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O petróleo é uma importante fonte de energia e matéria-prima. Grande parte da produção brasileira vem de poços situados no mar. Para o óleo atingir o ambiente, bastam pequenas falhas na exploração, no transporte ou no processamento. Após um derrame, a melhor estratégia de recuperação é a que causa o menor impacto e facilita o restabelecimento do ecossistema. Isso pode ser obtido com a ajuda de algumas bactérias que, quando estimuladas, produzem substâncias detergentes, acelerando a regeneração ambiental. Por Natascha Krepsky (doutoranda), Frederico da Silva Sobrinho (doutorando) e Mirian Araújo C. Crapez, do Programa de Pós-graduação em Biologia Marinha da Universidade Federal Fluminense.
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PRIMEIRA LINHA
70CIÊNCIA HOJE • vol. 38 • nº 223
1975 na baía de Guanabara (RJ) e envolveu o car-
gueiro iraquiano Tarik Ibn Ziyad. Cerca de seis to-
neladas de óleo vazaram no canal central de navega-
ção da baía, atingindo praias nas cidades do Rio de
Janeiro e Niterói, dentro e fora da baía. Nesse aci-
dente, o óleo provocou incêndios nos manguezais ao
primeiro derrame de petróleo no ambiente
amplamente divulgado no Brasil aconteceu em
O
O petróleo é uma importante fonte de energia e matéria-prima. Grande parte da produção brasileira vem de
poços situados no mar. Para o óleo atingir o ambiente, bastam pequenas falhas na exploração, no
transporte ou no processamento. Após um derrame, a melhor estratégia de recuperação é a que causa o
menor impacto e facilita o restabelecimento do ecossistema. Isso pode ser obtido com a ajuda de algumas
bactérias que, quando estimuladas, produzem substâncias detergentes, acelerando a regeneração
ambiental. Por Natascha Krepsky (doutoranda), Frederico da Silva Sobrinho (doutorando) e Mirian
Araújo C. Crapez, do Programa de Pós-graduação em Biologia Marinha da Universidade Federal Fluminense.
BIOLOGIA MARINHA Microrganismos produzem substâncias que ajudam a despoluir ambientes
Biodetergentes
para limpeza de petróleo
redor da baía e afetou várias comunidades animais
(ver ‘Biorremediação’, em CH nº 179). Outros im-
portantes acidentes ocorreram ao longo da costa do
Brasil nos últimos anos, afetando inúmeros ecos-
sistemas, principalmente manguezais (ver ‘Derra-
mes no Brasil’).
A capacidade de recuperação dos ambientes
marinhos depende de fatores como a concentração
e composição do óleo, a forma como chegou ao am-
biente, a forma em que está (em solução, suspensão
ou ligado a matéria orgânica), o tempo de exposição
ao óleo, o número de níveis nutricionais afetados, a
existência de organismos juvenis e adultos no local,
o histórico da exposição dos organismos ao óleo, o
estresse ambiental (como presença de esgoto, varia-
ções de temperatura e salinidade e outros fatores), o
tipo de hábitat afetado e os meios usados para a reti-
rada do óleo (sistemas de tratamento de efluentes e
de descarte e/ou operações de limpeza).
No Brasil, grande parte das refinarias de petróleo
situa-se perto de saídas de rios e baías abrigadas –
locais com baixa hidrodinâmica, onde se formam
mangues, alagados e enseadas (figura 1). O sedimen-
to nesses ambientes, muito fino e rico em matéria
orgânica, é facilmente contaminado por hidrocar-
bonetos e outras substâncias do petróleo, muitas
Figura 1. As principais refinarias do Brasil, indicadas pelos
pontos vermelhos, estão situadas próximas a manguezais
(áreas em amarelo no mapa, ao longo da costa)
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delas tóxicas. Tais substâncias podem ser liberadas
lentamente por anos, o que pode desestabilizar a
comunidade de organismos do fundo marinho, re-
duzindo o oxigênio disponível, a degradação de
poluentes realizada por bactérias e retardando a
própria recuperação ambiental.
O petróleo nos organismos
Os organismos marinhos acumulam em seus tecidos
poluentes como metais, pesticidas e hidrocarbonetos
do petróleo, dependendo de sua disponibilidade e
da concentração na água do mar. A acumulação é
crescente na cadeia alimentar, sendo máxima nos
animais do topo dessa cadeia – processo denomina-
do biomagnificação. A incorporação do poluente po-
de ocorrer durante a alimentação com partículas ou
água contaminada. Peixes e invertebrados tendem a
acumular óleo nos tecidos ricos em lipídeos, como
fígado e gônadas, e a concentração pode ser elevada,
o que pode ser perigoso para o homem se esses or-
ganismos forem usados como alimento.
Organismos que vivem no fundo do mar, como
mexilhões e outros invertebrados, têm grande po-
tencial para acumular os hidrocarbonetos de petró-
leo que se depositam no sedimento. Após um derra-
me de óleo, organismos oportunistas (como poli-
quetos e bactérias degradadoras de petróleo), capa-
zes de usar esses compostos como fonte de carbono e
com rápida taxa de geração, têm suas populações
aumentadas em relação a outras espécies.
Todos os organismos vivos são suscetíveis aos efei-
tos dos hidrocarbonetos de petróleo, que podem ata-
car células e outras estruturas (figura 2). Derrames
de petróleo podem destruir totalmente as comuni-
dades marinhas da região afetada. Com isso, sofrem
sérios riscos em atividades como a pesca, muito im-
portante em regiões costeiras. Durante um período
que pode durar anos, após um derrame, o ambiente
será repovoado por espécies oportunistas ou não.
Como esse processo é muito lento, espécies nativas
ou endêmicas podem desaparecer.
Bactérias devoradoras de petróleo
Alguns microrganismos, como bactérias e fungos,
podem utilizar hidrocarbonetos como fonte de car-
bono e energia, eliminando com o tempo esses po-
luentes. Em áreas sujeitas a poluição crônica por
óleo e em águas costeiras e estuarinas existem mui-
tas bactérias (livres na água ou aderidas ao sedi-
mento e a outras estruturas) que resistem às altas
concentrações de hidrocarbonetos ou são capazes de
biodegradá-los. Esses microrganismos apresentam
alterações, como mudanças nas proteínas da mem-
brana celular, que permitem a remoção dos hidro-
carbonetos da membrana, evitando danos à célula.
Assim, se especializaram na degradação de hidro-
carbonetos.
O estudo desses organismos tornou possível pro-
por uma nova ferramenta para a recuperação de
Derrames no Brasil
Na última década, ocorreram no Brasil em torno de
30 acidentes mais sérios com vazamento de petróleo
ou derivados. Os piores foram:
MAIO DE 1994 – Rompimento de duto e vazamen-
to de 2,7 milhões de litros de petróleo em São Se-
bastião (SP), poluindo 18 praias.
MARÇO DE 1997 – Rompimento de duto da refina-
ria Duque de Caxias (RJ) e vazamento de 2,8 milhões
de litros de petróleo, atingindo 4 mil m2 de mangues
da baía da Guanabara.
JANEIRO DE 2000 – Rompimento de duto da refina-
ria Duque de Caxias (RJ) e vazamento de 1,3 milhão
de litros de óleo combustível na baía da Guanabara,
afetando uma área de 40 km2.
JULHO DE 2000 – Rompimento de duto da refinaria
Getúlio Vargas (PR) e vazamento de 4 milhões de li-
tros de petróleo nos rios Birigui e Iguaçu (maior de-
sastre ambiental com petróleo e derivados no país).
NOVEMBRO DE 2004 – Explosão do navio chileno
Vicuña no porto de Paranaguá (PR) e vazamento de 1,5
milhão de litros de óleo combustível, afetando boa
parte da baía, inclusive áreas de preservação ambiental.
Figura 2. Efeitos da contaminação por hidrocarbonetos
de petróleo em indivíduos de diferentes organismos:
vegetais (V), invertebrados (I), peixes (P), anfíbios
e répteis (A/R), aves (Av.) e mamíferos (M).
Vegetais têm sua taxa de fotossíntese alterada e vegetais,
peixes e aves também sofrem mudanças populacionais
e alterações na estrutura da sociedade
Efeitos V I P A/R Av. M
Morte 
Reprodução alterada 
Crescimento reduzido 
Comportamento alterado 
Malformação congênita 
Sistema imune afetado
Circulação afetada 
Respiração afetada 
Tumores e lesões  
Câncer  
Obs.: Adaptado de Crapez, ‘Efeito dos hidrocarbonetos de petróleo na biota
marinha’, in Efeitos dos poluentes nos organismos, 2001
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ambientes contaminados: a biorremediação. Essa
tecnologia propõe o uso intencional dos processos
bioquímicos bacterianos para degradar contami-
nantes ambientais ou atenuar seus efeitos. A biode-
gradação depende da temperatura e da salinidade,
da taxa de oxigênio dissolvido, da disponibilidade
de nutrientes, do tipo de óleo e do ambiente afetado.
Tais óleos são uma rica fonte de matéria orgânica e
seus hidrocarbonetos podem ser consumidos e trans-
formados por uma variedade de microrganismos.
Essa transformação é importante na natureza e pode
ser utilizada em tratamento de água, na produção
de gás natural e na biorremediação.
A vida em sociedade
Bactérias são organismos muito pequenos, menores
que 1 micrômetro (1m), ou seja, um bilionésimo do
metro. Para contornar as dificuldades desse tama-
nho mínimo, as bactérias são capazes de aderir a
superfícies inertes ou biológicas, sintetizando uma
matriz composta de proteínas, carboidratos e/ou
lipídeos. A partir dessa estrutura, o biofilme, outras
bactérias e microrganismos passam a constituir uma
comunidade, que exibe taxas metabólicas, cresci-
mento e atividade genética peculiares (figura 3).
No ambiente marinho, os biofilmes bacterianos
aderem às superfícies e/ou a outros organismos, colo-
nizando, por exemplo, sedimentos depositados e su-
perfícies de partículas minerais e orgânicas. Do pon-
to de vista ecológico, essa colonização é vantajosa,
pois direciona, através de sinalização química, mi-
crorganismos para locais específicos. Assim, a ade-
são de uma primeira espécie pode atrair e facilitar a
chegada de outras, estimulando relações simbióticas
tão comuns na natureza. Os produtos do metabolis-
mo de um organismo podem servir para o crescimen-
to de outros, tornando o poder de degradação do agre-
gado maior que o de cada organismo isolado.
No ambiente é comum a formação de populações
heterogêneas de bactérias com metabolismos varia-
dos – o chamado consórcio bacteriano. Alguns orga-
nismos do consórcio podem formar biofilme, o que
dá às bactérias fácil acesso às enzimas responsáveis
pela decomposição de substratos (dissolvidos e
particulados) e também de compostos que poderão
ser usados para respiração alternativa, se faltar oxi-
gênio. Essa estratégia garante a sobrevivência dos
organismos dos consórcios em condições extremas
como elevada acidez ou alcalinidade, aumento de
temperatura, presença de radicais livres, poluição
por hidrocarbonetos e outras.
Para as bactérias que degradam substâncias como
o petróleo, é fundamental a ação de enzimas capa-
zes de quebrar moléculas grandes, gerando partes
menores que poderão entrar nas células através de
suas membranas. No entanto, para serem degrada-
das pelas bactérias, tanto as substâncias com afini-
dade por óleo (hidrofóbicas) quanto aquelas com
afinidade por água (hidrofílicas) devem ser mistu-
radas em água. E as próprias bactérias encontraram
um modo de fazer isso.
Os biodetergentes
Microrganismos como bactérias e fungos produzem,
quando estimulados, certas substâncias que agem
como detergentes naturais. Entre esses organismos
estão bactérias dos gêneros Candida, Pseudomonas,
Bacillus e outros. Os biodetergentes promovem a mis-
tura (emulsão) de compostos como água e óleo, o que
normalmente não acontece devido à alta tensão de
superfície da água. Esses produtos biológicos são co-
nhecidos como biossurfactantes (o termo surfactante
Figura 3. Consórcios de bactérias (as formas
arredondadas) podem se agrupar em biofilmes – como
mostra a imagem em microscopia eletrônica de varredura
(aumento de 10 mil vezes). Na imagem, os resíduos
de uma estrutura em forma de rede (pouco preservada
na preparação das amostras para microscopia) são da
substância que envolve e protege as bactérias no biofilme
Figura 4. Atuação de biodetergente na interface
de uma solução contendo óleo e água: a parte hidrofóbica
da molécula (aminoácidos, por exemplo) interage com
o óleo, enquanto a parte hidrofílica (polissacarídeos, por
exemplo) interage com a água, o que permite a emulsão
das duas fases, até então incapazes de se misturar
FOTO N. KREPSKY E ULISSES LINS
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B
foi criado a partir de partes da expressão inglesa
surface active agents – agentes ativos na superfície.
A produção desses biodetergentes pelas bacté-
rias degradadoras de petróleo é fundamental para o
crescimento de sua população em locais atingidos
por derrames e facilita a biorremediação de hidro-
carbonetos não solúveis em água. A molécula do
biodetergente tem duas partes, uma com afinidade
por água e a outra por óleo (figura 4), e a superfície
da bactéria se altera com a produção dessa substân-
cia, facilitando a aderência ao hidrocarboneto sem
danificar a membrana. Além disso, o biodetergente
estabiliza a gota de óleo emulsificada, aumentando
a área da bactéria exposta a este. Uma vez aderidas
ao óleo através do biodetergente, as bactérias po-
dem formar emulsões muito pequenas na membra-
na externa ou consumir o poluente.
Em laboratório é possível selecionar e estimular
a produção de biodetergentes por consórcios bac-
terianos obtidos em ambientes atingidos por petróleo
ou outros poluentes (figura 5). Em 2002, o Laborató-
rio de Microbiologia Marinha da Universidade Fede-
ral Fluminense, com apoio financeiro da Agência Na-
cional do Petróleo, iniciou o estudo de processos para
estimular essa produção, e todos os consórcios isola-
dos em sedimento de mangue atingido por óleo apre-
sentaram produção de biossurfactantes.
Um biodetergente é considerado eficiente na pro-
moção da mistura ‘óleo-água’ quando reduz a tensão
de superfície da água a um nível que permita a
emulsão do óleo em temperatura ambiente. A con-
centração de sal no meio de cultura, a quantidade
de nutrientes disponível e o local de coleta dos mi-
crorganismos foram fatores fundamentais para o
sucesso dos experimentos.
Verificou-se que a capacidade de emulsificar de-
rivados de petróleos independe da idade dos consór-
cios. Além disso, um mesmo detergente foi capaz de
emulsificar de diferentes formas compostos com
diferentes densidades. Por exemplo, a gasolina e o
querosene apresentaram ‘emulsões água-no-óleo’,
enquanto o petróleo ‘árabe leve’ apresentou emulsi-
ficação ‘óleo-na-água’ (figura 6).
Os estudos mostraram ser possível isolar consór-
cios bacterianos produtores de biodetergentes capa-
zes de misturar óleo e água de diferentes formas. A
diversidade de ação é importante, pois permite o
uso desses detergentes em locais onde o tipo de óleo
poluente é desconhecido, e em acidentes que envol-
vam tanto a água (coluna d’água e lençóis freáticos)
quanto o sedimento.
Muitas aplicações
Além do emprego para recuperação ambiental já
citado, os biodetergentes são usados ainda na reti-
rada de metais pesados do ambiente, na perfuração
e exploração de poços de petróleo, na manipulação
e transporte de combustíveis e em variadas indús-
trias (alimentos, medicamentos, cosméticos, mate-
riais de construção e outras) para formar e estabi-
lizar emulsões e como detergentes, dispersantes,
umectantes, espumantes e antiespumantes.
O uso de biodetergentes na recuperação de de-
sastres ambientais já foi adotado em várias ocasiões
e é uma tendência mundial. No Brasil, é um recurso
fundamental para a remediação de ambientes deli-
cados como as baías da Guanabara e de Paranaguá.
A maior dificuldade para isso é o alto custo da pro-
dução em grande escala desses detergentes. Tendo
isso em mente, nosso grupo de pesquisa buscou adap-
tar a metodologia de isolamento e seleção de bacté-
rias produtoras de surfactante à realidade dos labo-
ratórios brasileiros, usando recursos baratos e aces-
síveis (água do mar, carboidratos e consórcios bac-
terianos isolados do ambiente contaminado). No en-
tanto, para que o Brasil possa competir internacio-
nalmente, empregando uma tecnologia de ponta com
menores danos ao meio ambiente e maior eficiência
de limpeza, é necessário o constante investimento
do governo e de empresas ligadas ao petróleo nesse
tipo de pesquisa aplicada.
Figura 6.
A eficiência
do biodetergente
foi verificada
adicionando
petróleo do tipo
árabe leve em
água do mar
sem e com
o biodetergente.
Na presença
do biodetergente
houve a total
emulsificação do
petróleo na água
do mar, mesmo
após 24 horas
de experimento
Figura 5. Placa de Petri contendo meio de cultura
que permite a seleção de colônias de bactérias produtoras
de biodetergentes (A). Essa mesma colônia, quando
observada com aumento de mil vezes em microscópio
de epifluorescência (B), apresenta vários tipos (cocos
e bastonetes), caracterizando um consórcio bacteriano
FOTOS N. KREPSKY
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