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http://dx.doi.org/10.15448/1980-864X.2020.1.36709
ESTUDOS
IBERO-AMERICANOS
Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 1-11, jan.-abr. 2020
e-ISSN: 1980-864X | ISSN-L: 0101-4064
Artigo está licenciado sob forma de uma licença
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
Daniel Aarão Reis2
orcid.org/0000-0003-0562-8940
daniel.aaraoreis@gmail.com
Recebido em: 23 dez. 2019.
Aprovado em: 5 jan. 2020.
Publicado em: 28 abr. 2020.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo, em um primeiro momento,
oferecer uma análise do fenômeno do bolsonarismo – conjunto de propostas e
valores associados à ascensão política de Jair Bolsonaro ao governo da República
brasileira. Em um segundo momento, haverá uma discussão preliminar sobre
o caráter do governo Bolsonaro e das alianças que o apoiam e o sustentam.
Palavras-chave: Direitas. Autoritarismo. Governo Bolsonaro.
Abstract: This article aims, at rst, to oer an analysis of the phenomenon of
Bolsonaro government - a set of proposals and values associated with the political
rise of Jair Bolsonaro to the government of the Republic. Secondly, there will be
a preliminary discussion about the character of the Bolsonaro government and
the alliances that support and sustain it.
Keywords: Right. Authoritarianism. Bolsonaro government.
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo, en primer lugar, ofrecer un análisis
del fenómeno de el bolsonarismo: un conjunto de propuestas y valores asocia-
dos con el ascenso político de Jair Bolsonaro al gobierno de la República. En
segundo lugar, habrá una discusión preliminar sobre el carácter del gobierno de
Bolsonaro y las alianzas que lo apoyan y sostienen.
Palavras clave: Derecha. Autoritarismo. Gobierno de Bolsonaro
Introdução: o contexto internacional da ascensão do
bolsonarismo
O bolsonarismo, em seus aspectos essenciais, não é um fenômeno apenas
brasileiro. Insere-se em um contexto internacional de reação a mutações
percebidas como ameaças mortais a tradições, valores e costumes.
Tais mutações constituem o cerne de um processo histórico que
remonta os anos 1960 do século XX, quando se evidenciou a existência de
uma grande revolução cientíco-tecnológica, que passou a subverter e a
transformar, em profundidade, e em uma velocidade inaudita, a sociedade,
a cultura, a política, a economia e os valores prevalecentes até então,
sobretudo, mas não apenas, na área do capitalismo mais desenvolvido.
Também chamada de revolução digital ou informática, esse processo,
nestes últimos cinquenta anos, tem mudado as condições de vida e de
trabalho de quase toda a humanidade.
TRIBUNA
Notas para a compreensão do bolsonarismo1
Notes for understanding the Bolsonaro Government
Notas para entender el bolsonarismo
1 O presente artigo é uma ampliação, e o aprofundamento, em alguns pontos, de um outro: Ascensão e caráter do bolsonarismo, pu-
blicado pelo site Marxismo 21, em fins de novembro de 2019. Disponível em: https://marxismo21.org/o-governo-bolsonaro-e-perspecti-
vas-de-esquerda/. Acesso em: 22 dez. 2019.
2 Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.
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Conguraram-se e se consolidaram como
tendências ou aspectos principais dessa revolução,
no campo econômico-social: a hegemonia do
grande capital nanceiro e suas propostas de
desregulamentação dos mercados e privatização
das atividades econômicas; a expansão e a
consolidação dos chamados paraísos nanceiros,
onde se hospedam vultosos capitais, livres de
fiscalização e tributação; o enfraquecimento
da capacidade de decisão e de intervenção
dos Estados Nacionais face ao livre uxo de
capitais, a instâncias internacionais e, no caso
europeu, face às decisões da tecnocracia que
rege importantes segmentos da vida econômica
e social do continente; o surgimento de novos
setores no campo da economia e da ciência
(informática, biotecnologia, robótica, novos
materiais, inteligência artificial etc.); o uso
extensivo e intensivo dos dispositivos criados pela
informática (internet, mídias sociais, novos meios
de comunicação etc.); o declínio demográco da
classe operária, principalmente na Europa e nos
Estados Unidos, associado ao aparecimento de
novas atividades prossionais e a extinção de
diversas prossões tradicionais; a precarização
e “informalização” das condições de trabalho de
crescentes segmentos da população que vive de
salários; a precarização e gradual degradação dos
serviços públicos, mesmo ali onde tais serviços,
em passado recente, tinham adquirido notável
qualidade; a marginalização e a obsolescência de
práticas e saberes tradicionais e consagrados; o
surgimento das questões e lutas identitárias, dando
vazão a demandas longamente reprimidas, mas,
ao mesmo tempo, fragmentando o campo dos
movimentos sociais populares e da crítica ao poder;
e o aumento brutal das desigualdades sociais
e regionais, mesmo em países que registraram
notável prosperidade, como a Índia e a China.
No campo político-institucional, podem-se
destacar: a autonomização/”aristocratização”
das instituições associadas à democracia
3 A partir de então, e ao longo dos últimos cinquenta anos, cabe registrar que nenhum processo de lutas ou de mudanças, em larga
escala, teve partidos e sindicatos como iniciadores ou como protagonistas de primeira grandeza. Cf. Daniel Aarão Reis, 2018
4 N. Fraser, 2007.
5 Cf. Timothy Garton Ash, 2009, em particular o cap. 3 (p. 161-212), onde se analisa a questão dos estereótipos construídos a respeito
do fundamentalismo islâmico.
representativa (políticas e jurídicas), conduzindo a
um progressivo descrédito dos partidos políticos
e sindicatos, sobretudo entre a juventude e
as classes populares; a curva ascendente do
desinteresse, do absenteísmo e de uma cultura
política “cínica” baseada na desmoralização da
mal chamada “classe política”; o uso pervasivo
das mídias sociais no contexto das lutas e
embates políticos, seja para propagandear
as próprias propostas, seja para desmoralizar
as dos adversários (fake news); a irrupção de
movimentos sociais autônomos em relação às
instituições existentes, com demandas concretas,
mas que, uma vez reprimidos, têm sido capazes
de protagonizar revoltas sociais de grande
amplitude. Em relação a esse último aspecto,
cabe assinalar que se trata de um movimento
universal, que remonta aos anos 1960, quando
a ordem existente – capitalista e socialista – foi
chacoalhada em seus fundamentos suscitando
surpresa e perplexidade nas instituições políticas.
3
Como resultado dessa revolução, construiu-
se um mundo de “areias movediças” ou uma
“sociedade da insegurança”
4
, percebida como
ameaçadora e desestabilizante por importantes
setores sociais, desorientados ou/e amedrontados
em virtude das mudanças radicais em curso.
A irrupção de múltiplas ações terroristas,
principalmente a partir de 2001, contribuiu,
evidentemente, para o acirramento dos medos
e para a aprovação de políticas securitárias que
vêm pondo em risco as liberdades democráticas.
5
Todas essas referências registradas acima
tenderam a se acentuar e a se radicalizar a partir
da crise econômica iniciada em 2008, porque, ao
invés de jogar o peso da superação da crise sobre
os ombros dos capitais nanceiros, em particular
sobre aqueles que faziam da especulação
nanceira sua atividade principal, tributando-
os, reduzindo e regulamentando suas margens
de ação, os diversos governos, ao contrário,
zeram um gigantesco esforço para recuperar a
Daniel Aarão Reis
Notas para a compreensão do bolsonarismo 3/11
economia às custas dos procedimentos habituais
de “socialização das perdas”, penalizando os
assalariados e a qualidade dos serviços públicos.
Mesmo ali onde partidos social-democratas,
liberal-sociais ou reformistas de diferentes tipos
exerciam o poder, isoladamente ou em coligação,
muito ou pouco, em muitos casos, quase nada, foi
feito em benefício das grandes massas dos que
vivem de seu trabalho. Muito pouco, ou quase
nada, foi feito em termos de uma crítica radical
à hegemonia dos capitais nanceiros e à sua
prática de rapina em larga escala. Prevaleceu,
ao contrário, uma política de gestão da crise,
de apaziguamento e de capitulação face aos
interesses destes capitais.
É verdade que certos Estados Nacionais,
como a China, a Rússia e a Índia, criaram ou
aperfeiçoaram políticas e mecanismos de controle,
de regulamentação e de gestão centralizada da
economia. Não por acaso, conseguiram manter
as respectivas sociedades parcialmente a salvo
dos efeitos mais deletérios da crise. No entanto,
também eles não têm escapado às grandes
tendências impostas pela revolução cientíco-
tecnológica e, não raro, para manter níveis de
competitividade internacional, e apesar de
índices positivos de crescimento, deixaram uir,
ou mostraram-se incapazes de deter, o processo
geral de aumento das desigualdades sociais e
regionais, reprimindo pela violência tentativas de
crítica e de elaboração de alternativas.
É nesse quadro que têm surgido, às vezes com
violência, movimentos sociais, motins urbanos e
revoltas sociais em todos os continentes. Como
referido acima, brotam por fora das instituições,
procuram caminhos, registram aqui e ali o
atendimento de reivindicações parciais, porém,
quase sempre, esgotam-se sem conseguir impor
mudanças signicativas. Apesar disso, constituem,
6 Muitos autores ou/e políticos referem-se a esta tendência como “populismo de direita”. Preferimos, por maior precisão, chamá-la de rea-
ção nacionalista ou nacionalismo de direita. Cf. para a defesa da primeira posição, Simon Torney (2018, p. 61-101), em particular o cap. 3, onde
são analisadas as razões que têm desgastado os regimes democráticos. Voltaremos a considerar o assunto na segunda parte do artigo.
7 As ameaças ao regime democrático, veladas ou explícitas, integram o processo da reação nacionalista de extrema-direita e têm sus-
citado alarma e consternação. Cf., entre os lançamentos mais recentes: Adam Przeworski (2019), sem dúvida o estudo mais abrangente
sobre a crise da democracia, com estudo de crises ocorridas no passado (século XX), diagnósticos sobre a crise atual e tentativa prospec-
tiva. Seu objeto, entretanto, limita-se às sociedades capitalistas desenvolvidas. David Runciman (2018, p. 129-175), cap. 3 e Steven Levitsky
e Daniel Ziblatt (2018, p. 76-98), cap. 4, são obras úteis, mas é preciso ressaltar que também trabalham com as sociedades europeias e
estadunidense, não havendo referências específicas sobre a Ásia, África ou América Latina. Sobre a crise da democracia, de um ângulo
jurídico-político, cf. Tom Ginsburg e Aziz Z. Huq (2018); David Landau (2013) e David Strauss (2018), todos também dedicados aos EUA.
pela própria existência e dinâmica interna, o aspecto
mais promissor do atual quadro, requerendo
análises concretas, avaliações e balanços críticos,
sem falar na necessidade de propostas alternativas
para cada sociedade e a indispensável elaboração
de uma articulação internacional.
Entretanto, ao lado desses movimentos
de contestação, e também criticando as
consequências suscitadas pela revolução digital,
cresceu exponencialmente em anos recentes um
outro tipo de processo: a reação nacionalista6.
A reação nacionalista ou nacionalismo de
direita tem aparecido com grande força nos EUA
(fenômeno Trump), na Europa Ocidental (Itália,
França, Inglaterra), na Europa central (Hungria
e Polônia), na Ásia (Filipinas e Índia), no mundo
muçulmano (Irã e Egito) e na América Latina (Brasil,
Chile, Colômbia). Trata-se de uma extrema-direita
descomplexada, ativa e propositiva, de grande
ativismo público, com frequentes incursões nas
ruas, explorando as insuciências e deciências
dos regimes democráticos, instrumentalizando-
os quando convém, desgurando-os “por dentro”
e usando intensamente os mecanismos próprios
da revolução digital.
Em cada lugar assume, evidentemente,
aspectos próprios que precisam ser analisados
concretamente. Em relação ao Brasil, voltaremos
ao assunto na segunda parte deste artigo. Neste
momento importa considerar seis aspectos centrais:
o nacionalismo extremado de suas propostas; sua
visada internacional, evidenciada em tentativas
e práticas de articulação orgânica; seu viés
visceralmente antidemocrático
7
; o conservadorismo
social e religioso; a conquista, obtida através de uma
ascensão fulminante, da condição de ator relevante
e incontornável da luta política; e, nalmente, a
capacidade de integrar e ser conuência de um
conjunto de tendências de direita, cuja força se
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potencializa no quadro da reação nacionalista.
De fato, tem sido possível encontrar no seu
interior tendências nacionalistas recentes; direitas
tradicionais arcaizantes; nostálgicos do passado
fascista/nazista e dos corporativos estatais
autoritários
8
; direitas fundamentalistas religiosas;
representantes de instituições repressivas (polícia
e forças armadas) e direitas modernizantes liberais.
Uma aliança instável, original, de novo tipo. As
tentativas de reduzi-la a um de seus componentes
tendem a perder de vistas as especicidades do
novo animal político que surgiu nesse momento
histórico e que nada indica possa ser enfraquecido
ou superado a curto e a médio prazos.
Caberia, ainda, mencionar aspectos especícos
da América Latina e que têm contribuído para
a ascensão da reação nacionalista nesse
continente. Em relação ao Brasil, a crise
econômica de 2008 bateu forte em nossas
paragens, embora muito subestimada na última
fase do segundo governo Lula. Despencaram
os preços das commodities que haviam sido a
locomotiva da prosperidade latino-americana
nos primeiros anos do novo século. Diminuíram,
assim, as margens econômicas para políticas
redistributivas. Por outro lado, os governos
nacional-estatistas, emparedados por suas
opções e políticas conciliatórias, não ousaram
(não é sua tradição) recorrer à mobilização e à
organização popular que fossem capazes de
apoiar e sustentar políticas alternativas. Nada
foi feito neste sentido. De sorte que, um pouco
por toda a parte, as gentes desarmaram-se para
compreender e enfrentar os fenômenos que
estavam acontecendo ou viriam a acontecer.
Prevaleceu o incentivo a esperar tudo do Estado,
a olhar para cima, que os “cuidados” e a “salvação”
viriam do alto, pacicamente. O reformismo
“mole”. A crise das políticas nacional-estatistas,
que recentemente ganharam novo fôlego na
Argentina e no México, devido a desastrosas
gestões liberais, foi uma importante munição
8 A presença de núcleos nostálgicos do fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita tem levado muitos
a apresentar este fenômeno novo e específico como uma ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930. Para a especificidade do
nazi-fascismo, que dispõe de abundante bibliografia,cf. Emilio Gentile, 2005, sobretudo a II Parte (pp 169-375) e Robert Paxton, 2007, em
particular os capítulos 7 e 8 (pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton, cf. pp 358-361. Cf. ainda os
estudos clássicos de Renzo Felice, 1977; e Zeev Sternhell, 1994. Para o corporativismo estatal, cf. Antonio Costa Pinto, 2014.
para a ascensão da reação nacionalista que
efetua comparações entre o nacional-estatismo
e o fenômeno do comunismo internacional que
assombrou essa parte do mundo desde os
anos 1920, acentuando-se a partir da vitória da
revolução cubana, em 1959.
Em toda a parte, a extrema-direita tem
levantado a cabeça. E continuará, no mínimo, por
um bom tempo, com a cabeça bem levantada,
intimidando e ameaçando.
O bolsonarismo é a face brasileira desse
fenômeno.
Como compreender, nas condições brasileiras,
seu crescimento fulminante?
1 A ascensão do bolsonarismo no Brasil
Como tudo o que acontece na história, o
bolsonarismo não caiu como um raio de um céu azul,
embora muitos, até hoje, ainda o ressintam como tal.
Para compreender o fenômeno, proponho o
entrelaçamento de três dimensões. Analisar as
tradições autoritárias que marcam a história da
sociedade brasileira. Compreender a grande
conjuntura que se estende a partir da aprovação
da Constituição de 1988 até o ano de 2018,
quando se vericaram as eleições presidenciais.
Finalmente, a campanha eleitoral ou a conjuntura
política curta, que acrescentou importantes – e
decisivos – ingredientes para entender a vitória
de Jair Bolsonaro. Penso que só o agenciamento
dessas três dimensões – a longa, a média e a
curta durações – é que será capaz de oferecer
subsídios para que se compreenda a vitória
eleitoral da reação nacionalista de extrema-
direita em nosso país.
1.1 As tradições autoritárias
Em relação às tradições autoritárias, antes e
durante muito tempo subestimadas, é notável
como a atenção dos estudiosos têm se voltado
para sua análise. Eu seria o último a lamentar
o fato. Desde início deste século, em livros
Daniel Aarão Reis
Notas para a compreensão do bolsonarismo 5/11
e artigos, tenho enfatizado a importância de
compreendermos como as duas ditaduras
modernizantes que marcaram a história do País ao
longo do século XX – o estado novo (1937-1945) e a
ditadura civil-militar (1964-1979) – estabeleceram
o que chamei de “relações complexas” com a
sociedade brasileira. Ao contrário de um certo
senso comum, não foram apenas estabelecidas
“de cima para baixo”, não subsistiram apenas em
virtude da ação dos aparelhos repressivos (embora
esses, evidentemente, tenham desempenhado
importante papel), não foram apoiadas apenas
pelas “elites” ou “classes” dominantes, porém,
segundo as conjunturas, construíram relações
de aceitação, de indiferença, de neutralidade
ou de apoio ativo e ostensivo com numerosos
segmentos sociais (empresariado, forças
armadas, burocracia civil estatal, intelectuais,
classes médias e segmentos populares). Em
torno das duas ditaduras, em alguns momentos,
foi possível construir um consenso social
signicativo o que muito explica sua instauração
pacífica, sua duração e os processos que
levaram a sua superação. Importantes trabalhos
historiográcos têm evidenciado a adequação
dessa proposta interpretativa
9
. Sem embargo,
muitos continuaram embalados pela anunciada
“democracia consolidada” e pela interpretação
de que as classes populares, salvo operações
de “maquiagem” ou/e de “manipulação”,
permaneciam infensas à ditadura e a seus valores
autoritários. Caíram agora das nuvens, o que é
sempre melhor, como recordava Machado de
Assis, do que cair do terceiro andar de um prédio.
Recente livro relacionou com minúcias as
modalidades principais em que se apoiam as
tradições autoritárias no Brasil
10
: o racismo e as mal
superadas relações escravistas; o mandonismo,
produto das relações agrárias; o patrimonialismo;
a corrupção; a desigualdade social; a violência;
a intolerância; a discriminação de raça e gênero.
Um passado que se recusa a passar, que continua
9 Entre outros, mencionaria Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti, (2014); Rodrigo Patto Sá Motta (2014); Denise
Rollemberg (2008, 2010, 2010a); Lucia Grinberg (2009); Janaína Cordeiro (2015); Gustavo Ferreira (2015); Tatyana Maia (2012); Paulo Cesar
Gomes (2019); Lívia Magalhães (2014).
10 Lila Moritz Schwarcz (2019). E, também, Heloísa Murgel Starling (2019).
11 Cf. Juan Lins e Alfred Stepan (1978) e Juan Linz (2000).
dificultando progressos sociais e culturais.
Fantasmas que permanecem assombrando,
condicionando, apesar das mutações realizadas,
a história da sociedade nas últimas décadas.
Trata-se de referências exatas e indispensáveis
para compreender o presente, desde que não
expulsem da análise opções políticas que foram
adotadas e que contribuíram, em não pequena
medida, para acentuá-las e torná-las vivas e
operantes no presente momento.
Na consideração das tradições, porém, é
necessário estabelecer mediações. Houve um
momento, nos anos 1970, em que se tornou comum
atribuir a onda de ditaduras na América Latina às
“nossas raízes ibéricas”, autoritárias, excludentes,
intolerantes11. O que não impediu, nessa mesma
década, que as sociedades/berços históricos desta
civilização – Portugal e Espanha – empreendessem
notáveis e exitosos processos de transição
democrática. Terão sido então vencidas essas
tradições? Uma resposta positiva à questão seria
de uma pobreza franciscana. Ocorreu que foram
redenidas por ações e decisões que souberam
lidar com elas. Como sempre recordava o escritor
israelense, Amos Oz, o passado nos foi entregue,
não fomos entregues ao passado. Em outra
formulação, também do mesmo escritor: o passado
nos pertence, não pertencemos ao passado.
O que evidenciam esses exemplos? Que
tradições, por mais fortes que sejam, não exaurem
a análise, por mais robustas, historicamente, não
podem e não devem expulsar dos radares as lutas
políticas e sociais e as opções que as vertebram.
Em suma, a história não pode anular ou excluir
a política, ou melhor, as tradições não podem
expulsar a política da história.
De sorte que, sem ignorar ou minimizar as
tradições autoritárias, cumpre integrar na análise
referências da média duração (grande conjuntura
entre 1988/2018) e da curta duração (campanha
eleitoral de 2018).
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1.2 A média duração: a grande conjuntura
1988/2018
Tem sido recentemente enfatizada a crise
terminal da “Nova República”, sobretudo
depois da reeleição de Dilma Roussef para um
segundo mandato, em 2014. Rompeu-se, então,
o consenso quanto aos resultados eleitorais,
fossem eles quais fossem, e se passou a atacar a
presidente eleita de forma ostensiva, culminando
na aprovação do impeachment da mesma, em
2016, um instrumento autoritário por excelência.12
Nas eleições de 2018, ao contrário das anteriores,
os embates já não se deram entre tucanos
vs. petistas, crescendo “por fora”, de maneira
fulminante, a candidatura de Jair Bolsonaro, cuja
pregação, propostas e valores antagonizavam
abertamente os valores e as propostas que
conformavam a “Nova República”. Face a esse
quadro, muitos inclusive chegaram a constatar a
“falência” do experimento político construído desde
a aprovação da Constituição de 1988 e a propor a
existência de uma nova “fase” da história política
brasileira a partir da ascensão do bolsonarismo.13
Aceite-se ou não essa interpretação, o fato
é que a análise do desdobramento da “Nova
República”, nestes trinta anos que medeiam
entre a aprovação da Constituição de 1988 e as
últimas eleições presidenciais (2018), nos oferece
uma plataforma de observação, entre o curto
(campanha eleitoral) e o longo prazo (tradições)
que é importante para compreender certos
fenômenos essenciais que ensejaram condições
favoráveis à ascensão do bolsonarismo.
Vou direto ao ponto que me parece mais
importante: o fato de que os partidos reformistas
criados no contexto da Nova República, o PT,
no início dos anos 1980, e o PSDB, em meio
aos debates da Constituinte, em 1988, foram,
gradativamente, perdendo suas referências
inovadoras, sugados pelas dinâmicas tradicionais
da “classe política”, no que essa tinha – e tem
– de mais conservador e repulsivo (corrupção,
12 Na interpretação dos petistas e dos lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, tratou-se de um “golpe de estado” parlamentar,
camuflado, progressivo, efetuado “por dentro” das próprias instituições democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recor-
reram diversas vezes ao impeachment, sem que o recurso a este mecanismo essencialmente autoritário lhes parecesse questionável.
13 Cf. Angela Alonso (2019) e Esther Solano, idem.
14 Cf. Daniel Aarão Reis (2019a).
siologia, troca-troca de siglas, descompromisso
com princípios etc.). Vale acrescentar, igualmente,
com a necessária ênfase, o pouco empenho
que os dois referidos partidos tiveram no que
se relaciona ao debate a respeito da ditadura
civil-militar (1964-1979) e de seus legados, em
particular os inscritos no corpo da Constituição
de 1988. Debates a respeito desse passado, que
ainda está presente, com certeza contribuiriam
para a construção de uma consciência cidadã,
afeita aos valores democráticos.14
Os partidos reformistas mereceram a conança
de uma grande maioria da sociedade e ganharam,
sucessivamente, seis mandatos presidenciais
(FHC, entre 1994-2002; Lula, entre 2002-2010; e
Dilma, em 2010 e 2014). Realizaram políticas que
correspondiam às demandas das maiorias (controle
da inação/FHC); políticas de distribuição de renda
e inclusivas (aumentos reais do salário mínimo,
política de cotas para ingresso nas universidades
e serviços públicos, política tributária de incentivo
à aquisição de bens de consumo etc.), realizadas
nos governos de Lula e Dilma.
Entretanto, sobretudo a partir da crise de 2008,
no quadro do acirramento das contradições
sociais que acompanham qualquer grande
crise, esses dois partidos foram incapazes de
retomar uma dinâmica inovadora que conferira
a eles destaque no quadro partidário nacional.
Ao contrário: enredaram-se, confundiram-se,
consolidaram suas alianças com as “forças do
atraso”, não souberam lidar com as demandas
sociais crescentes por serviços públicos de
qualidade; por políticas claras de combate à
corrupção; por políticas construtivas e positivas
quanto à questão da segurança que se tornaria um
problema central a atormentar a vida das pessoas
comuns, principalmente das camadas populares.
A inclusão – direta ou indireta – de suas principais
lideranças em grandes escândalos de corrupção
contribuíram não só para desmoralizá-las, e a seus
partidos, mas também para abalar a credibilidade
Daniel Aarão Reis
Notas para a compreensão do bolsonarismo 7/11
do conjunto do sistema político, cada vez mais
visto como um cadáver apodrecendo à luz do dia.
Neste quadro, os grandes movimentos sociais
ocorridos em 2013 não foram convenientemente
analisados e interpretados. Constatou-se o imenso
desgaste que afetava partidos e lideranças, mas
não houve a capacidade – ou a vontade – de
reverter os rumos, como se PSDB e PT tivessem
se transformado apenas em gestores de um
sistema que eles haviam prometido reformar.
Não apenas perderam a dinâmica
reformista, mas “se lambuzaram15” alegremente
com prebendas, pecúnias e propinas. A
“aristocratização” das instituições políticas
e jurídicas, que já vinha se consolidando há
décadas, ganhou intensidade sob os governos
tucanos e petistas sem que estes, em nenhum
momento, assumissem uma atitude crítica. As
direitas aproveitaram-se para criminalizar o
exercício da atividade política em geral, com
perdas e danos irreparáveis para os principais
partidos e lideranças da Nova República.
Além disso, assistiram passivos – e
frequentemente como cúmplices – ao crescimento
de forças conservadoras – representadas pelas
bancadas BBB (boi, bala e bíblia), com as quais
efetuavam “tenebrosas transações”. Em troca
de votos no Parlamento, entregavam postos
ministeriais e posições de poder, além de
favores, como, por exemplo, concessões de
meios de comunicação. Em nome da chamada
“governabilidade”, instauraram o desgoverno,
distanciando-se de seus compromissos e
promessas originais.
Formou-se, assim, em uma atmosfera
de exasperação de contradições, condições
favoráveis à emergência de lideranças
“salvacionistas”, outsiders, supostos ou reais.16
Entretanto, ainda havia margens para deter a
ascensão do bolsonarismo.
De fato, foi na curta duração, na campanha
15 A expressão foi usada pelo ex-governador da Bahia, Jacques Wagner, do PT, introduzindo jocosamente uma autocrítica que jamais
adquiriu profundidade.
16 Como se sabe, esta é igualmente uma tradição nacional. Que se recorde a ascensão de Jânio Quadros e de Fernando Collor, vence-
dores das eleições de 1960 e 1989, ambos se apresentando como candidatos “alternativos” a um sistema repudiado por amplas maiorias.
17 Nas últimas eleições argentinas, o mesmo não ocorreu: Cristina Kirchner, muito lucidamente, preferiu ocupar uma segunda posição
em relação a Alberto Fernandez, um peronista moderado. Não apenas contornou a rejeição alta a seu nome como conseguiu unir diver-
sas correntes peronistas em torno da chapa que, afinal, ganhou as eleições.
eleitoral de 2018, que se evidenciaram
circunstâncias e que se tomaram decisões que
determinariam a vitória do candidato da extrema-
direita. Ora, as interpretações que enfatizam
unilateralmente as tradições autoritárias podem
levar à subestimação ou à desconsideração dessa
dimensão. Quando isso acontece, como já se
disse, a política é expulsa da história.
1.3 A campanha eleitoral de 2018 – a curta duração
Na campanha eleitoral, território por excelência
da política – na curta duração – tomaram forma
especíca as contradições já analisadas na longa
e na média duração. É preciso insistir, entretanto,
de que, quando se abriram as manobras eleitorais,
nada ainda estava decidido.
Que circunstâncias e opções conduziram à
vitória de Bolsonaro?
De um lado, a subestimação de sua força e do
potencial de seu crescimento. Prevaleceu a ideia
de que, mais uma vez, haveria a polarização entre
tucanos e petistas. Equívoco de consequências
funestas. De outro lado, e como consequência,
subestimou-se a necessidade de constituir, desde
o primeiro turno, a mais ampla frente possível das
tendências de esquerda. De preferência em torno
de um nome não vinculado ao PT, dada a rejeição
alta do petismo.17 Nada se fez nesse sentido. Ao
contrário, a orientação foi no sentido de hostilizar
e sabotar a candidatura Ciro Gomes, vista pelo
petismo como rival ameaçador.
Um outro movimento suicida foi a insistência na
candidatura Lula, mesmo se sabendo que, mesmo
o líder libertado, ela era juridicamente inviável
(Lei da Ficha Limpa). Quando, por m, isso foi
reconhecido (tarde demais?), e Fernando Haddad
projetou-se como candidato, a campanha desse,
ao longo do primeiro turno, reduziu sua pessoa – e
sua imagem – a um “peão” de Lula, como se fora
uma mera extensão do líder do PT, sem nenhum
grau de autonomia. Esse erro foi corrigido no
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segundo turno, contribuindo para melhorar as
chances de Haddad. Tarde demais, porém, para
reverter a onda favorável ao adversário.
Cumpre ainda destacar, no inventário de
“cicatrizes” da campanha do derrotado, o fato
de que ele foi muito discreto em relação a duas
demandas básicas das amplas maiorias: a questão
da segurança e a questão da corrupção. Incapaz de
formular autocríticas a respeito de erros cometidos,
entregou de bandeja ao adversário a exploração
de temas que adquiriram grande apelo popular.
Ao mesmo tempo, e na medida em que a
candidatura Geraldo Alckmin não decolava,
Bolsonaro passou a ser o desaguadouro do voto
antipetista, aumentando suas chances.
Outras circunstâncias ajudaram também a
vitória do candidato da extrema-direita. Anal,
uma vitória não se resume à caracterização
apenas dos erros do adversário.
Bolsonaro soube tecer importantes alianças com
o capital nanceiro (Paulo Guedes), apareceu como
campeão da moralidade e da segurança (Moro),
teceu e consolidou laços com as igrejas evangélicas
(reação à pauta identitária dos costumes) e com
outras forças conservadoras – as bancadas da
“bala” (aparelhos de segurança e ociais militares) e
do boi (agronegócio de exportação). Em contraste
com o que faziam Lula e o petismo, ampliou
consideravelmente suas alianças, tornando-se
estuário de uma ampla frente conservadora,
bastante heterogênea, e que ia muito além das
fronteiras estreitas da extrema-direita, da qual
Bolsonaro sempre foi expressiva liderança.
E, ainda, houve o episódio do atentado,
permitindo uma autoapresentação vitimizada,
sempre simpática e sedutora, e – mais importante
– legitimando a ausência nos debates políticos.
18
Na etapa nal do primeiro turno e ao longo do
segundo turno, as pesquisas já davam Bolsonaro
na frente. Os resultados nais conrmaram a vitória
surpreendente de um candidato considerado até
agosto de 2018 como um inevitável perdedor.
18 Bolsonaro teve péssima participação nos dois debates anteriores ao atentado. Sua apresentação nos seguintes não era de bom
agouro. A facada “salvou-o” de encontros com candidatos rivais até o fim da campanha.
19 A história como professora da vida. Expressão atribuída a Marco Túlio Cícero, pensador romano.
20 Cf. nota 7 supra.
2 O caráter do Bolsonarismo
A vitória de Bolsonaro, além de suscitar uma
onda de sinistros e, no campo das tendências de
esquerda, ensejou e tem ensejado remissões à
conjuntura dos anos 1960 – que propiciou o golpe
de 1964 – e/ou ao fascismo.
O país estaria no limiar de uma nova ditadura?
Ou do ressurgimento do fascismo?
Em épocas de crise, quando as dúvidas
se acumulam, é sempre tentador “explicar” o
futuro pelo recurso ao passado. Às vezes, até
atores sociais e políticos relevantes revestem-
se de atitudes e frases do passado, tentando
reencarná-lo. Ressurge, então, a história como
“magistra vitae”.
19
É perder de vista que a história
é a disciplina que estuda a mudança e que vida
é mudança – e mudança permanente.
A conjuntura dos anos 1960 aconteceu há meio
século. O mundo e o País mudaram muito nestes
cinquenta anos para imaginar que seja possível repetir
o passado. Em relação ao fascismo, pela associação
do mesmo exclusivamente à violência, tende-se a
perder de vista suas especicidades históricas.20
Para a compreensão da ascensão da
extrema-direita ao governo, um caminho mais
fecundo talvez seja analisar suas alianças e
características específicas.
Convém enfatizar, uma vez mais, o contexto
internacional. O bolsonarismo é a expressão
brasileira de um movimento de reação
internacional às mutações promovidas pela
grande revolução digital ou informática.
Em uma análise especíca da força política
do bolsonarismo, cumpre destacar, em primeiro
lugar, seu núcleo mais coeso nos aparelhos
de segurança formais (forças armadas e
polícias) e informais (milícias e bancada da
bala). Agrupam-se em torno dos conceitos de
Ordem, de Segurança e de defesa da Pátria.
Ignorados ou marginalizados ao longo dos anos
da “Nova República”, mastigaram ressentimentos
represados que escoam agora com vigor. Antes
Daniel Aarão Reis
Notas para a compreensão do bolsonarismo 9/11
de 2018, Bolsonaro e seus lhos construíram seu
prestígio apoiando sem reservas os interesses
corporativos desses segmentos.
Em um segundo círculo estão as igrejas
evangélicas, aglutinadas em torno de pautas
conservadoras relativas aos costumes e com
importante expressão parlamentar (bancada da
bíblia).21 Cultivam notória aversão às demandas
das lutas identitárias e ao consumo das drogas.
Constituíram relevante base de apoio a Bolsonaro
nas eleições, mas sua delidade não é absoluta
ou monolítica, nem ganha denitivamente. Além
disso, evidenciam discrepâncias com algumas
expressões mais extremadas e violentas das
propostas “securitárias” (bandido bom é bandido
morto). Tudo indica que desempenharão papel
importante na legalização do novo partido que
Bolsonaro quer dirigir, a Aliança para o Brasil.
Neste caso, haverá um processo de mão dupla,
negociado, pois as lideranças evangélicas, embora
reacionárias, não estarão dispostas a serem meros
reboques de propostas que não controlam.
Em um terceiro círculo, Bolsonaro conseguiu
ampliar suas alianças para o “andar de cima”,
articulando apoios junto ao agronegócio
(que não se confunde com o desmatamento
desenfreado da Amazônia) e ao capital nanceiro
(o ultraliberalismo de Paulo Guedes). Essas
manobras foram vistas, no início, como mero
oportunismo eleitoral. Em um momento seguinte,
no entanto, considerando o raquitismo eleitoral
de Geraldo Alckmin e sua inviabilidade face ao
petismo, esses setores migraram em peso para
a candidatura Bolsonaro, poupando-o de críticas,
relativizando suas invectivas, protegendo-o de
denúncias. Imaginavam domesticá-lo, como
zeram com Lula, mas encontram diculdades
imprevistas para alcançar este objetivo.
Como se pode constatar, trata-se de uma
aliança instável, pois mistura ingredientes muito
heterogêneos que podem se desagregar com
rapidez, dependendo das circunstâncias e dos
21 Observe-se que as igrejas evangélicas não constituem um todo monolítico. Entre elas, destacam-se algumas lideranças que estão
no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros “carneiros”
nas mãos de seus “pastores”. Cf. Benjamin Arthur Cowan (2014). Tem crescido a literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da
importância dos mesmos na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor referido: Saulo Baptista (2009) e Magali
do Nascimento Cunha (2007).
rumos que tomar o governo.
Acresce uma particularidade, comum, aliás,
às tendências do nacionalismo de ultradireita
no mundo: o uso intensivo e agressivo/ofensivo
dos meios digitais. Bolsonaro, seus aliados e
correligionários investem furiosamente contra
os adversários reais ou supostos, desrespeitam
deliberadamente regras elementares de
convivência (o “politicamente correto”), agridem
amigos e inimigos, precipitam intrigas e discórdias,
desaam com arrogância o sendo comum e
até mesmo verdades cientícas estabelecidas
(terraplanismo), criando “fatos novos” permanentes
(ouviu a última do Bolsonaro?), em uma visada
típica de quem deseja “épater les bourgeois”
(escandalizar os burgueses). O objetivo, em grande
parte alcançado, pelo menos até o momento,
é o de “pautar o debate”, manter a iniciativa a
todo o custo. O procedimento, porém, suscita
desgastes e defecções. Essa espécie de “moto-
contínuo”, caso se associe a insucessos em outras
áreas, pode gerar um crescimento inesperado de
contradições e de oposições, criando diculdades
para Bolsonaro e o bolsonarismo.
Seja como for, não é de se imaginar que o
bolsonarismo vá ser um fenômeno passageiro
ou acidental. Trata-se de uma força política e
social relevante. E permanente. E mais: em caso
de fracasso, já tem um discurso pronto – “não nos
deixaram governar”. E, certamente, o que é mais
sombrio, não se conformará em ser apeado do
governo por métodos pacícos e democráticos.
Reagirá usando a força. De que modo e com que
procedimentos concretos, o tempo dirá.
Considerações finais
É por isto mesmo que cumpre às oposições,
em particular às esquerdas, se rearticularem
e incentivarem à resistência. Seja através do
protesto (nenhuma ação ou decisão arbitrárias
do Governo pode passar em branco), seja
por meio da resistência (impedir, quando for
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possível, a concretização de medidas ou políticas
governamentais) ou ainda, e melhor, por intermédio
de elaboração de propostas alternativas.22
O problema é que os instrumentos partidários
e sindicais tradicionais parecem muito mais
envolvidos na própria sobrevivência e reprodução
eleitoral do que interessados em suscitar
lutas sociais e políticas. Destaque aí merece,
infelizmente, o PT, maior partido das esquerdas,
e que parece paralisado desde a vitória de
Bolsonaro, incapaz de formular a indispensável
autocrítica, embora defendida por algumas
lideranças e setores da militância.
Assim, no limite, caberá à cidadania construir
instrumentos de debate e de luta próprios, autônomos.
Se não o zer, cará à mercê de acontecimentos e
da orientação de forças que escapam largamente
ao seu controle, como o bolsonarismo.
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22 Cf. os ensaios estimulantes de Slavov Zizek (2019). Embora nem sempre concordando com suas análises, suas propostas de enfren-
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Endereço para correspondência
Daniel Aarão Reis
Universidade Federal Fluminense
Rua Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, bloco O,
sala 505
Campus do Gragoatá, 24210-201
Niterói, RJ, Brasil