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22 LEITURAS DA HISTÓRIA
Por Fernando Miramontes Forattini
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA | Relações Públicas
Em uma era na qual muitos aspiram a ser
influenciadores ou “criadores de conteúdo”,
pouco se sabe sobre Edward Bernays, o
influenciador original que uniu ideias da
psicanálise a práticas da manipulação do
coletivo e até hoje inspira a indústria
O primeiro
influencer
Hoje em dia, estima-se que existam
mais de 230 mil influenciadores digi-
tais ativos no mundo. Trata-se de um
número significativo, mas ainda não
suficiente para abarcar os consumidores, visto
que se estima que a cada 11 segundos um usuário
se inscreva em alguma rede social e que o brasi-
leiro ga ste, em média, 9 horas por d ia consumindo
alguma forma de conteúdo. Influenciadores são
pessoas que possuem a capacidade de influenciar
as decisões do consumidor sobre certos produtos
ou estilo de vida a ser adotado.
Entretanto, pouco se sabe sobre quem muitos
consideram como o pai “das relações públicas”:
Edward Bernays. Apontado pela revista LIFE
como um dos 100 mais importantes americanos
do século XX, tornou-se um dos principais agen-
tes no remodela mento socia l e cultural do mundo,
tanto pela via da propaganda de produtos comer-
ciais como pela via política. Um de seus envol-
vimentos políticos mais conhecidos foi quando
trabalhou para proteger os interesses da empresa
United Fruits na América Central e melhorar sua
imagem após o golpe de Estado na Guatemala.
Se na década de 1940 Bernays foi o responsá-
vel por aumentar a venda de bananas nos Esta-
dos Unidos ao ligar seu consumo com boa saúde
(colocando-a em hotéis, campanhas sobre café da
manhã saudável1 e fotos com celebridades), em
1954 Bernays é quem recomendará campanhas
que protejam os interesses da empresa nos países
da América Latina. Ele recomendará campanhas
em que universidades, advogados e o próprio
governo dos Estados Unidos vão condenar as
ameaças de expropriações de empresas estaduni-
denses e vai pressionar o governo a anunciar que
expropriações seriam casos dignos de entrarem
na Doutrina Monroe.
Para ganhar mais apoio, Bernays viu a impor-
tância do controle da narrativa e cria um jornal
(Guatemala Newsleer) e diversos relatórios para
servir notícias para políticos e jornalistas sobre a
situação da Guatemala, retratando o então presi-
dente Jacobo Arbenz Guzman como comunista.
Após o golpe, Bernays moldará a imagem do novo
presidente guatemalteco Carlos Castillo Armas,
com dicas sobre suas aparições públicas tanto na
Guatemala quanto nos EUA.
1 Interessante notar que ele foi responsável por criar o “verdadeiro café da
manhã americano”, constituído por ovos e bacon.
LEITURAS DA HISTÓRIA 23
© EDWARD L. BERNAYS / DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG
“Todo dia busque um Lucky
ao invés de um doce.”
MULHERES E VOTOS
Entretanto, Bernays é mais conhecido por sua atu-
ação anterior, na década de 1920. Naquela época era
socialmente condenável uma mulher fumar em públi-
co. “Grupo de garotas fumam cigarros como gesto de
‘Liberdade’” era a notícia da capa do New York Times
de 1º de abril de 1929. No entanto, não era piada, mas
sim uma das maiores jogadas publicitárias do século
XX. Bernays tinha entre seus clientes a Companhia de
Tabaco Americana, e o presidente desta companhia,
George W. Hill, queria estimular que a outra metade
da população, o gênero feminino, consumisse mais
seus produtos.
Bernays, autor de livros como Cristalizando a Opi-
nião Pública, Propaganda, Fabricação do Consenti-
mento, entre muitos outros, consulta psicanalistas e
outros profissionais da indústria para chegar à ideia
de equalizar cigarros com “tochas da liberdade” – algo
conveniente, pois a Estátua da Liberdade é uma figu-
ra feminina segurando uma tocha. Mas como fazer
esta ideia ser implementada sutilmente, sem menção
à Companhia de Tabaco Americana, nos movimentos
feministas estadunidenses a tempo do Desfile de Pás-
coa de Nova York (algo que garantiria alta publicidade
nos jornais)?
Bernays pede então à sua secretaria, Bertha Hunt,
para que se infiltrasse nos movimentos como uma de-
fensora dos direitos das mulheres e conclamasse um
movimento de mulheres fumando nas ruas de Nova
York. Seu telegrama, note o leitor como ele faz questão
de enumerar os lugares em que se pode fumar, é mais
uma propaganda que uma chamada ao ato público:
“No interesse da igualdade dos sexos e para combater
mais um tabu sexual, eu e algumas jovens acendemos
outra tocha da liberdade fumando cigarros enquanto
passeávamos na Quinta Avenida no domingo de Pás-
coa. Estamos fazendo isso para combater o preconcei-
to bobo de que o cigarro é adequado para a casa, o res-
taurante, o táxi, o saguão do teatro, mas nunca para a
calçada”.
JUVENTUDE MODERNA
O movimento pode não ter alcançado um grande
número de apoiadoras, dez apenas compareceram,
mas foi o suficiente para, com o devido insuflamen-
to midiático, agitar os Estados Unidos. Repórteres
foram avisados previamente sobre quem seriam as
jovens mulheres e qual o momento em que elas acen-
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HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA | Relações Públicas
© REPRODUÇÃO © REPRODUÇÃO
deriam os cigarros em uníssono. Reportagens de
duas páginas no New York Times foram produzidas
e em outros jornais. Nenhuma chegou a mencionar a
companhia de tabaco ou Bernays.
Bertha cumpriu seu papel profissional. Quando
abordada por um jornalista na marcha ela inventou
uma história de rebelião em que teria sido “aborda-
da por um homem na rua que pediu que eu apagas-
se o cigarro porque era embaraçoso. Conversei com
minhas amigas e decidi que já era hora de algo ser
feito sobre essa situação”. O resultado foi dúbio em
relação ao imediato apoio. Reportagens de mulheres
em importantes cidades fumando ao ar livre come-
çaram a circular: São Francisco, Detroit, Chicago e
Boston, por exemplo. Por outro lado, muitos clubes
femininos se queixaram em jornais sobre essa atitu-
de. Mas, no médio e longo prazo, a campanha gerou
a comoção pretendida e o cigarro foi associado a jo-
vens modernas, elegantes, emancipadas e esbeltas, e,
por isso, foi um sucesso.
IDEIA DE SAÚDE FABRICADA
Assim, o produto foi comercializado não só
pelo produto em si, mas pelo estilo de vida que
ele proporcionava. Para isso, basta ver as propa-
gandas da época. Bernays, em suas memórias,
diz: “Costumes antigos, eu aprendi, podem ser
quebrados por um apelo dramático, disseminado
por uma rede que é a mídia. Obviamente, o tabu
não foi quebrado completamente. Mas o início foi
dado, um que, hoje, me arrependo”.
Se magreza era sinônimo de elegância, também
deveria ser de saúde. É com Bernays que se inicia
o mito, presente até hoje, de que cigarros inibem o
apetite e de que fazem bem à saúde. Sem nenhuma
base em pesquisas, a ideia é lançada ao público e
recebe aprovação quase que instantânea de seus
consumidores. Bernays envia cartas a fotógra-
fos, revistas e outras fontes de publicação concla-
mando-os a utilizar fotos de celebridades magras
fumando ao invés de consumindo um alimento,
quando fosse possível.
A indústria do açúcar reage furiosamente a
essas alegações, forçando o presidente da compa-
nhia, sob sugestão de Bernays, a financiar estu-
dos científicos que comprovassem a propaganda,
pois sabiam que a indústria de açúcar também
estari a fazendo o mesmo. O lema “a cura para pro-
paganda é mais propaganda” foi seguido à risca.
No final, a batalha narrativa que prevaleceu foi a
da indústria do cigarro.
Um dos maiores problemas para a indústria
tabagista era a saúde e os efeitos causados à pele,
além do cheiro do cigarro, sinais opostos ao estilo
de vida vendido. Assim, aproveitando-se da moda
de raios ultravioletas em 1931 (vendidos como o
“elixir da vida”), os cigarros começaram a ser pro-
pagandeados como torrados com raios ultravio-
letas, o que diminuiria a irritação na garganta e
os malecios à saúde. Os “garotos-propagandas”
também mudaram: de cantores de ópera e mem-
bros da alta sociedade, para médicos, celebrida-
des do cinema e altos executivos (sinônimo de
poder e sucesso).
ARQUITETURA DA ELEGÂNCIA
Até mesmo a ideia de cigarro associado à ele-
gância fora criada. Imagens e filmes com atrizes
fumando não surgiram, inicialmente, por acaso.
Para termos ideia do alcance da manipulação en-
gendrada por Bernays, até questões relativas às
cores foram pensadas. Estudos mostraram, em
1934, que mulheres estavam fumando dentro e
Edith Lee fuma na marcha “Tochas para
Liberdade” em Nova Iorque, 1929.
“Eu fumo Lucky ao invés de comer
doces.” (Com Lady Grace Hay, a
primeira mulher a dar a volta ao
mundo pelo ar – via zepelim)
“Médicos dizem: Luckies são menos
irritantes à garganta. São tostados”.
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© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG
FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI é graduado em Filosofia pela USP,
mestre e doutorando em História pela PUC-SP com especialização em cor-
rupção pela Transparency International School on Integrity (Vilnius , Lituânia)
e pela Universidade da Pensilvânia (EUA). Autor de livros como: Foi Golpe! O
humor como resistência aos discursos legitimadores iniciais do golpe civil-
-militar de 1964 (Ed. Ape’Ku, RJ), Desmistificando o governo Castelo Branco e
sua relação com a mídia (vol.1 e vol. 2; Ed. Brazil Publishing, PR) e organizador
e autor do livro Corrupção: o que é, como nos afeta e modos de a combater
(Ed. Brazil Publishing, PR).
ERNAYS, E. Biography of an Idea: The Founding Principles of Public Relations.
Nova Iorque: Open Road Media, 2015.
___________. Propaganda. Nova Iorque: IgPublishing, 2011.
___________. Crystalizing Public Opinion. Nova Iorque: Ig Publishing, 2004.
REDDI NARASHIMA, C. V. Effective public relations and media strategy. Nova
Delhi: Public Relations Voice, 2019.
LEE, Jeniffer. Big Tobacco’s Spin on Women’s Liberation. Ny Times, 2008.
MOSTEGEL, Iris. The Great Manipulator. History Today, 2016.
REFERÊNCIAS
passando duas guerras mundiais, ao término de cada
uma delas, decorria uma grave recessão do consumo,
pois as pessoas estavam acostumadas a racionar seu
dinheiro e somente gastar com o indispensável. As
grandes empresas necessitavam proteger seus inves-
timentos e que as pessoas voltassem a consumir além
do necessário. Uma mudança de comportamento das
massas era necessária, e esta era a especialidade de
Bernays.
Freud até congratula seu sobrinho por seus livros,
mas nenhum dos dois, ambos judeus, podiam espe-
rar que suas ideias estavam inspirando o ministro
da propaganda nazista Joseph Goebbels – especial-
mente seu livro Cristalizando a Opinião Pública. Em
suas memórias, Bernays conta: “fiquei em choque
com isso, mas eu sabia que qualquer atividade hu-
mana pode ser usada por propósitos sociais ou an-
tissociais”. Bernays sabia que se cigarros, bananas e
bacon podem ser vendidos, também podem opiniões,
ideologias ou políticos.
fora de casa, mas que muitas fumavam outras mar-
cas que Lucky Strike pois o pacote verde com círculo
vermelho não combinava com as roupas. Acontece
que o presidente da companhia não queria alterar o
pacote porque já tinha investido muito em propagan-
das com aquele rótulo.
A solução era, então, mudar a moda. Bernays diz
que foi nesse momento que ele realmente colocou à
prova sua “arquitetura do consentimento”. Passos
grandes deviam ser dados para se mudar um ponto
cultural como moda. Ele mapeia os passos necessá-
rios para a estratégia dar certo, as cidades que deve-
riam liderar eventos nos EUA e no mundo, e as pesso-
as que deveriam apoiar essa mudança. Ele estudou o
impacto e o valor do verde na sociedade. Ele delimi-
tou que as ações deveriam ocorrer em conjunto em
Nova Iorque e Paris, a capital da moda.
Primeiro, era mostrar o verde associado a causas
boas e, por isso, entra em contato com mulheres fa-
mosas por arrecadar recursos para caridade e cria
um gigantesco “Baile Verde” em Nova Iorque, com to-
dos utilizando esta cor. Depois, incentivou hotéis fa-
mosos e industriais famosos a reconhecerem o verde
como a cor da moda, pois conseguindo alguns nomes
outros viriam em efeito manada. Mas, para realmen-
te dar certo, precisavam do apoio de Paris e, para isso,
consegue reunir representantes da alta costura, de
revistas como Vogue e do governo francês, que viam
com bons olhos mais uma forma de adentrar no cres-
cente mercado estadunidense. Em pouco tempo, jor-
nais começam a falar de “Outono Verde”, ou que “será
um inverno verde”… Todas as estações eram “verdes”.
Bernays soube que sua estratégia dera certo quando,
inadvertidamente, seus maiores concorrentes come-
çaram a mudar sua embalagem e colocar propagan-
das com jovens em vestidos verdes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A campanha das “Tochas pela Liberdade” ficou
marcada na história dos livros de relações públicas
pelo nível de efetividade da fabricação de um even-
to nacional que alteraria toda uma cultura por anos
a fio. As obras de Bernays, entretanto, tiveram ainda
maior impacto. Ele foi o primeiro a combinar as obras
de seu tio (Sigmund Freud) à prática da manipulação
do coletivo, continuando a inspirar a indústria. Ele
conseguiu compreender o poder do inconsciente, dos
desejos universais, emoções e instinto na fabricação
de um consenso.
A época também foi propícia ao surgimento de sua
disciplina. Os chefes de grandes corporações corriam
a seu escritório em busca de seu conhecimento. Per-
A campanha de relações públicas de "Tochas da liberdade" de 1929
equiparou o fumo em público à emancipação feminina. Algumas mu-
lheres haviam fumado décadas antes, mas geralmente em privado;
esse desenho satírico da Alemanha de 1890 ilustra a noção de que
fumar era considerado não feminino por alguns naquele período.