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Vol.15 - N. Especial - 2013
Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 15 Número Especial: 53-78. 2013
PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
E CATEGORIAS ANALÍTICAS DA LINGUÍSTICA
FUNCIONAL CENTRADA NO USO
THEORETICAL AND METHODOLOGICAL
PRINCIPLES AND ANALYTIC CATEGORIES OF
USAGE-BASED FUNCTIONAL LINGUISTICS
Maria Angélica Furtado da Cunha
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Edvaldo Balduino Bispo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
RESUMO
Apresentamos, neste artigo, as bases teóricas e metodológicas da Linguística
Funcional Centrada no Uso, também denominada Linguística Cognitivo-Funcional,
conforme Tomasello (1998), a qual identica uma tendência funcionalista
de estudo das línguas. Essa abordagem é resultado da união das tradições
desenvolvidas pelas pesquisas de representantes da Linguística Funcional e
da Linguística Cognitiva. Assume que o comportamento linguístico é reexo
de capacidades cognitivas que dizem respeito a princípios de categorização,
à organização conceptual, a aspectos ligados ao processamento linguístico e,
sobretudo, à experiência humana no contexto de suas atividades individuais,
sociointeracionais e culturais. Além disso, caracterizamos algumas das categorias
analíticas dessa vertente teórica, com apresentação de dados reais da língua
em uso para melhor compreensão. São destacados, entre outros, os conceitos
de iconicidade, marcação, constrastividade, categorização, prototipicidade,
informatividade, perspectivação.
Palavras-chave: Linguística Funcional; categorias analíticas; aspectos teórico-
metodológicos.
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Revista do Gelne
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ABSTRACT
This paper presents the theoretical and methodological foundations of Usage-
Based Functional Linguistics, a functional trend to the study of language, also
known as Cognitive-Functional Linguistics, according to Tomasello (1998).
This approach is the result of integrating traditions developed by researches
on Functional Linguistics, on one hand, and on Cognitive Linguistics, on the
other. It assumes that linguistic behavior reects cognitive capacities linked
to principles of categorization, conceptual organization, aspects related to
language processing, and, over all, to human experience in the context of
individual, socio-interactional and cultural activities. In addition, this paper
characterizes some of the analytical categories of this theoretical trend,
providing real language in use data. Among others, the concepts of iconicity,
markedness, contrastiveness, categorization, prototype, information structure
and perspective are highlighted.
Keywords: Functional Linguistics; analytical categories; theoretical and
methodological issues.
INTRODUÇÃO
A Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) é uma abordagem
que integra os postulados da Linguística Funcional de vertente norte-
americana, representada, sobretudo, por Talmy Givón, Paul Hopper,
Elizabeth Traugott e Joan Bybee, e da Linguística Cognitiva, conforme
formulada por George Lakoff, Ronald Langacker, Adele Goldberg,
John Taylor e William Croft, entre outros (TOMASELLO, 1998; 2003;
MARTELOTTA, 2011; FURTADO DA CUNHA et al., no prelo ).
Essas duas correntes compartilham a concepção de que os usos
linguísticos resultam de modelos convencionalizados com base na interface
linguagem, cognição e ambiente sócio-histórico. A inter-relação dessas três
dimensões motiva a xação de padrões gramaticais, via ritualização, a partir
de ambientes interacionais especícos. Portanto, a LFCU não se restringe
à observação de aspectos formais da língua, ou da difusão das formas pela
organização social, mas leva em conta, em suas análises, dados semânticos,
pragmáticos e discursivos que se manifestam na língua em uso. Em linhas
gerais, essa área de pesquisa defende uma relação estreita entre a codicação
linguística e o uso que os falantes fazem da língua em situações reais de
interação comunicativa.
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Nesse cenário, a língua é concebida como um sistema adaptativo
complexo, uma estrutura plástica, constituída, ao mesmo tempo, de
padrões mais ou menos regulares e de outros que emergem, em virtude de
necessidades cognitivas e/ou comunicativas (BYBEE, 2010). Signica que,
na língua, convivem, harmoniosamente, formas que, com o tempo, tendem
a assumir novas funções e congurações e outras que, aparentemente,
mantêm-se mais estáveis (VOTRE, 2002). Dito de outro modo, o sistema
linguístico tem uma natureza eminentemente dinâmica, já que surge da
adaptação das habilidades cognitivas humanas a eventos de comunicação
especícos e se desenvolve com base na repetição ou ritualização desses
eventos.
Dada a natureza de relativa estabilidade da estrutura linguística, a
LFCU direciona seu foco de interesse na interdependência entre forma
e função, buscando no texto produzido em situação real de interação
subsídios que forneçam explicações para a codicação morfossintática.
Ancorada na natureza adaptativo-funcional da linguagem, que se manifesta
em fenômenos de variação e mudança, a LFCU descarta a hipótese de que
a gramática apresenta regras xas, que se aplicam em qualquer situação. Ao
contrário, assume que os falantes tendem a adaptar sua fala aos diferentes
contextos de comunicação, o que signica que as regras mais gerais são
ativadas em combinação com eventos especícos de uso.
De acordo com esse campo de estudos, a gramática, ou sintaxe,
está diretamente relacionada a fatos de caráter semântico e/ou discursivo-
pragmático. Defende-se, pois, uma simbiose entre discurso e gramática,
que interagem e se inuenciam mutuamente. O discurso é aqui tomado
como o uso criativo da língua em contextos de comunicação; por sua vez,
a gramática é tida como uma estrutura em constante mutação e adaptação,
em consequência das eventualidades do discurso. Desse modo, a análise dos
dados linguísticos deve levar em conta o uso da língua em situação concreta
de intercomunicação.
Estabelecido esse quadro geral, o objetivo deste artigo é explicitar,
de modo sucinto, os pressupostos teórico-metodológicos bem como as
categorias analíticas que caracterizam essa abordagem, a m de possibilitar
a investigação de fenômenos da língua dentro dessa perspectiva.
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1. Aspectos teóricos da LFCU
Em termos amplos, a LFCU, também rotulada como Linguística
Cognitivo-Funcional (TOMASELLO, 2003; MARTELOTTA , 2008;
FURTADO DA CUNHA, 2012), adota, como pressupostos teóricos, a
rejeição à centralidade e autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica
e da pragmática às análises, a não distinção estrita entre léxico e gramática,
a relação estreita entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem
delas nos contextos reais de comunicação e o entendimento de que os
dados para a análise linguística são enunciados que ocorrem no discurso
natural.
Assume, ainda, que a categorização conceptual e a categorização
linguística são análogas, ou seja, o conhecimento do mundo e o conhecimento
linguístico seguem, essencialmente, os mesmos padrões (TAYLOR, 1998;
FURTADO DA CUNHA et al., 2003). De acordo com essa visão, as
línguas são moldadas pela interação complexa de princípios cognitivos
e interacionais que desempenham um papel na mudança linguística, na
aquisição e no uso da língua. Como as línguas se assemelham muito no
que diz respeito às relações gramaticais que exibem, admite-se que essas
semelhanças são o resultado desses princípios cognitivos e funcionais.
A LFCU advoga que, no comportamento linguístico, atuam aspectos
relacionados a restrições cognitivas que compreendem a captação de
experiências, sua compreensão e seu armazenamento na memória, ao
lado de aspectos associados à capacidade de organização, acesso, conexão,
utilização e transmissão adequada dessas informações (MARTELOTTA,
2011). Vale enfatizar, porém, que esses componentes de natureza
cognitiva só se concretizam na interação discursiva, já que eles reetem o
funcionamento de nossa mente como indivíduos inseridos em um ambiente
sociocultural. Nesse sentido, o surgimento ou a emergência das estruturas
morfossintáticas que compõem o inventário de uma língua resulta da ação
simultânea de fatores de regularização e de criação/inovação. A gramática,
então, é constituída de possibilidades de combinação de unidades formais
xas, padronizadas ou convencionalizadas e portadoras de signicado.
A linguagem é vista como engendrada por capacidades cognitivas
de domínio geral, que dizem respeito aos princípios de categorização, à
organização conceptual, aos fatores ligados ao processamento linguístico e,
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sobretudo, à experiência humana no contexto de suas atividades individuais,
sociointeracionais e culturais. Sob essa perspectiva, as categorias linguísticas
são baseadas na experiência que os falantes têm das construções em que
elas ocorrem, do mesmo modo que as categorias por meio das quais
nós classicamos objetos da natureza e da cultura são baseadas na nossa
experiência com o mundo. Por conseguinte, todos os elementos que
compõem o processo que leva ao desenvolvimento de novas construções
gramaticais surgem do uso da língua em contexto e envolvem habilidades
e estratégias cognitivas que também são mobilizadas em tarefas não
linguísticas.
Em suma, a aparente regularidade e instabilidade da língua são
motivadas e modeladas pelas práticas discursivas dos usuários no cotidiano
social (FURTADO DA CUNHA; TAVARES, 2007).
Essa visão nos leva ao conceito de construções linguísticas. Formulada
no quadro da Linguística Cognitiva, a Gramática de Construções prevê
que todas as unidades da língua são simbólicas – desde morfemas simples,
passando por expressões idiomáticas, estruturas sintáticas (GOLDBERG,
1995, 2006), até padrões textuais (ÖSTMAN; FRIED, 2005). Logo, o
conceito de construção dá conta de um grande número de unidades
linguísticas, dispostas num continuum, de modo que a distinção entre elas é
gradiente e não discreta.
A construção é denida como um pareamento de forma-sentido que
têm signicado próprio, independente das partes que a compõem, servindo,
pois, como um esquema ou modelo que reúne o que é comum a um conjunto
de elementos da mesma natureza. Sentido, aqui, compreende propriedades
semânticas, pragmáticas e/ou discursivo-funcionais relacionadas a
uma determinada conguração estrutural, ou seja, todos os aspectos
convencionalizados da função da construção, incluindo as particularidades
da situação descrita no enunciado, as propriedades do discurso em que este
ocorre e o próprio contexto de uso (CROFT, 2001). Como se vê, o formato
das construções reete o mapeamento entre sintaxe e semântica.
Já que qualquer elemento formal associado diretamente a algum
sentido é uma construção, a divisão estrita entre léxico e gramática
deixa de existir para a LFCU. Goldberg (1995) esclarece que a diferença
entre construções lexicais e construções sintáticas deve-se ao grau de
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complexidade interna de cada uma delas.
Cabe frisar que a construção é uma entidade teórica, abstrata. Esse
entendimento é compartilhado por diferentes linguistas que adotam a
abordagem construcional. Assim, Bybee (2010) defende a ideia de que a
maioria das construções é parcialmente esquemática, com posições vazias
que podem ser preenchidas com uma categoria de itens semanticamente
denidos. Por outro lado, ela salienta que as construções geralmente têm
algumas partes xas que são cruciais para o estabelecimento do exemplar
prototípico.
Quando falamos, selecionamos do léxico itens lexicais e construções,
que contribuem, cada um deles, com um componente de signicado, e os
fundimos de uma maneira que pode ser inteiramente inovadora, lexicalizada
em alguma medida, ou mesmo totalmente idiomática. Adquirimos
as construções através de um processo de categorização baseado em
instâncias aprendidas, de modo que padrões frequentes no uso interacional
da língua são estocados como parte do repertório linguístico do falante.
As construções são, portanto, concebidas como esquemas cognitivos do
mesmo tipo que encontramos em outras habilidades não linguísticas, ou
seja, como procedimentos relativamente automatizados que se utilizam para
realizar coisas comunicativamente. O falante adquire esse conhecimento à
medida que aprende a usar a sua língua.
A categorização ocupa uma posição central dentre os processos
envolvidos no uso efetivo da língua, tendo em vista que, para a LFCU, há um
paralelismo entre a categorização conceptual e a categorização linguística,
de forma que não se separa conhecimento do mundo de conhecimento
linguístico. Para Bybee (2010), a estrutura linguística deriva da aplicação
de processos de domínio geral, os quais não são restritos à linguagem,
mas operam em diferentes áreas da cognição humana, como bem salienta
Tomasello (1998). A categorização é o processo cognitivo mais básico,
mais difundido, já que interage com todos os outros envolvidos no uso
da linguagem – por meio dela são estabelecidas as unidades da língua, seu
signicado e sua forma. Categorias perceptuais de vários tipos são criadas
a partir da experiência humana, independentemente da língua. No domínio
linguístico, a categorização diz respeito à semelhança ou identidade que
ocorre quando palavras e sintagmas e suas partes componentes são
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reconhecidas e associadas a representações armazenadas. As categorias
resultantes são a base do sistema linguístico, sejam fonemas, morfemas,
itens lexicais, sintagmas ou construções.
A construção de conceitos relaciona-se às experiências do ser
humano no ambiente biofísico e sociocultural e são esses conceitos que nos
permitem caracterizar mentalmente as categorias e raciocinar sobre elas.
Cada categoria é conceitualizada em termos do representante prototípico,
aquele que reúne os traços recorrentes de que se compõe essa categoria.
Dessa forma, a classicação dá-se por meio do elemento que exemplica
o protótipo, enquanto os outros elementos são classicados considerando
as características mais próximas e as mais distantes em relação ao exemplar
prototípico. Essa perspectiva não linear e não discreta permite o tratamento
escalar e contínuo de aspectos gramaticais.
No tocante aos universais linguísticos, tão explorados pelas
abordagens formais, a LFCU os concebe como propriedades que se
manifestam na maioria das línguas, dada a universalidade dos usos da
linguagem. Segundo Bybee (2010), na medida em que as condições de uso
da língua são semelhantes de uma cultura para outra, a substância e a forma
da gramática também serão semelhantes. Desse modo, as construções
conhecidas como universais linguísticos parecem reetir universais
psicológicos e socioculturais que contribuem para o entendimento da
natureza do pensamento humano e da interação social (SLOBIN, 1980).
Essas propriedades universais devem ser procuradas na cognição
humana, isto é, nos modos como os homens conceitualizam o mundo
em termos de certas categorias, congurações espaciais e temporais,
focalização de atenção, gerenciamento de informação, etc. A busca pelos
universais, então, deve focalizar os processos que criam e mantêm as
estruturas linguísticas, e não as próprias estruturas. A motivação para a
existência de tais universais também se deve à comunicação, na medida em
que os objetivos e as necessidades comunicativas dos humanos parecem
ser universais, o que não descarta a possibilidade de que alguns deles sejam
especícos a comunidades linguísticas particulares.
Estudos translinguísticos (GIVÓN, 1979; BYBEE et al, 1994)
comprovam que há trajetórias universais de gramaticalização que levam
ao desenvolvimento de novas construções gramaticais. Essas trajetórias
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são universais porque o desenvolvimento das construções ao longo delas
ocorre independentemente, em línguas não aparentadas (p. ex. a passagem
de um verbo pleno a auxiliar: verbo ir + verbo no innitivo = tempo
futuro), ou o recrutamento de itens lexicais com o mesmo signicado ou
signicados semelhantes para desempenhar funções gramaticais em línguas
não relacionadas (p. ex -mente, em português, e -ly, em inglês, que, suxados
a adjetivos, dão origem a advérbios).
Essas trajetórias comuns de gramaticalização podem ser explicadas
em termos de processos cognitivos e comunicativos, como automatização,
habituação, descontextualização, categorização, inferenciação pragmática,
dentre outros. Tais processos se dão no uso comunicativo de expressões
linguísticas ao longo do tempo e, portanto, têm a ver com o modo como
os falantes “embalam” suas conceitualizações visando à comunicação
interpessoal. Logo, os verdadeiros mecanismos que motivam a mudança
reetem processos cognitivos e interacionais básicos que permeiam o uso
real da língua.
2. Procedimentos metodológicos da LFCU
De acordo com os pressupostos teóricos da LFCU, as formas
linguísticas são motivadas por fatores de natureza diversa – não apenas
comunicativos ou sociais, mas também cognitivos, estruturais e históricos.
Esses fatores, em conjunto, atuam de modo diverso nos diferentes contextos
de comunicação, complementando-se em uns casos e anulando-se em
outros. Isso implica a adoção de uma metodologia que leve em conta não
apenas a interdependência desses fatores, mas sua atuação contextualmente
diferenciada. Para descrever e explicar a gramática da língua com base
no uso que dela fazem os indivíduos em suas interações verbais, a teoria
linguística tem, necessariamente, que levar em conta as situações e os
contextos comunicativos em que esse uso se atualiza.
Seguindo o princípio básico de que a estrutura da língua emerge à
medida que esta é usada, a aferição da frequência de ocorrência de um dado
fenômeno linguístico é muito importante para a LFCU, já que assinala aquilo
que o uso consagra como estratégia de comunicação em um determinado
contexto. Importa descobrir como os aspectos interacionais se ritualizam
em forma de construções gramaticais disponíveis para o usuário da língua.
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Os pesquisadores da LFCU procuram identicar e avaliar fatores de
natureza cognitiva e pragmático-discursiva que regulam as manifestações
do fenômeno investigado, atentos para as restrições de natureza
formal que estimulam ou bloqueiam a regularização desse fenômeno.
Metodologicamente, desenvolvemos uma análise que conjuga fatores
qualitativos e quantitativos, que possam evidenciar tendências. O aspecto
qualitativo diz respeito ao caráter descritivo e interpretativo da análise e
ao enfoque indutivo baseado na observação das amostras coletadas. Já a
dimensão quantitativa refere-se à natureza mensurável do material empírico
tomado como amostra. Para tanto, quanticamos, em termos absolutos e
percentuais, a recorrência dos fatores selecionados para a análise.
Quanto aos fatores investigados, podemos citar os efeitos da
frequência de uso, a modelagem das estruturas linguísticas no contexto
discursivo e as inferências pragmáticas que acompanham a língua na
interação. A frequência de uso de uma determinada construção leva a
seu estabelecimento no repertório do falante e faz dela uma unidade de
processamento, o que implica que o falante explora recursos gramaticais
disponíveis para atingir seus objetivos comunicativos. Mas é importante não
esquecer que o discurso exibe padrões recorrentes que extrapolam o que
é predizível pelas regras gramaticais e a explicação para a existência desses
padrões deve ser procurada no âmbito da cognição e da comunicação.
Testamos as hipóteses a respeito de aspectos sincrônicos e
diacrônicos com dados de textos reais (falados e/ou escritos). Nosso
propósito é descrever e explicar os fatos linguísticos com base nas funções
(semântico-cognitivas e discursivo-pragmáticas) que desempenham nos
diversos contextos de uso da língua, integrando sincronia e diacronia, numa
abordagem pancrônica (BYBEE, 2010).
Interessa-nos identicar diferentes motivações funcionais e avaliar o
efeito de cada uma delas na conguração concreta do fenômeno sob estudo.
Com base em análise assim realizada, é possível vericar padrões recorrentes
no discurso no que diz respeito ao comportamento da construção em foco.
3. Princípios e categorias de análise
Para proceder à investigação de um dado fenômeno da língua, a
LFCU considera tanto aspectos internos quanto externos ao sistema
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linguístico. Isso porque parte do pressuposto de que fatores cognitivos,
sociocomunicativos e linguísticos motivam a organização estrutural da
língua.
Na análise de fatos linguísticos, a LFCU utiliza princípios e categorias
analíticas, além de levar em conta processos cognitivos subjacentes
à codicação morfossintática desses fatos. Neste artigo, destacamos
iconicidade, marcação, contrastividade, informatividade, perspectivação,
categorização, prototipicidade, plano discursivo, saliência perceptual,
projeções metafóricas e metonímicas.
3.1 Iconicidade
Em linhas gerais, iconicidade é denida como a correlação motivada
entre forma e função, ou seja, entre o código linguístico e seu designatum
(GIVÓN, 1984).
Os linguistas funcionais advogam o pressuposto de que a língua é
organizada nos mesmos moldes que a conceitualização humana do mundo.
Sendo assim, a estrutura de uma construção gramatical reete, de algum
modo, a estrutura do conceito que ela expressa (CROFT, 1990). Nessa
perspectiva, existem padrões que mantêm uma correlação aproximada com
o sentido que eles designam, sendo, portanto, perceptíveis os laços entre
forma e função. Em contrapartida, há casos em que essa relação não é nítida,
revelando-se aparentemente arbitrária e impossibilitando o estabelecimento
da conexão entre o plano da expressão e o do conteúdo. Ou seja, tomadas
sincronicamente, determinadas estruturas exibem um acentuado grau
de opacidade em comparação com os papéis que desempenham. Isso é
agrante, sobretudo, nos marcadores conversacionais, tais como bom, aí,
entendeu?, por exemplo.
Conforme Givón (1984), a iconicidade compreende três
subprincípios, a saber: quantidade de informação (segundo o qual quanto
maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma linguística
para codicá-la; ou quanto mais imprevisível (nova) for a informação para o
interlocutor, maior será a quantidade de forma a ser utilizada e vice-versa);
proximidade entre os constituintes (o qual preceitua que os conceitos mais
integrados no plano cognitivo se apresentam com maior grau de ligação
morfossintática); e ordenação linear (que estabelece que os constituintes se
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ordenam, no tempo e no espaço, conforme pressões cognitivas). Desse
modo, a iconicidade é estimulada por questões de clareza e transparência,
de modo a reduzir a opacidade entre a forma linguística e seu correlato
semântico e/ou pragmático.
Consideremos, a título de ilustração, o slogan de um serviço dos
Correios, o Sedex, mostrado em (1), para melhor entendimento da atuação
desses subprincípios.
(1) Sedex. Mandou, chegou.
Em (1), é possível observar uma pequena quantidade de material
linguístico empregado para codicar a ideia de que o serviço de entrega de
encomendas anunciado (Sedex) é muito rápido: são utilizadas apenas duas
formas verbais. Quanto ao subprincípio da quantidade, isso pode explicar-
se pela previsibilidade implicada: o interlocutor sabe que se trata do envio e
entrega de mercadorias, dado o conhecimento acerca da principal atividade
da anunciante (Correios), daí a omissão dos complementos verbais. No que
se refere ao subprincípio da proximidade, pode-se entender que a maior
aproximação entre as formas verbais (mandou, chegou) – decorrente, por
exemplo, da omissão dos complementos – reete a maior proximidade, no
plano do conteúdo, entre o momento do envio por parte do remetente e o
da entrega ao destinatário. Por m, quanto ao subprincípio da ordenação
linear, a disposição dos verbos no slogan corresponde à sequência cronológica
com que se dão os eventos por eles codicados (primeiro, manda-se a
encomenda; em seguida, ela é entregue).
3.2 Marcação e contrastividade
O princípio de marcação diz respeito “à presença vs. ausência de uma
propriedade nos membros de um par contrastante de categorias linguísticas”
(FURTADO DA CUNHA, 2001, p. 60). Segundo Givón (1990), existem
três critérios principais que podem ser usados para distinguir uma categoria
marcada de uma não marcada, num contraste binário. São eles:
a) complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais
complexa – ou maior – que a não marcada correspondente;
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b) complexidade cognitiva: a estrutura marcada normalmente é mais
complexa cognitivamente (em termos de atenção, esforço mental ou
duração de processamento) que a correspondente não marcada;
c) distribuição de frequência: a categoria marcada tende a ser menos
frequente, portanto mais saliente cognitivamente, que a não marcada.
Pode exemplicar esses critérios a oposição entre o singular e o
plural: a forma plural é mais complexa estrutural (tem um morfema a mais)
e cognitivamente (implica a ideia de maior quantidade), sendo, portanto,
menos frequente que o singular.
Entretanto, é preciso considerar a necessidade de se adotarem
parâmetros de gradualidade na análise da marcação, evitando-se o risco de
se tomarem as categorias linguísticas em termos discretos (ou binários),
dado o caráter uido e criativo da língua.
Croft (1990) já indicava a inadequação da binariedade, preferindo ver
a marcação numa perspectiva escalar uma vez que determinados fenômenos
não se prestam a uma análise dicotômica. O autor fundamenta seu ponto de
vista argumentando haver línguas em que a noção de número é denida por
outros traços semânticos além de singular e plural, podendo também incluir
aspectos como dual, trial etc.
Além disso, conforme Givón (1995), uma mesma estrutura pode ser
marcada num contexto e não marcada em outro; vista assim, a marcação
é um fenômeno dependente do contexto, devendo, portanto, ser explicada
com base em fatores comunicativos, socioculturais, cognitivos ou biológicos.
Relacionada à marcação e também calcada na cognição, a
constrastividade refere-se à opção do falante em selecionar um item dentre
um conjunto de itens possíveis, conferindo-lhe realce e distinguindo-o de
todos os demais, com o m de despertar a atenção do interlocutor. Para
marcar linguisticamente essa seleção, o falante recorre a certos mecanismos
de relevo, tais como o traço prosódico, a ruptura com a forma convencional
de ordenação sintática, entre outros. Isso representa, em certa medida,
uma quebra de expectativa. Chafe (1976) arma que, em muitas orações
contrastivas, o emissor de fato contradiz uma suposição de seu receptor.
O anúncio a seguir ilustra bem essa categoria.
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(2) Aqui tem muito mais gente conectada.
A Vivo tem a maior comunidade de clientes do Brasil porque
investe mais.
Aqui você tem a maior cobertura 3G Plus e a melhor
qualidade de sinal.
Se você já é cliente, aproveite. Se ainda não é, venha ser Vivo.
(Propaganda da Vivo publicada na Veja, edição 2284, 29 ago. 2012)
O emprego do locativo aqui, na propaganda, serve para contrapor
a qualidade do serviço de uma prestadora de telefonia móvel à qualidade
do serviço de outras operadoras. E é justamente nesse contraste que se
sustenta o anúncio: enfatiza-se que, na operadora anunciante, em oposição
ao que acontece em outras, há mais vantagens, daí a maior quantidade de
clientes.
3.3 Informatividade e perspectivação
O conceito de informatividade refere-se ao conteúdo informacional que
os interlocutores compartilham, ou supõem compartilhar, no momento da
interação verbal. Em função desse conhecimento (supostamente) partilhado,
o locutor não apenas procura dosar o conteúdo informacional para seu
interlocutor mas também se esforça em monitorar/orientar o ponto de vista
deste, visando atingir determinado(s) objetivo(s). Para isso, conta tanto com
o aparato linguístico (léxico-gramatical), em suas múltiplas possibilidades
de organização e codicação textual (GIVÓN, 2001), quanto com recursos
extralinguísticos (gestos, expressões, dados do contexto interacional).
Chafe (1987) trata da informatividade com base no uxo da
informação, o qual, segundo o autor, relaciona-se, sobretudo, ao modo
como o falante organiza o conteúdo no discurso, levando em conta o grau
de acessibilidade do interlocutor à informação veiculada. Nesse sentido,
tanto a ordenação dos elementos na cláusula quanto a sua codicação
dependem da avaliação do falante/escrevente acerca do estado de ativação
do conhecimento na mente de seu interlocutor. Isso explica, por exemplo,
a opção pelo uso de um nome pleno ou um pronome, uma forma denida
ou indenida, acentuada ou atenuada etc., de acordo com a informação que
o locutor supõe estar acessível ou não a seu interlocutor na interação. É o
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que ocorre com os elementos em negrito em (3).
(3) Filho de policiais é assassinado na Linha Amarela
De acordo com a Divisão de Homicídios (DH), testemunhas
contaram que uma moto não identicada emparelhou e
o carona efetuou disparos contra a Captiva preta, placa
LLH-9866, por volta das 21h. Rafael que dirigia o carro
estava sozinho no veículo. Após ser atingido, ele colidiu
com o carro. A vítima foi socorrida no Hospital Federal de
Bonsucesso, mas não resistiu. O tiro fatal teria acertado a
virilha dele. Os bandidos fugiram. (O Dia, disponível em:
http://odia.ig.com.br. Acesso em: 20 jun. 2012).
Nesse trecho, a codicação dos elementos referenciais pelos SN em
destaque reete seu status informacional. Uma moto é codicada como um
SN pleno indenido por introduzir informação nova no texto; o carona, SN
pleno denido, por sua vez, está implicado na conceitualização de moto; ele e
a vítima retomam Rafael e são expressos, respectivamente, por pronome e SN
denido, uma vez que constituem informação dada; o tiro, codicado como
SN denido, recupera disparos, por correlação de equivalência semântica;
os bandidos, inferível com base no frame de assalto, refere-se ao carona e ao
piloto da moto (não mencionado no texto).
Os estudos clássicos sobre informatividade circunscrevem-se ao
estatuto informacional do SN, classicando-o em dado (ou velho) e novo e as
categorias intermediárias inferível e disponível. Essas categorias correspondem
à avaliação que o locutor faz do estado de ativação dos elementos referenciais
na memória do interlocutor.
Associada à informatividade, a perspectivação vincula-se ao
direcionamento da atenção sobre um evento referencial; isto é, tem a ver
com a focalização de aspectos especícos de uma cena (TOMASELLO,
1998). Nesse sentido, ao relatar um determinado evento ou descrever uma
dada situação, o usuário da língua escolhe um elemento particular como o
ponto de vista a partir do qual esse evento/situação é comunciado/a. É o
que ocorre, por exemplo, no título das manchetes em (4) e (5), nas quais se
noticia a saída do técnico do Santos.
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(4) Muricy Ramalho deixa o comando do Santos após dois anos
de trabalho
(Esporte Uol, disponível em: http://esporte.uol.com.br.
Acesso em: 31 mai. 2013)
5) Santos anuncia a demissão do técnico Muricy Ramalho
(R7 Esportes, disponível em: http://esportes.r7.com.
Acesso em: 31 mai. 2013)
No primeiro caso, além de a atenção focal ser mapeada em Muricy
Ramalho, com menor atenção no restante da informação, destaca-se o fato
de ele sair do comando do time. Já em (5), a atenção volta-se para o time,
a quem coube dispensar o técnico, enquanto o restante ca menos saliente
em termos cognitivos.
3.4 Categorização e prototipicidade
A categorização é um processo cognitivo de domínio geral no
sentido de que categorias perceptuais de vários tipos são criadas a partir
da experiência humana, independente da língua. No domínio linguístico,
a categorização diz respeito à semelhança ou identidade que ocorre
quando palavras e sintagmas e suas partes componentes são reconhecidas
e associadas a representações armazenadas. As categorias resultantes são
a base do sistema linguístico, sejam fonemas, morfemas, itens lexicais,
sintagmas ou construções (BYBEE, 2010).
Lakoff e Johnson (1999) armam que nosso sistema conceitual é
alicerçado e estruturado por um vasto conjunto de padrões recorrentes
de interações perceptuais. As estruturas dessas interações formulam a
compreensão de domínios conceituais mais abstratos.
Nessa perspectiva, a construção de conceitos relaciona-se às
experiências do ser humano no ambiente biofísico e sociocultural e são
esses conceitos que nos permitem caracterizar mentalmente as categorias
e raciocinar sobre elas. Cada categoria é conceitualizada em termos do
representante prototípico, aquele que reúne os traços recorrentes de que
se compõe essa categoria. Dessa forma, a classicação dá-se por meio
do elemento que exemplica o protótipo, enquanto os outros elementos
são classicados considerando as características mais próximas e as mais
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Revista do Gelne
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distantes em relação ao exemplar prototípico. Essa perspectiva não linear/
categórica e não discreta permite o tratamento escalar e contínuo de
aspectos gramaticais.
Segundo Rosch (1973), a prototipicidade é possivelmente uma
consequência de propriedades inerentes da percepção humana, como a
saliência cognitiva. Cada protótipo nos possibilita realizar um conjunto
de tarefas inferenciais ou imaginativas sobre uma dada categoria. Esse
processo envolve tanto a gradualidade (não discretude) quanto a xidez de
determinados traços ou propriedades.
Signica que, ao invés de serem denidas, em termos binários e
discretos, as coisas percebidas distribuem-se num continuum categorial,
em que alguns elementos localizam-se mais nos polos da escala, com
propriedades conceituais mais ou menos bem denidas, e outros se situam
em instâncias intermediárias, por compartilharem características de uma e
outra categoria.
Um exemplo disso pode ser dado com relação à categoria mamífero:
pela nossa experiência, não há diculdades em classicar um gato ou um
leão como pertencentes a tal categoria, por exibirem um conjunto de
propriedades (morfologia e hábitos) que nos permitem enquadrá-los nessa
classe. Nesse caso, representam, convencionalmente, protótipos (membros
centrais) dessa categoria. Já em relação a animais como peixe-boi ou morcego,
eles não são facilmente apontados como sendo também participantes da
mesma categoria, visto que, perceptualmente, afastam-se desse modelo,
situando-se num ponto mais periférico, em razão de apresentarem
características que, normalmente, não são associadas aos mamíferos, tais
como possuir nadadeiras e viver na água (no caso do peixe-boi) ou ter asas
e ser voador (no caso do morcego).
A categorização permeia nossa relação com o mundo físico e social
e com nosso intelecto. Entendemos o mundo não apenas em termos de
coisas individuais, mas também em termos de categorias de coisas. E isso se
dá também no domínio linguístico: do mesmo modo que categorizamos o
universo biofísico e sociocultural, categorizamos a língua. Tomemos como
exemplo a categoria transitividade e as orações destacadas em (6) e (7).
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(6) Ladrões explodem caixa eletrônico e agência ca totalmente destruída
Ladrões explodiram uma agência bancária localizada em
Ouro Verde do Oeste. Os suspeitos ainda efetuaram disparos
de arma de fogo para intimidar moradores das proximidades.
O caso aconteceu na madrugada deste sábado (18).
O impacto foi tão violento, que estilhaços foram lançados
a mais de 30 metros do local. A parte interna da agência
cou completamente destruída e até o momento não foi
conrmado se os ladrões conseguiram levar algum valor.
(Banda B, disponível em: http://www.bandab.com.br.
Acesso em: 31 mai. 2013)
(7) Dólar fecha no maior nível desde 2009, apesar da intervenção do
Banco Central
Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar à vista
– referência para as negociações no mercado nanceiro –
fechou essa sexta-feira (31) em alta de 1,3% em relação ao
real, cotado em R$ 2,137 na venda. É a maior cotação de
fechamento desde 5 de maio de 2009, quando cou em R$
2,153.
(Folha de São Paulo, disponível em: http://www1.folha.uol.
com.br. Acesso em: 31 mai. 2013)
Na perspectiva da linguística funcional, o evento transitivo prototípico
corresponde àquele em que um sujeito humano intencional provoca uma
mudança perceptível de estado ou de localização em um paciente inanimado.
Assim sendo, a oração sublinhada em (6) reúne essas propriedades: sujeito
humano volitivo (ladrões) que causa mudança de estado físico (destruição)
em objeto paciente inanimado (caixa eletrônico). Representa, portanto, um
caso de oração transitiva prototípica. Já o evento codicado pela oração
destacada em (7) afasta-se do protótipo no sentido de que o sujeito (o
dólar) não é humano, nem intencional, o verbo não indica ação (fechar, na
acepção de “encerrar cotação”) e não há objeto.
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3.5 Plano discursivo e saliência perceptual
A noção de plano discursivo refere-se à organização estrutural do
texto e compreende as dimensões de gura e fundo, cuja formulação
original se deve à Gestalt. Essas dimensões relacionam-se à percepção e à
cognição: as entidades que aparecem em primeiro plano (ou seja, as mais
salientes) são percebidas com mais nitidez e facilidade, enquanto as que se
encontram fora de destaque são menos aparentes e perceptíveis. Em termos
de discurso, essa distinção equivale à oposição entre central e periférico.
Givón (1995) relaciona a distinção entre gura e fundo ao critério
de frequência da marcação. Para ele, o elemento marcado, por ser menos
frequente e, portanto, com maior relevo perceptual, relaciona-se à gura.
Em contrapartida, aquilo que é textualmente mais abundante representa o
fundo, constituindo o caso não marcado.
Nos trabalhos linguísticos, a categoria plano foi utilizada, a princípio,
no estudo de narrativas, em que se buscava identicar a oposição entre
as sequências de movimento (a gura) e as estáticas (o fundo). Hopper
(1979), por exemplo, conrma a relação gura/fundo fazendo a distinção
entre os eventos dinâmicos, sobre os quais recaem o foco narrativo e
os quais são responsáveis pela progressão sequencial do enredo, e as
situações caracterizadas por observações e comentários do narrador,
as quais constituem o fundo, ou estruturas de segunda ordem. Uma das
particularidades interessantes nesse estudo é a relação que o autor faz entre
essa categoria e as noções de perfectividade (identicada com a gura) e
imperfectividade (representante do pano de fundo). O fragmento em (8)
ilustra essa oposição.
(8) Esta estória que eu vou contar aconteceu com um colega
de trabalho. Ele era “boy” na rma que eu trabalho, e tinha
sempre o costume de chegar cedo no serviço. Um belo dia,
notamos a falta dele, pois já passava das 10 h. e ele não
havia chegado. E visto ele ter o costume de chegar cedo,
começamos a car preocupados. Porém, por volta das 11
h. nalmente ele chegou, mas hesitou em dizer o motivo
do seu atraso. Entretanto, tínhamos uma amiga de nome
Adriana, que trabalhava conosco, na qual era muito achegada
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a ele. De modo, que timidamente, ele se aproximou dela e
disse: “Adriana, cai da barca!” Nisso todos morreram
de rir ao saber do motivo do seu atraso. (Corpus D&G/
Niterói, ensino médio, língua escrita).
Na amostra (8), os trechos em negrito correspondem à sequência
temporal dos eventos narrados, ou seja, à gura, ao passo que as demais
porções contextualizam o episódio, isto é, o fundo.
Martelotta (1998), entretanto, extrapolando o domínio da narrativa,
testa a possibilidade de aplicação desses conceitos em outros tipos de
estruturas textuais, demonstrando que as noções de gura e fundo também
podem ser extremamente úteis na análise de textos descritivos, procedurais
ou opinativos. Esse autor mostra, por exemplo, que um trecho narrativo
dentro de um contexto maior não narrativo assume o papel de fundo, pois,
nesse caso, está em posição secundária em relação ao foco central do texto,
servindo como elemento extensivo das informações de nível mais alto às
quais se subordina.
Ainda uma observação que precisa ser destacada é que, em situações
como essas, a sequência narrativa que se acha em segundo plano pode
apresentar-se, ao mesmo tempo, como gura em relação a outra não-
narrativa de nível mais inferior. Como ilustração, observe-se o seguinte
fragmento textual:
(9) ... há pouco tempo atrás houve dois casos que fez com que
ressuscitasse a polêmica da pena de morte no Brasil... foi o
assassinato da Dan/ da atriz Daniela Perez e de uma menina
que foi seqüestrada e depois queimada... as pessoas... pela
emoção... achavam que deveria ser implantado a pena de
morte... mas cada caso é um caso... (Corpus D&G/Natal, p.
313).
Essa parte representa um relato encaixado num contexto maior, cujo
tema central apoia-se na opinião do informante sobre a pena de morte.
Nesse caso, a sequência narrativa encontra-se num plano inferior (de fundo)
em relação ao foco principal do texto. Contudo, essa mesma sequência
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sobressai-se como gura quando comparada ao trecho em que o falante faz
o esclarecimento quanto à opinião das pessoas acerca dos acontecimentos
narrados. Este, portanto, constitui-se notoriamente um comentário à parte,
de nível secundário (isto é, com grau de saliência menor), em relação àquela.
Sendo assim, o caráter aparentemente binário dessa categoria analítica
necessita também ser concebido dentro de parâmetros escalares, a m de
cobrir os níveis intermediários de saliência com que se distribuem os feixes
informativos nos variados tipos de estruturas textuais. Essa escala poderia
oscilar entre -/+gura ou -/+fundo, dependendo da ótica de análise e do
ambiente discursivo-textual em foco.
3.6 Projeções metafóricas e metonímicas
Numa abordagem centrada no uso, é fundamental considerar os
mapeamentos cognitivos que se operam por meio de processos metafóricos
e metonímicos com vistas a dar conta de diferentes fenômenos sob análise.
Para essa perspectiva teórica, a metáfora representa um caso de operações
entre domínios cognitivo-conceituais, imprescindível no processamento
mental e no intercâmbio de signicação comunicativa.
Lakoff e Johnson (1999) assinalam que, nas metáforas comuns do
uso cotidiano, ocorrem mapeamentos entre domínios conceituais, em que
determinadas noções de um domínio são projetadas em outro. Ou seja, um
conceito é formulado em termos de outro pelo fato de compartilharem
alguma(s) correspondência(s) conceitual(is).
Consideremos, para exemplicação, o anúncio a seguir.
(10) Bem levinhas
Assim são as parcelas para você assinar as revistas Abril.
Assine já.
(Propaganda da editora Abril. Veja, 29 ago. 2012)
Para fazer a interpretação adequada da expressão “bem levinhas”,
que alude ao valor das parcelas mensais da assinatura das revistas, o leitor
precisa ativar (e correlacionar) conhecimentos de dois domínios distintos (o
das medidas de massa, mais relacionado à experiência física; e o do preço de
bens e serviços, mais ligado à convencionalização decorrente das relações
sociais, particularmente transações comerciais). Desse modo, o leitor, por
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meio do mapeamento desses dois domínios, chega ao entendimento de
que o valor da parcela é pequeno/ baixo (“levinho”), o que pode fazê-lo
adquirir o produto anunciado (propósito último da propaganda).
Na LFCU, a metáfora desempenha papel importante na
gramaticalização, no sentido de licenciar, mediante o processo de
inferenciação, o uso de um dado conceito de base mais concreta (em geral,
designado por um item lexical), vinculado a alguma experiência sensório-
motora, num contexto de signicação mais abstrata, o qual passa a assumir
certa função gramatical (SWEETSER, 1990; HEINE et al., 1991; HOPPER
e TRAUGOTT, 2003). Dadas a frequência e a produtividade com que tal
uso se manifesta na comunicação cotidiana, opera-se um novo arranjo
conceitual – e formal – que resulta, possivelmente, na xação de uma nova
construção gramatical.
Quanto à metonímia, ela é um componente básico do nosso aparato
racional, ou seja, do nosso sistema cognitivo. É focalizada como uma
questão de conceitualização, no sentido de que, em parte, responde pelo
processamento de determinadas formações conceituais.
Segundo Lakoff e Turner (1989), a metonímia constitui um
mapeamento dentro de um mesmo domínio conceitual, de modo que uma
entidade de um domínio pode ser utilizada para se reportar a uma outra
entidade desse mesmo domínio.
Para a LFCU, a metonímia desempenha papel fundamental no que
se refere ao processo de reanálise, decorrente da contiguidade e associação
conceituais entre os componentes linguísticos no curso da fala. Juntamente
com a analogia, a reanálise fornece base para a conguração de novos
padrões gramaticais. Em (11), há uma situação que ilustra bem esse processo.
(11) No Banco do Brasil, sua empresa tem crédito na mão.
(Propaganda do Banco do Brasil. Veja, 29 ago. 2012)
É possível compreender, com base no texto da propaganda
apresentada em (12), que o Banco disponibiliza recurso nanceiro (crédito)
a empresários (donos de empresa). Ou seja, os empresários têm acesso
ao dinheiro para realizar seus negócios (daí “crédito na mão”). Essa
compreensão é permitida pela proximidade conceitual (contiguidade) entre
os elementos linguísticos empregados (empresa, crédito, mão) e os termos
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ou ideias a que eles remetem/ dão acesso (empresário, recurso nanceiro,
posse).
As projeções metonímicas implicam uma transferência semântica
que se dá pela relação de contiguidade conceitual entre os elementos no
mundo biofísico e social. No ambiente linguístico, essa contiguidade ocorre
na linearidade da cadeia sintagmática e relaciona-se à interdependência
morfossintática entre as entidades envolvidas.
O domínio da negação no português do Brasil apresenta um caso de
reorganização metonímica (FURTADO DA CUNHA, 2000). É comum, em
orações negativas, o acréscimo de um não pós-verbal, originalmente introduzido
como um elemento de reforço opcional, conforme ocorre em (12).
(12) .. foi aí que eu fui ao... a um alergista... aí ele disse... “ah você
tem que se mudar do ambiente que você tá... que passa
muito ônibus... é muito... poluído... mude pra um ambiente
mais limpo... porque sua rinite num tá muito boa não”...
(Corpus D&G/Natal, p. 364)
À medida que a frequência de uso desse padrão aumenta, o marcador
pós-verbal perde sua natureza enfática e se torna regular. Assim, a negativa
dupla deixa de ser um modo “inesperado” de reforçar um ponto discursivo
e começa a ser interpretada como o modo “normal” de procedimento. Via
abdução, o falante cristaliza – ou gramaticaliza – o segundo não como parte
da própria estrutura negativa. Temos, então, estágios sucessivos de reanálise
para as construções negativas, em um processo contínuo de mudança na
atribuição de fronteiras (HOPPER; TRAUGOTT, 2003), como se vê a
seguir:
[[não + SV] não] > [não + SV + não] > não [SV + não] > [SV + não]
Metáfora e metonímia constituem, portanto, processos que permeiam
os fenômenos de mudança linguística, envolvendo, no primeiro caso, a
analogia e, no segundo, a reanálise.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, de acordo com a LFCU, a gramática é o resultado da
estruturação de fatores cognitivos e comunicativos da língua (TRAUGOTT,
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2004). Sendo assim, ela é constituída tanto de padrões regulares no nível dos
sons, das palavras e de unidades maiores, como os sintagmas e as orações,
quanto de formas emergentes, em decorrência da atuação desses fatores.
Para essa linha de pesquisa, fatores sócio-cognitivos entram em
ação no processamento das orações no discurso. Sendo assim, destacamos
a importância da utilização de informações contextuais na criação e
interpretação dessas orações, o que também implica uma visão adaptativo-
funcional do sistema linguístico que serve de base à comunicação verbal.
Nesse sentido, acolhemos uma concepção de gramática emergente, que
reete a criatividade humana para encontrar a forma ótima e expressiva
de comunicação em diferentes situações interacionais. Essa postura leva à
visão das orações possíveis de uma língua como não sendo resultantes da
união lógica de palavras que, juntas, formariam um sentido composicional,
mas como construções, que não podem ser compreendidas a partir da soma
dos sentidos dos elementos que as compõem.
Uma vez que a LFCU reconhece o estatuto fundamental das funções
da língua na descrição de suas formas, cada entidade linguística deve ser
denida com relação ao papel que ela desempenha nos processos reais
de comunicação. Em razão disso, procura essencialmente trabalhar com
dados reais de fala e/ou de escrita, inseridos em contextos efetivos de
comunicação, evitando lidar com frases criadas ad hoc, dissociadas de sua
função no ato comunicativo.
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