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Geosul, Florianópolis, v. 35, n. 75, p. 17-42, mai./ago. 2020.
http://doi.org/10.5007/1982-5153.2020v35n75p17
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A “NOVA ECONOMIA DO
PROJETAMENTO”
Elias Khalil Jabbour
1
Alexis Toríbio Dantas
2
Carlos José Espíndola
3
Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar que a transformação do “socialismo
de mercado” em uma Nova Formação Econômico-Social (NFES) vai além de um
fenômeno localizado na China. Trata de uma nova economia que o processo
histórico está desenhando em meio, e a partir, do processo de financeirização,
agressividade imperialista, do surgimento/espraiamento de novos paradigmas
produtivos e tecnológicos e das novas e superiores formas de planificação sendo
gestadas e executadas em larga escala na China. A esta nova economia – que se
desenvolve na esteira do processo de transição e mudança do modo de produção
(MP) dominante – nomeamos de “Nova Economia do Projetamento”, inspirada na
Economia do Projetamento elaborada por Ignacio Rangel no final dos anos de 1950.
O ponto de partida é o materialismo histórico de Marx e Engels acrescido de todo
acervo teórico já existente elaborado ao longo do tempo pelo campo da heterodoxia
econômica. Trata-se de uma exigência que a história coloca aos economistas, pois a
própria ciência econômica muda e varia com o MP que, por seu turno, está em
constante transformação.
Palavras-chave: China. Nova Economia do Projetamento. Socialismo de mercado.
Formação econômico-social. Teoria econômica. Modo de produção.
INITIAL CONSIDERATIONS ON THE “NEW DESIGN ECONOMY”
Abstract: The purpose of this article is to demonstrate that the transformation of
"market socialism" into a New Socio-Economic Formation (NSEF) goes beyond a
phenomenon located in China. It is about a new economy that the historical process
is drawing in and out of the process of financialization, imperialist aggressiveness,
the emergence / spreading of new productive and technological paradigms and the
new and superior forms of planning being developed and executed in large in China.
To this new economy - which develops in the wake of the transition process and
change of the dominant mode of production (MP) - we call it the New Theory of
Projection, inspired by the Economics of Projection developed by Ignacio Rangel in
the late 1950s. of departure is the historical materialism of Marx and Engels plus any
existing theoretical collection elaborated over time by the field of economic
heterodoxy. This is a demand that history places on economists, since economic
science itself changes and changes with the MP, which in turn is constantly
changing.
Keywords: China. New Projection Economics. Market socialism. Economic-social
formation. Economic theory. Mode of production.
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Ciências Econômicas, Rio de Janeiro,
Brasil, eliasjabbour@terra.com.br, 0000-0003-0946-1519
Departamento, Cidade, País, email@email.br, https://orcid.org/0000-0002-1825-0097
2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Ciências Econômicas, Rio de Janeiro,
Brasil, alexis.dantas@gmail.com, 0000-0002-4742-7197
3
Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Geociências, Florianópolis, Brasil,
carlos.espindola@ufsc.br, 0000-0002-5857-6067
18
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
CONSIDERACIONES INICIALES SOBRE LA “NUEVA ECONOMÍA DEL
PROYECTAMIENTO”
Resumen: El objetivo de este artículo es demostrar que la transformación del
“socialismo de mercado” en una Nueva Formación Económico-Social (NFES) va
más allá de un fenómeno localizado en China. Se trata de una nueva economía que
el proceso histórico está desarrollando en medo a, y a partir del proceso
de financiarización, agresividad imperialista, surgimiento/expansión de nuevos
paradigmas productivos y tecnológicos, de las formas nuevas y superiores de
planificación siendo gestadas y ejecutadas en gran escala, en China. A esta nueva
economía, que se desarrolla en la estera del proceso de transición y cambio del
modo de producción dominante (MP), la denominamos como la “Nueva Economía
del Proyectamiento” y se inspira en la Economía del Proyectamiento elaborada por
Ignacio Rangel, a fines de 1950. El punto de partida es el materialismo histórico de
Marx y Engels con el agregado de todo el acervo teórico ya existente elaborado a lo
largo del tiempo por el campo de la heterodoxia económica. Se trata de una
exigencia que la historia demanda de los economistas, pues la propia ciencia
económica cambia y varía con el MP que, a su vez, está en constante
transformación.
Palabras clave: China. Nueva Economía del Proyectamiento. Socialismo de
mercado. Formación económico-social. Teoría económica. Modo de producción.
Fora da história, a economia se reduz à lógica, à dialética e a uma
gnoseologia, que tanto são econômicas como físicas ou químicas.
Não existe, pois, economia 'pura' [...]. A ciência econômica, porém,
varia com o modo de produção e este muda ininterruptamente. (...). É
admitir que o homem varie em seu ser e em sua consciência segundo
a realidade geral, social e telúrica em que surge e cresce. (...).
Devemos ser avessos à incorporação acrítica seja de modelos
importados (marxistas ou não), seja de modismos acadêmicos. O que
importa é como conhecer a sociedade concreta se comporta em sua
vida econômica (Ignacio Rangel, [1957] 2005, p. 287-288)
1. INTRODUÇÃO
Os 200 anos de nascimento de Karl Marx foram marcados por debates em
todos os cantos do planeta, sobretudo na China onde uma verdadeira blitz de
propaganda massiva do marxismo foi executada. Além disso, o presidente chinês, Xi
Jinping estarreceu o mundo com um discurso onde não apenas reafirmou o
marxismo como a ideologia guia do Estado chinês: nomeou Karl Marx “como o maior
pensador de todos os tempos” (2018, p. 83). Ou seja, após mais de 20 anos de
proclamação do “fim da história” e da morte definitiva do marxismo, não é nada trivial
19
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
o gesto – e o recado – corajoso do chefe de Estado do país pronto a assumir a
vanguarda da humanidade. Ainda segundo o presidente chinês
4
:
The ability of the whole Party to solve the practical problems of
contemporary China with the basic principles of Marxism should
be enhanced. (…) More efforts should be made to develop
Marxism in the 21st century and in contemporary China, and
write a new chapter of adapting Marxism to the Chinese context
A postura de afirmação e do reconhecimento do papel do marxismo no
passado, no presente e no futuro da China, posta de forma clara por Xi Jinping, não
encontra eco entre a ampla maioria dos marxistas que rejeitam o caráter socializante
do processo em curso no gigante asiático. O conteúdo da maioria absoluta dos
estudos sobre a China que jorram aos milhares, sob forma de dissertações ou teses
de doutorado e nas prateleiras de livrarias, não conseguem atentar para o fato de
que no real está ocorrendo naquele país a construção de um edifício original, onde
surgem e ressurgem elementos e instituições de diferentes épocas históricas.
Intentamos fugir da superfície. A única razão desse gigantesco processo
em andamento na China é observa-lo como parte da história da civilização
humana, não se trata de um milagre; muito menos um acaso. Munidos com uma
visão historicista e observando além do horizonte, é perceptível a ocorrência de um
processo histórico onde uma nova economia está surgindo, tendo na China seu
núcleo de ocorrência sob o acicate do chamado “socialismo de mercado”. Processo
semelhante marcou o século XX com uma economia desenhada nos marcos do
desenvolvimento do capital financeiro, o keynesianismo e a planificação soviética.
A esta economia, que se desenvolveu no século passado, Ignacio Rangel a
nomeou de Economia do Projetamento
5
. A citada economia seria consequência
tanto da curva descendente do capitalismo na década de 1930 quanto do
surgimento de novos paradigmas concebidos por três ocorrências: 1) a Revolução
Russa, que tornou possível o planejamento econômico; 2) o desenvolvimento da
economia monetária e 3) do keynesianismo e o consenso criado em torno dele.
Muda a face do sistema e as lógicas que espelhavam o processo real.
Subentende-se que a problemática econômica do capitalismo muda
radicalmente quando o sistema passa do ramo ascendente da curva para o
descendente (Rangel, 2005 [1957], p. 290). Em outras palavras, é proscrito o
“método direto”, fazendo perder completo sentido as concepções signatárias tanto
4
Xi stresses importance of The Communist Manifesto. Xinhua.
http://www.xinhuanet.com/english/2018-04/24/c_137134028.htm. Acesso em 17/08/2018.
5
Sobre isso ler Rangel ([1959] 2005) e Castro (2014).
20
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
da lei de Say, quanto dos modelos neoclássicos de equilíbrio geral. Keynes e a
Gosplan soviética tornaram-se dupla face de uma mesma moeda. Segundo Rangel
([1957] 2005, p. 291):
O homem, nos dois casos, intervindo conscientemente na
história, procura obter pelo planejamento o que antes se fazia
por si, pois a sociedade que não garantir essas condições entra
e crise e perece
6
.
Tendo em vista o paralelismo histórico, acrescido da dificuldade de se
encontrar uma saída à presente crise sistêmica do capitalismo, o objetivo deste
artigo é demonstrar que a transformação do “socialismo de mercado” em uma NFES
vai além de um fenômeno localizado na China
7
. Trata de uma nova economia que o
processo histórico está desenhando em meio, e a partir, do processo de
financeirização, agressividade imperialista, do surgimento/espraiamento de novos
paradigmas produtivos e tecnológicos e das novas e superiores formas de
planificação sendo gestadas e executadas em larga escala na China
8
.
A nosso ver este processo de transição e mudança de MP dominante
demanda a construção, do que chamamos de uma Nova Economia do
Projetamento. O ponto de partida é o materialismo histórico de Marx e Engels
acrescido de todo acervo teórico já existente elaborado ao longo do tempo pelo
campo da heterodoxia econômica. Trata-se de uma exigência que a história coloca
aos economistas, pois a própria ciência econômica muda e varia com o MP que, por
seu turno, está em constante transformação.
Além desta introdução, o artigo se divide em outras quatro seções. Na seção
2, ao apresentaremos a visão de Ignacio Rangel apresentando os dois ramos da
curva evolutiva da economia e seu duplo caráter evolutivo como forma tanto de
justificar quanto de demonstrar elementos de validação teórica à nossa hipótese
6
Qualquer semelhança com os consensos criados pelo Consenso de Washington e a consolidação
da financeirização como a dinâmica de acumulação não terá sido mera consequência. A crise do
paradigma no planejamento e do papel do Estado no ciclo econômico tem levado sociedades inteiras
ao caos e a barbárie.
7
Sobre a noção do “socialismo de mercado” como uma Nova Formação Econômico-Social ler
Gabriele & Schettino (2012) e Jabbour & Dantas (2018).
8
Concebemos as “novas e superiores formas de planificação econômica” que estão gestadas e
executadas na China como instrumentos de maximização da ação do Estado sobre o território
amparadas pela relação entre 1) a herança de planificação central da era maoísta; 2) instituição – ao
longo das reformas econômicas – de mecanismos de ação estatal que vão da instalação de
mecanismos de controle de fluxos de capitais externos e transformação da taxa de câmbio em bem
público, planificado e de Estado (Jabbour e Dantas, 2017, p. 794); 3) a transformação do Estado em
“empreendedor-em-chefe” a partir da indução ao surgimento de mecanismos de coordenação e
socialização do investimento (Jabbour e Paula, 2018) e 4) internalização e utilização máxima, para
fins de planificação de todo aparato anexo aos paradigmas produtivos e tecnológicos
contemporâneos, notadamente o “Big Data”.
21
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
quanto da necessidade da construção de uma Nova Economia do Projetamento. Na
seção 3 desenvolveremos as principais transformações em andamento no mundo. A
seção 4 será dedicada a análise das condições que propiciaram a formação da Nova
Economia do Projetamento. Ao final apresentaremos algumas conclusões.
2. ELEMENTOS DE VALIDAÇÃO TEÓRICA: OS CICLOS LONGOS E O DUPLO
CARÁTER EVOLUTIVO DA ECONOMIA
Não obstante, a história do desenvolvimento capitalista apresenta
duas etapas muito bem definidas. Uma em que o sistema tende
espontaneamente a, por meio de flutuações cíclicas, produzir mais
procura efetiva do que oferta. (...). Outra em que a tendência
espontânea do sistema é para a estagnação (...). Toda a problemática
econômica muda quando passamos de uma etapa a outra, mudando
também o equipamento científico adequado. Os economistas
“clássicos” estudaram precipuamente os problemas de uma economia
cujo produto se limita pelo lado da oferta. Os “modernos”
(keynesianos e neoclássicos – estes no nível da “firma” e aqueles no
“global”) voltam-se especialmente para os problemas da procura (...).
Se ampliarmos um pouco a perspectiva histórica, para abarcar o
período anterior ao capitalismo – uma produção baseada no
artesanato, na ‘pequena produção’ não capitalista de mercadorias –
quanto o que o sucede – o socialismo – encontraremos duas
situações que, díspares de todos os pontos de vista, têm isto de
comum: que, como na situação descrita pela lei de Say, a oferta e a
procura tendem a tornarem-se efetivas no mesmo momento e são
iguais. (Ignacio Rangel, [1956] 2005, p. 237).
Não foi por acaso acolher Ignacio Rangel como o autor que referencia este
trabalho. Curiosamente, e paradoxal, apesar de ser reconhecido como
“provavelmente o mais original analista do desenvolvimento econômico brasileiro”
(Bresser Pereira e Rego, 1993, p. 98), trata-se de um autor ainda pouco lido e
discutido pelo grande público interessado em temas brasileiros, incluindo os
economistas (Jabbour, 2017, p. 562). Rangel levou às últimas consequências a
crítica demonstrada por Marx à Economia Política, onde o autor alemão provou que
as categorias básicas da Economia Política eram históricas e não universais; o que
era puramente econômico tornava-se relativo à sua época particular e transitório.
Voltando a Rangel, segundo Castro (2014, p. 203):
A originalidade da análise da obra de Rangel – marca
reconhecida pelos comentadores do autor – é o resultado de
ecletismo teórico desinibido e de uma profunda concepção
historicista. Esta última derivada de sua visão marxista de
mundo.
22
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
2.1. Da “estagnação secular” à Nova Economia do Projetamento
Para fins de validação teórica de nossa proposta ao menos dois elementos da
obra rangeliana são fundamentais. Mais acima relacionamos as transformações no
campo da economia do século XX como produto da curva descendente do
capitalismo. O eixo estruturante de toda obra de Rangel foi a noção da “dualidade
básica” como um modo de produção complexo cuja evolução e os efeitos sobre a
determinação dos investimentos e a produtividade do trabalho seriam reflexos das
fases ascendente e descendente inerentes aos ciclos longos de Kondratiev
9
,
notadamente as transformações sistêmicas resultantes da fase descendente do
ciclo
10
. Segundo Rangel (1988, p.2)
11
:
Ora, os ciclos econômicos não são apenas fatos
econômicos. São fatos sociais no mais alto sentido dessa
expressão. Noutros termos, além ele econômicos são,
também, fatos jurídicos, políticos e até éticos e estéticos.
Quem poderia, por exemplo, negar correlação entre nossa
Semana de Arte Moderna e a "fase b" do 3° Ciclo de.
Kondratiev que estava começando? A "fortiori", como pôr
em dúvida que o comportamento do Estado – e em geral
os fatos políticos, como o Levante dos 18 do Forte –
tenha muito que ver com o mesmo fato conjuntural?
12
9
Segundo Pereira (2014, p. 548): (...), Rangel incorporou o conceito de ciclo longo à tese da
dualidade. Nesse sentido, resgatou a teoria dos ciclos longos do economista russo Nikolai
Kondratieff, desenvolvida por volta dos anos 1920. Os ciclos de Kondratieff tem duração aproximada
de meio século, dividido em um quarto de século na fase “a”, ou ascendente, e outro quarto na fase
“b” ou descendente. Segundo Rangel (1985), citando Schumpeter, os ciclos não são, como as
amígdalas, coisas que podem ser separáveis do corpo [...]. Sobre o papel dos ciclos de Kondratiev
na obra de Rangel, ler: Silva (2009); Tolmasquim (1991); Mamigonian (1987) e Bresser-Pereira
(1994).
10
Em Mamigonian (1993, p. 5): Note-se que se o 1º, 3º e 5º Kondratieff se abrem como revoluções
industriais, o 2º (1948-73, fase expansiva) e o 4º (1948-73, fase expansiva) se abrem como
revoluções nos transportes, com aplicações de invenções já realizadas nas revoluções industriais
voltadas agora a este setor de circulação e a expansão da anterior revolução industrial em novas
regiões geográficas: EUA e Alemanha entre 1848-73, e Europa e Japão entre 1948-73. Em momento
posterior, assinalou Mamigonian (1999, p. 155): Os períodos depressivos (...) correspondem a
mudanças profundas de conjunturas econômicas, políticas, sociais e espaciais. Assim a conjuntura
depressiva 1920-1948 provocou nova relação mundo-nações: a Inglaterra abandonou definitivamente
o livre-cambismo e houve fechamento dos mercados nacionais nos EUA, Alemanha, França e na
periferia do sistema capitalista (substituições de importações se aceleraram).
11
No mesmo artigo Rangel, em passagem posterior, exercita seu sofisticado historicismo:
Reciprocamente, o fato de ser a sociedade, o homem, o reino de uma história suscetível de ser
escrita em tempos mensuráveis em nossas vidas, não quer dizer que ela também não comporte
ciclos, como os da natureza. Ora, assim como os naturais, os ciclos sociais não excluem a história.
Esta se escreve através deles.
12
Muitos outros fatos relacionados à fase descendente do ciclo poderiam ser elencados. Trata-se de
uma “quase lei” sistêmica esta relação.
23
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
Resumindo, os ciclos de Kondratiev é o primeiro elemento de validação
teórica à nossa proposta. Afinal, não se trata de mera coincidência a ocorrência
simultânea entre dois fenômenos contemporâneos: 1) a admitida possibilidade, por
alguns economistas, de o sistema capitalista adentrar numa chamada, por Alvin
Hansen no final da década de 1930, estagnação secular
13
e 2) a consolidação da
China, como expressão atual da, chamada por Rangel, Economia do Projetamento
como o núcleo do novo centro do sistema. Michel Aglietta, discordando da
possibilidade da estagnação secular vai mais longe ao apontar que o novo ciclo de
inovações terá a China como palco central, segundo ele (2016, p. 124):
A revolução industrial que será necessária para mitigar os
danos ambientais e adaptar habitats hostis envolveria bens
públicos transnacionais, investimentos pesados e instituições
para lidar com novos riscos sistêmicos. A China não só tem
uma necessidade aguda, mas também os recursos financeiros
e a vontade política de alocar grandes reservas de poupança
para essa prioridade suprema.
A mensagem de Aglietta guarda grande sentido. O grau de socialização e
coordenação do investimento (Jabbour e Dantas, 2017) alcançada pelo país
acrescida de sua capacidade de seu Partido Comunista de, ciclicamente, lançar mão
de verdadeiras ondas de mudanças institucionais (Paula e Jabbour, 2018) –
garantindo assim “soluções de continuidade” ao seu desenvolvimento sugere razão
à hipótese do economista francês.
2.2. Um chamado à reflexão
À guisa de uma reflexão inicial, lançamos três questões/obstáculos que o
presente histórico demanda superação: 1) a teoria econômica, existente e
acumulada ao longo do tempo, per si tem conseguido ir além da explicação da crise
e da conjuntura, mas também de evoluir a ponto de demonstrar rumos concretos à
solução dos atuais e graves problemas que assolam a humanidade? 2) devemos
nos conformar com a forma, e suficiência, que as teorias existentes têm tratado as
questões da contemporaneidade? e 3) Não seria verdade que a heterodoxia tem
passado por uma crescente aproximação teórica e metodológica com a ortodoxia, a
13
Sobre a hipótese em torno da estagnação secular, ler: Summers (2014) e Gordon (2016). A nosso
ver a superação da presente crise deveria passar por mudanças qualitativas no âmbito da
superestrutura de países como os EUA. O que não está ocorrendo. O caminho trilhado pela
financeirização até a crise não foi mudado. Continua tudo como estava e que levou o mundo à uma
crise de ainda imensuráveis proporções.
24
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
partir de seu afastamento crescente da abstração, da visão de processo e da lição
deixada por Visconde de Mauá – que reivindicava a para o bom senso nacional a
missão de corrigir e completar a ciência de sua época (Rangel, 2005, p. 288) –
como elementos basilares da ciência voltada à transformação da realidade,
perdendo assim capacidade crítica?
O chamado à reflexão que as questões acima colocadas têm variado sentido.
A primeira delas é a de sugerir que o objetivo da ciência é evidenciar e por em
equação a força das circunstâncias. É valido lembrar que a ciência, natural ou social,
ao longo de sua evolução fora se tornando crescentemente histórica. Logo, valendo
à análise de certas circunstâncias enquanto as mesmas perdurarem. Somente esta
reflexão seria suficiente para demonstrar nossa inquietude diante da (in) capacidade
das ciências sociais, no geral, em equacionar a força das circunstâncias. Seria
somente um déficit de pensamento crítico ou algo mais profundo que se resume a
resistir às próprias forças das circunstâncias? Neste caso, não se trataria de uma
novidade. Seria apenas a repetição de uma história recente. Por exemplo, sobre a
resistência às evidências que desmentiam os postulados da “globalização”. Segundo
Fiori (1997, p. 88-89):
(...) a própria resistência acadêmica à evidência dos fatos
também pode ser atribuída ao fato de que este seja mais um
daqueles momentos históricos em que a intensificação das
lutas distributivas acaba submetendo o mundo acadêmico ao
“pensamento vulgar” como já percebera Marx no seu
comentário sobre a passagem da ‘economia política clássica’
para a ‘economia vulgar’ (...)
Sendo históricas e válidas somente enquanto perdurarem determinadas
circunstâncias, não se trata de uma aforia a proposição de uma nova síntese teórica
que nos condicione a dar cabo às já referidas forças das circunstâncias. Por outro
lado, é inegável o afastamento da heterodoxia econômica frente a problemáticas que
envolvem o reconhecimento e centralidade não somente da Questão Nacional, mas
de noções para quem os Estados Nacionais deixaram de serem os verdadeiros
donos dos cordéis no mundo. A força de noções globalizantes afetou diretamente o
debate sobre a centralidade do Estado Nacional em prol de pautas pós-modernas,
fragmentárias e, acima de tudo, a-históricas. Afora o preconceito aberto e
indisfarçável em relação à China. Não foram poucos os acadêmicos brasileiros
(sobretudo nas áreas relacioandas às ciências humanas e sociais) que seguiram às
universidades do Atlântico Norte nos últimos 30 anos. Os asiáticos, sobretudo
25
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
chineses, fizeram este mesmo percurso. Com uma diferença: como homens e
mulheres de Estado voltadas às áreas, de forma geral, relacionadas às engenharias.
2.3. A ciência econômica e seu duplo caráter evolutivo
Pode parecer démodé, numa época em que a ciência, no sentido totalizante
do termo, tem sido reduzida a uma lógica de mera especialização, utilizar a
concepção da historicidade das leis da ciência para fins de justificar algo no campo
do conhecimento sob as hastes de um encontro entre a filosofia e a ciência
econômica. Vai além de uma forma de construir determinada hipótese. É uma forma
de resistência ao que Milton Santos (1988 [2008], p. 18) chamou de “mundialização
perversa e perversão das ciências”.
Voltemos a Ignacio Rangel, que sob a influência de Kant demonstra que
sendo a economia uma ciência social, matéria histórica por excelência,
consequentemente, é sensível a um duplo processo evolutivo. Em suas palavras
(Rangel, [1956] 2005, p. 204):
A economia é uma ciência histórica por excelência - qualidade
que partilha das outras ciências sociais. Quer isso dizer que
está submetida a um duplo processo evolutivo: o fenomenal e o
nomenal. E quer dizer também que, ao contrário das ciências
da natureza, especialmente as da natureza não viva, não pode
ser estudada senão nesse duplo contexto.
Tendo como pressuposto o caráter histórico e, consequentemente, o duplo
caráter evolutivo da ciência econômica, os limites de fronteira com os desígnios da
“economia vulgar”, tornam-se mais claros. Para Rangel ([1956] 2005, p. 204-205):
O conceito vulgar admite explicitamente apenas a evolução
fenomenal da economia. Cada nova teoria surge como
resultado de uma representação mais precisa da realidade
transcendente, a qual, explicitamente, permaneceria sempre
igual a si mesma. Assim a análise smithiana seria, em
comparação com a fisiocrática, apenas uma representação
mais perfeita, que considera certas facetas que Quesnay e
seus amigos uniria a análise neoclássica à clássica, a
keynesiana à neoclássica.
Em contraponto à perspectiva “vulgar”, vaticina Rangel ([1956] 2005, p. 205):
Se admitirmos que a economia, além dessa evolução
“fenomenal” (como representação, como ideia da coisa, como
‘coisa para nós’, no sentido kantiano), é também susceptível de
outra evolução (a evolução “nominal” como objeto, coisa
representada, ‘coisa em si’) seremos levados a uma atitude
26
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
mais respeitosa para com o que os antigos pensaram. Esse
pensamento seria talvez prejudicado pelas claudicâncias do
método, pelo instrumental imperfeito de análise, mas continha
uma espécie de verdade que não passou às teorias mais
recentes pelo simples fato de que refletia uma realidade que
deixou de existir, que se transformou, por seu próprio impulso
interno noutra realidade.
Propor uma Nova Economia do Projetamento que espelhe o complexo de
transformações que o mundo está atravessando não seria uma novidade diante de
uma crise do sistema digna da questão levantada por Elizabeth II, em reunião com
economistas na London School. A pergunta era simples: "Por que ninguém se deu
conta?". A resposta, um verdadeiro ataque à inteligência alheia, veio três dias depois
e assinada pelos professores Tim Besley e Peter Hennessy. Segundo ambos, a não
previsão do que viria foi fruto de "uma falha da imaginação coletiva de muita gente
brilhante", que não conseguiu "compreender os riscos do sistema em sua
totalidade"
14
.
O outro lado da moeda desta explicação acima está contido, por exemplo, em
livros como o lançado em 2017 por Richard Bookstaber (The End of Theory:
Financial Crises, the Failure of Economics, and the Sweep of Human Interaction).
Certamente em algum momento da vida Bookstaber acreditou em “concorrência
perfeita”, “neutralidade da moeda”, “mão invisível”, “expectativas racionais” etc. Mais
uma prova da dificuldade de se perceber em meio ao mundo real.
De nossa parte não existe o “fim da teoria”. A história explica, por exemplo, a
relação entre o aumento da oferta da mão-de-obra, tornando-a quase inelástica, e o
fim dos postulados clássicos que supunham a elasticidade eterna da mão-de-obra.
O keynesianismo tomou o lugar dos neoclássicos que herdou dos clássicos a “lei
dos mercados”, justamente quando a procura efetiva deixou de refletir o fluxo de
pagamentos aos fatores.
De crise em crise foram-se formando elementos que capacitariam o homem a
deixar de ser “escravo das circunstâncias” para se tornar o próprio criador de
fatores. A Revolução Russa inaugurou as condições institucionais a isso ao permitir
que a demanda efetiva se tornasse cada vez mais independente do preço dos
fatores. O planejamento econômico desde então entrara na ordem do dia.
Enfim, o que está ocorrendo é mais um movimento onde “se morre a coisa em
si e para si”. Resumindo: estão postas as condições ao surgimento de algo novo,
uma teoria à altura da complexidade do mundo. O fenômeno chinês visto tanto em
14
A carta de explicação esta disponível em http://www.feed-charity.org/user/image/besley-hennessy2009a.pdf
27
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
conjunto quanto no detalhe diz muita coisa, inclusive sobre o surgimento currente
calamo de novas formas de abordagem no campo da teoria.
3. O MUNDO EM CONTINUA METAMORFOSE
A NFES, e a nova economia que dela surge, se desenvolvem em um mundo
caracterizado pelo cruzamento entre a financeirização como dinâmica de
acumulação hegemônica e a dificuldade de se encontrar uma saída da grande crise
do sistema iniciada em 2007-2008 criando uma situação de cada vez maior
contestação à ordem criada pós-fim do Acordo de Bretton Woods. A ordem unipolar
surgida com o fim da Guerra Fria – na qual o vértice do poder mundial são os
Estados Unidos – também entra num processo de declínio tendendo à
multipolarização.
3.1. Entre a transição sistêmica e os novos paradigmas produtivos/
tecnológicos
Tal situação vem plasmando um sistema de poder mundial em transição, com
o advento de novos polos de poder que surgem da periferia do sistema
internacional, fora do centro capitalista-imperialista mundial. Ainda no campo da
análise geopolítica, Rabelo (2017) chama a atenção à existência de uma ordem
onde o “velho” ainda guarda hegemonia e força:
Nesse quadro de profundas alterações na ordem mundial –
com a dominância neoliberal e novas formas de submissão
neocolonial –, a ação imperialista, com seus empreendimentos
combinados, impõe um poderoso domínio estrutural que os
países da periferia do sistema mundial não conseguem atingir e
muito menos suplantar. Mesmo o ciclo progressista na América
Latina, iniciado em fins de 1990, não tem ameaçado esse
domínio estrutural.
Transformações revolucionárias estão ocorrendo no campo da esfera
produtiva com o processo de espraiamento/surgimento de novos paradigmas
tecnológicos, processo este comumente chamado de 4ª Revolução Industrial,
criando um novo padrão de manufatura com impactos sobre o mundo ainda
inimagináveis
15
. Segundo Coutinho (2018):
15
Sobre as consequências deste processo de transformação no campo da tecnologia, ler Coutinho
(2018).
28
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
A indústria do futuro fará parte dessa imensa rede digital global
em processo de formação. A automação industrial será
articulada pela internet englobando todas as cadeias produtivas
desde o suprimento de matérias-primas, insumos, partes e
subconjuntos, passando pelos processos de manufatura,
distribuição, comercialização e chegando até os consumidores.
A possibilidade de virtualizar, on-line ou em tempo real, o
funcionamento de cadeias inteiras, através de sistemas
avançados de computação, permitirá otimizar
significativamente a eficiência e a produtividade. (...). Este novo
padrão de manufatura conectada e inteligente também
usufruirá de notáveis avanços na robótica e na chamada
manufatura aditiva (impressão em 3D). As máquinas,
equipamentos, robots, impressoras 3D ganharão capacitações
cognitivas próprias, com base nos avanços da Inteligência
Artificial (IA). Com efeito, a digitalização conectada das redes
de produção propiciará a acumulação de dados em grande
escala (a chamada Big Data).
Desta forma, repetindo, estamos diante de um processo histórico onde a
economia da NFES está sendo desenhada a partir da síntese entre o processo de
financeirização, agressividade imperialista, novos paradigmas produtivos e
tecnológicos (abrindo amplos desafios e possibilidades à planificação) e das novas e
superiores formas de planificação sendo gestadas e executadas em larga escala na
China.
3.2. O capitalismo e seu “Novo Medíocre Ocidental”
De volta à história, é de bom grado expor uma definição exata do que se
convencionou chamar de financeirização e sua expressão como o presente padrão
de acumulação do sistema. Segundo Braga (1997, p. 195):
No capitalismo contemporâneo, segundo nossa hipótese, a
financeirização é o padrão sistêmico de riqueza que se originou
nos anos 60, a partir dos Estados Unidos, e se difundiu
mundialmente, nas últimas décadas, provocando grandes
instabilidades não apenas no país de origem, mas também no
paradigma produtivista que foi, até há pouco, o “capitalismo
organizado” japonês.
Impossível separar o fenômeno do novo padrão de acumulação com a
reafirmação da hegemonia norte-americana
16
e a “globalização” como ideia-força
liberal lançada no início da década de 1990 cujo objetivo implícito estaria em mostrar
que, enfim, segundo Fiori (1997, p. 87):
16
Sobre a então retomada da hegemonia norte-americana, ler Tavares (1985 e 1997) e Rangel
(1983).
29
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
Haveria chegado a hora, finalmente, em que a livre circulação
de capitais, a despolitização dos mercados, a gestão autônoma
da moeda e o livre comércio entre os povos transformaram em
fato o ideal sonhado por Dudley North, em 1691, “de que o
mundo inteiro não fosse mais do que um só povo, ao interior do
qual as nações fossem como pessoas”.
Tão interessante, quanto contraditório, a supremacia do capital financeiro tem
sido elemento nodal de uma nova onda de concorrência, seguida de generalização
de outra etapa diretamente ligada à reconcentração e recentralização dos blocos de
capital. O pano de fundo desse fenômeno é a intensificação da rivalidade
intercapitalista. Belluzzo (2009, p. 94) desvela uma determinada falácia amplificada
pela “globalização”:
Para escândalo dos liberais, a grande empresa que se lança à
incerteza da concorrência global necessita cada vez mais do
apoio dos Estados nacionais dos países de origem. O Estado
está cada vez mais envolvido na sustentação das condições
requeridas para o bom desempenho das suas empresas na
arena da concorrência generalizada e universal. (...) dependem
do apoio e da influência política de seus Estados nacionais
para penetrar em terceiros mercados (...), não podem
prescindir do financiamento público para suas exportações nos
setores mais dinâmicos e seriam deslocadas pela concorrência
sem o benefício dos sistemas nacionais de ciência e
tecnologia.
São notórias as promessas não cumpridas pela “globalização”, entre elas a do
crescimento econômico como consequência de todo tipo de desregulamentação
sobre os fluxos de capitais, por exemplo. Ao contrário, o mundo nunca
experimentou, desde 1997, tantas crises financeiras em tão pouco tempo. A
instabilidade é uma regra geral do sistema. A crise financeira aberta em 2008
aprofundou este traço sistêmico, produzindo o que o economista inglês John Ross
(2017) chamou, de “Novo Medíocre Ocidental”, onde o crescimento econômico,
sobretudo do G-7, não voltaria, tão cedo, a patamares anteriores. Para título de
exemplo, segundo Ross (2017):
Over a five-year period, annual average growth in the G7
economies is projected by the IMF to fall from 3.1% in 2000 to
1.6% in 2022.
Over a ten-year period, annual average growth in the G7
economies is projected by the IMF to fall from 2.9% in 2000 to
1.7% in 2022.
Over a twenty-year period, annual average growth in the G7
economies is projected by the IMF to fall from 2.9% in 2000 to
1.5% in 2022.
30
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
A situação é mais alarmante na medida em que uma comparação histórica é
feita, nos lembra Ross (2017):
The fall in output after 1929 was far more severe than after
2007 – the maximum fall in G7 GDP after 1929 was 17.5%
compared to 4.0% after 2007. However, after the initial severe
downturn, overall growth in the G7 economies in the period
after 1929 was far more rapid than after 2007. The cumulative
result is that by 10 years after the initial crisis overall growth in
the G7 economies after 1929 was 15.9% compared to only
10.9% after 2007. This means that by the end of 2017 overall
growth in the G7 economies, after the international financial
crisis, will actually be slower than during the ‘Great Depression’.
O que fica evidente com os dados apresentados é que não somente o
capitalismo tem dado sinais de certo esgotamento. As “novas teorias” que surgem
para substituir o keynesianismo e dar solução à crise de 1973 tem como principal
assertiva a massificação de uma falsa oposição entre Estado e mercado (Bresser-
Pereira, 2009, p. 6) com o objetivo de dar legitimidade teórica a um corpo de ideias
forjadas para elevar ao grau de “ciência” o circuito D-D’ e o próprio poder norte-
americano. Os resultados não poderiam fugir de uma catástrofe política, social e
econômica como a que vivenciamos hoje.
O oposto ocorre na China. Segundo Jabbour e Paula (2018, p. 3):
O processo de desenvolvimento econômico chinês é um dos
fenômenos mais impressionantes do mundo em que vivemos,
em função tanto da sua longevidade quanto no seu alcance
interno e externo: o crescimento médio do Produto Interno
Bruto (PIB) nos últimos 35 anos foi de 9,5% a.a., ao mesmo
tempo em que a renda per capita no período passou de US$
250 em 1980 para US$ 9.040 em 2014. Por trás desse
processo, há de se destacar a alta relação investimento/PIB
(45,6% em 2015), suas imensas reservas cambiais (US$ 3,1
trilhões em dezembro de 2016) e enorme volume de comércio
externo (35,9% do PIB). É na história por trás desses dados
que reside tanto a formação, na China, de uma “tripla condição”
de potência comercial, industrial e financeira, quanto a
privilegiada posição política e geopolítica de maior credora
líquida do mundo (US$ 1,97 trilhão ou 20,8% do PIB, em março
de 2015).
4. FINANCEIRIZAÇÃO X NOVA ECONOMIA DO PROJETAMENTO
This is what socialism with Chinese characteristics entering a
new era means: The Chinese nation, which since modern times
began had endured so much for so long, has achieved a
tremendous transformation. (...). It means that scientific
socialism is full of vitality in 21st century China, and that the
banner of socialism with Chinese characteristics is now flying
31
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
high and proud for all to see. It means that the path, the
theory, the system, and the culture of socialism with
Chinese characteristics have kept developing, blazing a
new trail for other developing countries to achieve
modernization. It offers a new option for other countries
and nations who want to speed up their development while
preserving their independence; and it offers Chinese wisdom
and a Chinese approach to solving the problems facing
mankind (Xi Jinping, 2017)
17
4.1. Sobre o “milagre”
É muito comum atribuir como um “milagre” o desempenho econômico chinês
nos últimos 40 anos. Eis a questão: só atribuímos algo como um milagre quando as
teorias presentes não conseguem explicar determinado fato ou fenômeno. Se existe
algo que as teorias em curso são incapazes de decifrar, isso significa que alguma
inovação teórica está em andamento. Segundo Lin Yifu (2017):
Sabemos que há inovação teórica porque as teorias existentes não
podem explicar novos fenômenos. O fenômeno que a China começou
com a reforma e abertura em 1978 pode ser considerado um milagre
na história da economia humana. As pessoas pensam que é um
milagre porque não pode ou é difícil de explicar com as teorias
existentes
18
.
Em artigo publicado na Monthly Review, nos chamou a atenção a seguinte
referência que sugere não somente que as teorias em voga são incapazes de
explicar o fenômeno. Uma das consequências do processo de desenvolvimento no
país é o surgimento de novas teorias no campo da Economia Políticas, conforme
Enfun e Xiaoqin (2017):
China’s rapid economic development in recent years is often
characterized as “miraculous”. (...). But as we have written
elsewhere, “theoretical problems have started to emerge with
regards to the very existence, content, and prospects of the
China model.”The key question, then, is what kind of
economic theory and strategy underpin this “miracle.
China’s model has been variously described as a form of
neoliberalism, or as a novel kind of Keynesianism. Against
these positions, we hold that the country’s major recent
developmental gains are the achievements of theoretical
advances in political economy, originating in China itself
(...)
19
.
17
Ênfases nossas.
18
Traduzido da versão em chinês.
19
Ênfases nossas.
32
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
Tomando o nomeno intrínseco a um processo desta natureza não poderíamos
deixar de salientar que:
1) O limite das teorias atuais, quando aplicadas ao caso chinês, fica explicito na
incapacidade de conceber o processo partindo do pressuposto de se tratar de uma
formação social complexa, onde o antigo e o moderno coabitam com suas
respectivas institucionalidades. Por exemplo, modelos e modelagens de qualquer
tipo ou forma não são instrumentos adequados que, no melhor dos casos,
demonstre uma pequena parcela da verdade, não sua totalidade – visível somente
na análise do processo histórico;
2) É evidente que uma teoria, além de um atributo da historicidade das leis da
ciência, guarda muitas das verdades contidas nas teorias anteriores. Além disso,
uma teoria é expressão da relação de causa e efeito entre variáveis históricas de
cunho socioeconômicas, como as diferenças históricas de nível de desenvolvimento
entre diferentes regiões;
3) Uma Nova Economia do Projetamento que surge é prova de que tudo flui – no
campo da coisa representada como no campo da representação da coisa. Rangel
([1956] 2005, p. 204-205). O “milagre” chinês, neste sentido, torna possível o
surgimento de novas teorias correspondentes ao fenômeno. Como por exemplo, o
comportamento de uma economia planificada diante da fase descendente do ciclo
ou qual o grau de distorção sofrida pela lei do valor em uma economia dominada por
empresas públicas etc;
4) A admissão do desenvolvimento econômico como um processo marcado do salto
de um desequilíbrio a outro é essencial no processo de construção de novas teorias.
A rigidez de pensamento não conceberia jamais o que Albert Hirshman nomeou de
“racionalidades ocultas” (1984, p. 98), ou seja, a existência de possibilidades que
escapam aos modelos e teorias gerais. Essa concepção cabe perfeitamente ao caso
chinês
20
;
Por fim, o “bom senso nacional” já aludido mais acima nos leva a acreditar que no
caso de um Estado milenar como a chinesa, nenhuma teoria estaria dispensada de
adaptação. Esse senso de formação social foi reiterada por Lin Yifu (2012, p. 66):
20
Um exemplo de “racionalidade oculta” está na probabilidade de o crescimento chinês tenha como
fator primário, percebido por Deng Xiaoping, a existência de recursos ociosos na agricultura do que
pela chamada “poupança”.
33
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
(...) We can never be too careful when it comes to the
application of a foreign theory, because with different
preconditions, no matter how trivial they seem, the result can be
very different.
4.2. A luta de ideias e as condições criadas ao surgimento da Nova Economia
do Projetamento
Longe de um exercício diletante, o chamado à construção de uma Nova
Economia do Projetamento assentada, principalmente, na transformação do “modelo
chinês” em uma NFES guarda caráter político estratégico. É parte essencial,
verdadeira exigência, da luta de ideias travada entre os cães de guarda da grande
finança de um lado e os progressistas de todas matizes de outro. Não se trata de um
ciclo descendente como os anteriores. O ciclo atual, como já apontado mais acima
por Rabelo, ainda ocorre sob dominância neoliberal e um imperialismo capaz de
impor um poderoso domínio estrutural. É ilusão acreditar numa derrocada rápida da
hegemonia norte-americana.
A Nova Economia do Projetamento que surge na NFES chinesa já guarda
universalidade. Como extensão renovada da Economia do Projetamento
elaborada por Ignacio Rangel, é antítese ao neoliberalismo e alternativa ante a
financeirização e suas formas de dominação sobre povos e países. Sua cristalização
é fruto do processo histórico iniciado com as reformas econômicas (1978), onde
desde então o país se transformou em um verdadeiro campo de experimentações.
Afora alguns enunciados gerais, os clássicos do marxismo não deixaram nenhuma
receita ou fórmula pronta à consecução da nova sociedade; exercitaram pouco a
abstração neste campo. Segundo Deng Xiaoping (1984, p. 48)
What is socialism and what is Marxism? We were not quite
clear about this in the past. Marxism attaches utmost
importance to developing the productive forces. We have
said that socialism is the primary stage of communism and that
at the advanced stage the principle of from each according to
his ability and to each according to his needs will be applied.
This calls for highly developed productive forces and an
overwhelming abundance of material wealth. Therefore, the
fundamental task for the socialist stage is to develop the
productive forces. The superiority of the socialist system is
demonstrated, in the final analysis, by faster and greater
development of those forces than under the capitalist
system. As they develop, the people's material and cultural life
will constantly improve. One of our shortcomings after the
founding of the People's Republic was that we didn't pay
enough attention to developing the productive forces.
34
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
Socialism means eliminating poverty. Pauperism is not
socialism, still less communism
21
.
O “Socialismo com características chinesas” é o sistema teórico que baseia o
desenvolvimento do marxismo à luz das condições específicas da China. O ponto de
partida foi o reconhecimento de que o país encontrava-se na etapa primária do
socialismo, etapa esta cuja contradição principal reside no baixo nível de
desenvolvimento das forças produtivas não somente em relação a si mesma, mas
também em comparação tanto com os países capitalistas do Atlântico Norte, quanto
aos seus dinâmicos vizinhos asiáticos.
O desenvolvimento das forças produtivas passou a ser o objetivo central do
regime, algo que não estaria longe das seguintes observações de Marx e Engels,
([1848] 1998, p. 56):
O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar
pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos
os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do
proletariado organizado em classe dominante, e para
aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças
produtivas
22
.
Ao assumir que a China encontrava-se na etapa primária do socialismo vai ao
encontro do conceito de Marx sobre a possibilidade real de uma longa transição
entre os dois MP’s antagônicos. Além disso, é reabilitada uma das noções
elaboradas pelos fundadores do socialismo científico para quem a propriedade
privada por muito tempo será parte integrante do sistema, conforme Engels (1982, p.
57):
(...) do mesmo modo que não se podem fazer aumentar de um
só golpe as forças produtivas já existentes tanto quanto é
necessário para a edificação da comunidade. Por isso a
revolução do proletariado, que com toda a naturalidade se vai
aproximando, só a pouco e pouco poderá, portanto, transformar
a sociedade atual, e somente poderá abolir a propriedade
privada quando estiver criada a massa de meios de
produção necessária para isso
23
.
A legalização da propriedade privada e da economia de mercado, na China,
foi fator decisivo no que concerne à aproximação e o desenvolvimento de novas
possibilidades no campo da evolução da teoria.
21
Ênfases nossas.
22
Idém
23
Ibidem
35
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
4.3. Toma corpo a Nova Economia do Projetamento
Observando o processo histórico, podemos concluir que as reformas
econômicas geraram uma síntese entre o Estado Revolucionário fundado em 1949
com a internalização, em 1978, do Estado Desenvolvimentista de tipo asiático.
Segundo Castells (2001, p. 317):
China’s economic development and technological
modernization, within the framework of the new global
economy, were (are) pursued by the Chinese communist
leadership both an indispensable tool for national power, and as
a new main legitimacy of the Communist Party. In this sense,
Chinese communism in the early twenty-first century represents
the historical merger of the developmental state and the
revolutionary state
Trata-se de um bom ponto de partida o enunciado de Castells. Possibilita uma
visão estratégica essencial na medida em que relaciona uma decisão política de
vulto com uma das características do socialismo chinês: o papel do Partido
Comunista da China (PCCh), utilizando uma feliz elaboração de Gramsci, o
verdadeiro “Príncipe Moderno”.
Por outro lado, ao se apresentar como um “modelo” de Estado
Desenvolvimentista uma linha quase reta liga o materialismo histórico de Marx e
Engels como ponto de partida e acrescido de todo acervo teórico já existente
elaborado ao longo do tempo pelo campo da heterodoxia econômica: desde os
clássicos da Economia Política (Smith e Ricardo), passando pelo institucionalismo
de Thorstein Veblen, os “pioneiros do desenvolvimento” (Albert Hirschman, Gunnar
Myrdal, Raúl Prebisch, Alexander Gerschenkron etc) pelas contribuições de dois
economistas burgueses nada vulgares (Keynes e Schumpeter).
Certamente uma questão deverá ser levantada: não se trata de uma
combinação teórica não somente eclética, mas, sobretudo contraditória?
Acreditamos que não. Ao contrário, a utilização de diferentes autores e suas teorias
é fator positivo à realização de uma análise abrangente e multifacetária tanto do
processo de desenvolvimento chinês quanto da elaboração/exigência história de
uma Nova Economia do Projetamento. Essa forma de abordagem já fora utilizada
duas vezes, a primeira é refletida no enunciado abaixo (Paula e Jabbour, 2017, p.
47):
Foram quatro autores escolhidos em função de sua importância
na análise da problemática do desenvolvimento tardio e
36
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
periférico, cujas abordagens entendemos como
complementares: Arthur Lewis e sua noção de
desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão de
obra, que dada a enorme população rural existente na China
tem uma óbvia aplicação ao caso chinês; Alexander
Gershenkron e sua análise das especificidades históricas
distintas do processo de industrialização retardatária, ao qual o
sistema financeiro e o Estado desempenham um papel
fundamental no processo de acumulação de capital; Albert
Hirschman e sua análise do processo de desenvolvimento
desequilibrado e suas possibilidades de encadeamento no
processo de industrialização, se contrapondo a concepção de
um desenvolvimento realizado por etapas definidas; e, por fim,
Raul Prebisch e sua abordagem clássica da relação desigual
centro-periferia, ao qual veremos a China como um exemplo de
estratégia de desenvolvimento com vistas à superar sua própria
condição periférica.
A segunda abordagem de tipologia semelhante sugeriu que (Jabbour e Paula,
2018, p. 4):
O desenvolvimento econômico na China pode ser explicado
pelo surgimento cíclico de instituições que delimitam uma
contínua reorganização de atividades entre os setores estatal e
privado da economia. Neste sentido, a pronta reação chinesa à
crise de 2009 demonstrou o patamar superior de ação do
Estado, não somente no nível do controle da grande indústria e
da grande finança, como também em elevado nível da
“socialização do investimento”. Para tanto, desenvolvemos uma
abordagem analítica a partir das contribuições de John
Maynard Keynes, Alexander Gerschenkron, Ignacio Rangel e
Albert Hirschman, de modo a permitir um entendimento mais
abrangente do processo de desenvolvimento chinês.
Tais autores têm em comum a rejeição a ideia de que o desenvolvimento
econômico é um processo natural a ser alcançado pelas economias
subdesenvolvidas e buscam entender as especificidades do processo do
desenvolvimento tardio ou periférico, cuja dinâmica deve necessariamente ser
induzida pelo Estado. Fica assim revelada o núcleo duro de uma Nova Economia do
Projetamento; extensão da reinauguração da Economia do Projetamento.
4.4. Entre a Nova Economia Estruturalista e a nossa “negação da negação”
Não se trata de nenhuma inverdade que existem pontos de encontro entre a
escola recém-surgida sob os auspícios do Banco Mundial sob o nome de “Nova
Economia Estruturalista”
24
e a nossa proposta. Ambas têm herança de caráter
24
Trata-se de uma agenda de pesquisa liderada pelo economista chinês Lin Yifu e composta, por
exemplo, de economistas como Dani Rodrik, Ricardo Hausmann, Andres Velasco, Philippe Aghion,
37
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
desenvolvimentista e se apoiam, em apenas alguns casos, nos “pioneiros do
desenvolvimento”. É nesse momento que se chega a uma fronteira que nos
distingue, observe as seguintes palavras de Dani Rodrik sobre essa agenda de
pesquisa e seu fundador, Lin Yifu (2011):
Justin Lin wants to make structuralist economics respectable
again, and I applaud him for that. He wants to marry
structuralism with neoclassical economic reasoning (...). The
central insight of structuralism is that developing countries are
qualitatively different from developed ones. They are not just
radially shrunk versions of rich countries. In order to understand
the challenges of under-development, you have to understand
how the structure of employment and production (...) is
determined and how the obstacles that block structural
transformation can be overcome. The central insight of
neoclassical economics is that people respond to incentives.
We need to understand the incentives of, say, teachers to show
up for work and impart valuable skills to their students or of
entrepreneurs to invest in new economic activities if we are
going to have useful things to say to governments about what
they ought to do.
Dani Rodrik, continua:
To distinguish of structuralist development economics from old-
style structuralism Lin writes that a key difference is that the old
school advocated policies that go against an economy’s
comparative advantage. The new approach, by contrast,
“stresses the central role of the market ... and advises the state
to play a facilitating role to assist firms in the process of
industrial upgrading by addressing externality and coordination
issues.” Lin argues that government policies should “follow”
comparative advantage, rather than “defy” it.
O que seguiu acima é suficiente para distinguir as duas propostas. Em nosso
caso, além de partir dos postulados clássicos do Materialismo Histórico, estamos a
tratar de uma agenda de pesquisa que tem consciência que da junção entre a
Economia Política inglesa, a filosofia clássica alemã e o socialismo utópico francês
surgiu o socialismo científico. Sendo ciência, deve evoluir ao longo do tempo e da
experiência no concreto, tirando lições e buscando saídas. O contato com outros
aportes teóricos é forma de enriquecer e manter contato com o que nos é
convergente. É muito diferente de uma apostasia como a proposta da “Nova
Economia Estruturalista”. Apostasia, justamente por negar o próprio ponto de partida
do estruturalismo original: demonstrar a falácia escondida na essência da lei das
vantagens comparativas.
Michael Spence, Ann Harrison, Célestin Monga dentre outros. Sobre os aportes desta escola ler Lin
(2012).
38
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
Postura semelhante teríamos caso nos dispuséssemos a pagar o dízimo,
cobrado pelo mercado de ideias, nos pronunciando contra as primeiras experiências
socialistas (e propor uma “renovação” do marxismo e do “socialismo com face
humana”, agora sem as amarras do planejamento econômico com exceção a um
chamado planejamento indicativo que, até onde sabemos, nunca ocorreu na China).
5. CONCLUSÕES
Em ao menos dois fatos podemos resumir o mundo hoje: 1) crise sistêmica
sem sinal de superação no médio prazo e 2) a continuidade do maior e mais longevo
processo de desenvolvimento na história. Há quase 40 anos a China cresce a uma
média anual superior a 9%. Não existe resposta fácil capaz de explicar as razões
deste desempenho. O fenômeno deixou de ser uma repetição de um “modelo” já
testado anteriormente e em outro país, tipo uma réplica tamanho gigante do
“modelo” japonês. O tal “modelo” é uma construção histórica chamada de “economia
socialista de mercado” cuja evolução recente, notadamente desde 2009, fez-se
transformar em uma NFES
25
.
A complexidade desta NFES é seu principal atributo, pois implica se tratar de
uma formação marcada pela convivência de diferentes estruturas/formações sociais.
É nesta NFES que se assenta o “socialismo de mercado” como um modo de
produção complexo. Por não se tratar de um modo de produção puro, o “socialismo
de mercado” deve ser tratado como um fenômeno regido por combinações entre
diferentes modos e relações de produção.
Completa esse quadro a própria financeirização como padrão sistêmico de
geração de riqueza, a crescente agressividade imperialista, o
surgimento/espraiamento de novos paradigmas produtivos e tecnológicos e das
novas e superiores formas de planificação sendo gestadas e executadas em larga
escala na China. Voltaremos a isso.
Algum tempo atrás duas ocorrências de ordem corriqueira. Em troca de ideias
recente lembramos-nos de um livro muito esquecido escrito por Ignacio Rangel
chamado “Elementos de economia de projetamento”, lançado em 1959. Um de nós
com sua sólida formação em microeconomia, apesar de ser marxista, fez menção a
25
As características do processo recente chinês e a apresentação de alguns dos atributos do
“socialismo de mercado” e suas formas originais de funcionamento já desenvolvida em Jabbour e
Dantas (2017) e Jabbour e Paula (2018).
39
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
algumas passagens do livro. O outro apenas disse que se trata do melhor livro
escrito por Ignacio Rangel, que inicia o livro como um economista neoclássico e o
encerra imaginando a formação de conglomerados empresariais fora do sistema de
preços, ou seja: a formação de conglomerados sob uma formação social superior, o
socialismo. Ignacio Rangel estava olhando pelo menos 50 anos à frente: sem saber
ele estava vislumbrando justamente a forma como foram reorganizados os
conglomerados empresariais estatais chineses no final da década de 1990. Nem a
União Soviética que Rangel observava como um espelho do futuro esse tipo de
organização empresarial ocorria.
Mas na verdade é o economista Márcio Henrique Monteiro de Castro quem
chama a atenção à verdadeira intenção de Rangel contida no livro. Segundo Castro
(2014, p. 202):
A leitura de seu conteúdo revela o objetivo do autor. Construir,
a partir do acervo da ciência econômica, com todas suas
escolas e distintas abordagens, uma teoria econômica da
economia do projetamento, entendida esta como a economia
que o processo histórico estava desenhando no século XX, a
partir do capital financeiro, do keynesianismo e da planificação
soviética.
A passagem abaixo espelha, de forma completa a personalidade e o
inconformismo que assola a nós dois e que serviu de estímulo e coragem para
transformar em palavras nossos sentimentos com a forma que os intelectuais
brasileiros tem se comportado diante do quadro nacional e internacional. Nas
palavras de Castro (2014, p. 202):
A ambição intelectual do livro (...) indica o incorformismo de
Rangel com as teorias e interpretações existentes no trato das
questões de sua contemporaneidade.
Nunca é demais lembrar que Rangel – de forma isolada e corajosa – travou
uma batalha sem quartel contra o Plano Trienal de Celso Furtado. Isso num exato
momento em que a CEPAL era algo próximo do incontestável. Como o marxista
mais preparado surgido no país, Rangel sabia que o planejamento era incompatível
no curto prazo. Até hoje os cepalinos/estruturalistas não entenderam que o
capitalismo gera suas próprias restrições, mas tem que superar seus bloqueios de
mercado. O preço pago por Rangel todos sabem: o isolamento intelectual e o
exercício aberto de uma censura branca contra sua obra
26
.
26
É muito comum encontrar alunos e/ou professores de economia que nunca ouviram falar ou, ao
menos, já teve algum contato com a obra rangeliana.
40
JABBOUR, DANTAS, ESPÍNDOLA
***
A China decide enfrentar os dissabores da crise financeira anunciando, em
novembro de 2008, um pacote de investimentos da ordem de US$ 600 bilhões a
serem executados por imensas empresas estatais. Empresas tais forjadas em um
processo de fusões e aquisições, no final da década de 1990, que resultou no
surgimento de 149 conglomerados empresariais estatais. Dados suficientes para
demonstrar que: 1) o país atingiu uma capacidade de coordenação e socialização do
investimento inimaginável para qualquer país capitalista; 2) espantosa capacidade
financeira de executar investimentos de qualquer ordem, fazendo base a novas e
superiores formas de planificação econômica; 3) os conglomerados empresariais
estatais conformam-se como o núcleo da consolidação da NFES.
Propomos, diante do quadro exposto, chamar ao desafio de se elaborar uma
Nova Economia do Projetamento. Ao longo do artigo buscamos atentar às
particularidades de nossa contemporaneidade e perceber algo interessante a partir
do momento que se começam a classificar algo como um “milagre” duas verdades
aparecem: as teorias existentes são incapazes de explicar o que ocorre e se ocorre,
alguma teoria há de existir ou está em construção currente culamu. A nosso ver a
Nova Economia do Projetamento é a economia que surge deste complexo, mas
ainda se trata de uma caixa vazia. Sob as lentes do marxismo, chamamos e todas
as correntes da heterodoxia econômica ao desafio. Está lançado o desafio.
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NOTAS DE AUTOR
CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
Elias Khalil Jabbour - Concepção. Elaboração do manuscrito, revisão e aprovação da versão final do trabalho
Alexis Toríbio Dantas – Elaboração do manuscrito. Participação ativa da discussão dos resultados; Revisão e
aprovação da versão final do trabalho.
Carlos José Espíndola – Elaboração do manuscrito. Participação ativa da discussão dos resultados; Revisão
e aprovação da versão final do trabalho.
FINANCIAMENTO
Não se aplica.
CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM
Não se aplica.
APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
Não se aplica.
CONFLITO DE INTERESSES
Não se aplica.
LICENÇA DE USO
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adaptar, criar para qualquer fim, desde que atribua a autoria da obra.
HISTÓRICO
Recebido em: 24-10-2019
Aprovado em: 03-01-2020