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IV CONGRESSO INTERNACIONAL
DE DIREITOS HUMANOS
DE COIMBRA: UMA VISÃO
TRANSDISCIPLINAR
IV CONGRESSO INTERNACIONAL
DE DIREITOS HUMANOS
DE COIMBRA: UMA VISÃO
TRANSDISCIPLINAR
ORGANIZAÇÃO:
http://www.inppdh.com.br http://igc.fd.uc.pt/
VITAL MOREIRA
JÓNATAS MACHADO
CARLA DE MARCELINO GOMES
CATARINA GOMES
CÉSAR AUGUSTO RIBEIRO NUNES
LEOPOLDO ROCHA SOARES
(Organizadores)
ANAIS DE ARTIGOS COMPLETOS DO IV
CIDHCoimbra 2019
VOLUME 6
www.cidhcoimbra.com
1ª edição
Jundiaí/SP - Brasil
Edições Brasil / Editora Fibra / Editora Brasílica
2020
© Edições Brasil / Editora Fibra / Editora Brasílica - 2020
Supervisão: César Augusto Ribeiro Nunes
Capa: João J. F. Aguiar
Editoração eletrônica: João J. F. Aguiar, César A. R. Nunes, José R. Polli
Revisão ortográca: os autores, respectivamente ao capítulo
Revisão Geral: Comissão Organizadora do IV CIDHCoimbra 2019
Conselho Editorial Edições Brasil: João Carlos dos Santos, Dimas Ozanam Calheiros,
José Fernando Petrini, Teresa Helena Buscato Martins.
Conselho Editorial Editora Fibra: Maria Cristiani Gonçalves da Silva, Francisco
Evangelista, Jean Camoleze, Jorge Alves de Oliveira, Sidnei Ferreira de Vares,
Thiago Rodrigues, Guilherme de Almeida Prazeres, Cristiano Reis.
Conselho Editorial Editora Brasílica: César Ap. Nunes, Leopoldo Rocha Soares, Daniel
Pacheco Pontes, Paulo Henrique Miotto Donadeli, Elizabete David Novaes,
Eduardo António da Silva Figueiredo, Egberto Pereira dos Reis
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
N9221a Nunes, César Augusto R.
Anais de Artigos Completos do IV CIDHCoimbra 2019 - Volume
6 / César Augusto R. Nunes et. al. (orgs) [et al.] – Jundiaí: Edições
Brasil / Editora Fibra / Editora Brasílica, 2020.
290 p. Série Simpósios do IV CIDHCoimbra 2019
Inclui Bibliograa
ISBN: 978-65-86051-07-0
1. Direitos Humanos I. Título CDD: 341
Publicado no Brasil / Edição eletrônica
contato @ edicoesbrasil.com.br / contato @ editorabra.com.br
cnunes.adv@uol.com.br
ANAIS DE ARTIGOS COMPLETOS
IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS DE COIMBRA: UMA VISÃO
TRANSDISCIPLINAR
www.cidhcoimbra.com
VOLUME 6 - Composição dos Simpósios:
Simpósio nº. 30
DIREITOS HUMANOS, CORRUPÇÃO E GOVERNANÇA
Coordenadores: Paula Margarida C. dos Santos Veiga e Eduardo António da S.
Figueiredo
Simpósio nº. 32
DIREITOS HUMANOS, ARTE E LITERATURA
Coordenadores: Edna Raquel Hogemann e Thiago Serrano Pinheiro de Souza
Simpósio nº. 33
O DIÁLOGO ENTRE A ARTE E OS DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE
INTEGRATIVA DOS MOVIMENTOS ARTÍSTICOS NA REPRESENTAÇÃO
DOS VALORES SOCIAIS NO DECURSO DO TEMPO
Coordenadoras: Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega e Bárbara Galindo
Rodrigues
Simpósio nº. 35
EDUCAÇÃO, DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E DIREITOS
HUMANOS
Coordenadores: Cezar Bueno de Lima e Jucimeri Isolda Silveira
Simpósio nº. 36
DIREITOS HUMANOS E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
Coordenadores: César Aparecido Nunes e Antonio Gomes Ferreira
Simpósio nº. 37
FILOSOFIA, DIREITOS HUMANOS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Coordenadores: Antonio Carlos de Souza e Charles Lamartine de Sousa Freitas
ISBN: 978-65-86051-07-0
VOLUME 1 – ISBN: 978-65-86051-03-2 VOLUME 2 – ISBN: 978-65-86051-04-9
VOLUME 3 – ISBN: 978-65-86051-05-6 VOLUME 4 – ISBN: 978-65-86051-06-3
VOLUME 5 – ISBN: 978-65-86051-08-7 VOLUME 7 – ISBN: 978-65-86051-09-4
VOLUME 8 – ISBN: 978-65-86051-10-0 VOLUME 9 – ISBN: 978-65-86051-11-7
COMISSÃO CIENTÍFICA DO IV CIDHCOIMBRA 2019:
Membros Titulares:
Prof. Doutor Vital Moreira; Prof. Doutor Jónatas Machado; Mestre Carla de
Marcelino Gomes; Mestre Catarina Gomes; Mestre César Augusto Ribeiro Nunes;
e Mestre Leopoldo Rocha Soares.
Membros Convidados:
Prof. Doutor Rafael Mario Iorio Filho; Profa. Doutora Fernanda Duarte Lopes
Lucas da Silva; Profa. Dra. Alessandra Benedito; Mestre Alexandre Sanches Cunha.
SUMÁRIO
Apresentação ................................................................................................................... 08
A Implementação do Compliance Para o Combate à Corrupção e Proteção dos Di-
reitos Humanos ................................................................................................................10
Isabela Moreira do Nascimento Domingos
Corrupção, Devido Processo Legal e Instrumentalidade no Processo Penal: o caso
brasileiro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à luz dos direitos humanos...19
Ana Caroline Ribeiro e Leopoldo Rocha
O Princípio Anticorrupção na Base do Constitucionalismo Internacionalista Glo-
bal: a agenda 2030 da ONU como elemento indicador ............................................. 30
Niedja de Andrade e Silva Forte dos Santos
Corrupção no Setor Privado e Direitos Humanos: um estudo das propostas de tipi-
ficação no Brasil e de seus respectivos bens jurídicos ................................................47
Túlio Felippe Xavier Januário
A Efetivação do Princípio da Transparência como Instrumento ao Combate à Cor-
rupção ................................................................................................................................ 60
Marina Martins Maneschy
A Aplicabilidade da Lei Anticorrupção nas Empresas Estatais em Sede de Governo
Eletrônico ..........................................................................................................................71
Leonardo Cursino Rodrigues Ferreira
A Dupla Dimensão do Direito à Liberdade de Expressão e os Efeitos Desta nos
Movimentos Artísticos Culturais no Século XXI – Uma Análise Comparativa Entre
o Sistema Interamericano, o Sistema Europeu, Relacionando à Abordagem da Obra
“Encantos e Desencantos dos Direitos Humanos’’ ................................................... 86
Sérgio Assunção Rodrigues Júnior
O Reflexo Atemporal de uma Sociedade Excludente: análise da situação dos meni-
nos de rua através de “Capitães da Areia” .................................................................101
Loriene Assis Dourado Duarte
Liberdades, Segurança e Igualdade: quando Freud, Baratta e Rawls debatem sobre
Laranja Mecânica ............................................................................................................107
Luciano Filizola da Silva
Filosofia do Martelo: santificação do riso e vias de fuga ......................................... 121
Paola Cantarini
Relendo Brasil Nunca Mais ..........................................................................................134
Liniane Haag Brum
Arte Conceitual, Razão Cínica e Erosão da Linguagem Jurídica ............................143
Pedro Henrique Corrêa Guimarães
Arte e Denúncia do Conflito na Obra de Pedro Tierra ........................................... 151
Juliete Prado de Faria e Adegmar José Ferreira
Da (In)Visibilidade às Telas de Museu: a importância da arte na construção da cida-
dania negra ......................................................................................................................161
Ana Patricia Ribeiro Approbato
Olá, Como Foi? Das Idas e Vindas: relatos D’além-Mar ........................................171
Mariana Baruco Machado Andraus e Erika Carolina Cunha Rizza de Oliveira
O Desafio do Alfabetismo Funcional Para a Concretização do Direito Humano à
Educação .........................................................................................................................181
Ana Paula Silvestrini Vieira Alves
Desenvolvimento Sustentável na Prática – Estudo das Representações Sociais de
Município de Destaque no Brasil ................................................................................187
Rosana Oliveira Rocha
A Necessidade de Educar os Jovens Para uma Visão Consciente Sobre Dinâmicas
de Poder ...........................................................................................................................201
Ricardo Barreto
A Vulnerabilidade dos Estudantes Universitários: os desafios da busca do estágio e
da definição da carreira em época da Indústria 4.0 e da ausência da visão sistêmica
nas instituições de ensino .............................................................................................218
Juliana Torres Martins
Prática Social e Educação: da crise da consciência para uma consciência da crítica .
............................................................................................................................................224
Sandro Ivo de Meira
Formação de Professores, Inclusão Digital e Direitos Humanos ..........................234
Katharine Rafaela Diniz Nunes
Educação em Direitos Humanos na Perspectiva Intercultural ...............................248
Érika Fernandes Benjamim
O Papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito na Efetivação dos
Direitos Sociais ...............................................................................................................257
Júlio Thalles de Oliveira Andrade
O Direito e a Justiça Como o Avesso em Albert Camus ......................................... 271
Natália de Alexandre Macário
A Polifonia Complexa dos Direitos Humanos: uma epistemologia contra-hegemô-
nica na produção de saberes interculturais .................................................................280
Magna Rodrigues Oliveira
Anais de Artigos Completos - VOLUME 6 | 47
CORRUPÇÃO NO SETOR PRIVADO E DIREITOS
HUMANOS: UM ESTUDO DAS PROPOSTAS
DE TIPIFICAÇÃO NO BRASIL E DE SEUS
RESPECTIVOS BENS JURÍDICOS
Túlio Felippe Xavier Januário
Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, com período de
investigação nanciado pelo Programa “ERASMUS+”, na Georg-August-Universität
Göttingen. Especialista em Direito Penal Econômico e Teoria do Delito pela
Universidad de Castilla-La Mancha. Especialista em Compliance e Direito Penal
pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Universidade de Coimbra.
Pós-graduado em Direito Penal – Parte Geral pelo Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais em parceria com o Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da
Universidade de Coimbra. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista
– UNESP Franca. Advogado
Resumo:
O objetivo do presente trabalho é analisar os projetos de criminalização da
corrupção privada que atualmente se encontram em tramitação no Brasil,
quais sejam, os Projetos de Lei do Senado 236/12 e 455/16 e o Projeto de
Lei da Câmara n. 3.163/2015. A partir de um estudo comparado para com os
principais modelos de tipicação penal destas condutas, que são os de tutela
do patrimônio, da lealdade e conança nas relações privadas e da liberdade
e lealdade concorrencial, buscaremos identicar quais seriam os pretendidos
bens-jurídicos a serem tutelados a partir de cada uma destas propostas e sua
adequação para com a proteção dos direitos humanos e fundamentais even-
tualmente atingidos por estas condutas, os quais procuraremos identicar já
no primeiro tópico do trabalho.
Palavras-chave: Corrupção privada; Bem jurídico; PLS 236/12; PLS 455/16;
Projeto de Lei 3.163/2015.
Introdução
Pretende-se com presente trabalho, com enfoque nos possíveis bens ju-
rídicos por elas protegidos e na eventual idoneidade das mesmas para a tutela
de direitos humanos e fundamentais, analisar as propostas de criminalização
da corrupção privada em trâmite no Brasil, quais sejam, os Projetos de Lei do
48 | IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra
Senado 236/12 e 455/16 e o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados de n.
3.163/2015.
Observa-se que, remotamente, o fenômeno da corrupção se restringia
ao âmbito da administração pública, se consubstanciando nos desvios con-
dicionados pela obtenção de vantagens, cometidos por agentes dotados de
poderes concedidos pelo Estado. Contudo, no decorrer do Século XX, a par-
tir do protagonismo que as empresas foram alcançando na economia e da
conscientização da sociedade de que aquelas deveriam não apenas almejar a
obtenção de lucro, mas cumprir seus respectivos deveres e funções sociais,
não mais se pôde olvidar da relevância das condutas corruptivas no setor pri-
vado, bem como de seus diversos efeitos deletérios, tais como o aumento dos
preços e a queda da qualidade dos produtos e serviços que chegam aos con-
sumidores.
Salienta-se ainda, que em razão da globalização, as implicações destas
condutas se potencializam e tendem a atingir escalas mundiais, podendo ter
relevantes impactos em países subdesenvolvidos, nos quais a desaceleração da
economia pode agravar o quadro de desigualdade social e o desequilíbrio na
distribuição de renda. Observam-se assim, reverberações da corrupção pri-
vada no desenvolvimento econômico, democrático e social, prejudicando a
livre-concorrência e afetando inclusive direitos humanos (JAPIASSÚ, 2007,
p. 30).
Apesar disso, e na contramão das tendências observadas em ordena-
mentos jurídicos estrangeiros e das orientações de normativas supranacionais,
no Brasil, atualmente não são criminalizadas as condutas de corrupção entre
particulares. Esta lacuna legislativa, porém, tende a ser superada nos próximos
anos, com a iminente aprovação de algum dos Projetos de Lei supracitados.
Contudo, há que se averiguar a adequação destes projetos no que toca aos in-
teresses que visam tutelar e à sua idoneidade para tanto.
Conforme observaremos no presente trabalho, não há harmonização
entre os ordenamentos jurídicos, no que toca à criminalização da corrupção
privada, sendo que cada Estado optou por um modelo de tipicação e por
um bem jurídico objeto de tutela, dentre os quais, podemos elencar os in-
teresses patrimoniais da empresa e do empregador, a relação de conança e
lealdade no âmbito laboral e lealdade concorrencial (NIETO MARTÍN, 2003,
p. 107-111). Além disso, há questionamentos doutrinários a respeito da digni-
dade penal destas condutas a partir de algumas destas concepções.
Desta feita investigaremos no presente trabalho, inicialmente, de que
forma as condutas de corrupção entre particulares podem afetar direitos hu-
manos e fundamentais, a m de traçar as bases para a identicação de quais
interesses devem ser tutelados com a tipicação destas condutas. Feito isso,
e a partir de uma análise de direito comparado, nos debruçaremos sobre os
Projetos de Lei do Senado 236/12 e 455/16 e da Câmara, de n. 3.163/2015,
a m de identicar, a partir dos possíveis bens jurídicos a serem protegidos
com a criminalização destas condutas, aquele que o legislador brasileiro efeti-
Anais de Artigos Completos - VOLUME 6 | 49
vamente procurou resguardar, e se esta seria uma opção adequada em face da
tutela de direitos humanos.
Do conceito de corrupção no setor privado
Inicialmente, cumpre salientar que a estrutura básica dos delitos de cor-
rupção no setor público pode ser considerada triangular, no sentido de que há
um principal, que no caso seria o Estado, que dota de um múnus público seu
agente – o intraneus – e há ainda um terceiro elemento externo, o extraneus, que
no caso é o corruptor. A negociação, seja ela uma oferta, dádiva ou promessa
de vantagem por parte do corruptor na modalidade ativa do delito – ou o
recebimento, a solicitação ou aceite da vantagem por parte do agente, na mo-
dalidade passiva, é entre o extraneus e o intraneus e via de regra se dá justamente
em razão do múnus público exercido pelo agente1.
A principal diferença destes casos para com os ocorridos no setor priva-
do reside justamente no fato de que o principal não seria o Estado, mas sim,
um ente privado, seja ele uma pessoa física ou jurídica, que depositaria no seu
agente – o intraneus – uma expectativa de lealdade, uma conança de que este
realizará as funções de maneira diligente, visando sempre os melhores resul-
tados para a empresa e também para o principal. A negociação nestes casos
se daria, portanto, entre um agente externo – extraneus – e o agente, dotado
de um dever de conança para com o seu empregador, que pode ou não ser
violado no caso concreto, conforme veremos posteriormente.
A título de exemplicação, podemos citar o caso de uma empresa far-
macêutica que oferece para determinados médicos de clínicas privadas, paco-
tes de viagem para eles e seus familiares, no intuito de que eles se simpatizem
com ela e passem a receitar seus medicamentos para seus pacientes. No caso,
não há elementos que permitam armar que aqueles medicamentos seriam
os mais adequados para a solução dos problemas dos pacientes – nem de que
não seriam, cumpre destacar -, nem tampouco de que seriam os mais baratos
do mercado. Fato é que a escolha pela prescrição dos mesmos se dera não
pela qualidade ou preço do produto, mas sim, pela vantagem que fora ofereci-
da ao agente.
Um outro exemplo é o do coordenador de curso de um determinado
colégio particular, que no processo de escolha do material didático a ser in-
dicado aos seus alunos, recebe a proposta de uma editora, de 15% sobre o
valor do contrato, caso este indique uma apostila da mesma, ainda que seja
reconhecidamente mais cara e de menor qualidade. Neste caso, uma vez mais,
a escolha do produto não se deu por critérios racionais (DE LA CUESTA
ARZAMENDI; BLANCO CORDERO, p. 282-283), tais como qualidade e
preço, mas sim, em razão da vantagem indevidamente oferecida ao agente.
Ora, dos casos supracitados, podemos concluir que diante de condutas
corruptivas no setor privado, a qualidade e o preço dos produtos e serviços
1 Sobre esta relação triangular, cfr.: TEIXEIRA, 2018, p. 520.
50 | IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra
que chegam às mãos do grande público são colocados em perigo – senão efe-
tivamente lesionados –, uma vez que algum integrante da cadeia de consumo,
no momento de sua seleção, não atende àqueles critérios, mas sim, é inuen-
ciado por determinada vantagem que lhe é oferecida/prometida ou que ele
mesmo solicitou/exigiu.
A partir do exposto e conforme será melhor explanado no tópico sub-
sequente, já podemos observar em alguns casos, um potencial de lesividade
das condutas de corrupção entre particulares tão grande quanto o das co-
metidas nos setores públicos, razão pela qual, no que toca aos objetivos do
presente trabalho, cumpre-nos questionar quais seriam os direitos humanos e
fundamentais eventualmente atingidos por estas condutas.
Dos direitos humanos e fundamentais afetados pela corrupção en-
tre particulares
Um dos primeiros e mais importantes questionamentos que surgem ao
nos depararmos com a temática da corrupção entre particulares diz respeito
a quais direitos humanos e fundamentais podem efetivamente ser atingidos
por estas condutas. E isto porque, uma vez que nos encontramos em uma
seara inegavelmente privada, em constante conito para com a liberdade de
auto-organização do empresário, há que se discutir se teria o direito penal le-
gitimidade de interferência nestes assuntos. Uma absoluta resposta negativa
nos parece, porém, precipitada.
Inicialmente, cumpre esclarecer que a corrupção mostra-se como um
fenômeno poliédrico, no sentido de que sua lesividade ultrapassa os interesses
diretamente atingidos por estas condutas – tais como o funcionamento do
Estado ou da economia -, reverberando de maneira mediata em outros bens,
tais como no acesso da população à educação, saúde, transporte e outros ser-
viços (SANTOS, 2009, p. 24).
Aliás, essa perspectiva mostra-se muito importante em países como o
Brasil, que a partir da década de 1990 experimentaram privatizações em seto-
res essenciais, tais como justamente o da saúde, dos transportes e da educação
(GONTIJO, 2016, p. 37; 41-42; PEREZ CEPEDA; BENITO SÁNCHEZ,
2011, p. 14-15; SANSEVERINO, 2019, p. 16). Assim sendo, deixando de ser
enquadráveis nos tipos dos Artigos 317 e 333 do Código Penal Brasileiro, as
condutas corruptivas nestes setores representam hoje inegáveis lacunas de
punibilidade.
Ainda que fora destas searas, o condicionamento de determinada con-
tratação, compra ou prestação de serviços a uma vantagem ou promessa de
vantagem indevidas pode afetar a qualidade e o preço dos produtos e servi-
ços que chegam ao público, facilitando a concentração do poder econômico
e afetando, assim, a livre e leal concorrência (ENCINAR DEL POZO, 2015,
p. 283; WILLADINO, 2018, p. 107) que é alçada, juntamente com a defesa
do consumidor, ao patamar de princípio geral da ordem econômica brasileira,
Anais de Artigos Completos - VOLUME 6 | 51
nos termos do Artigo 170, incisos IV e V da Constituição Federal, sendo que
o Artigo 173, §4º, determina ainda a criação de instrumentos visando a coi-
bição do abuso de poder econômico com ns de dominação do mercado, a
eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros (WILLADINO,
2018, p. 22).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, por sua vez, assegura
em seu artigo 22, a satisfação de direitos econômicos indispensáveis, bem
como em seu Artigo 25, o direito a um nível de vida suciente para assegurar
às pessoas as condições de bem-estar necessárias, em especial as atinentes à
alimentação, vestuário, alojamento e assistência médica, as quais, diga-se de
passagem, podem ser afetadas em ambientes de corrupção privada sistêmica.
Aliás, conforme destaca Cláudia Cruz Santos (2009, p. 17), há uma ten-
dência das atividades econômicas lícitas de procurarem ambientes menos cor-
ruptos, com uma imagem de maior integridade e transparência, uma vez que
são, via de regra, também mais estáveis. Por sua vez, nos locais em que as con-
dutas corruptas são mais comuns, há uma atração maior de atividades ilícitas,
o que acaba por acarretar inegáveis custos sociais. Desta feita, tem-se que a
corrupção, seja em sua esfera pública ou privada, afeta não apenas a natureza
democrática de determinado Estado, mas também sua própria economia.
Ora, este aspecto salienta ainda mais a relevância do enfrentamento da
corrupção privada em países em desenvolvimento, cuja manutenção da boa
imagem do Estado é essencial para a atração de investidores sérios e que be-
neciem o desenvolvimento tecnológico, comercial e principalmente econô-
mico do país2.
Aliás, cumpre salientar o entendimento de que o próprio desenvolvi-
mento econômico seria um direito humano de terceira geração, fundamental,
inalienável, universal, indivisível, interdependente e inter-relacionável, confor-
me sustentam Roberto Senise Lisboa e Priscila Senise Lisboa (2011, p. 17-18).
Este direito englobaria, segundo os autores, não apenas o desenvolvimento
dos Estados em si, mas também a própria satisfação das necessidades econô-
micas e sociais indispensáveis à dignidade humana.
Com os fenômenos da globalização e da maior complexidade alcançada
pelas organizações empresariais, a preocupação para com a corrupção entre
particulares vem se mostrando uma tendência internacional e crescente, uma
vez que, conforme observado nas recentes crises, as condutas ilícitas pratica-
das em cernes privados podem sim prejudicar a economia de países do mun-
do inteiro3.
Esta preocupação é cristalina no preâmbulo da Convenção Penal sobre
a Corrupção, do Conselho da Europa, que dispõe claramente sobre a impor-
tância do enfrentamento da corrupção, uma vez que esta tende a afetar o Es-
tado de Direito, a democracia e os direitos humanos, além de distorcer a boa
2 Neste sentido, com citações, cfr: SANSEVERINO, 2019, p. 26.
3 Sobre esta tomada de consciência da sociedade pós crise de 2008, cfr: WILLADINO,
2018, p. 34-37.
52 | IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra
governança, a equidade, a justiça social e a concorrência, dicultando ainda o
desenvolvimento econômico e colocando em perigo a estabilidade das insti-
tuições democráticas que fundamentam nossa sociedade (SANSEVERINO,
2019, p. 29).
Desta feita, em denitivo, temos que as condutas aptas a congurar cor-
rupção entre particulares podem prejudicar, direta ou indiretamente, o cres-
cimento econômico, a capacidade produtiva e a inovação tecnológica de de-
terminado Estado4, afetando especialmente a livre e leal concorrência e con-
sequentemente a qualidade e o preço dos produtos e serviços que chegam à
população, os quais, no caso concreto, podem ser direitos sociais constitucio-
nalmente assegurados, tais como a saúde, a educação, o transporte, a moradia,
a segurança, o lazer, dentre outros.
Propostas de criminalização da corrupção entre particulares no
Brasil
Demonstrada a relevância penal destas condutas, aptas a afetarem não
apenas interesses particulares, mas também direitos humanos e fundamentais
da coletividade, cumpre analisarmos as hodiernas propostas de criminalização
da corrupção no setor privado, no Brasil.
Enfrentando, isoladamente ou não, esta temática, estão sendo discutidos
atualmente dois projetos de lei no Senado – PLS 236/12 e PLS 455/16 – e
um na Câmara dos Deputados – Projeto de Lei 3.163/2015 – sendo que um
outro recentemente fora arquivado – Projeto de Lei 5.895/2016.
No que se refere aos que se encontram em trâmite junto ao Senado Fe-
deral, cumpre destacar que o PLS 236/12 é o que propõe a reforma do Códi-
go Penal Brasileiro, incluindo em seu Artigo 167 o delito de “Corrupção entre
particulares”. Por sua vez, o PLS 455/16 é de autoria da chamada “CPI do
Futebol” e propõe a alteração do vigente Código Penal Brasileiro para a inser-
ção de um Artigo 196-A, tipicando a “Corrupção Privada”.
Comparando os dois tipos penais, é possível observar que são muito se-
melhantes. O Artigo 167 do PLS 236/12 prevê pena de prisão de um a quatro
anos para aquele que, como representante da empresa ou instituição privada,
exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, para favorecer a si ou
a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevi-
da, a m de realizar ou omitir ato inerente às suas atribuições. Dispõe ainda,
em seu parágrafo único, que nas mesmas penas incorrerá aquele que oferecer,
prometer, entregar ou pagar a vantagem indevida ao representante da empre-
sa ou instituição privada, direta ou indiretamente.
Identica-se na proposta do Artigo 196-A do PLS 455/16, a diferença
de que há uma especicação quanto ao sujeito ativo da modalidade passiva da
conduta, que que deverá ser o diretor, administrador, membro de conselho ou
órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto, o representante ou o empre-
4 Neste sentido, com citações: SANSEVERINO, 2019, p. 25-26.
Anais de Artigos Completos - VOLUME 6 | 53
gado da empresa ou instituição privada. Por sua vez, no parágrafo único deste
dispositivo, ao dispor sobre a modalidade ativa da corrupção privada, não é
especicado o agente para o qual a vantagem deve ser dirigida.
Chama a atenção, porém, o fato de que no Projeto de Novo Código
Penal, o crime de “Corrupção entre particulares” está inserido no Título II da
Parte Especial, referente aos “Crimes contra o patrimônio”, enquanto que o
PLS 455/16 propõe a inserção do tipo de “Corrupção entre particulares” no
Capítulo IV, do Título III, onde se encontrava tão somente o hoje já revogado
“crime de concorrência desleal”. Estas opções sinalizam, ao nosso ver, o bem
jurídico que se almeja proteger com cada um destes projetos.
No que toca ao Projeto de Lei 3.163/2015, ainda em trâmite perante a
Câmara dos Deputados, não há muitos elementos que permitam a identica-
ção de qual seria o bem jurídico objeto de tutela do tipo. Do artigo 2º, consta
que aquele que “oferecer ou prometer vantagem indevida para a outrem, no
curso de atividades econômicas, nanceiras ou comerciais, para determiná-lo
a praticar, omitir ou retardar ato de ofício” estará sujeito à pena de reclusão
de dois a oito anos e multa. As mesmas penas são previstas para a modalidade
passiva, tipicada no Artigo 3º, para aqueles que solicitarem ou receberem,
para si ou para outrem, direta ou indiretamente – mas em razão da atividade -,
vantagem indevida, no curso de atividades econômicas, nanceiras ou comer-
ciais. Cumpre destacar, porém, que no Artigo 6º do Projeto de Lei é previs-
to que a ação penal será pública condicionada à representação dos eventuais
ofendidos. Esse fato pode nos levar à conclusão de que o legislador não op-
tou por um bem jurídico supraindividual – tal como a concorrência – mas
sim, um interesse particular que possa ao menos ser colocado em perigo –
tais como a relação laboral de lealdade e conança entre principal e agente,
ou então o próprio patrimônio do principal. Este último nos parece, aliás, o
verdadeiramente intencionado pelo legislador, haja vista que é prevista a in-
denização dobrada aos diretamente lesionados pela ação. Ora, uma vez que
a relação de lealdade e conança dicilmente poderá ser quanticada em ter-
mos nanceiros, podemos presumir que o prejuízo aqui a ser indenizado é o
patrimonial.
É importante salientar que essa falta de unanimidade quanto ao interes-
se tutelado quando falamos de corrupção entre particulares não é uma parti-
cularidade do ordenamento jurídico brasileiro, mas sim, reete um ambiente
de discussões no direito comparado, que apesar das normativas supranacio-
nais, tem diculdades na harmonização nesta temática.
É certo, porém, que a opção por um determinado bem jurídico a ser
protegido terá reexos diretos na própria estruturação do tipo penal e poste-
riormente na interpretação jurisprudencial que dele será feita, sendo funda-
mental neste momento, a presente discussão, para a eleição por parte do le-
gislador, dentre os interesses passíveis de serem atingidos por essas condutas,
daquele mais relevante e carente de tutela penal.
54 | IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra
Analisaremos, assim, no tópico a seguir e a partir de um estudo com-
parado – sem caráter exaustivo, por certo – os três principais modelos de in-
criminação da corrupção privada no que toca ao interesse protegido, quais
sejam, o (I) modelo patrimonial; (II) o modelos da lealdade e conança entre
principal e agente; e o (III) modelos concorrencial.
Do bem jurídico tutelado pela corrupção no setor privado
Modelo patrimonial
No ordenamento jurídico italiano, a conduta de corrupção no setor pri-
vado visa tutelar o patrimônio do principal, ou seja, proteger o empresário de
eventuais prejuízos decorrentes do pacto sceleris celebrado entre o funcionário e
o terceiro corruptor. Essa nos parece ser a interpretação a ser feita do Artigo
2635 do Código Civil Italiano e também, conforme já exposto, a proposta do
legislador no PLS 236/12 e no Projeto de Lei da Câmara n. 3.163/2015.
É fato que a dignidade penal do patrimônio como um bem jurídico apto
de tutela é praticamente incontestável, salvo algumas particularidades de ca-
sos/tipos penais concretos que podem se mostrar insignicantes.
Cumpre destacar, porém, que a tipicação da corrupção privada com a
nalidade de tutela patrimonial não é promovida por qualquer dos instrumen-
tos supranacionais na matéria, que nos parecem propor outros interesses a
serem protegidos (GONTIJO, 2016, p. 166)
Além disso, é importante salientar que a lógica empresarial tem como
um de seus principais objetivos a potencialização dos lucros e este nos parece
ser justamente o motor das condutas tanto do corruptor quanto do agente,
na celebração do pacto. A diferença aqui residiria, portanto, no fato de que
o lucro potencializado não seria o do principal – que estaria, pelo contrário,
sofrendo um prejuízo – mas sim, o do agente e do corruptor5. Ora, questio-
na-se assim, o que tornaria ilegítima a busca por estes dois últimos, da poten-
cialização de seus lucros, enquanto que, caso estivessem atuando nos interes-
ses do principal, a conduta seria penalmente irrelevante. E a resposta parece
residir justamente na conança depositada pelo principal em seu agente, em
cuja quebra residiria o desvalor da conduta. Mostra-se, assim, no mínimo pro-
blemática a consideração do patrimônio do principal como bem jurídico per se
a ser tutelado, enquanto a reprovação parece residir na quebra da conança.
Cumpre destacar ainda, que hoje é praticamente unânime a independên-
cia entre as modalidades ativa e passiva da corrupção, no sentido de que para
a conguração de uma, não necessariamente deverá haver a outra. Poderá ha-
ver, por exemplo, a oferta de uma vantagem indevida – modalidade ativa –
sem que haja um aceite do agente e consequentemente, sem a modalidade
passiva. Ora, a partir disso e da perspectiva patrimonial aqui analisada, tem-se
que em alguns casos concretos, o patrimônio do principal sequer se aproxi-
5 Essa situação é exemplicada por: GONTIJO, 2016, p. 167.
Anais de Artigos Completos - VOLUME 6 | 55
mará de ser afetado, especialmente quando não houver o acordo – ou seja,
quando não houver aceite da contraparte. Para a manutenção desta indepen-
dência, portanto, há que se reconhecer uma espécie de “antecipação da pu-
nição” na corrupção privada (GONTIJO, 2016, p. 173-174)6. Aliás, mesmo
nos casos em que há o aceite da vantagem, muitas vezes não podemos falar
de um prejuízo patrimonial em si, mas sim, quase de uma “perda de chance”,
especialmente quando estão envolvidos contratos futuros (GONTIJO, 2016,
p. 173).
Pelas razões expostas, nos parece que a criminalização da corrupção pri-
vada não deve ser um instrumento de tutela patrimonial, devendo ser anali-
sada com as devidas ressalvas os Projetos 236/12 e 3.163/2015. No mesmo
sentido que o sustentado por Adriano Teixeira (2018, p. 526), entendemos
que seria mais coerente para estes ns, a criminalização da indelidade patri-
monial, tal como o Untreue do direito alemão7.
Modelo de proteção da lealdade e da conança na relação entre o
principal e o agente
Uma segunda possibilidade no que toca ao bem jurídico tutelado pelos
tipos de corrupção entre particulares é a proteção da lealdade e da conança
na relação entre o principal e o agente. Essa é a posição adotada pelos orde-
namentos jurídicos francês, holandês e português8, bem como a promovida
pela Convenção Penal sobre Corrupção do Conselho da Europa, que expres-
samente fala em “ato em violação de seus deveres”9.
Haveria, assim, a tutela dos interesses individuais dos agentes do setor
privado em face de condutas desleais e com nalidades egoístas de seus agen-
tes, que no caso, atuariam em desconformidade com suas obrigações e com
menoscabo à conança nele depositada e ao dever de lealdade que deveria ter
para com seu superior.
De pronto, já se observa que neste modelo, o foco é na proteção de
interesses privados, nomeadamente os dos empresários e empresas. Questio-
na-se, a partir disso, se seria legítima esta intromissão estatal no âmbito de
liberdade da atividade, especialmente para a imposição de valores como os de
lealdade, delidade e boa-fé, tudo isto com a utilização do direito penal, que
deveria atuar em verdade, como a ultima ratio10. Além disso, surge a diculda-
6 Neste sentido, questiona Spena (2007, p. 817) se o bem jurídico “patrimônio” teria uma
relevância tal que justicasse a punição de condutas carentes de periculosidade ou de
periculosidade tão remota, tais como nos casos ora em análise.
7 Em sentido semelhante, destacando o delito de indelidade patrimonial no ordenamento
jurídico português: SANTOS, 2009, P. 20-21.
8 Com relação a Portugal, não há unanimidade. Sustentando que o bem jurídico seria a leal-
dade e a conança nas relações privadas: BIDINO, 2009, p. 228 e ss.; JANUÁRIO, 2019,
p. 30; Sustentando que o bem jurídico seria a concorrência justa e leal: SANTOS, 2009, p.
20-21.
9 Neste sentido, cfr.: GONTIJO, 2016, p. 136.
10 Em sentido semelhante: DE LA CUESTA ARZAMENDI; BLANCO CORDERO,
56 | IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra
de, ainda que não insuperável, de denição dos limites do leal e do conável
em setores nos quais as fronteiras entre o risco permitido e o proibido são
extremamente tênues e variáveis de acordo com cada caso.
Um ponto chave, porém, ao nosso ver, diz respeito a como fundamen-
tar a lesividade da conduta do extraneus, uma vez que este não possui qualquer
dever de lealdade para com o principal (GONTIJO, 2016, p. 146)11. Poderia
ele ser somente partícipe da conduta do agente? Não nos parece ser a respos-
ta mais adequada. Além disso, da mesma forma que nos modelos patrimo-
niais, estas propostas tornam penalmente irrelevantes as condutas praticadas
pelo próprio principal ou com seu consentimento, haja vista que não haveria
ali, qualquer quebra da conança (GONTIJO, 2016, p. 147).
Por estes motivos, especialmente pela anteposição de interesses priva-
dos em face dos já demonstrados direitos sociais que podem ser afetados por
estas condutas, a lealdade e conança nas relações laborais não nos parece ser
a opção mais adequada de bem jurídico a ser tutelado pela corrupção entre
particulares.
Modelo concorrencial
Um terceiro bem jurídico passível de ser tutelado pela corrupção en-
tre particulares é a liberdade e lealdade concorrencial, tutela esta que iria no
mesmo sentido que o ordenamento jurídico alemão e que a Decisão-Marco
2003/568/JAI, que promove a criminalização destas condutas aptas a prejudi-
car o desenvolvimento econômico, como uma forma de proteção da concor-
rência em relação a bens e serviços comerciais. Este também foi o posiciona-
mento adotado na proposta dos chamados “eurodelitos” (FOFFANI, 2009,
p. 52-53).
Essa concorrência a ser protegida, conforme explica Alessandro Spena
(2007, p. 828-829), pode ser entendida por uma perspectiva microeconômica,
como os próprios interesses dos concorrentes e dos consumidores, ou por
uma perspectiva macroeconômica, como a manutenção do funcionamento
dos mercados competitivos, que é essencial para o desenvolvimento econô-
mico.
É importante salientar que este posicionamento estaria em total conso-
nância com a Constituição Brasileira, uma vez que ela expressamente dispõe
em seu artigo 170, que a lealdade concorrencial será um dos princípios gerais
da atividade econômica, determinando ainda, em seu Artigo 173, §4º., que
sejam criados instrumentos de coibição do abuso do poder econômico com
vistas à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento
arbitrário dos lucros. (GONTIJO, 2016, p. 153).
Além disso, é mister salientar que diversos preceitos preveem a tutela
2002, p.281.
11 Sobre a discussão relativa a se o delito de corrupção privada no ordenamento jurídico
espanhol seria um crime comum ou especial, cfr.: BACIGALUPO, 2011, p. 158.
Anais de Artigos Completos - VOLUME 6 | 57
da concorrência no ordenamento jurídico brasileiro, seja sob os vieses cíveis,
administrativos e até mesmo penais, tais como alguns tipos da Lei 8.137/90
(Dene crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de
consumo), Lei 8.666/93 (Institui normas para licitações e contratos da Ad-
ministração Pública) e Lei 9.279/96 (Regula direitos e obrigações relativos à
propriedade industrial). Conforme explica Conrado Gontijo (2016, p. 157),
porém, estes tipos supracitados, já vigentes no ordenamento jurídico brasilei-
ro, englobariam tão somente um pequeno leque de condutas aptas a congu-
rar corrupção privada, deixando muitas outras de fora.
É importante destacar, porém, a ressalva feita por parcela da doutrina,
de que a norma penal no presente caso, estaria sendo utilizada tão somente
com nalidades de moralização de determinado setor, ou seja, como uma fer-
ramenta de promoção de determinados valores no funcionamento dos merca-
dos, o que seria questionável (GONTIJO, 2016, p. 158).
Há que se questionar ainda, se um único ato de corrupção privada teria,
de fato, idoneidade para afetar minimamente o bem jurídico “concorrência”
(GONTIJO, 2016, p. 161). A resposta negativa nos levaria necessariamente
a sustentar que os delitos de corrupção entre particulares seriam crimes de
perigo abstrato.
Além disso, como poderíamos denir exatamente os parâmetros da
lealdade e da justeza da concorrência? Seriam estes realmente alcançáveis ou,
concretamente, sempre teríamos algumas entidades privadas dominantes em
determinados setores?12 Algumas searas, inclusive, são especialmente proble-
máticas, tais como aquelas em que há monopólios de determinadas empresas,
ou então nas áreas intelectuais, artísticas ou até mesmo jurídicas, onde a con-
tratação de determinado agente nem sempre se dá por critérios objetivos, mas
sim, por conança, gosto ou até mesmo proximidade (GONTIJO, 2016, p.
163-164).
Ora, com base nos argumentos até aqui trazidos, resta claro que ne-
nhum dos hodiernos modelos é isento de ressalvas ou abrange a totalidade
dos casos eventualmente enquadráveis como de corrupção privada. Nos pare-
ce, porém, que apesar das ressalvas supracitadas, o modelo concorrencial – tal
qual o proposto pelo PLS 455/16 - é o que mais se aproxima de superar a
mera tutela de interesses privados, sendo, consequentemente, o mais promis-
sor em matéria da proteção dos direitos humanos e fundamentais eventual-
mente atingidos pelas condutas corruptivas nos setores privados.
Considerações nais
Conforme restou demonstrado ao longo do trabalho, nos parece ser
relativamente evidente que as condutas de corrupção entre particulares são
aptas não apenas a afetar não apenas os interesses privados de determinado
12 Para Queralt Jimenez (2012, p. 21), por exemplo, a concorrência justa e honesta é um
conceito anglicista e moralista, que é indenido por si só.
58 | IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra
agente, seja ele pessoa física ou jurídica, mas também direitos humanos e fun-
damentais supraindividuais e dignos de proteção, tais como a saúde, a alimen-
tação, o lazer, o transporte, dentre outros.
É inegável, porém, que apesar da progressiva concordância dos ordena-
mentos jurídicos no que toca à necessidade de criminalização destas condutas,
sendo esta, inclusive, uma expressa recomendação de diversos instrumentos
internacionais, ainda há pouca harmonização no que toca a qual seria o inte-
resse a ser protegido por estes tipos penais.
Essa falta de unanimidade de certa forma reverberou no ordenamento
jurídico brasileiro, no qual atualmente se encontram em trâmite três projetos
de lei, sendo que dois deles preveem um modelo de tutela patrimonial, en-
quanto um terceiro, o PLS 455/16 vai no sentido da proteção de um ambien-
te concorrencial livre e leal.
Nos parece evidente que nenhum dos três modelos aqui estudados está
livre de ressalvas e tampouco abrangeria a totalidade dos casos conguráveis
como de corrupção privada. Contudo, no que toca aos interesses do presente
trabalho, que visou identicar os possíveis direitos humanos e fundamentais
eventualmente atingidos pela corrupção privada e o modelo mais adequado
para sua tutela, é certo que a construção de um tipo penal voltado à tutela da
concorrência é o que mais se aproxima, até então, da superação dos interesses
meramente privados e da proteção dos direitos supraindividuais que podem
ser afetados por estas práticas.
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