Content uploaded by Laura Carvalho
Author content
All content in this area was uploaded by Laura Carvalho on Apr 06, 2020
Content may be subject to copyright.
COVID-19 e desigualdade: a distribuic¸ ˜
ao dos fatores de
risco no Brasil
Luiza Nassif Pires (Levy Economics Institute)
Laura Carvalho (Universidade de S˜
ao Paulo)
Laura de Lima Xavier (Harvard Medical School)
Resumo. Seja pela maior dificuldade de manter
o isolamento social, o emprego e a renda, seja pelo
menor acesso `
a sa´
ude e ao saneamento b´
asico,
h´
a relativo consenso de que o COVID-19 ir´
a
afetar desproporcionalmente os mais pobres. Esse
breve relat´
orio sugere uma raz˜
ao adicional para se
esperar que os mais vulner´
aveis sejam mais antigi-
dos pela pandemia: a maior incidˆ
encia de fatores
que elevam o risco de gravidade da doenc¸a entre
os menos escolarizados. Tais evidˆ
encias reforc¸am
a necessidade de se desenhar medidas que tratem
os desiguais de forma desigual.
I. MOT IVAC¸˜
AO
A expans˜
ao acelerada do n´
umero de ´
obitos por
COVID-19 e o colapso do sistema funer´
ario na
cidade de Guayaquil no Equador 1acendeu mais
um sinal de alerta sobre os efeitos potenciamente
devastadores da pandemia nos pa´
ıses e regi˜
oes
mais pobres do mundo. S˜
ao v´
arias as dimens˜
oes
que tornam as populac¸ ˜
oes de baixa renda mais ex-
postas `
a contaminac¸ ˜
ao pelo novo coronav´
ırus, tais
como o uso de transporte p´
ublico, o n´
umero maior
de moradores por domic´
ılio, o acesso a saneamento
b´
asico, o acesso `
a sa´
ude e a dificuldade de manter
o isolamento social sem perda excessiva de renda
ou do emprego. Estudos populacionais com dados
de epidemias de infecc¸ ˜
oes respirat´
orias anteriores
(gripe espanhola, H1N1 e SARS) demontraram
que desigualdades sociais s˜
ao determinantes para a
taxa de transmiss˜
ao e severidade dessas doenc¸as2.
1https://oglobo.globo.com/mundo/com-70-dos-casos-do-
coronavirus-no-equador-guayaquil-empilha-cadaveres-nas-ruas-
24346526
2Ver por exemplo Cordoba et al [4], Mamelund et al [8], Tricco
et al [11], Bengtsson [1] e Bucchianeri [2].
A. Vulnerabilidade ao COVID-19 no Brasil
Diante dos n´
ıveis abissais de desigualdade de
renda e de acesso a servic¸os no Brasil, n˜
ao faltam
motivos para esperar um efeito desproporcional do
COVID-19 entre os mais vulner´
aveis no pa´
ıs. O
estudo de Filho et al. [5] sugere, por exemplo, que
a carˆ
encia de infraestrutura domiciliar, principal-
mente nas periferias, oferece um maior risco de
cont´
agio e propagac¸ ˜
ao de infecc¸ ˜
oes respirat´
orias.
O trabalho de Souza [10] mostrou ainda que a mor-
talidade por doenc¸as do aparelho respirat´
orio au-
mentou de forma preocupante em todas as regi˜
oes
do Brasil entre os anos 2000 e 2013.
No que tange `
a desigualdade no acesso `
a sa´
ude,
os dados da Pesquisa Nacional de Sa´
ude de
2013 indicam que entre os 20% mais pobres da
populac¸ ˜
ao, 94,4% n˜
ao tˆ
em plano de sa´
ude e 10,9%
se autoavaliam com sa´
ude regular, ruim ou muito
ruim, mas n˜
ao consultaram um m´
edico no ´
ultimo
ano. Entre os 20% mais ricos, esses ´
ındices s˜
ao
de apenas 35,7% e 2,2%, respectivamente. Para
piorar, o n´
umero dispon´
ıvel de leitos de Unidade
de Tratamento Intensivo (UTI) ´
e quase cinco vezes
inferior para os usu´
arios do Sistema ´
Unico de
Sa´
ude – SUS (1,04 leito por 10 mil habitantes,
ou menos ainda em estados do Norte e Nordeste)
do que para quem tem acesso `
a rede privada (4,84
leitos por 10 mil habitantes)3.
B. Desigualdade e COVID-19 nos EUA
Os dados coletados pelo Departamento de Sa´
ude
da cidade de Nova York publicados no dia 2 de
abril pelo jornal The New York Times4deixaram
3https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/sus-
nos-estados-nao-tem-leitos-de-uti-contra-o-coronavirus.shtml
4https://www.nytimes.com/interactive/2020/world/coronavirus-
maps.html
claro que os bairros de baixa renda est˜
ao sendo
muito mais atingidos pela epidemia do COVID-19
naquela cidade. Ao que parece, n˜
ao se trata apenas
de um n´
umero mais alto de casos confirmados, mas
tamb´
em de um ´
ındice maior de severidade desses
casos. Em outras palavras, para al´
em de estarem
mais sujeitos `
a contaminac¸ ˜
ao, os mais pobres est˜
ao
desenvolvendo quadros mais graves da doenc¸a. O
estudo publicado por Nassif-Pires et al [9] sugere
que uma das explicac¸ ˜
oes para essa desproporc¸ ˜
ao ´
e
a maior incidˆ
encia de doenc¸as crˆ
onicas associadas
aos casos mais graves do COVID-19 entre os mais
pobres nos EUA.
II. FATOR ES DE R ISCO N O BRASIL
Em estudo realizado nos Estados Unidos com
dados para 7162 pessoas diagnosticadas com
COVID-19[3], a taxa de hospitalizac¸˜
ao entre aque-
les que n˜
ao apresentavam nenhuma pr´
e-condic¸ ˜
ao
foi de 7%, sendo 2% em UTI. Esses n´
umeros
aumentam para 30% e 15%, respectivamente, para
pessoas com pr´
e-condic¸ ˜
oes reportadas5. Algumas
doenc¸as levaram a uma taxa de hospitalizac¸˜
ao
ainda mais alta. Os infectados que possu´
ıam
doenc¸a crˆ
onica renal e diabetes apresentaram taxas
de internac¸ ˜
ao em UTI 11 e 8,5 vezes maiores,
respectivamente, do que os que estavam fora
de grupo de risco. Pessoas com doenc¸as pul-
monares crˆ
onicas como bronquite e asma tiveram
um n´
umero 3,4 vezes maior de internac¸ ˜
oes e 6,5
vezes maior de transferˆ
encia para UTI. Ademais,
a taxa de hospitalizac¸ ˜
ao e internac¸ ˜
ao em UTI para
aqueles acima de 65 anos foi o dobro do total da
populac¸ ˜
ao estudada, mesmo entre os idosos sem
nenhuma condic¸ ˜
ao m´
edica reportada.
A partir dos dados da Pesquisa Nacional de
Sa´
ude (PNS) do IBGE realizada em 2013, ´
e
poss´
ıvel ter uma estimativa da proporc¸ ˜
ao de
brasileiros que se enquadra no grupo considerado
de risco para o COVID-19. Se considerarmos como
fatores de risco ter acima de 60 anos, ter sido
diagnosticado com diabetes, hipertens˜
ao arterial,
asma, doenc¸a pulmonar, doenc¸a card´
ıaca ou insu-
5As pr´
e-condic¸ ˜
oes incluem diabetes, doenc¸as cardiovasculares,
doenc¸as cr ˆ
onicas pulmonares, hipertens˜
ao, doenc¸as cr ˆ
onicas renais,
imunodeficiˆ
encia e doenc¸as neurol ´
ogicas.
54%
28%
34%
0.0
0.2
0.4
Fundamental Médio Superior ou mais
Curso mais elevado frequentado
Proporção da população em risco
Fatores de risco
1
2
3 ou mais
Fig. 1. Proporc¸˜
ao da populac¸˜
ao em risco por grau de escolaridade
ficiˆ
encia renal crˆ
onica6, a PNS sugere que 42% da
populac¸ ˜
ao se encontra em algum grupo de risco7.
No entanto, os fatores de risco tampouco parecem
estar distribu´
ıdos igualmente na populac¸ ˜
ao.
Conforme mostra a Figura 1, a proporc¸ ˜
ao de
pessoas com um ou mais fatores de risco ´
e de 54%
para os que declararam ter frequentado apenas o
ensino fundamental, ante 28% para os que frequen-
taram o ensino m´
edio e 34% para os que chegaram
a cursar o ensino superior ou p´
os-graduac¸ ˜
ao. Esta
diferenc¸a ´
e ainda maior quando se considera quem
tem mais de um fator de risco, sendo a presenc¸a de
dois ou mais fatores de risco trˆ
es vezes maior entre
aqueles que frequentaram apenas o ensino funda-
mental do que entre aqueles que frequentaram o
ensino m´
edio.
Esses ´
ındices causam ainda mais preocupac¸ ˜
ao
quando levamos em conta as evidˆ
encias apresen-
tadas em Gao, Q. et al [6] de que a taxa de
hospitalizac¸ ˜
ao na prov´
ıncia de Hubei na China foi
1,8 vezes maior para pacientes com uma comor-
bidade e 2,6 vezes maior para aqueles com duas
ou mais comorbidades.
Na Figura 2, observamos que n˜
ao ´
e apenas o fa-
tor idade que explica a desproporc¸ ˜
ao na incidˆ
encia
6A PNS n˜
ao possui dados relativos `
a incidˆ
encia de imunod-
eficiˆ
encia ou doenc¸as neurol ´
ogicas, ambos reportadamente correla-
cionados com complicacc˜
oes em caso de infecc¸˜
ao por COVID-19.
7https://www.kff.org/global-health-policy/issue-brief/how-many-
adults-are-at-risk-of-serious-illness-if-infected-with-coronavirus/
0.0
0.1
0.2
0.3
0.4
Fundamental Médio Superior ou mais
Curso mais elevado frequentado
Proporção da população em risco
Fatores de risco
60 anos ou mais
Comorbidades
Fig. 2. Proporc¸˜
ao de pessoas acima de 60 anos e com alguma
comorbidade por grau de escolaridade
de fatores de risco entre os menos escolarizados.
A incidˆ
encia de comorbidades (doenc¸as crˆ
onicas
associadas aos casos mais graves de COVID-198)
´
e muito maior entre os brasileiros que s´
o frequen-
taram o ensino fundamental do que nos demais
grupos: 42%, ante 33% na m´
edia da populac¸ ˜
ao.
Tais achados est˜
ao em linha com estudos ante-
riores, que encontraram, por exemplo, uma maior
incidˆ
encia de diabetes entre os mais pobres no
Brasil ([7]) e no mundo9. De forma mais geral,
cerca de 80% das mortes por doenc¸as crˆ
onicas
ocorrem em pa´
ıses de baixa ou m´
edia renda (World
Health Organization [12]).
III. CONCLUS ˜
AO
A hip´
otese aqui sugerida de que a base da
pirˆ
amide tem maior probabilidade de precisar de
internac¸ ˜
ao no caso de contaminac¸ ˜
ao pelo COVID-
19 vem somar-se a outros fatores que tornam as
populac¸ ˜
oes de baixa renda mais vulner´
aveis `
a crise
de sa´
ude p´
ublica e ao colapso econˆ
omico associa-
dos `
a atual pandemia. N˜
ao basta, portanto, dedicar
esforc¸os maiores para evitar a contaminac¸ ˜
ao de
idosos pelo COVID-19: para evitar o colapso do
sistema de sa´
ude e a progress˜
ao acelerada do
n´
umero de ´
obitos, as medidas desenhadas tamb´
em
8Nesse caso, n˜
ao incluiu-se a idade entre os fatores considerados.
9https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/diabetes-preocupa-
em-paises-pobres-em-desenvolvimento-4548374
devem destinar-se a proteger os mais pobres, seja
por meio de pol´
ıticas de preservac¸ ˜
ao da renda que
permitam o isolamento social, seja pela ampliac¸ ˜
ao
do n´
umero de leitos dispon´
ıveis no SUS.
REFERENCES
[1] Bengtsson T, Dribe M, Eriksson B. Social Class and Excess
Mortality in Sweden During the 1918 Influenza Pandemic.
Am J Epidemiol. 2018 Dec 1;187(12):256876.
[2] Bucchianeri GW. Is SARS a Poor Mans Disease? Socioe-
conomic Status and Risk Factors for SARS Transmission
[Internet]. Vol. 13, Forum for Health Economics Policy. 2010.
Available from: http://dx.doi.org/10.2202/1558-9544.1209
[3] Centers for Disease Control and Prevention, 2020. Prelim-
inary Estimates of the Prevalence of Selected Underlying
Health Conditions Among Patients with Coronavirus Dis-
ease 2019 United States, February 12March 28, 2020.
MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2020;69:382386. Dispon´
ıvel
em:http://dx.doi.org/10.15585/mmwr.mm6913e2
[4] Cordoba E, Aiello AE. Social Determinants of Influenza
Illness and Outbreaks in the United States. N C Med J. 2016
Sep;77(5):3415.
[5] Filho, E. B. da S. et al. (2017) Infeces Respiratrias de Im-
portncia Clnica: uma Reviso Sistemtica, REVISTA FIMCA,
pp. 716. doi: 10.37157/fimca.v4i1.5.
[6] Gao, Q. et al. (2020) The epidemiological characteristics
of 2019 novel coronavirus diseases (COVID-19) in Jing-
men,Hubei,China. doi: 10.1101/2020.03.07.20031393.
[7] Malta, D.; Duncan, B.; Schmidt, M.; Machado, I; Silva, A.;
Bernal, R.; Pereira, C.; Damacena, G.; Stopa, S.;, Rosenfeld,
L.; Szwarcwald, C. (2019). Prevalˆ
encia de diabetes mellitus
determinada pela hemoglobina glicada na populac¸˜
ao adulta
brasileira. Revista Brasileira de Epidemiologia, 22 (Suppl. 2).
[8] Mamelund S-E. Social inequality a forgotten factor in
pandemic influenza preparedness [Internet]. Tidsskrift
for Den norske legeforening. 2017. Dispon´
ıvel
em:http://dx.doi.org/10.4045/tidsskr.17.0273
[9] Nassif-Pires, L.; Lima Xavier, L.; Masterson, T.; Niki-
foros, M.; Rios-Avila, T. (2020) We need class, race,
and gender sensitive policies to fight the COVID-19 cri-
sis. Multiplier effect, The Levy Economics Institute Blog.
Dispon´
ıvel em:http://multiplier-effect.org/we-need-class-race-
and-gender-sensitive-policies-to-fight-the-covid-19-crisis/.
[10] Souza, I. D. T. D. (2016). Mortalidade por doenc¸as respi-
rat´
orias no Brasil e suas regi˜
oes: srie histrica 20002013.
[11] Tricco AC, Lillie E, Soobiah C, Perrier L, Straus SE. Impact
of H1N1 on socially disadvantaged populations: systematic
review. PLoS One. 2012 Jun 25;7(6):e39437.
[12] World Health Organization (2011) Global Status Report on
Noncommunicable Diseases 2010.