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Para a história do restauro de pintura em Portugal: as antigas intervenções no retrato de José António de Oliveira Machado, da Biblioteca Nacional de Portugal

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Abstract

Uma pintura sobre tela, de finais do século XVIII, aparentemente em bom estado de conservação, mostrou que afinal já sofreu danos muito significativos, possivelmente devido às más condições de acondicionamento em que esteve. Na primeira metade do século XIX encontrava-se num depósito em Lisboa, para onde foram recolhidas as obras retiradas dos conventos, então extintos em Portugal. A pintura foi depois sujeita a numerosas intervenções de restauro, das quais as mais extensas foram tecnicamente bem executadas, provavelmente em finais do século XIX ou princípios do século XX, ainda que seguindo princípios diferentes dos actuais. Com base no estudo efectuado, recorrendo a diversos métodos de exame e análise, são descritas as intervenções detectadas, especialmente as operações de tratamento dos rasgões e de lacunas, algumas das quais executadas de forma pouco comum, assim como são identificados os materiais usados nessas intervenções.
Ge-conservación
Conservação | Conservation
Para a história do restauro de pintura em Portugal:
as antigas intervenções no retrato de José António de Oliveira
Machado, da Biblioteca Nacional de Portugal
António João Cruz y Carla Rego
Resumo: Uma pintura sobre tela, de nais do século XVIII, aparentemente em bom estado de conservação, mostrou que anal já sofreu da-
nos muito signicativos, possivelmente devido às más condições de acondicionamento em que esteve. Na primeira metade do século XIX
encontrava-se num depósito em Lisboa, para onde foram recolhidas as obras retiradas dos conventos, então extintos em Portugal. A pintura foi
depois sujeita a numerosas intervenções de restauro, das quais as mais extensas foram tecnicamente bem executadas, provavelmente em nais
do século XIX ou princípios do século XX, ainda que seguindo princípios diferentes dos actuais. Com base no estudo efectuado, recorrendo a
diversos métodos de exame e análise, são descritas as intervenções detectadas, especialmente as operações de tratamento dos rasgões e de
lacunas, algumas das quais executadas de forma pouco comum, assim como são identicados os materiais usados nessas intervenções.
Palavras-chave: história, restauro, pintura, tela, tratamento, rasgões, lacunas, reintegração cromática.
To the history of painting restoration in Portugal: ancient interventions in the portrait of José Antó-
nio de Oliveira Machado, from the National Library of Portugal
Abstract: A canvas painting from the late 18th century, apparently in good condition, revealed that, after all, had already suered considerable
damage, possibly due to poor storage conditions. In rst half of the 19th century, it remained in a storage at Lisbon, together with other works
collected from the extinct Portuguese convents. The painting was then subjected to numerous restoration interventions, being the more exten-
sive ones, technically well executed, probably in the late 19th or early 20th century, although under dierent principles from nowadays. Based
on the study carried out and using various methods of examination and analysis, the restoration interventions are described, especially the
treatments of tears and gaps, some of which were executed in a rather unusual manner. Materials used in these interventions, are also identied.
Key words: history, restoration, painting, canvas, treatment, tears, gaps, chromatic reintegration.
Para la historia de la restauración de pintura en Portugal: las intervenciones antiguas en el retrato de
José António de Oliveira Machado, de la Biblioteca Nacional de Portugal
Resumen: Se presenta el estudio de una pintura sobre lienzo de nales del siglo XVIII, aparentemente en buenas condiciones pero que ha su-
frido daños muy importantes, posiblemente debido a las malas condiciones del almacén de Lisboa donde fue trasladada en la primera mitad
del siglo XIX junto con otras obras de los conventos entonces desamortizados en Portugal. La pintura fue sometida a numerosas intervenciones
de restauración, las más extensas de las cuales fueron técnicamente bien ejecutadas, probablemente a nales del siglo XIX o principios del siglo
XX, aunque de acuerdo con principios diferentes de los actuales. En base al estudio llevado a cabo utilizando diversos métodos de examen y
análisis, se describen las intervenciones detectadas, especialmente las operaciones de tratamiento de desgarros y de lagunas, algunas de las
cuales fueran ejecutadas de una forma inusual, y se identican los materiales utilizados en estas intervenciones.
Palabras clave: historia, restauración, pintura, lienzo, tratamiento, desgarros, lagunas, reintegración cromática.
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António João Cruz y Carla Rego
Para a história do restauro de pintura em Portugal: as antigas intervenções ... pp. 5-13
Olympus DP10. As mesmas amostras, após recobrimen-
to com lme de carbono, foram também analisadas com
microscópio electrónico de varrimento Hitachi 3700N com
detector de raios X dispersivo de energia Bruker XFlash
5010 SDD usando tensão de 20 kV e intensidade de corren-
te de entre 110 e 125 A.
Amostras de bras foram analisadas por microscopia óptica
e por recurso aos reagentes Herzberg e Lofton-Merrit. Para
a análise das amostras do adesivo utilizado na reentelagem
foram obtidos espectros de infravermelho num espec-
trómetro de infravermelho com transformada de Fourier
Bruker Alpha com módulo de reexão total atenuada com
cristal de diamante.
Estado geral da pintura e intervenções realizadas
Os exames realizados, nomeadamente a radiograa [gu-
ra 2], a fotograa de ultravioleta [gura 3] e a fotograa de
infravermelho, mostraram claramente que, não obstante o
aparente bom estado em que se encontra a pintura, a obra
já sofreu importantes danos e foi sujeita a numerosas ope-
rações de restauro. Do mais geral para o mais localizado,
sem que seja seguida a ordem cronológica, podem-se des-
tacar os seguintes acontecimentos em que a pintura esteve
envolvida.
Introdução
A pintura do espólio da Biblioteca Nacional de Portugal
que representa o magistrado e desembargador José Antó-
nio de Oliveira Machado (1696-1777) [gura 1], com 84 cm
altura por 64 cm de largura, é de autoria desconhecida, mas
deve ter sido realizada entre 1750 e 1786 e incorporada na
actual colecção em 1837 (Rodrigues 2013). Trata-se de uma
obra sobre tela com as habituais características gerais, de
natureza técnica e material, de uma pintura a óleo do sécu-
lo XVIII, tal como é sugerido quer pela observação directa
da mesma, quer pelos resultados obtidos ao longo deste
estudo.
À primeira vista, a obra parece estar em bom estado de
conservação e não aparenta ter sofrido danos signicativos
nem ter sido alvo de signicativas intervenções de restau-
ro. Contudo, uma observação detalhada da sua superfície,
além de evidenciar a habitual rede de estalados, caracte-
rística de uma pintura antiga, permite concluir que já foi
objecto de importantes intervenções de restauro que, no
entanto, não estão documentadas. Considerando-se que
há registo das intervenções recentes realizadas nas obras
desta colecção, a sua ausência neste caso sugere que os
restauros a que esta pintura foi sujeita são relativamente
antigos.
Com o objectivo de contribuir para a história do restauro
de pintura em Portugal, procedeu-se a um estudo que pre-
tendeu identicar tais restauros, perceber a que problemas
pretenderam responder, como foram executados, em que
princípios se basearam e de que forma condicionaram a
obra física e a imagem que hoje observamos. Para o efeito,
a pintura foi deslocada para o Laboratório de Conservação
e Restauro de Pintura de Cavalete e Escultura em Madeira
Policromada do Instituto Politécnico de Tomar.
Métodos de exame e análise
Além da observação da pintura com lupa binocular (Leica
M320) e da realização de fotograa com radiação visível
(normal, luz rasante e pormenores), foram efectuados di-
versos exames e análises mais especícos.
Fotograas de infravermelho e de uorescência de ultravio-
leta foram realizadas com câmara digital Mamiya 645AFDII
com Back digital Phase One P21+ com ltro Lee 87, no pri-
meiro caso, e ltro Lee 1B UV Absorber da LeeFilters e ltros
de correcção de cor CC50M e CC30Y, no segundo caso.
A radiograa foi efectuada com ampola Art-Gil, tensão de
34 kV, intensidade de corrente de 5 mA, 1 min de exposição
e película Kodak Industrex AA 400.
Foram recolhidas 15 amostras, que se pretendeu que conti-
vessem todas as camadas, as quais, depois de montadas em
resina acrílica e polidas, foram analisadas com microscópio
óptico Olympus CH30 equipado com máquina fotográca
Figura 1. José António de Oliveira Machado, Biblioteca Nacional
de Portugal, inv. 10943/BN.
Ge-conservación nº 7/ 2015. ISSN: 1989-8568
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A pintura foi reentelada, não estando, portanto, directa-
mente visível a tela original.
A grade actual, com aspecto relativamente recente, não é
a original. Em primeiro lugar, porque se trata de uma grade
extensível, com cunhas, ou seja, de um tipo que, mesmo
em França, onde surgiu, só se tornou comum em nais do
século XVIII (Buckley 2012). Em segundo lugar, porque a
tela inicialmente estava numa grade com maiores dimen-
sões e foi cortada. O corte ocorreu a toda volta, mas foi
mais signicativo do lado direito (do observador) uma vez
que aí, ao contrário do que sucede dos outros lados, não
se observa a deformação da tela devida à tensão originada
pela xação à grade (Van de Wetering 2000). Consideran-
do o reduzido corte realizado em três dos lados e o facto
de, como mostra a radiograa [gura 2], nos limites actuais
do quadro haver a toda a volta uma faixa em que a pintura
original se destacou, é possível que o corte não tenha sido
realizado com o objectivo de alterar o formato, mas ape-
nas para remover uma parte danicada da tela.
A tela sofreu extensos rasgões [gura 2 e gura 3]. O prin-
cipal tem início no queixo do retratado e, devido a várias
subdivisões da linha de ruptura, afecta grande parte da
metade inferior da pintura. A irregularidade da linha e a
sua orientação um pouco aleatória mas simultaneamente
com troços mais ou menos rectilíneos sugerem que este
rasgão resultou de acondicionamento incorrecto (Nicolaus
1999: 80). Tendo em conta as decientes condições em
que as pinturas estiveram, na década de 1840, no Depósi-
to das Livrarias dos Extintos Conventos instalado no Con-
vento de São Francisco (Soares et al. 2012a), parece muito
provável que este rasgão tenha ocorrido então — ainda
que o seu tratamento possa ter ocorrido muito mais tar-
de. Outro rasgão tem orientação vertical e aconteceu no
lado esquerdo da pintura, defronte ao rosto junto ao limite
interior da grade. Ainda que esta posição sugira que este
segundo rasgão ocorreu depois de a tela ter sido colocada
na actual grade, este não coincide exactamente com o li-
mite da grade, podendo ter resultado do anterior engrada-
mento. De qualquer forma, a linha de ruptura deste rasgão
diferencia-se da do maior, uma vez que, no troço vertical,
é muito menos irregular, quase sugerindo resultar de algo
cortante [gura 2]. Há também rasgões de pequena di-
mensão, como um que se observa ao centro, na gola da
casaca, podendo estes dever-se à perda de resistência da
tela em resultado da oxidação da celulose (Nicolaus 1999:
82). Muito provavelmente, foram todos estes rasgões que
estiveram na origem da reentelagem.
Além dos destacamentos já referidos, resultantes dos ras-
gões e do desgaste em todo o perímetro do quadro, a
pintura sofreu outros pequenos destacamentos, principal-
mente na parte inferior, que poderão ter a mesma causa
que o rasgão principal. De uma forma geral, as lacunas fo-
ram preenchidas com massas e reintegradas. Como adian-
te se explica, estes tratamentos ocorreram, no mínimo, em
quatro ocasiões distintas — o que ajuda a explicar a sua
distinta aparência, quer na radiograa [gura 2], quer na
fotograa de ultravioleta [gura 3]. Também o uso de dois
tipos de pregos na xação da tela à grade, como se ob-
serva na radiograa, é um testemunho de diferentes inter-
venções.
A fotograa de ultravioleta mostra também a existência de
zonas repintadas, especialmente sobre os rasgões, rosto e
quadrante inferior da pintura [gura 3].
Tratamento dos rasgões
Actualmente, a fragilidade do suporte original é colmata-
da pela suturação dos dois rasgões, cosidos directamen-
te na tela de reentelagem que proporciona igualmente
um reforço estrutural à pintura [gura 4]. De acordo com
a identicação feita por microscopia óptica, a tela de re-
entelagem é de juta (quando a original é de linho) e o o
utilizado na sutura é de algodão. Segundo os espectros de
infravermelho, a reentelagem foi feita com cola animal. A
reentelagem seguida de suturação não parece ser um tra-
tamento comum e, pelo menos num caso como este, só
se justica se o autor da intervenção tiver sérias dúvidas
sobre a adesão entre as duas telas ou se pretender plani-
car o mais possível a pintura nas zonas de rasgão. Aten-
dendo a que superfície da pintura se encontra bastante
deformada junto aos dois rasgões principais [gura 5], é
possível que tenha sido esta a razão da suturação, mas, se
assim aconteceu, o sucesso foi limitado. Neste caso, a não
Figura 2. Radiograa.
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desconhecido no nosso paiz” (Santos 2012: 285), é um dos
constituintes da massa de preenchimento usada nessa se-
gunda intervenção, é muito pouco provável que esta seja
anterior a nais do século XIX.
A suturação de um rasgão não parece ser um tratamento
frequente em Portugal no nal do século XIX ou início do
século XX. Manuel Macedo, que era conservador do mu-
seu que esteve na origem do Museu Nacional de Arte An-
tiga, no único manual de restauro de pinturas então publi-
cado, recomendava a planicação dos bordos do rasgão
com ferro e a colagem da junta com cola animal (grude)
(Macedo 1885). Outros tratamentos, visíveis nalgumas
obras (Maltieira et al. 2013), envolviam o uso de remen-
dos, que, porém, Macedo criticava severamente e que, por
outro lado, veio a ser recomendado como processo geral
para o tratamento de rasgões por um manual elaborado
com o objectivo de servir de referência a nível internacio-
nal (International Museums Oce 1940). Um terceiro tipo
de tratamento de telas danicadas era a reentelagem, o
qual, possivelmente, foi o mais comum em Portugal du-
rante grande parte do século XX (Couto 1952), aliás como
parece que aconteceu por todo o lado (Hackney et al.
2012). Portanto, o tratamento envolvendo a combinação
da reentelagem com a suturação, observado na pintura
em estudo, parece não ser comum e, eventualmente, po-
derá vir a ser considerado como marca identicativa de
uma ocina de restauro. De qualquer forma, testemunha
a diversidade de abordagens que têm sido seguidas nas
intervenções de restauro em Portugal.
suturação dos rasgões de menor dimensão resultaria de a
deformação nessas zonas não ser signicativa.
Independentemente das razões que levaram a essa com-
binação da reentelagem com a suturação, a documen-
tação obtida sugere que este não foi o primeiro tratamen-
to dos rasgões. Nalguns troços mais ou menos horizontais
do rasgão, na fotograa de ultravioleta observam-se pe-
quenos traços perpendiculares à linha de ruptura, es-
paçados poucos milímetros, que parecem corresponder
a pontos que mantêm junto os dois lados do rasgão, en-
quanto na radiograa se nota, de um lado e do outro da
linha, o que parece corresponder a furos por onde passa,
ou passava, a linha. Em qualquer um dos casos, o padrão
observado nesses documentos é bem diferente do que se
vê no reverso. Por outro lado, a radiograa mostra que fo-
ram usados dois materiais de preenchimento diferentes
no rasgão principal: na metade superior um material mui-
to pouco opaco aos raios X e nalgumas zonas da metade
inferior (a começar no troço mais ou menos horizontal
existente a meia altura) um material signicativamente
mais opaco. No rasgão do lado esquerdo, junto à grade,
há também zonas de diferente opacidade. O uso com a
mesma função, no mesmo rasgão, de dois materiais dife-
rentes — os quais, como a seguir se refere, foram identi-
cados numa amostra — sugere duas intervenções dife-
rentes, a segunda das quais realizada numa ocasião em
que o primeiro tratamento já não cumpria a sua função.
Considerando que o branco de zinco, um material que
ainda em 1859 era considerado um “produto novo e quasi
Figura 3. Fotograa de uorescência de ultravioleta. Figura 4. Sutura visível no reverso.
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Tratamento das lacunas
As lacunas resultantes dos rasgões foram preenchidas
com uma massa de cor branca, ainda que a camada
de preparação original tenha uma cor bem mais escu-
ra, sendo constituída por mistura muito heterogénea,
sobretudo, de branco de chumbo, ocre castanho com
elevado teor de argilas e cré, aplicada em dois estratos
que se diferenciam, entre outros aspectos, pelo teor de
cré significativamente mais elevado no estrato superior.
Nesta pintura, portanto, não foi seguida a prática que
parece ter sido comum no passado de usar uma massa
de preenchimento com luminosidade semelhante à do
material da preparação original (Fuster-López 2012).
Essa massa de preenchimento de cor branca usada nos
rasgões, no entanto, foi diferente nas duas intervenções
referidas. A distinção é especialmente evidente numa
amostra recolhida na zona do rasgão lateral, uma vez
que nela se observam, sobrepostos, os dois materiais
[figura 6]. De acordo com os resultados obtidos por mi-
croscopia electrónica de varrimento, a camada inferior,
portanto a da intervenção mais antiga, é constituída
essencialmente por cré (carbonato de cálcio), surgindo
menos opaca na radiografia, enquanto a da intervenção
mais recente, que, como já se referiu, não deve ser ante-
rior a finais do século XIX, é constituída por uma mistura
de cré com branco de zinco (óxido de zinco) em concen-
trações idênticas. Estas camadas foram identificadas em
diversas outras amostras, embora não simultaneamente
como neste caso.
O branco de zinco, ainda que em mistura, não parece
ter sido habitualmente usado com esta função, mas a
situação era diferente no que respeita ao cré. Noutras
regiões, este com frequência era empregue nas massas
de preenchimento (Fuster-López 2012) e, segundo Ma-
cedo (que o refere sob o nome de alvaiade de Espanha),
era o material de preenchimento de lacunas geralmente
utilizado em Portugal em finais do século XIX (Macedo
1885). O cré também era habitualmente usado dessa for-
ma nas oficinas de restauro do Museu Nacional de Arte
Antiga em 1940 (Albuquerque 2004) — e, provavelmen-
te, quer antes quer depois dessa data. Curiosamente, o
cré, que não era usado isoladamente como pigmento,
fazia parte das listas de materiais a adquirir em 1864 e
em 1888 para o restauro de pinturas da mesma colecção
a que pertencia a obra em estudo (Soares et al. 2012b).
Uma vez que não são evidentes sobreposições na ra-
diografia, estas massas de preenchimento das lacunas
parece circunscreverem-se às zonas de lacuna, tal como
recomendava Luciano Freire no início do século XX (Cruz
2007). Por outro lado, deve notar-se que na segunda in-
tervenção referida foram mantidas as massas anteriores
— algo que, provavelmente, Macedo e Freire aprova-
riam (Cruz 2007), pelo que, de certa forma, se revela aqui
também uma preocupação de minimizar a intervenção.
Os princípios seguidos no tratamento das lacunas re-
sultantes dos rasgões não foram adoptados nas inter-
venções que incidiram especialmente na periferia da
pintura, sobretudo no lado inferior, onde é possível de-
tectar duas situações que, muito provavelmente, corres-
pondem a duas intervenções diferentes.
Por um lado, algumas lacunas foram preenchidas com
uma massa que, segundo uma das amostras recolhidas
[figura 7], é constituída essencialmente por branco de
chumbo (carbonato básico de chumbo) misturado com
pequena concentração de um composto de cálcio. Esta
massa é responsável pelas manchas de elevada opacida-
de que se observam sobretudo no canto inferior esquer-
do da radiografia [figura 2]. Ao contrário das outras, não
ficou limitada às zonas de lacuna, sobrepondo-se signi-
ficativamente à camada cromática original, conforme se
observa na referida amostra, onde se sobrepõe aos es-
tratos castanhos e vermelhos originais que assentam na
camada original de preparação. Portanto, este material
é de uma intervenção muito menos cuidada do que as
duas já referidas e deve ter ocorrido depois destas, pois
de outra forma provavelmente teria sido removido.
Por outro lado, há diversas lacunas que não foram pre-
enchidas, tendo sido reintegradas cromaticamente a um
nível inferior [figura 8]. Evidentemente, correspondem a
zonas de menor opacidade na radiografia e, das quatro
Figura 5. Fotograa de luz rasante.
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intervenções identificadas, deverá ser a mais recente
— pois, se tivesse sido realizada antes da mencionada
imediatamente atrás, as lacunas muito provavelmente
teriam sido preenchidas com a massa à base de branco
de chumbo. Desconhece-se, contudo se essa minimi-
zação da intervenção resultou de um princípio de con-
servação ou se simplesmente foi uma forma expedita
de resolver a descontinuidade visual causada pelas la-
cunas.
Reintegração cromática e repintes
A reintegração cromática das lacunas foi efectuada de
uma forma ilusionista, de modo a disfarçar o mais possí-
vel os danos que a pintura sofreu. Durante muito tempo
este era o procedimento adoptado, afirmando-se clara-
mente na segunda metade do século XIX que nas zonas
em falta de um quadro deviam ser aplicadas as “novas
tintas com tal esmero e arte, que sem alterar as tintas
originais, haja tal homogeneidade de tons, que apenas
deixe, mesmo a homens inteligentes, a dúvida se foi ou
não restaurado” (Rodrigues 1875: 326). Ainda que no
início do século XX o restaurador Luciano Freire mani-
festasse a opinião de que devia ser possível distinguir
entre a matéria original e a matéria acrescentada pelo
restaurador, mas sem prejudicar o efeito do conjunto
(Cruz 2007), a tradição anterior manteve-se durante
muito tempo e em meados do século XX ainda a prática
habitual no Museu Nacional de Arte Antiga era a de es-
ses retoques serem “feitos de tal sorte que inteiramente
se ajustem com as cores antigas e circundantes” (Couto
1952).
Segundo os resultados obtidos por microscopia electró-
nica de varrimento, a reintegração cromática efectuada
após a aplicação das massas de preenchimento mais
antigas, isto é, as massas constituídas essencialmente
por cré, foi realizada através da aplicação de estratos
cromáticos, por vezes muito finos, em que geralmente
estão misturados diversos pigmentos. Estes pigmentos
em grande parte fazem parte da lista de materiais reco-
mendados para o restauro de pinturas em finais do sé-
culo XIX (Macedo 1885): branco de chumbo (identifica-
do através do Pb), negro animal (P), vermelhão (Hg e S),
amarelo de Nápoles (Sb e Pb), ocre (Fe, Si e Al) e azul de
cobalto (Co e Al). No entanto, foram igualmente utiliza-
dos outros pigmentos: o viridian (Cr), que também não
coloca problemas de conservação, e o amarelo de zinco
(Zn e Cr na proporção atómica de, aproximadamente,
1:1), que tem tendência a escurecer por acção da luz
(Eastaugh et al. 2004). Este, de todos os pigmentos refe-
ridos, é o menos comum. É um pigmento moderno, mas
já era conhecido em Portugal em meados do século XIX
(Santos 2012). No caso de alguns pigmentos, foram usa-
Figura 6. Amostra recolhida na zona do rasgão à esquerda: mi-
croscopia óptica e imagem de electrões retrodifundidos (micros-
cópio electrónico de varrimento).
Figura 7. Amostra recolhida junto ao limite inferior da pintura,
na zona acastanha da decoração da casaca: microscopia óptica
e imagem do microscópio electrónico de varrimento, da parte
superior da amostra, com mapa de distribuição de diferentes ele-
mentos químicos — entre os quais o chumbo (assinalado a azul),
que surge concentrado na camada de cor branca.
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uma mesma intervenção, não é possível saber com os
dados disponíveis. No que diz respeito aos pigmentos
usados nas camadas cromáticas de repinte colocadas
sobre essas camadas orgânicas, além de pigmentos já
mencionados (branco de chumbo, negro animal, ocre e,
como carga, branco de bário), foram detectados bran-
co de titânio (Ti), amarelo de crómio (Cr e Pb) e, com
a função de carga, uma argila (possivelmente caulinite,
devido a razão atómica Si:Al de, aproximadamente, 1:1).
Os repintes efectuados com branco de titânio não po-
derão ser anteriores a cerca de 1920, quando teve início
a sua comercialização (Eastaugh et al. 2004), e, prova-
velmente foram realizados significativamente depois,
uma vez que há sempre um lapso de tempo importante
até que um pigmento se torne conhecido e usado por
artistas (Santos 2012) — algo que é previsível que tam-
bém se verifique entre restauradores.
Noutras amostras, de uma forma esporádica e em po-
sição muito superficial, foram ainda detectados verme-
lho de cádmio (Cd, S e Se) e litopone de amarelo de
cádmio (Ba, Cd, S, Se) — sendo que aquele ficou dispo-
nível no comércio em 1910 e o segundo foi objecto de
patente em 1921 (Eastaugh et al. 2004). Atendendo a
essa localização e ao facto de essas amostras terem sido
recolhidas em zonas de menor fluorescência de ultra-
violeta, esses dois pigmentos deverão ser de repintes
relativamente recentes, ainda que não documentados.
Conclusão
O retrato de José António de Oliveira Machado, como
muitas outras pinturas, aparenta estar em relativamen-
te bom estado de conservação, mas o estudo realizado
mostrou que no passado foi sujeito a diversas inter-
venções de restauro, algumas bastante importantes. As
mais significativas, ainda que seguindo princípios ilu-
sionistas diferentes dos princípios actualmente adop-
tados, parece terem sido executadas de forma minima-
mente cuidada, contrariamente a outras encontradas
na obra.
Os danos que motivaram estas intervenções mais exten-
sas suportam a hipótese de esta pintura ter entrado no
Depósito das Livrarias dos Extintos Conventos, caso em
que mostram as más condições de acondicionamento a
que as obras foram sujeitas.
No que diz respeito ao conhecimento dos processos de
restauro no passado, sobre os quais ainda há muito por
saber, os procedimentos e materiais aqui detectados
dão conta de uma diversidade de situações. Os resul-
tados obtidos poderão ser úteis no futuro para a iden-
tificação dos tratamentos de restauro noutras obras e
para o conhecimento da história material das mesmas.
No entanto, o estudo das intervenções parece ser mais
difícil do que o estudo dos materiais e das técnicas usa-
das na obra original, pois os materiais das intervenções
dos materiais de menor qualidade, uma vez que com
frequência se detectou a presença de branco de bário
(Ba e S) — um pigmento que é usado como carga, isto é
misturado com outros, para os tornar mais económicos.
Estes pigmentos mostram que o restaurador não se li-
mitava a usar os materiais tradicionais e que, por ou-
tro lado, os materiais disponíveis tinham algumas limi-
tações em termos de qualidade ou que o restaurador
não tinha especiais preocupações a esse respeito —
algo que parece ser pouco provável tendo em conta o
cuidado na sua execução.
Na intervenção seguinte que foi efectuada nos rasgões,
em que foi utilizada uma mistura de cré (identificado
através do Ca na ausência de S) com branco de zinco
(Zn) como massa de preenchimento, também foram
empregues branco de chumbo (Pb), negro animal (P),
vermelhão (Hg e S), ocre (Fe, Si e Al) e azul de cobalto
(Co e Al) — por vezes igualmente com carga de branco
de bário (Ba e S). Foi ainda usado o vermelho de Marte
(Fe, estando ausente Si e Al).
Da intervenção mais localizada que incidiu na zona in-
ferior da pintura e que é responsável pelas manchas de
maior opacidade aos raios X, apenas se dispôs de uma
amostra [figura 7]. Na camada superficial dessa amos-
tra, com cor castanha, foi usada uma mistura de ocre
castanho (Fe, Si, Al), negro animal (P) e um pouco de
vermelhão (Hg e S) — por um lado, pigmentos usados
nas outras intervenções, mas, por outro lado, pigmen-
tos que são dos mais comuns.
Numa das amostras que corresponde ao preenchimen-
to mais antigo dos rasgões, a camada cromática da
reintegração não assenta directamente na massa de
preenchimento, mas entre as duas existe uma camada
de material orgânico com cerca de 2 m que deve ter
função de isolamento [figura 9]. Uma camada com se-
melhante composição, mas bastante mais espessa (20
m), foi observada noutra amostra, mas directamente
sobre a camada original de preparação. Se resultam de
Figura 8. Lacuna de grande dimensão no canto inferior direito.
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António João Cruz y Carla Rego
Para a história do restauro de pintura em Portugal: as antigas intervenções ... pp. 5-13
não só se revelam através de uma forma fragmentada
como com facilidade vão sendo substituídos ou afecta-
dos durante as intervenções subsequentes.
Agradecimentos
Agradece-se à Biblioteca Nacional de Portugal, em es-
pecial à sua actual directora, Maria Inês Cordeiro, e a
Teresa Lança Ruivo, todo o apoio que tornou possível
este estudo; a Gonçalo Figueiredo (IPT) as fotografias
com iluminação normal, de luz rasante, de infraverme-
lho e de ultravioleta; a Vítor Gaspar (IPT) a radiografia
e a identificação das fibras; a Lígia Mateus e Andreia
Pardal (IPT) a preparação das amostras e sua fotografia
no microscópio óptico; e a António Candeias (Laborató-
rio Hércules) as facilidades que permitiram a realização
das análises através de microscopia electrónica de var-
rimento e espectroscopia de infravermelho. Finalmen-
te, agradece-se à Fundação para a Ciência e Tecnologia
o financiamento do projecto “Eneias – A colecção de
pintura da Biblioteca Nacional de Portugal: do resgate
do património artístico conventual na implantação do
Liberalismo ao estudo integrado de conservação e di-
vulgação” (PTDC/HIS-HEC/113226/2009), em que este
estudo se integra.
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Figura 9. Amostra recolhida na mão, junto ao punho do bastão:
microscopia óptica e imagem de electrões retrodifundidos (mi-
croscópio electrónico de varrimento) onde, no topo da camada
espessa da massa de preenchimento, se observa uma na cama-
da escura que corresponde a material orgânico, sobre a qual se
encontra a camada avermelhada da carnação.
Ge-conservación nº 7/ 2015. ISSN: 1989-8568
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António João Cruz
ajccruz@gmail.com
Doutoramento em Química Analítica (Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 1993). Professor Adjunto e director do Mes-
trado em Conservação e Restauro da Escola Superior de Tecnologia de Tomar, do Instituto Politécnico de Tomar. Principais interesses:
estudo laboratorial das obras de arte; tratados técnicos antigos relacionados com os materiais usados nas obras de arte; história dos
materiais; história da conservação e restauro. Director da revista Conservar Património e membro da comissão cientíca e referee de
diversas revistas nacionais e internacionais. E-mail: ajccruz@gmail.com.
Carla Rego
cmrego@ipt.pt
Doutoranda em Investigación y Creación en Arte (Universidade do País Basco) e Mestre em Museologia e Património Cultural (Universi-
dade de Coimbra, 2008). Docente de conservação e restauro de pintura e escultura na Escola Superior de Tecnologia de Tomar, do Ins-
tituto Politécnico de Tomar. Principais interesses: conservação e restauro de pintura (antiga e contemporânea) e escultura em madeira
policromada; história da conservação e restauro; gestão de colecções; museologia. E-mail: cmrego@ipt.pt.
Artículo enviado el 23/05/2014
Artículo aceptado el 14/04/2015
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