Available via license: CC BY
Content may be subject to copyright.
--
e-ISSN 2526-2319
257
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
A FUNCIONALIDADE IDEOLÓGICA DAS
CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES ACERCA DA
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
THE IDEOLOGICAL FUNCTIONALITY OF CONCEPTIONS AND PERCEPTIONS
OF PROFESSIONAL EDUCATION
LA FUNCIONALIDAD IDEOLÓGICA DE LAS CONCEPCIONES Y PERCEPCIONES
SOBRE LA EDUCACIÓN PROFESIONAL
Bruno Gawryszewski
(UFRJ, Brasil)
Maria Carolina Pires de Andrade
(PPGE/UFRJ, Brasil)
https://doi.org/10.29404/rtps-v5i8.362
RESUMO: Artigo resultante de pesquisa exploratória em instituições de ensino técnico de nível médio que buscou
compreender a percepção de docentes acerca de aspectos da formação profissional e o mundo do trabalho.
Simultaneamente, também foi realizado levantamento de publicações acadêmicas e jornalísticas para captar as
principais ideias sobre a Educação Profissional por parte de pesquisadores e de organizações vinculadas à classe
dominante. O conceito de ideologia foi resgatado e discutida sua funcionalidade na formação das percepções distintas
a partir das relações sociais vigentes. A análise concluiu que as concepções dos interlocutores a respeito da formação
profissional e do mundo do trabalho não estão em sintonia, mas que a ideologia é operada no sentido de tornar crível
formulações que ocultam e invertem aspectos da base material.
Palavras-Chave: Educação Profissional, Ideologia, Docentes, Classe dominante.
ABSTRACT: This paper results of exploratory research
in high school institutions, that seek to understand the
perception of teachers of the aspects of professional
training and world of work. At the same time, a survey of
academic and journalistic publications was also carried
out to capture the main ideas about Professional
Education by researchers and organizations linked to
the ruling class. The concept of ideology was rescued
and its functionality in the formation of different
perceptions was discussed based on the current social
relations. The analysis points that the interlocutors'
conceptions regarding professional training of the world
of work are not in fine harmony, but that ideology
promotes to make believable formulations that hide and
reverse aspects of the material base.
Keywords: Professional Education, Ideology,
Teachers, Ruling Class.
RESUMEN: El artículo resulta de una investigación
exploratoria en instituciones de educación técnica de
secundaria que buscaba comprender la percepción de
los docentes sobre aspectos de la formación profesional
y el mundo del trabajo. Al mismo tiempo, también se
llevó a cabo una encuesta de publicaciones académicas
y periodísticas para capturar las ideas principales sobre
Educación Profesional por parte de investigadores y
organizaciones vinculadas a la clase dominante. Se
rescató el concepto de ideología y se discutió su
funcionalidad en la formación de diferentes
percepciones basadas en las relaciones sociales
actuales. El análisis concluyó que las concepciones de
los interlocutores sobre la formación profesional y el
mundo del trabajo no están en línea, pero que la
ideología se opera en el sentido de formular
formulaciones creíbles que ocultan e invierten aspectos
de la base material.
Palabras Clave: Educación Profesional, Ideología,
Profesores, Clase Dominante.
--
e-ISSN 2526-2319
258
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Introdução
A Educação Profissional (EP), no Brasil, é atravessada por uma histórica disputa no
campo educacional, inclusive no transcorrer de sua história, inúmeras potencialidades
atribuídas à EP foram clamadas a interferir nos rumos da economia brasileira, de modo a
equacionar problemas com a falta de mão de obra técnica qualificada, conforme ocorrera
no período do “milagre econômico” durante a ditadura militar ou no mais recente período
de crescimento sob os governos petistas. Outrossim, sobretudo via publicações acadêmicas
ou jornalísticas, frequentemente assistimos à disseminação massiva de determinadas ideias
a respeito da EP, acompanhadas quase sempre da constituição de nexos causais entre elas.
Alguns exemplos desses nexos podem ser exemplificados, como as chamadas “taxas de
retorno” financeiro que as pessoas tenderão a receber a partir da obtenção de uma
qualificação em nível técnico; pela afirmação de que a inclusão e diversificação formativa
proporcionada pela EP automaticamente concorreria para melhores oportunidades para a
classe trabalhadora mais pauperizada; e ainda que, pressupondo-se uma escassez de mão-
de-obra qualificada para atender às exigências do mercado de trabalho, a EP contribuiria
para a melhoria da economia brasileira ao oferecer, principalmente aos mais jovens, as
competências exigidas por esse mercado.
Nesse sentido, vale ressaltar ainda que esses nexos causais são fortemente difundidos
por intelectuais e prepostos que prestam serviços à classe dominante burguesa e
disseminam o resultado de suas pesquisas acompanhado por soluções, em tese, por elas
apontadas, e governantes que se mostram “atentos e sensíveis” às demandas do dito setor
produtivo. Pari passu, é importante frisar que dificilmente os sujeitos que se dedicam
diretamente à execução da EP nas unidades de ensino técnico têm suas vozes publicizadas.
No escopo desse artigo, além de abordar o que pesquisadores e organizações como think
tanks difundem sobre a EP, dedicamo-nos também a publicizar a voz quase sempre
silenciada de um conjunto particular de sujeitos-chave da EP no chão da escola: os
professores e coordenadores de curso.
No decurso do presente texto, pretendemos compreender as visões dos docentes de
cursos técnicos de nível médio acerca de questões referentes ao mundo do trabalho e a
formação profissional dos estudantes, ao passo que também cotejamos algumas das
principais formulações mais difundidas por pesquisadores e organizações vinculadas à
burguesia na educação. Para tanto, foi realizada uma pesquisa exploratória em instituições
de ensino técnico de nível médio, no sentido de entrevistar docentes desses cursos e, a
seguir, propomo-nos a tensionar as relações causais estabelecidas entre EP, economia e a
formação da força de trabalho. Para além de meramente comparar um com o outro,
introduzimos como elemento analítico o conceito de ideologia, a fim de discutir as
formulações difundidas acerca da EP. Sendo assim, o trabalho está organizado da seguinte
forma: 1) revisão teórico-conceitual sobre ideologia; 2) exposição das principais percepções
coletadas nas entrevistas com docentes acerca de aspectos referentes à relação entre
trabalho e educação; 3) apresentação das ideias centrais sobre a EP por parte dos
--
e-ISSN 2526-2319
259
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
intelectuais dos setores dominantes; 4) síntese qualitativa das exposições dos
interlocutores, com retomada do debate acerca da ideologia
Ideologia: conceito e funcionalidade
Talvez poucos conceitos sejam tão rechaçados e desdenhados quanto o de ideologia.
O atual ocupante do Ministério da Economia afirma que “a ideologia é o verdadeiro
inimigo” (GUEDES, 2019, online) contra a ação do Estado brasileiro em levar adiante as
“reformas estruturais” (previdenciária, trabalhista, administrativa do Estado, tributária)
planejadas por ele e que fatalmente levará à retomada do crescimento econômico,
segundo o próprio. No terreno da educação, enquanto o ministro deflagra guerra ao
“marxismo cultural” e à “balbúrdia” na universidade pública, o que inclui o cultivo e tráfico
de entorpecentes, ao mesmo tempo em que alardeia que, daqui por diante, os livros
didáticos não conterão mais ideologia. Por outro lado, prepostos do empresariado,
parlamentares com atuação na educação e mesmo pesquisadores das universidades
criticam a condução do ministro Weintraub porque a ideologia estaria se sobrepondo à
gestão dos problemas educacionais. Parece haver uma depuração daquilo que provoca
distorções no entendimento (a ideologia) em prol da reivindicação das evidências, estas,
por sua vez, imunes a tais deturpações pois estão balizadas por critérios de objetividade e
imparcialidade científica.
Por óbvio seria despropositado fazer desse espaço um inventário de frases que
remetem à discussão sobre ideologia, mas queremos chamar a atenção que embora seja
permanentemente rejeitada como algo anacrônico, parece que ela nunca sai da cabeça das
pessoas. A supressão do conceito compõe o entendimento de amplo espectro de setores
político-partidários e acadêmicos (inclusive da esquerda) de que a existência de ideologias
representa a disseminação de dogmas que se fundamentam em argumentos metafísicos,
quiçá totalitários, tais como dominação ou luta de classes (EAGLETON, 1997). No presente
artigo, propomo-nos a realizar uma breve síntese da discussão sobre ideologia, a fim de
dar suporte às discussões porvir.
Cremos que um ponto de partida seja compreender o porquê as pessoas agem em
favor de algo aparentemente abstrato quanto as ideias. Talvez a resposta resida justamente
no fato de que determinadas ideias não se resumem meramente a ideias que brotam na
mente alheia, mas que guardem uma base material, tendo em vista a interação com o
mundo em que as pessoas serão confrontadas nas suas respectivas cotidianidades. Nesse
sentido, a definição de ideologia por Mészáros (2004, p. 65) nos parece adequada ao
propor que “A ideologia é uma forma específica de consciência social, materialmente
ancorada e sustentada”.
Partindo da citação acima, é possível então perceber que certos pressupostos e
concepções de mundo são levados mais a sério do que outros. As razões pelas quais isso
acontece demandariam examinar um miríade de argumentos e exemplos, mas nos parece
--
e-ISSN 2526-2319
260
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
razoável afirmar que as ideias sustentadas e apoiadas pela classe dominante obtém maior
espaço de difusão, ao passo que aquela que estão em sua contraposição, frequentemente
são desqualificadas justamente com o argumento imputado de serem ideológicas. Por isso,
consideramos acertada a elaboração de Mészáros ao desenvolver que a ideologia é
“[...]constituída objetivamente como consciência prática inevitável das sociedades de classe,
relacionada com a articulação de conjuntos de valores e estratégias rivais que tentam
controlar o metabolismo social em todos os seus principais aspectos” (MÉSZÁROS, 2004,
p. 65). Ou seja, em Mészáros, certamente inspirado nas formulações de Marx em seu
Prefácio para a Contribuição à crítica da Economia Política (1859), temos por definição que
a ideologia tem por imperativo se tornar praticamente consciente e mobilizador a fim dos
sujeitos históricos resolver os conflitos pela luta (MÉSZÁROS, 2004).
Também entendemos que a ideologia de classe dominante larga com uma grande
vantagem nessa corrida por legitimação, simples e determinantemente, porque detém o
controle da estrutura na qual sustenta a sociedade, o que inclui a produção e disseminação
do conhecimento. Tal situação pode nos levar a um equívoco de que bastaria desenvolver
formas pedagógicas inovadoras para disputar a batalha das ideias e o argumento que se
comunica em favor da defesa da classe trabalhadora seria automaticamente aderido por
esta. Por isso, trata-se imperativo considerar a formulação presente em Marx e Engels
(2007, p. 49) em A Ideologia Alemã de que “As ideias dominantes não são nada mais do
que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais
dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem
de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação”. Isto é, um conjunto de
ideias não se impõe como dominante, mas são parte da dominação pois, ao prover da
classe dominante, esta é dominante porque as relações sociais de produção estão sob sua
dominação (IASI, 2013).
Logo então, há uma evidente dificuldade das ideologias críticas ao sistema que
sustenta o sociometabolismo do capital, não apenas por falta de espaço ou boicote dos
dominantes, mas também porque frequentemente encarnam apaixonadamente a negação
em relação às estruturas autorreprodutivas fundamentais da sociedade e não consegue
materializar um sentido de praticabilidade, já que o seu ponto de partida é o próprio
sistema a ser criticado. Não surpreende justamente que nesse argumento resida a principal
crítica dos dominantes e que se exalte as virtudes do pragmatismo e de um “possibilismo”,
que aposte em mudanças graduais e sem rupturas, e, portanto, conforme assevera
Mészáros (2004, p. 69):
De qualquer maneira, precisamente por causa do imperativo de assegurar a compatibilidade
entre os interesses dominantes e as tendências intelectuais adotadas, o quadro categorial das
estratégias ideológicas dominantes deve ser sustentável e “consistente” em seu próprio
campo. Quanto ao que se espera das auto-imagens da ideologia dominante não é o
verdadeiro
reflexo do mundo social, com a representação objetiva dos principais agentes
sociais e seus conflitos hegemônicos. Antes de tudo, elas devem fornecer apenas uma
explicação
plausível
, a partir da qual se possa projetar
estabilidade
da ordem estabelecida.
--
e-ISSN 2526-2319
261
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Assim, fechamos questão de que a ideologia não se trata de uma mera proposição
teórica abstrata os discursos como os que lemos acima, mas expressam consciência prática.
Portanto, nada mais previsível que a consciência da classe trabalhadora, mesmo estando
em polo antagônico na luta de classes, também reflita em boa medida a consciência
burguesa, embora tenhamos que tomar cuidado em não encaixotar uma prévia consciência
de classe, pois o ser histórico é formado pelo próprio movimento da história. E são esses
seres históricos que vamos expor a seguir.
As entrevistas com os docentes
Na presente seção a atenção será dirigida à voz dos docentes que lecionam em cursos
técnicos de nível médio. O intento da pesquisa foi verificar como os profissionais docentes
(professores e coordenadores de curso) analisam aspectos referentes à relação entre
trabalho e educação, particularmente sobre a formação profissional das instituições em que
trabalham e a situação do campo de trabalho dos estudantes formados.
A metodologia de trabalho consistiu em visitas presenciais a seis cursos técnicos, todos
eles localizados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Entre os cursos pesquisados,
quatro deles são de unidades de ensino da Rede Federal e dois da Rede Estadual. Nas
unidades, foi oportunizado conhecer as instalações das unidades, a proposta pedagógica
e demais informações relevantes para seu funcionamento cotidiano e a realização de
entrevistas com professores de cada respectivo curso. Pelo fato de a pesquisa acarretar
interação direta com seres humanos, o projeto foi submetido e aprovado por um comitê
de ética em pesquisa na Plataforma Brasil através do parecer sob o nº 2.224.740 em junho
de 2017.
As entrevistas foram realizadas com a respectiva coordenação do curso e com um
professor que já lecionasse no curso há pelo menos três anos, tempo mínimo de duração
da trajetória de um estudante no curso técnico de nível médio, com exceção de um dos
cursos, em que somente foi possível conversar com a coordenação. Portanto, no total,
foram realizadas 11 entrevistas, todas elas gravadas nas próprias unidades de ensino.
Tratou-se de entrevistas semiestruturadas, pois, embora estivessem presentes um conjunto
de questões previamente definidas, estas não foram realizadas exatamente na mesma
ordem, permitindo espaço para que emergissem no próprio fluxo da conversa ou
aprofundando aspectos que, porventura, a pessoa entrevistada estivesse mais disposta a
falar.
Realizadas e transcritas as entrevistas, passou-se à fase de análise, em que o esforço
foi o de identificar tendências e relações nas respostas. Desse modo, foram organizados
em cada resposta, os tópicos e palavras-chave mais acionados pelos sujeitos entrevistados,
o que permitiu agrupar esses fragmentos das falas para, assim, determinar relações entre
os temas abordados e construir uma interpretação concernente à finalidade da pesquisa.
--
e-ISSN 2526-2319
262
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Conforme firmado em pacto com os sujeitos entrevistados, todas serão mantidas em
anonimato, bem como as respectivas instituições, já que essa identificação não acarreta
ganhos qualitativos para o desenvolvimento da pesquisa. Nos cursos em que existe oferta
abrangente, estes foram identificados literalmente; contudo, naqueles com menor oferta
pelo universo da pesquisa e que, poderia induzir a revelação do sujeito entrevistado, optou-
se por uma identificação vaga, de modo a preservar o anonimato. Por conseguinte, os
sujeitos entrevistados foram codificados da seguinte forma, embora nem todos tenham
sido citados no decorrer do texto:
Quadro 1 – Codificação das pessoas entrevistadas
Área/Curso Codificação da pessoa
entrevistada
Informática - INF CINF
PINF
Construção Civil - CC CCC
Manutenção - MAN CMAN
PMAN
Indústria Extrativa - IE CIE
PIE
Turismo - TUR CTUR
PTUR
Tecnologia Digital - TD CTD
PTD
NOTA: Sigla de Codificação iniciada com “C”, para aqueles que assumem
função de coordenação; e iniciada com “P”, para aqueles que assumem
função de professor.
Descritos os procedimentos metodológicos, passemos ao conteúdo propriamente
dito. Consideramos que a percepção do corpo docente sobre a formação profissional e a
conjuntura do mundo do trabalho são elementos que possibilitaram a realização de uma
pesquisa assentada nas relações concretas desses sujeitos nas instituições de ensino. Nesse
sentido, procuramos captar a experiência desses trabalhadores no relacionamento com
seus estudantes, mas também as formas pelas quais suas consciências são estruturadas
pelas relações sociais vigentes. O diálogo com outras pesquisas da área da Educação
Profissional nos parece profícuo nesse sentido.
Simões (2007) analisou a vida profissional e educacional de jovens que cursavam a
Educação Profissional no CEFET-RJ na modalidade concomitante ao ensino médio. Em
resumo, suas entrevistas com os jovens deram relevo ao curso técnico com finalidade de
potencializar seu projeto de vida, através de uma inserção no mundo do trabalho mais
--
e-ISSN 2526-2319
263
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
favorável do que a que possuíam. No entanto, a formação técnica não necessariamente
aparece como trajetória profissional consolidada, mas assumem (no momento da
juventude) um caráter de provisoriedade no sentido de alcançar objetivos posteriores.
Já em estudo exploratório realizado com estudantes-trabalhadores do quarto do ano
do Ensino Médio Integrado no período noturno da rede pública, Bernardim e Silva (2016)
sintetizaram os motivos que levaram os sujeitos do universo da pesquisa a ingressarem em
cursos técnicos: o discurso difundido da falta de profissionais qualificados para assegurar
um “futuro garantido” e a possibilidade de obter melhores condições de renda e de
prestígio social através de uma inserção profissional mais qualificada, muitas vezes em
comparação à ocupação de seus pais. Também registraram que 17% dos estudantes
manifestaram arrependimento pela formação técnica e que, se pudessem retornar no
tempo, optariam pelo Ensino Médio regular. Os autores conseguiram correlacionar uma
tendência de que esses estudantes possuem uma melhor condição financeira, portanto, o
trabalho estaria associado a própria independência pessoal e não a uma necessidade
imediata de subsistência (BERNARDIM; SILVA, 2016).
Embora ressaltemos que ambas as pesquisas sejam valorosas e tenham ajudado na
construção de nossa investida, essas não tinham os docentes como interlocutores, o que
nos abriu uma brecha de investigação para compreender o ponto de vista desses sujeitos.
Sendo assim, a indagação que geralmente funcionou como gatilho das entrevistas foi como
eles avaliam as expectativas profissionais que os estudantes fomentam durante sua
trajetória no respectivo curso. De maneira geral, foi possível perceber que os docentes
conferem papel de centralidade da escola para consecução da vida profissional de seus
estudantes. Uma resposta ressaltada por diversos entrevistados foi a de que a maioria dos
estudantes matriculados na modalidade integrada, isto é, na modalidade cujo currículo
integra as disciplinas do ensino médio e técnico, buscam a instituição de ensino mais pela
excelência da formação propedêutica do que propriamente pela formação técnica.
Afirmaram ainda que, de outro modo, os estudantes matriculados nessas instituições na
modalidade subsequente, isto é, após o término do ensino médio, ambicionavam a
formação técnica como uma perspectiva para almejar melhores condições profissionais do
que a que já possuem enquanto trabalhadores. A fala de CCC foi emblemática no sentido
de exemplificar uma dualidade na perspectiva formativa:
A garotada que você entrevistou agora a tarde, do ensino integrado, que são os alunos da
manhã e da tarde, esses alunos têm como principal perspectiva, com raras exceções,
faculdade. Eles não querem ser técnicos. Não é à toa que você viu pouco aluno aqui, porque
todos estão preocupados com Enem. [...] O aluno do curso noturno [subsequente] não, ele
aposta suas fichas na qualificação profissional como técnico. Ele aposta na melhoria de
qualidade de vida dele e das suas famílias, na melhoria da qualidade do ensino técnico. Então
a noite é uma torre de Babel, você tem desde um aluno que está fazendo engenharia civil na
Veiga e quer se atualizar aqui, a um pedreiro, que também quer ter uma perspectiva de
mercado.
A constatação por parte da coordenação do curso tematiza uma discussão relacionada
ao projeto de vida. Essa projeção de futuro vem acompanhada de expectativas que são
moduladas a partir das experiências e trajetórias pessoais de cada um e em interação
--
e-ISSN 2526-2319
264
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
também com as bases materiais que circunscrevem a cada indivíduo. Portanto, há diversos
fatores que podem ser determinantes para as escolhas e projeções dos respectivos
estudantes. Os entrevistados ressaltaram que existem estudantes que ingressam nos cursos
técnicos por pressão familiar, por acreditar que aquela formação lhe garantirá maior
empregabilidade e, consequentemente, melhores condições de vida para toda a família.
Observemos os excertos abaixo:
Bem, eu acho que tem duas coisas que pesam, o interesse pela tecnologia [...]. Tem o outro
lado que é, “meu pai mandou fazer esse curso, porque esse curso tem uma empregabilidade,
me oferece uma empregabilidade boa”. E aí não tem jeito, meu pai mandou fazer, e isso tem
com peso razoável (CINF).
[...] o aluno que chega no [instituição de ensino] ele tem essa expectativa de mudança na sua
vida, muita das vezes a própria família deposita nesse aluno a mudança radical nas condições
financeiras da família. Então ele chega com bastante expectativa (CMAN).
Conforme foi possível constatar, no entendimento dos entrevistados, por mais difíceis
que estejam as condições objetivas para realização de projetos de trabalho voltados para
o futuro, a família teria um peso significativo em mobilizar os jovens para a escolha de uma
instituição federal de ensino técnico para cursar o ensino médio. A preocupação das
famílias em escolher uma “boa escola” para os filhos cursarem o Ensino Médio está,
portanto, associada à experiência ou conhecimentos dos pais ou familiares que visualizam
na instituição uma “referência de qualidade” para abrir leque mais sortido de
oportunidades tanto de estudo quanto de trabalho. Por isso, no sentido da
empregabilidade, destaca-se reservadamente a fala de PTUR que aponta o corte de classe
social como elemento explicativo fundamental que projeta as expectativas dos estudantes:
Então, isso é muito interessante, eu acho que tem uma questão de classe aí muito forte. [...]
um certo imaginário de que viajar, do que vem de fora, que a vida pode ser melhor em outro
país, de fugir da sua realidade. Eu acho que o turismo tem um pouco disso, é certo uma
pegadinha (PTUR).
No excerto acima, o interlocutor considera que, levando em conta a condição de
carência material e cultural dos seus estudantes, estes projetariam uma realidade para além
da sua, porque, supostamente, seria melhor do que a vivida. É razoável supor que, para
além do próprio desejo de melhora dos pais que pode ser que os filhos introjetem isso
como uma missão para si, a ideologia burguesa se impõe em papel relevante no sentido
de fazer acreditar que por meio da educação seja possível fazer com que seus filhos tenham
um destino diferente, a despeito de outras condições concretas.
Com relação à expectativa dos estudantes pelo curso, foi indagado aos entrevistados
se havia sintonia entre a formação desenvolvida no curso e aquela esperada pelo chamado
mercado de trabalho. Unanimemente, embora com ênfases diferenciadas, os sujeitos
avaliaram que a formação das instituições em que trabalham era condizente com o que se
requer no mercado de trabalho. De modo geral, apesar de destacarem as virtudes da
formação, os professores entendem que a formação precisa ter maior vivência empírica em
situações que simulem o seu respectivo ambiente de trabalho ou para desenvolvimento do
conhecimento em laboratórios, o que admitem que nem sempre é realizado a contento.
--
e-ISSN 2526-2319
265
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Eu acho que o molde ele aprende aqui, mas o que falta é ele poder, por exemplo, ter uma
vivência nesses espaços, como por exemplo, estágio eu acho que é muito importante para
eles. Por exemplo, curso de guia de turismo, a gente está lutando para ter três ônibus que é
obrigatório para as saídas, para eles terem a carteirinha da EMBRATUR, mas o ideal seria que
todo ano a gente fizesse três, quatro saídas por ano com eles, sem só ser no último ano
porque é obrigatório. [...] E outra coisa seria ter espaço de laboratório para eles, né?
Laboratórios de hotelaria, que teria um espaço que reproduzisse o hotel; no caso do guia de
turismo ônibus para sair (PTUR).
Eu acho que é uma formação muito boa, mas que tem só uma falha, que é a falta de alguns
laboratórios. A gente não tem espaço para criação de certos laboratórios [...] A gente tem até
verba para construir outro prédio, para ampliar, para criar laboratórios específicos de XXXX
[nome da área correspondente], mas a gente não consegue. Eu acho que uma falha poderia
ser essa, a falta dessas aulas práticas, que muitas vezes a gente tem que dar aula
prática/teórica (PIE).
Ainda em relação à sintonia formativa com o mercado, consideramos que a fala mais
surpreendente foi a de CMAN, que com mais concretude abordou o tema. Para o
entrevistado, a questão não se resume apenas à relacionar educação e mercado, mas
perpassa ainda a complexidade da dinâmica da divisão social do trabalho e o lugar que o
Brasil ocupa nesta. Na realidade, evidencia-se um aspecto importante do mercado de
trabalho característico da economia dependente, já vastamente discutido por importantes
teóricos da dependência (tais como Florestan Fernandes e Ruy Mauro Marini), qual seja o
grande volume de trabalho simples demandado pelo conjunto das ocupações. Nesse
sentido, estas, por sua vez, dispensam a robusta formação profissional para a maioria da
população, tal como ocorre em países centrais pela necessidade, por exemplo, de alavancar
a desenvolvimento científico e tecnológico.
[...] eu vou te responder essa pergunta baseado numa visita técnica que dois professores
fizeram a uma fábrica da XXXX [nome da empresa] em XXXX [local]. Esses professores levaram
um grupo de alunos na fábrica, para visitar a fábrica da XXXX e esses dois professores
apresentaram o folder do curso a um gerente que os recepcionou lá na XXXX. E assim, o
gerente lá foi categórico em dizer o seguinte: “nós não precisamos de um profissional tão
gabaritado quanto os profissionais egressos do curso técnico de XXX [nome do curso]”. Isso
de certa forma foi para nós, assim, um pouco chocante, mas reflete exatamente isso que eu
te falei, assim, você tem um hiato entre o operador, muitas das vezes com ensino fundamental
e que fez um curso profissionalizante e o engenheiro mecânico (CMAN).
Como o último elemento a ser destacado na presente seção, as pessoas entrevistadas
foram solicitadas a responderem sobre a atual conjuntura do campo de trabalho para os
estudantes formados que fomentavam a expectativa de desenvolver uma atividade laboral.
Os entrevistados CTD e PTD avaliaram que o ramo da tecnologia digital tem proporcionado
grandes oportunidades e está aberto aos estudantes formados pela escola. Já os dois
entrevistados ligados ao campo da Informática frisaram que a situação em sua área era
“menos pior” do que a média devido à alta demanda que se tem dessa prestação de serviço,
mas que as condições de inserção desses estudantes em vínculo trabalhista formalizado
são pífias.
Olha, mercado de trabalho hoje em dia está difícil para todo mundo. Mas eu acho que
a área de informática ela é de certa forma privilegiada, porque todo mundo precisa da
informática (CINF).
--
e-ISSN 2526-2319
266
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
O que eu falo em relação a computação, é que computação pode ser que você não
consiga arrumar um emprego agora, mas você não fica sem trabalho. Computação ela
abrange todas as áreas, computação ela abrange um leque muito grande de, abrange todas
as áreas né. [...] Então assim, o que estou vendo é, existe uma crise feia, existe uma crise
onde muitas vezes você não consegue formalizar emprego. Mas informática só fica parado
quem quer (PINF).
Outros entrevistados, mais pessimistas, foram mais contundentes em explicitar que as
taxas de desocupação que tem atingido cerca de 14% da força de trabalho tem implicado
em consequências para inserção dos estudantes no campo de trabalho, mesmo tendo eles
formação em instituição de reconhecida excelência. Sendo assim, malgrado a boa
formação, os alunos não estariam imunes à crise econômica que o país atravessa.
Atualmente, desde a crise que a gente tem no nosso país, que a gente está vivenciando, que
está atingindo todos os níveis de escolaridades, a todos os níveis de cargos de empresa. Está
complicado para qualquer técnico hoje em dia. Então conseguir estágio somente com aquelas
empresas que já conhecem os alunos da instituição. [...] A crise fechou aí um grande mercado
de trabalho (PIE).
[...] o mercado hoje, assim, esse ano deu uma retraída, muitas empresas desligaram muitos
profissionais. Um exemplo que vou te dar da XXXX [nome da empresa]. A XXXX tem uma
planta lá que está parada e a XXXX está sendo produzida na Argentina, por questões
econômicas (PMAN).
Passemos então à seção seguinte, sobre as ideias centrais acerca da EP.
Ideias centrais sobre a Educação Profissional
Esta seção trata da sistematização das formulações mais difundidas acerca da EP pelas
publicações de ordem acadêmica e jornalística. O primeiro aspecto a ser destacado é a
compreensão, por parte da classe dominante nacional e internacional, de que a EP seja uma
oportunidade de inclusão social que promove a diversificação formativa e que atende a
complexidade do mundo atual. Três exemplos parecem se adequar à formulação
supracitada.
Em texto publicado ainda em 1997, Cláudio Moura e Castro analisou o ensino médio,
por ele ainda chamado de segundo grau, às vésperas da exaração do Decreto nº
2.208/1997 (BRASIL, 1997), que instituiu a desvinculação das matrículas na EP e no ensino
médio regular. Na ocasião, Castro igualmente questionava o que denominou como
“solução única para alunos diferentes”. Assim, afirmou que:
O segundo grau recebe alunos com níveis de aptidão, idade e motivações muito diferentes e
tem que oferecer a eles as opções de ir trabalhar ou de entrar no ensino superior. Se os alunos
têm aptidões e planos de vida diferenciados, colocá-los todos juntos não pode dar certo.
Assim,
é necessário acomodá-los em lugares diferentes e oferecer-lhes conteúdos diferentes
(o que pode ser feito via flexibilidade dentro de programas únicos ou por via de programas
diferenciados) (CASTRO, 1997, p. 4, grifos nossos).
--
e-ISSN 2526-2319
267
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Posteriormente, Schwartzman e Castro (2013) debatem sobre a qualificação da força
de trabalho brasileira em nível médio e técnico-profissional e em que medida o sistema
educacional tem contribuído ou dificultado a formação de quadros que possam
recrudescer a produtividade da economia. Em dada passagem, embora os autores
reconheçam o perigo da “cristalização da estratificação social” e, nesse sentido, da
possibilidade de que sucessivas gerações sejam necessariamente destinadas às mesmas
profissões de seus antecedentes, os autores criticam fortemente o ensino médio brasileiro
que até a aprovação da Lei 13.415/2017 (BRASIL, 2017), exigia que todos os estudantes
tivessem acesso a um mesmo conjunto de disciplinas obrigatórias. Como previa a via Lei
nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – BRASIL, 1996) antes de ser
alterada pela legislação supracitada, essas disciplinas obrigatórias poderiam ser
complementadas, mas não substituídas, pela formação técnico-profissional. Nessa lógica,
propostas formativas centradas na perspectiva da politecnia1, para ambos os autores
hegemônica no campo da EP, seria idealista.
Não é possível ignorar, no entanto, a grande expansão dos conhecimentos e tecnologias
modernos, que tornam utópica a ideia de uma educação enciclopédica. Pouquíssimos alunos
conseguem dominar sequer uma fração substancial dos conteúdos propostos nos currículos.
Ademais, há de se levar em conta as especificidades desses alunos no que se refere, por
exemplo, às diferentes condições socioeconômicas, capacidades e motivações.
Tal
heterogeneidade requer sistemas educacionais complexos e diferenciados para atender a esta
multiplicidade de públicos
(SCHWARTZMAN; CASTRO, 2013, p. 593, grifos nossos).
Outra elucidação pode ser encontrada na entrevista publicada pelo diário
O Globo
com Rafael Lucchesi, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, ocupante de
diversos cargos nas entidades patronais do Sistema S pela indústria e integrante do
Conselho Nacional de Educação. A entrevista foi balizada pela publicação da então Medida
Provisória nº 746/2016 (BRASIL, 2016), antessala da Reforma do Ensino Médio como
legislação consolidada. Analisando a educação brasileira como um todo, Lucchesi (2016,
online) afirmou que o sistema educacional “é profundamente elitista e promove uma
exclusão social”, visto que não oferece perspectiva de vida concreta aos 83% dos jovens
que não ingressam no ensino superior por preconceito da elite intelectual que está no
comando da escola. Segundo ele, a elite intelectual é composta por professores e
pesquisadores de ciências humanas que, por terem como objetivo a destruição do
capitalismo, tem uma “[...] visão pedagógica brasileira de que a escola tem que se filiar a
uma visão de criticidade e de uma compreensão preconceituosa das profissões manuais”
(LUCCHESI, 2016) e, por isso, se oporiam à formação técnica, porque esta, por si só, aliena
os indivíduos. De nossa ótica, o ponto nodal dessa ideia reside na compreensão de que,
postas as históricas dificuldades de acesso e permanência das frações mais pauperizadas
1 Politecnia refere-se a um conceito do pensamento pedagógico que toma o trabalho como princípio educativo a partir da
integração entre a chamada cultura geral e tecnológica e das diversas dimensões do processo educativo (intelectual, tecnológico,
físico, estético, ético, lúdico, etc.), tendo por finalidade a superação do dualismo educacional, decorrente da divisão social do
trabalho no capitalismo. Por isso, Oliveira (2002, p. 8) se contrapõe a Castro ao criticar o autor por entender que este expôs sua
“[...] postura contrária a um sistema educacional igualitário aos setores distintos da sociedade”, sobretudo ao ironizar os defensores
da proposta da escola politécnica como a “tribo”.
--
e-ISSN 2526-2319
268
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
da classe trabalhadora ao ensino superior, os cursos técnicos se concretizam como
possibilidade mais palpável de acesso a postos mais qualificados no mercado de trabalho.
Historicamente, a diversificação formativa tem sido reivindicada pelas ideias liberais
clássicas europeias desde o século XIX como uma maneira de fazer dos indivíduos, sujeitos
da sua própria história, de modo a que possam escolher a formação para aquilo que
demonstrarem maior “aptidão” no percurso de seu aprendizado. Conforme Machado
(1989) disserta, o desenvolvimento do capitalismo pressupôs um processo simultâneo de
diferenciação e de unificação social, pois, ao passo que reivindicou a bandeira da unidade
nacional, erigiu-se sob uma estrutura escolar que acomodaria vários níveis de
escolarização, a fim de atender à estrutura econômica. Assim, “O funcionamento desta
engrenagem demanda a constituição de processos normativos e políticos de
regulamentação das diferenças advindas da divisão social do trabalho” (MACHADO, 1989,
p. 9).
O segundo conjunto de ideias centrais sobre a EP que entendemos como relevante
abordar, diz respeito a imputar à modalidade de ensino a possibilidade de obtenção de
uma “taxa de retorno” financeira, com vistas, no caso da classe trabalhadora menos
escolarizada, a conseguir um rendimento superior ao de sua condição financeira originária.
Nesse sentido, portanto, torna-se imprescindível partir da chamada “teoria do capital
humano”, que entendemos ser a formulação teórica e a expressão ideológica mais patente
da concepção de educação por parte da classe dominante. Tal formulação parte do
pressuposto de que a força de trabalho se equivale a um capital, no caso, o capital humano,
e que este capital será mais produtivo conforme a formação esteja ajustada a um
treinamento bem dirigido às necessidades das empresas. Portanto, essa formação teria a
capacidade de expandir a produtividade do trabalhador e, assim, gerar mais riqueza ao
processo produtivo. Desse modo, a melhoria da qualidade do capital humano, ao promover
maior capacidade de produção e desenvolvimento capitalista, levaria ao próprio
trabalhador um benefício na forma de maiores salários. Sendo assim, haveria uma “taxa de
retorno” importante em relação ao tempo e dinheiro que se investe na educação e o quanto
será obtido durante sua vida laboral (IPEA2, 2006).
Embora com matizes bem diferenciadas, duas impactantes iniciativas dos governos
petistas (Lula e Dilma, 2003-2016) foram implementadas no sentido de promover a EP. Uma
delas foi a promulgação da Lei nº 11.892/2008 (BRASIL, 2008), que instituiu a Rede Federal
de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e resultou na criação de 38 Institutos
Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e mais de 400 escolas técnicas até 2014. A
outra, a Lei nº 12.513/2011 (BRASIL, 2011) instituidora do Programa Nacional de Acesso ao
Ensino Técnico e Emprego (Pronatec3) que, apesar de prever um adensamento da expansão
2 O texto citado na obra do IPEA, embora não se atribua sua autoria especificamente a alguém, foi coordenado por Cláudio
Moura e Castro e contribuição protagonista de Maria Helena Guimarães de Castro e Elenice Monteiro Leite, todos com serviços
prestados a grupos empresariais da educação e/ou em cargos estatais.
3 Em sua versão original, o PRONATEC foi um programa que contempla diversas ações para a educação profissional, dentre as
quais, a expansão de vagas na Rede Federal e nas redes estaduais, a concessão de bolsas em instituições privadas (Bolsa Formação),
--
e-ISSN 2526-2319
269
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
da própria Rede Federal, resultou em cerca de 1,5 milhão de bolsas de estudo para
estudantes e trabalhadores em instituições privadas, em nível médio e, sobretudo, em
cursos de Formação Inicial e Continuada de até 160 horas (LIMA; MACIEL; PAZOLINI, 2019).
Somente considerando o quadriênio 2011-2014, o programa atingiu a oferta de 8,1 milhões
de matrículas, entre cursos de qualificação profissional e técnico de nível médio, mas desde
o início do segundo mandato de Dilma Rousseff (2015), passando pelo mandato de Michel
Temer e atualmente no governo Bolsonaro, tem sido desidratado em termos
orçamentários, a ponto de não ser mais tão relevante na sua abrangência.
A pesquisa de Amoroso Neto, Menezes Filho e Komatsu (2017) indica que há
correlações positivas entre a conclusão dos cursos do Pronatec e os ganhos salariais. No
caso de trabalhadores concluintes de curso técnico de nível médio, os resultados apontam
rendimentos 18% superiores em comparação a trabalhadores com apenas ensino médio
generalista, embora a pesquisa não aponte qualquer correlação direta com o fato de o
curso técnico estar sob suporte financeiro do Pronatec.
Já Reis e Aguas (2019), pesquisadores do IPEA, correlacionaram dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007, que dispunha de dados relacionados
à EP, com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) a fim de analisar possíveis
desajustes de rendimentos entre a conclusão de um curso de EP e a necessidade desse tipo
de qualificação na sua ocupação. Em linhas gerais, os pesquisadores concluíram que
trabalhadores que detém a qualificação em EP adequada à sua ocupação laboral obtêm
maiores rendimentos financeiros4. Contudo, em suas considerações finais, sugerem que
existe uma ineficiência nos programas de EP, de modo a que potencializam os desajustes
entre a formação profissional dos trabalhadores e a necessidade da qualificação nas
respectivas ocupações.
Tal conclusão nos leva ao terceiro conjunto de ideias centrais sobre a EP, que seria a
necessidade de ajuste entre a formação profissional e as necessidades do “mercado de
trabalho”, no sentido de que a força de trabalho disponha, após os cursos, das habilidades
e competências requeridas pelo empresariado para alavancar a competitividade das
empresas, e, consequentemente, para gerar uma taxa de retorno aos trabalhadores. Ou
seja, o não atendimento a essas necessidades provocaria a ausência de força de trabalho
adequada, prejudicando a produtividade da economia brasileira.
Tal premissa é defendida, por exemplo, pela Confederação Nacional da Indústria de
que a falta de trabalhador técnicos de nível médio impacta na competitividade das
empresas brasileiras, afetando a qualidade dos produtos e dificultando a produtividade
(CNI, 2020). Em argumento semelhante, o Banco Mundial (2018), na publicação
Emprego e
o financiamento para entidades privadas de ensino (FIES técnico/FIES empresa), acordo de gratuidade com o Sistema S e o
ensino a distância (e-Tec), todas elas coordenadas pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da
Educação. Atualmente, o programa definhou em dotação orçamentária e alcance populacional, além de passar por diversas
mudanças estruturais, inviáveis de serem descritas aqui.
4 Contudo, os próprios autores salientam que os resultados encontrados podem ser enviesados, caso trabalhadores considerados
com melhores condições produtivas sejam aqueles que mais se qualifiquem profissionalmente, o que tornaria a distância mais
larga entre os mais e os menos qualificados (REIS; ÁGUAS, 2019).
--
e-ISSN 2526-2319
270
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
crescimento: a agenda da produtividade
, aponta que programas como o Pronatec foram
ineficazes porque não tiveram vínculo com as necessidades das empresas, diferentemente
da vertente do Pronatec em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio (Pronatec-MDIC, orientada pela demanda de competências alinhadas com as
áreas das empresas), implementado já sob o governo Temer, que foi apontado que obteve
resultado, gerando um efeito causal sobre os empregos e rendimentos.
A despeito desses exemplos concretos e recentes, vale mencionar que, desde a difusão
da teoria do capital humano na década de 1960, novas perspectivas têm sido adicionadas
ao debate que relaciona de modo causal trabalho, renda e educação. A emergência das
competências como fator propulsor de empregabilidade dos trabalhadores é uma delas,
especialmente porque, com a crescente escolarização da população mundial, as taxas de
retorno para aqueles que só dispunham de ensino médio têm sofrido queda significativa.
As competências, muito mais voláteis do que os saberes disciplinares para uma
determinada ocupação, seriam balizadas a partir das situações e tarefas impostas pela
própria atividade. As competências são divididas usualmente em cognitivas – relacionadas
à capacidade de adquirir, interpretar e agir sobre conhecimentos e experiências – e
socioemocionais – manifestadas em padrões de sentimentos e comportamentos que
influenciam as experiências de aprendizagem e desempenho.
A publicação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) intitulada
Desconectados
se propõe a mostrar que existe uma desconexão entre as competências e
habilidades que o sistema educacional latino-americano tem formado e aquelas
necessárias ao mercado de trabalho, o que estaria justificando a baixa renda e o
desemprego dos jovens da região. Embora não se dedicando especificamente à EP, traz
elementos importantes a serem expostos. Em pesquisa empírica com jovens do Chile e da
Argentina, a publicação faz menção que os jovens egressos dos cursos técnicos apresentam
maiores níveis de habilidades socioemocionais em comparação à formação generalista de
ensino médio. Inclusive, a saber, o estudo indica que as habilidades socioemocionais têm
maior peso do que as cognitivas na conquista de melhores postos de trabalho. Por isso, o
esforço declarado pelos pesquisadores responsáveis pela pesquisa é “[...] de concentrar
esforços nessa modalidade educacional para entender, do ponto de vista da causalidade,
quais são os elementos da educação técnica que contribuem para que se produza um nível
maior de habilidades socioemocionais” (BASSI et al, 2012, p. 114).
Nesse sentido, a reivindicação uníssona do empresariado é de que os objetivos e ações
formativas de nível técnico estejam umbilicalmente vinculadas às suas demandas, e parece
ser justamente por isso que tanto o BID quanto o Banco Mundial apelam que as empresas
tenham participação ativa na formação dos trabalhadores. Como pano de fundo, parece
crível apontar que os caminhos sugeridos pelas instituições monetárias internacionais
incidem em agudizar a relação entre mercado e educação, a fim de aumentar a
produtividade do trabalho, e, consequentemente, propulsionar a acumulação capitalista e
a punção dessa riqueza sobre a exploração dos trabalhadores (ANDRADE; GAWRYSZEWSKI,
2018).
--
e-ISSN 2526-2319
271
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Existe uma importante relação entre emprego formal, trabalhadores qualificados e
produtividade da economia e essa compreensão parece ser axial à terceira ideia central
sobre a EP, que se remete justamente à ausência e ineficiência da força de trabalho. De
nossa ótica, o conjunto de ideias que relacionam EP e escassez de trabalhadores
qualificados apresenta interseções importantes com os outros dois argumentos posto que,
para as vozes ativas de que tratamos, a formação de um estoque de trabalhadores capazes
de atender às demandas da produção capitalista beneficiaria necessariamente todos os
participantes do processo produtivo. Em poucas palavras, trata-se de um ideário em que
ganhariam os patrões, que veriam o aumento da produtividade de suas empresas, e
ganhariam os trabalhadores, que teriam acesso a melhores oportunidades de emprego e
renda para si.
Considerações finais
Na pesquisa realizada com os professores e coordenadores de cursos técnicos,
procurou-se expor como esses docentes percebem a relação entre trabalho e educação,
tanto sobre a instituição de ensino em que trabalham, quanto no mercado de trabalho em
que os estudantes postulam se inserir como trabalhadores. Portanto, nossa tarefa não se
furtou a apenas interpretar suas impressões sobre trabalho e educação, mas também, na
interação com os estudantes, como captam as expectativas desses jovens acerca de seu
futuro profissional, os fatores que influenciam suas escolhas de vida e as possíveis
dificuldades a serem encontradas no mundo do trabalho.
De modo concomitante, também discutimos formulações oriundas da classe
dominante acerca da Educação Profissional ou que a tangencia através da implementação
de políticas públicas por parte do aparelho de Estado. É possível identificar que há uma
produção sobre a EP (e sobre a educação em geral) como mola propulsora ao
desenvolvimento econômico de um Estado-nação e também, para a prosperidade dos
indivíduos que, a partir de suas respectivas inserções na relação social de produção, cada
um visaria o interesse que estivesse a seu alcance. A leitura das publicações em torno da
EP permitiu compreender que as ideias centrais que são difundidas por publicação de
natureza acadêmica e jornalística cumprem uma função vital na dominação de classe.
Entendemos que a devida interpretação acerca desses interlocutores deveria ocorrer
através da discussão em torno do conceito de ideologia. Tratamos essas formulações como
ideologias no sentido marxiano de que a ideologia é operada como uma forma de manter
e reproduzir uma dominação de classe e que para se sustentar como crível, precisa ser
operada com base em algum grau de efetividade, de modo que os sujeitos não
desacreditem dessa crença.
De modo geral, pode-se afirmar que todos os entrevistados docentes demonstraram
muito interesse e gana em trabalhar em prol do provimento de uma educação de qualidade
para seus alunos. Talvez por conta disso, tenha sido possível perceber que a instituição de
--
e-ISSN 2526-2319
272
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
ensino tem uma centralidade na formação dos estudantes, seja se o objetivo for a
continuidade dos estudos para o ensino superior, seja para a inserção mais imediata no
mundo do trabalho ou até a concomitância entre os dois. Em um olhar imediato, as
mencionadas possibilidades de trajetórias de vida poderiam sugerir que a concepção de
educação reivindicada pelos intelectuais da classe dominante, que preza pela diversificação
formativa, estaria então de acordo com a materialidade posta. No entanto, embora não
estejamos em posição no presente artigo de clamar por uma formação unificada,
entendemos que o tratamento dado a essa diversidade de possibilidades não é a mesma
entre os interlocutores mencionados no artigo.
Do ponto de vista dos docentes, a nós nos parece que há um entendimento de que a
diversidade de trajetórias formativas dos estudantes é resultante das próprias aspirações
dos indivíduos que, por óbvio, são frutos dos vínculos estabelecidos a partir de sua vida
material como sujeitos históricos. Por isso, o projeto de vida e as expectativas dos
estudantes, percebidos pelos docentes, trouxeram elementos relativos à sua condição de
classe (por exemplo, em se projetar para viajar a outros países, buscando uma vida melhor),
à sua inserção no mercado de trabalho (frequentar um curso na modalidade subsequente
com vistas ao aperfeiçoamento profissional) e a influência da família na escolha dos
caminhos profissionais a serem seguidos pelos jovens, que pode ter o seu destino
vislumbrado
a priori
como um potencial gerador de melhora econômica familiar.
Com relação aos intelectuais e as organizações citadas, entendemos que suas
premissas estão eivadas de uma concepção de educação que defende e reafirma a divisão
social do trabalho como decorrência da sociedade de classes. Contudo, como não podem
afirmar isso categoricamente, sob risco de perderem apoio ao seu projeto educativo, a
divisão social do trabalho é transmutada, de modo a aparecer na forma da defesa da
diversidade formativa e múltiplos caminhos que os jovens poderiam vir a seguir, a fim de,
inclusive, respeitar as diferentes aspirações individuais. Ao recurso de transmutação e
ocultamento da concepção educativa, adiciona-se na fala do representante da burguesia
industrial (no caso, Rafael Lucchesi) uma inversão de posicionamentos, ao expressar que os
pesquisadores e professores universitários das ciências humanas é que são elitistas, porque
supostamente rejeitam inclusive a existência da Educação Profissional, enquanto os
industriais, através do Senai, é que garantem o suporte necessário à classe trabalhadora
obter uma formação qualificada.
Tais discussões nos levam à segunda ideia central discutida no texto, que foi a
expectativa com a taxa de retorno financeira aos indivíduos a partir da formação
educacional (e pela especificidade da EP), premissa que é sustentada, sobretudo, pela teoria
do capital humano. Não negamos que a formação de trabalhadores mais qualificados não
apenas gere mais valor e, portanto, maior produtividade, como possa gerar maior
possibilidade de remunerações acima daquelas recebidas por trabalhadores com formação
genérica de ensino médio ou de grau de escolaridade abaixo, até mesmo comprovadas por
diversas pesquisas, algumas das quais pudemos ilustrar no presente texto.
--
e-ISSN 2526-2319
273
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Dentro das limitações de espaço e escopo do texto, podemos citar o texto de Reis e
Águas (2019) que traz dados referentes à CBO de 2010, revelando que 107 das 495
ocupações exigem um curso técnico de nível médio. No entanto, dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007, citados pelos autores, constataram
que mais da metade de trabalhadores com cursos técnicos de nível médio exercem
ocupações que não requer a formação especializada. Exemplo parecido pode ser acrescido
ao cotejar com a publicação específica sobre a EP com dados da PNAD em 2014. A pesquisa
constatou que das 9,3 milhões que frequentavam ou já tinham frequentado um curso
técnico de nível médio, 40,3% nunca trabalharam em ocupações relativas a essa formação
e dos 59,7% que concluíram com aprovação essa modalidade de curso, apenas 35,0% das
pessoas continuavam trabalhando nessa área. Desse quantitativo, 56,7% declararam que
recebiam até dois salários mínimos de remuneração (IBGE, 2017).
A partir dos dados supracitados o que queremos questionar aqui e classificar tal
premissa como ideologia está associado ao fato de que a difusão descontextualizada dessa
formulação teórica omite e até em certos aspectos, falseia a realidade. A promessa de
rendimentos mais robustos para a classe trabalhadora e que obtida, de fato, por alguns
daqueles que conseguem melhores empregos formais, oblitera informações como o fato
de que em torno de 27 milhões de pessoas no Brasil estão classificadas como população
subocupada pelo IBGE, o que inclui os desocupados, os subocupados por insuficiência de
horas trabalhadas e a força de trabalho potencial. Somente considerando os desocupados,
os jovens de 18 a 24 anos correspondem a 32% e 28% dessa faixa etária de jovens não
estudavam nem estavam ocupados em 2018 (IBGE, 2019). Conforme foi declarado pelos
professores, a possibilidade de obtenção de emprego formal em momento de
retração/estagnação econômica estava afetando significativamente os estudantes
formados pelos cursos técnico e mesmo lograr um estágio remunerado.
Também nos chamou a atenção a declaração do coordenador CMAN em mostrar que
a instituição de ensino esteja formando profissionais técnicos de nível médio com
qualificação demasiada, o que nos leva à terceira ideia central: o da necessidade de ajuste
entre a formação profissional e as necessidades da estrutura econômica. Por parte dos
intelectuais vinculados às demandas da classe dominante, há o repetido discurso de que
esse ajuste é necessário para alavancar a produtividade das empresas e,
consequentemente, garantir os empregos dos trabalhadores. Afinal, então qual força de
trabalho é efetivamente demandada pelas frações de classe burguesa?
Conforme dito anteriormente, um trabalhador mais qualificado tende a conseguir
gerar maior valor por sua maior capacidade produtiva. No entanto, ao passo que as formas
de acesso à educação e qualificação profissional se expandam e se diversifiquem,
historicamente há um movimento constante de subsunção de que esses processos
formativos estejam a serviço do capital, tanto via as instituições estatais quanto aquelas
controladas diretamente pela burguesia. Caso entendamos qualificação no capitalismo
como a capacidade de trabalho dos trabalhadores em atender à finalidade de extração de
mais-valor, parece-nos razoável supor que uma qualificação que exceda as funções
--
e-ISSN 2526-2319
274
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
demandadas pelas empresas, torna-se disfuncional para a reprodução do capital, pois
demanda um grau de complexidade que desperdiçaria tempo e dinheiro para dispor de
um contingente substancial de força de trabalho. Assim, os condicionantes de uma
economia capitalista em condição de dependência revelam os limites de rendimento
financeiro superior aos jovens formados pelos cursos técnicos. Na medida em que a
estrutura econômica brasileira não demanda um volume tão grande de força de trabalho
qualificada técnica de nível médio, o discurso burguês é que se descola da base material
para cumprir um papel de ser consciência prática de uma concepção de educação que
precisa entrar se harmonizar para garantir sua força espiritual (nos termos de Marx e Engels)
em uma sociedade fundamentalmente estruturada na desigualdade de classes e, por isso,
iminentemente explosiva acerca de conflitos sociais.
Nessa seção final do texto, portanto, procuramos elucidar que não consideramos que
a ideologia seja um problema de ordem cognitiva, ou seja, por falta de entendimento de
uma dada situação. Ao contrário, sendo a ideologia uma consciência prática para agir em
uma sociedade de classes, torna-se essencial evidenciar sua função particular para
consolidação das relações sociais vigentes. Por isso, que necessariamente não haja uma
fina sintonia entre a fala dos docentes dos cursos técnicos e os formuladores de ideias
sobre a EP.
Referências
ANDRADE, M. C. P; GAWRYSZEWSKI, B. Desventuras da educação brasileira e as ‘reformas’
atuais: educar para a produtividade do trabalho. Eccos, São Paulo, n. 47, p. 105-125,
set./dez. 2018.
BASSI, Marina; BUSSO, Matías; URZÚA, Sergio; VARGAS, Jaime. Desconectados:
habilidades, educação e emprego na América Latina. Washington: BID, 2012.
BANCO MUNDIAL. Emprego e crescimento: a agenda da produtividade. Brasília: Grupo
Banco Mundial, 2018.
BERNARDIM, Márcio Luiz; SILVA, Monica Ribeiro. Juventude, escola e trabalho: sentidos da
Educação Profissional integrada ao Ensino Médio. Educação em Revista, v. 32, n. 1, p. 211-
234, jan./mar. 2016.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>, acesso em 5 dez. 2017.
BRASIL. Decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997. Diário Oficial da União. Brasília, DF,
1997, 14 ago.1997. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d2208.htm>. Acesso em: 10 jun. 2018.
--
e-ISSN 2526-2319
275
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
BRASIL. Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008.
Diário Oficial da União: Brasília, DF, 2008, 30 dez. 2008. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11892.htm>. Acesso em 10
jun. 2018.
BRASIL. Lei nº 12.513, de 26 de outubro de 2011.
Diário Oficial da União: Brasília, DF, 2011, 27 out. 2011. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12513.htm>. Acesso em 10
jun. 2018.
BRASIL. Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016. Diário Oficial da União:
Brasília, DF, 2016, 23 set. 2016. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/mpv/mpv746.htm. Acesso em:
08 maio 2020.
BRASIL. Lei nº 13.415/2017, de 16 de fevereiro de 2017. Diário Oficial da União: Brasília,
DF, 2017, 17 fev. 2017. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/lei/L13415.htm>. Acesso em: 21 jul. 2017.
CASTRO, Cláudio Moura. O secundário: esquecido em um desvão do ensino? Texto para
discussão. Brasília, DF: INEP, 1997.
CNI. Confederação Nacional da Indústria. Falta de trabalhador qualificado. Sondagem
Especial. Ano 20, n. 76. Brasília: CNI, 2020.
EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. São Paulo: UNESP, Boitempo, 1997.
IASI, Mauro. Educação e consciência de classe: desafios estratégicos. Perspectiva,
Florianópolis, v. 31, n. 1, p. 67-83, jan./abr. 2013.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Educação e qualificação profissional:
2014. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais: uma
análise da condição de vida da população brasileira. 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
IPEA. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Brasil: o estado de uma nação. Rio
de Janeiro: IPEA, 2006.
LIMA, Marcelo; MACIEL, Samantha Lopes; PAZOLINI, Michele. Políticas de Estado versus
políticas de governo. Revista Trabalho, Política e Sociedade, vol. 4, n. 6, p. 69-84, jan./jun.
2019.
LUCCHESI, Rafael. ‘O sistema acaba acentuando a exclusão social’. [Entrevista concedida a]
Renata Mariz. O Globo, Sociedade, publicado em 16 de novembro de 2016, p. 30.
--
e-ISSN 2526-2319
276
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/o-sistema-educacional-
acaba-acentuando-exclusao-social-diz-membro-do-cne-20483940. Acesso em: 4 jul. 2019.
MACHADO, Lucília. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez Editora,
Autores Associados, 1989.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
AMOROSO NETO, Victorio; MENEZES FILHO, Naercio; KOMATSU, Bruno Kawaoka. Os
efeitos da Educação Profissional e do Pronatec sobre os salários. Policy Paper, Insper, n.
25, set. 2017.
GUEDES, Paulo. Paulo Guedes defende que o Brasil tenha a sua ‘perestroika’. [Reportagem
assinada por] O Globo. O GLOBO, Economia, publicada em 11 de fevereiro de 2019.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/paulo-guedes-defende-que-brasil-
tenha-sua-perestroika-23444042. Acesso em: 8 fev. 2020.
OLIVEIRA, Ramon. Ensino médio e educação profissional – reformas excludentes. Educar
em Revista, n. 20, p. 279-298, 2002.
REIS, Mauricio Cortez; AGUAS, Marina. Educação Profissional, exigências da ocupação e
rendimentos do trabalho no Brasil. Texto para discussão, n. 2446. IPEA: Brasília/DF, 2019.
SCHWARTZMAN, Simon; CASTRO, Claudio Moura. Ensino, formação profissional e a
questão da mão de obra. Ensaio: avaliação e políticas públicas em Educação, v. 21, n. 80, p.
563-624, jul./set. 2013.
SIMÕES, Carlos Artexes. Juventude e educação técnica: a experiência na formação de
jovens trabalhadores do Colégio Professor Horácio Macedo/CEFET-RJ. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2007.
Informações sobre os autores:
Bruno Gawryszewski
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua como
professor de Educação Brasileira no Departamento de Administração Educacional da
Faculdade de Educação da UFRJ, onde integra o quadro docente do Programa de Pós-
Graduação em Educação. É membro do Grupo de Pesquisas Coletivo de Estudos em
Marxismo e Educação (COLEMARX), sediado na Faculdade de Educação da UFRJ.
--
e-ISSN 2526-2319
277
RTPS
–
Rev. Trabalho, Política e Sociedade, Vol. 5, nº 08, p.
257
-
277
, jan.
-
jun./2020.
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-7974-1711
E-mail: brunogawry@gmail.com
Maria Carolina Pires de Andrade
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro do
Grupo de Pesquisa Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX).
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-2946-5130
E-mail: carolina.andradep@gmail.com
Submetido em: 10/03/2020
Aprovado em: 08/05/2020
Esta obra está licenciada com uma Licença
Creative Commons Atribuição – Não Comercial 4.0 Internacional