação às influências internas, ao mesmo tempo em que são também capazes de
incorporar novos valores e se ajustar a processos de mudanças sociais, econômicas e
ambientais em um espaço de negociações e tensões.
Por conta dessa pluriatividade, podemos dizer que a agricultura familiar da região teve
a flexibilidade necessária para se adaptar ao declínio da produção de arroz e às baixas no preço
da farinha como cultivos comerciais, incorporando a pecuária de leite nesse papel, além de
continuar o cultivo de produtos para o autoconsumo (mandioca, feijão, arroz) e desenvolver
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uma criação animal (a suinocultura), que se articula com a atividade pecuária através do uso
do soro do leite para a nutrição animal.
Por outro lado, é necessário destacar que o desenvolvimento desse conjunto de
atividades – da produção agrícola e de da criação animal –, exige uma divisão social do
trabalho bem delimitada no âmbito do grupo familiar, divisão de trabalho sexual e
intergeracional, articulando tarefas e espaços distintos de acordo com cada uma dessas
clivagens (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997).
Assim, certas atividades relacionadas à pecuária consideradas mais “penosas”, como
os cuidados com o rebanho, a manutenção do pasto ou de um cercado são realizadas pelos
membros masculinos e adultos, salvo em casos excepcionais, quando a mulher tem que
substituir o chefe de família (CARNEIRO, 2016). Em atividades que exigem menor esforço
físico, como a ordenha e o auxílio para entrega do leite no tanque de resfriamento,
identificamos a participação de crianças. Quando a família realiza a produção de queijo, essa
tarefa cabe geralmente às mulheres, pois, a fabricação de queijo também é considera uma
atividade “leve” em termos físicos12.
As atividades necessárias para o desenvolvimento dos cultivos agrícolas, as lavouras
de arroz, mandioca e feijão, que envolvem tarefas como queima, coivara, plantio e
manutenção, são de responsabilidade dos membros masculinos adultos, contando, em alguns
momentos, com a participação das mulheres da família (CARNEIRO, 2016). Por sua vez, a
produção de hortaliças, utilizadas para consumo e/ou venda nas feiras locais, também se
configura como uma atividade considerada “própria” das mulheres, no âmbito dos
estabelecimentos familiares.
Dessa maneira, a economia dos agricultores do assentamento São Jorge se sustenta a
partir da articulação de diferentes atividades, dentre as quais se destacam a produção de leite,
de grãos, de hortaliças e a criação de pequenos animais (suínos e aves), cujos resultados se
orientam para o consumo do grupo familiar ou a venda em diferentes circuitos mercantis, de
acordo com o princípio da alternatividade13.
12 Para uma descrição do processo de fabricação de queijo no assentamento ver Lima Neto (2017).
13 De acordo com Garcia Jr. (1983, p.129), alguns produtos camponeses possuem como característica sua
alternatividade, isto é, a possibilidade de serem consumidos ou vendidos diante das flutuações dos preços do
mercado. Destarte, tanto a comercialização da própria produção quanto o consumo desse tipo de produto levam
em consideração a flutuação dos preços de mercado, não havendo nenhuma falta de sensibilidade a essas
flutuações, mas uma forma própria de se relacionar com elas.
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4. A produção de leite e sua inserção em diferentes circuitos de comercialização
Nesta seção, discutimos o processo de inserção da produção de leite e derivados dos
agricultores do assentamento São Jorge em diferentes circuitos de comercialização,
procurando destacar o sentido da opção por determinado produto (leite ou queijo) ou cliente,
do ponto de vista da estratégia do grupo familiar.
4.1 A venda de leite para laticínios ou queijeiras
A maior parcela da produção de leite dos agricultores entrevistados direciona-se para
a venda, tendo como destino laticínios ou queijarias. Uma parcela pequena do leite produzido
é destinada ao consumo familiar e, como veremos na seção seguinte, à fabricação de queijo.
A venda do leite para os laticínios se tornou uma opção viável para os produtores de
leite local, pois significa a possibilidade de um fluxo regular e seguro de recursos, por conta
da relação de confiança estabelecida entre os agricultores e o principal laticínio que atua no
assentamento. Todavia, esse tipo de comercialização apresenta um importante inconveniente,
isto é, os agricultores, ao venderem para os laticínios, ficam impossibilitados de utilizar o soro
do leite. Ou seja, na venda realizada para o laticínio, um subproduto do leite – o soro – não é
devolvido ao agricultor, o que impossibilita sua utilização na atividade de criação animal
(suinocultura). De acordo com os produtores entrevistados, o soro representa algo como 80%
do custo da alimentação animal, sendo que na sua falta a produção suína se torna inviável.
A segurança da venda para o laticínio se refere não somente à questão do pagamento
regular – feito quinzenalmente – como também ao fato de que esse laticínio se encontra
formalizado, possuindo selo de inspeção animal, o que significa a perspectiva de uma venda
sem problemas com a vigilância sanitária. Por outro lado, o referido laticínio realizou o
investimento da implantação do tanque de resfriamento no assentamento e paga, junto com
os agricultores, o freteiro para a realização do transporte interno e a coleta do leite dos
assentados, que, como vimos na seção anterior, representa um apoio importante para o
processo de venda do leite por cada produtor individualmente.
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Como vimos anteriormente, devido a problemas com a vigilância sanitária, a
experiência dos produtores na comercialização com os chamados queijeiros produziu uma
espécie de insegurança e certa desconfiança em relação a este tipo de comprador. Alguns
optam por esse circuito de comercialização por ele possibilitar a utilização do soro do leite na
atividade de criação animal (suinocultura), por permitir uma maior flexibilidade na
negociação do preço do leite, e pela possibilidade em obter adiantamento do pagamento –
algo que não ocorre na venda para o laticínio.
Diferentemente do sistema de entrega para o laticínio, os chamados queijeiros passam
a cada dois dias no lote dos agricultores para coleta do leite produzido. Isto permite que o
produtor retire o “soro” do leite que é, como demonstramos, um importante elemento para
composição da alimentação animal.
4.2 A fabricação de queijo
A fabricação de queijo caseiro tem sido uma alternativa importante para uma parcela
dos agricultores do assentamento. De acordo com Carneiro (2016), essa fabricação exerce um
importante papel na dinamização das atividades produtivas consideradas auxiliares, realizada
geralmente por mulheres, possibilitando uma maior rentabilidade no âmbito da produção
agrícola.
Durante as atividades de pesquisa de campo, não identificamos a presença de um
grande produtor de queijo, mas de alguns agricultores que optam pela fabricação desse
produto, principalmente em função da oscilação no preço do leite pago pelos laticínios e da
possibilidade de investimento na atividade de suinocultura.
Visitamos um produtor de queijo do assentamento que havia começado a trabalhar
com essa atividade há pouco tempo e que, recentemente, comercializava o total de sua
produção leiteira com um laticínio formalizado. Um dos principais fatores que o levaram a
investir na fabricação de queijos está intimamente relacionado à possibilidade de criar animais
e aos rendimentos advindos da atividade, considerados mais satisfatórios em relação à venda
do leite.
O queijo fabricado por esse agricultor é vendido no comércio local, nas feiras que
ocorrem nos finais de semana e para comerciantes do núcleo urbano do município de
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Cidelândia. É importante destacar a importância das relações de reciprocidade estabelecidas
entre esse produtor de queijo e os compradores locais, o que possibilita a construção de um
ambiente favorável de confiança enraizado nas conversas em torno da qualidade e no “gosto”
do produto. Como nos relataram alguns assentados durante pesquisa de campo, “o queijo do
homem é bom, eu sempre compro com ele por que é muito bom”.
Além de produtor de “queijo em tempo integral”, foi possível identificar também
alguns agricultores que durante as épocas consideradas mais “penosas” utilizam a fabricação
e venda de queijos como estratégia para fugir das oscilações de mercado. Essas estratégias
não são constantes e nem podem ser previsíveis ou regulares, pois estão condicionadas às
mudanças no ritmo e no preço pago pelo litro de leite. Entrevistamos uma assentada, por
exemplo, que nos explicou que a escolha entre vender o leite para o laticínio e/ou utilizar o
produto para fabricação de queijos está intimamente ligada à oscilação do preço do litro do
leite e à capacidade produtiva do rebanho bovino no percurso do ano:
Produtora: Aí quando diminui... Quando ela [produção de leite] tá dando de
dez, quinze litros, até vinte, vinte e cinco, nós botamos no laticínio. Aí
quando é de quinze pra baixo, aí faz o queijo. Nós usamos [o queijo] pro
nosso gasto e a gente vende dia de sábado na feira. (Entrevista realizada com
Tereza em 29/11/2015).
A fabricação de queijos pode representar, então, uma estratégia que é acionada pelos
agricultores quando a combinação entre a capacidade produtiva do rebanho e o preço pago
pelos laticínios é considerada insatisfatória. Esse produto pode ser vendido, tanto entre os
assentados como na chamada “feira de Cidelândia”, nos finais de semana.
5. Considerações finais
O artigo teve por objetivo descrever o processo recente (2000 a 2017) de expansão da
pecuária leiteira entre agricultores familiares na RGI de Imperatriz, bem como analisar o papel
desempenhado por essa atividade na economia do grupo doméstico (GARCIA JÚNIOR,
1989; WOORTMANN; WOORTMAN, 1997) e identificar alguns desafios colocados.
Como destacamos na primeira seção do artigo, a partir do início do presente século a
produção leiteira teve forte impulso no estado do Maranhão, destacando-se nesse processo a
RGI de Imperatriz, que responde por cerca de 1/3 da produção estadual. Essa expansão pode
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ser explicada por dois fatores: a expansão na oferta de leite e o incremento da demanda
industrial por essa matéria-prima. No primeiro caso, dois aspectos merecem relevo, a
expansão das áreas e agricultura familiar na região, observáveis no período intercensitário
1996-2006, e o papel desempenhado pelas políticas públicas de financiamento da agricultura,
em especial o Pronaf, na formação dos rebanhos (CARNEIRO, 2016). Pelo lado da demanda,
atuaram o aumento no consumo de produtos lácteos (SORIO, 2018) e a formação de uma
cadeia produtiva do leite na região (SILVA, 2012; LIMA NETO, 2017).
A partir do estudo localizado no assentamento São Jorge, foi possível delinear, de
forma mais detalhada, o processo de expansão de desenvolvimento da pecuária leiteira por
agricultores familiares; descrever como essa atividade se desenvolve no âmbito do grupo
doméstico, destacar sua importância para a reprodução econômica, ao mesmo tempo, em que
analisamos a relação desses produtores com demais participantes da cadeia produtiva do leite
(laticínios, queijeiros, freteiros e atravessadores).
Com base nessas informações, foi possível verificar que a incorporação da atividade
leiteira pelos agricultores familiares possui relação com os seguintes fatores: a crise vivida
pela produção agrícola tradicional (arroz e mandioca) na região (COUTO, 2015), a
disponibilidade de financiamento público para a compra e formação do rebanho bovino
(Pronaf), a existência de um savoir-faire local no manejo do gado bovino (CARNEIRO, 2015)
e o crescimento da demanda pela matéria-prima leite, motivada pela expansão do número de
laticínios na região (LIMA NETO, 2017).
Entretanto, passados cerca de vinte anos do incremento da atividade leiteira no
assentamento, já é possível observar um processo de diferenciação social entre os produtores
com o surgimento da oposição entre duas estratégias de reprodução que, seguindo Lamarche
(1993), poderíamos caracterizar como a disputa entre um “sistema policultura-criação de
gado” versus um “sistema forrageiro”. No primeiro caso, que corresponde à maioria dos
produtores do assentamento, a atividade pecuária é desenvolvida, mas se insere em um
sistema produtivo mais amplo, que envolve atividades agrícolas e de criação animal, com
especial destaque para a suinocultura. No segundo caso, os produtores se especializam na
produção de leite, geralmente vinculados a algum laticínio ou “queijaria”, amplia fortemente
o rebanho, alugam lotes no assentamento ou fora dele e contratam mão de obra permanente
para auxiliar no manejo do gado.
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Outra clivagem observada diz respeito à relação com a indústria do leite, laticínios ou
“queijarias”, em termos semelhantes ao destacado para Vatin (1996) para o caso francês.
Nessa disputa, a questão central diz respeito à possibilidade de utilização de um subproduto
da produção de leite – o soro. Os agricultores que participam do sistema “policultura-criação
de gado”, possuem interesse na utilização do soro para a alimentação animal e, desse modo,
procuram estabelecer relações com agentes da cadeia produtiva do leite para que façam a
devolução do soro, ao passo que os produtores que estão se especializando, não possuem o
mesmo tipo de interesse.
Por último, gostaríamos de destacar que existem também agricultores que,
dependendo do preço pago pelo leite, preferem fabricar seu próprio queijo, com padrões de
qualidade (ou convenção) de tipo artesanal (LIMA NETO; CARNEIRO, 2019). Nesse caso,
eles mantêm não só a possibilidade de utilização do soro para a suinocultura, mas sua
autonomia diante dos preços praticados por laticínios e “queijeiras” na região.
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