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A Cia na América Latina - Um Manual Chamado KUBARK

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Abstract

Artigo que mostra como a CIA utilizou técnicas de tortura na América Latina, por meio de seu manual de contra insurgência com técnicas psicológicas e físicas, inclusive treinando os agentes locais. Disponível no site da Editora: https://www.escala.com.br/leituras-da-historia-ed-130-p1247/
GEO | Cia é América Latina
Por Fernando Miramontes Forattini e Moisés Carlos Ferreira
U 

Nos anos 1960 a contrainteligência
norte-americana influenciou estratégias
repressivas na América Latina que
legitimavam o uso da tortura, violando
tratados nacionais e internacionais de
proteção aos direitos humanos
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KUBARK
© KERPETENLUI / ISTOCKPHOTO.COM
“El
dolor preciso, en el momento
preciso, en la cantidad pre-
cisa, para el efecto deseado”.
[…] [Dan Mitrione] el maes-
tro de la tortura de la CIA, a fines de los 60 y
principios de los 70 en América latina. (CLA-
RÍN, 02/09/2001). Essa fala de Daniel Mitrione1
traduz as reflexões que pretendemos abordar
no presente artigo: a influência de técnicas de
tortura e contrainteligência propagadas pela
CIA na América Latina via seu Manual KU-
BARK de 1963.
O aspecto que aqui investigaremos diz res-
peito às influências externas que os órgãos de
inteligência e treinamentos militares destes
países no Cone Sul que viviam sob o jugo de di-
taduras receberam entre os anos de 1960 e de
1980. Procuramos explicar como eles influen-
ciaram uma visão de mundo em que, dentro
do contexto da Guerra Fria, buscou-se legiti-
mar o uso da tortura em cidadãos de seus pró-
prios países com a ideia de que se vivia uma
guerra interna e que, portanto, não se deviam
respeitar as leis internas e internacionais, em
completo desrespeito aos direitos humanos.
1 Daniel Anthony Mitrione (Dan Mitrione) foi um ex-agente da CIA que atuou nos serviços de
inteligência brasileiro e uruguaio na década de 1960 e início da década de 1970. Sua função era
treinar os agentes destes países para ações que, em seu entender, “exigiam” uma forma especíca
de contrainteligência, envolvendo especialmente a tortura, utilizando-se, para isto, do Manual
KUBARK e seus preceitos.
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GEO | Cia é América Latina
Este manua l terá duas versões do mes-
mo texto, uma de 1963, a original, e uma
lançada mais à frente com alterações im-
provisadas, em 1983, em que os Estados
Unidos, sob forte pressão interna, bus-
cam reavaliar seus métodos de interroga-
tório e sua imagem. O manual foi escrito
como parte do “Programa de Assistência
de Inteligência Externa do Exército” da
CIA (codinome “Projeto X”) e foi usado
em diversos países da América Latina ao
longo das décadas de 1960 e 1980, a pon-
to de se tornar tão conhecido
por seus abusos que uma in-
vestigação foi instaurada no
Comitê de Inteligência do Se-
nado dos EUA em 1988 sobre
violações de d ireitos humanos
cometidos por militares hon-
durenhos treinados pela CIA.
Escolas das Américas
Por trás desses manuais
há, vale notar, um projeto de
maior escopo para além do
objetivo técnico: doutrinar
agentes e ganhar maior influ-
ência e informações desses
funcionários de outros países,
não só no alto como no baixo
escalão. Tudo isso dentro de
um projeto maior elaborado
com a “Escola das Américas”1.
Esta foi criada no Panamá, em 1946, pelos
EUA, com a denominação inicial de Cen-
tro de Adestramento Latino-Americano
– Divisão de Terra.
Foi uma escola para formação militar
e também um instituto do Departamen-
to de Defesa dos Estados Unidos que
acumulou entre suas funções a dissemi-
nação das Doutrinas de Segurança Na-
cional para os países da América Latina.
Seus principais objetivos eram manter
os interesses políticos e econômicos dos
EUA na América Latina, de forma a con-
ter organizações populares, bem como
os movimentos político-sociais de es-
querda que emergissem dentro do então
contexto da Guerra Fria, como ocorreu
em quase todos os países da América do
Sul que chegaram a passar por golpes
1 Esta “Escola” criou mais de sete Manuais ao longo do
tempo, somando mais de 1.170 páginas
de Estado com o apoio dos EUA, tendo
como caso emblemático a Guatemala2.
Podemos, também, citar outro pro-
jeto da CIA dentro do escopo desta Es-
cola chamado de Projeto MKULTRA.
Tratava-se de um programa que bus-
cava treinar e adquirir informação
para melhorar o processo de quebra
da resistência psicológica via o uso de
drogas psicotrópicas e outros proce-
dimentos, normalmente testados em
indivíduos sem prévio conhecimento.
Guardião e porta-voz
Desde o século XIX são conhecidas as
influências externas que a América La-
tina sofreu dos EUA. Desde a Doutrina
Monroe de 182 3 e seu lema “América para
os americanos”, teremos uma visão de
política externa estadunidense de que
este país seria o guardião e porta-voz
da América como um todo. Com o cha-
mado Corolário Roosevelt e a política do
Big Stick, a ideia de guardião passa a um
estágio de paternalismo e intervencio-
nismo em que as relações entre os EUA
e os outros países seriam cordiais desde
que agissem de acordo com os interesses
estadunidenses. Após a Segunda Guer-
ra Mundial, temos o período de Guerra
2 A reforma política e econômica iniciada na Guatemala
chocou com os interesses dos EUA na região, principalmente
com sua reforma agrária que, mesmo dentro de molde
capitalista, causou a fúria da empresa United Fruit Company,
implicando na queda do governo Arbenz em 1954.
Fria com maior intervencionismo, ide-
ológico, político e econômico na região
latino-americana, especialmente com a
Doutrina Truman e com a Aliança para
o Progresso de Kennedy.
Para melhor compreender este perío-
do, é necessário pensar no contexto po-
lítico-histórico da época, com a Guerra
Fria, Revolução Cubana de 1959, as crises
dos Míss eis em 1961 e o projeto de Kenne -
dy que visava a mpliar e de fender os inte-
resses estadunidenses em diversas áre-
as. A partir daí, o crescimento
da hegemonia estadunidense
na região, com a conivência dos
segmentos autocráticos que as-
sumem os poderes políticos no
interior do Estado, vinculou as
questões de segurança nacio-
nal a preceitos definidos pelo
país irmão.
Desta forma, o que ocorreu
nos países da América Latina
ao longo do século XX foi uma
distorção das Leis de Seguran-
ça Nacional, que passaram a
assumir uma função represso-
ra, culminando com a subordi-
nação de tais leis à Doutrina de
Segurança Nacional, protago-
nizadas em especial pelas esco -
las militares da região (Escola
Superior de Guerra no Brasil,
de 1949 – sob influência da National War
College) que articularam em seu interior
a formulação, orga nização e dist ribuição
dos preceitos das DSNs para outras ins-
tâncias da sociedade.
Tais escolas militares tiveram des-
taque na organização desses países, em
que assumem o papel de “guardiãs da
ordem social e política”, protetoras da
riqueza desses Estados e defensoras de
suas fronteiras. Para isso, utilizaram de
diversos métodos e estratégias. Os con-
ceitos básicos que compõem as DSNs
são: “… ‘inimigo interno’, ‘guerra interna’,
‘subversão’, ‘contrainsurgência’, ‘Estado
como ser vivo’, ‘objetivos nacionais’, etc.,
foram disseminados pelos países da re-
gião através de diversos mecanismos de
transmissão (doutrinação militar, acor-
dos na área do ensino, cultura, etc)”. (PA-
DROS, 2007, p. 44)
“P   
   
   ,  
  G F, -
      
    
       
   , ,
    
   ,
   
 ”
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Os manuais KUBARKs
Assim, fica claro que esses conceitos
citados permearam e subsidiaram os
aparelhos repressivos militares insta-
lados na América Latina ao longo dos
anos de 1960 e 1970 para que tais nações
sintam-se impelidas a proteger um ide-
ário, ao mesmo tempo que poderiam se
encontrar “protegidas” da disseminação
de ideologias externas. Tem-se, com isso,
a construção de duas espécies de inimi-
gos: os externos, que correspondem à
ameaça mais tradicional; e os internos,
representados pelos “subversivos”, os
partidários do comunismo e, por isso,
tidos como “agentes infiltrados”, apesar
de nacionais.
Esse modo de compreender o inimi-
go interno faz com que se desvincule a
ideia de nacionalidade, permitindo que
se aplique a estes o mesmo tratamento
dado a um inimigo de guerra (sob essa
nova compreensão tudo valeria, afinal
seria uma “guerra”). Ou seja, legitimam,
ideologicamente, mas não legalmente,
a tortura e outras práticas de guerra –
grande parte delas, incluídas no Manual
KUBARK de 1963.
O manual elaborado pela CIA em ju-
lho de 19633 é um documento extenso,
com 128 páginas, dividido, grosso modo,
em seções sobre o que seriam essas téc-
nicas; considerações legais e políticas;
quem deve ser o interrogador e como
identificar o interrogado; planejamento
do interrogatório; e o método não coerci-
tivo e o método coercitivo de interroga-
tório para fontes resistentes.
Ameaças e medos
Trata-se de um manual que se pre-
ocupará com todos os aspectos de um
interrogatório “bem-sucedido”, desde
temas mais gerais aos mais específicos.
Por exemplo, a recomendação de que ao
se escolher u m lugar par a interrogatório,
3 Disponível em: https://nsarchive2.gwu.edu//NSAEBB/
NSAEBB122/3-13-14_MR9864_RES_PART-1.pdf
“P 
 
,  
  
-
 , 
 G F,
R C
 1959,  
 M 
1961    
K  
  
 
 
 ”
© LUOMAN / ISTOCKPHOTO.COM
© REPRODUÇÃO
deve-se preocupar com a corrente elétri-
ca de antemão, para que transformado-
res e outros aparelhos elétricos possam
ser usados. Ou mais gerais, com descri-
ções de teorias psicológicas da época e
como as utilizar no interrogatório: como
na parte “Ameaças e medos” (pp. 82-104),
em que se explica que a ameaça de co-
erção é mais útil para quebrar a resis-
tência do interrogado do que a coerção
em si: “a ameaça de coerção usualmen-
te enfraquece ou destrói a resistência
mais efetivamente que a coerção em si.
A ameaça de infligir dor, por exemplo,
pode acionar medos mais devastadores
que a sensação de dor.”
Sobre “Dor” temos a descrição de que
a resistência à dor será ma is bem destru-
ída se o sujeito impor a dor a si mesmo,
ou seja, sem a as sociação de dor com o in-
terrogador. Assim, sugere-se que façam
com que o sujeito fique de pé por várias
horas, ou submeta-o a longos períodos
sem luz ou com som alto, ou ficando
por horas em posições de desconforto.
Qualquer coisa que possa levar a quase
um estado de loucura – para isso dizem
que a privação de sentidos s eria a melhor
forma, como ficar preso em um tanque
de água.
Entretanto, após décadas de utiliza-
ção destes preceitos, com o surgimento
de provas de infrações aos direitos hu-
manos por parte de agentes treinados
pela CIA, o manual foi reeditado, como
dissemos, de forma improvisada, nos
anos 1980. Neste período, ocorre uma
mudança de paradigma e novas estra-
tégias militares são implementadas de
forma que os EUA se mantivessem à
frente dos serviços auxiliares de inte-
ligência dos diferentes países em que
intervieram, sem perder o controle
desses países que, graças a esses méto-
dos, tornaram-se, nas palavras desses
m anuais, “incontroláveis”.
Mudança de paradigma
Para melhor conferir esta mudan-
ça de paradigma dos EUA, na página
7 do documento de 1983, há um típico
exemplo. Não mais se recomendam as
técnicas coercitivas e dizem que o que
se segue, o que era antes recomendado,
agora só está disposto para que os alu-
nos fiquem conscientes dessas técnicas,
mas que não a usem. A frase anterior “e o
modo correto de usá-las”, ao falar de mé-
todos coercitivos, para “para que você
evite usá-las”. Os mesmos procedimen-
tos ocorrem em outras páginas.
Na página 15, temos a substituição de
“técnicas coercitivas sempre requerem
aprovação anterior do HQS (Headquar-
ters)” para “técnicas coercitivas cons-
tituem uma impropriedade e violam a
política interna”. Já na página 17, temos
outra mudança. Neste caso, vemos um
tema muito caro aos Estados Unidos de
então: que o uso de agências “amigas/
auxiliares” podia fazer com que fiquem
“refém” e muitas vezes coautores de cer-
tos atos praticados por ag entes de outros
países.
Os escritores do manual descreviam
estes agentes como incompetentes em
sua função devido ao seu “treinamen-
to incompleto”. Assim, em seu tópico
“III. Disadvantages of working with liai-
son” (“Desvantagens de trabalhar com
agências amigas”), eles falarão sobre o
perigo de ficarem corresponsáveis e/ou
conhecidos por atos de que não deve-
riam tomar parte ou por evitar certos
problemas provenientes desta coope-
ração, como: a falta de treinamento em
questionamentos (resultando em infor-
mações falhas); corrupção; tendência em
reter informações; certas limitações po-
líticas e práticas; falta de segurança para
o sujeito que está sendo interrogado e
para o próprio agente estadunidense; e,
principalmente, uma “dependência do
uso de torturas e técnicas coercitivas”.
Cooperação de inteligência
Este texto parcialmente substituído
por algo ma is incisivo caso algumas des-
tas situações ocorressem: se elas ocor-
ressem, dever-se-ia rever a ligação entre
a CIA e o outro país imediatamente no
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© SELIMAKSAN / ISTOCKPHOTO.COM
Fernando Miramontes Forattini é graduado
em Filosoa pela Universidade de São Paulo
(USP), mestre e doutorando em História pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), com especialização na Transparency
International School on Integrity.
Moisés Carlos Ferreira é mestre e doutorando
pela PUC-SP com foco em conexões repressivas
entre Brasil e Argentina em suas ditaduras e
guerras de baixa intensidade.
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“A  
 
() 
  
 
 
  M
   1980”
que se refere à cooperação de inteligên-
cia (“possibility of having to terminate
assistance to liaison question in gif it is
learned that liaison uses torture and co-
ercitive techniques”).
As diferenças entre fazer perguntas
(interrogatórios) e aplicar torturas para
obter informações aparecem definidas
claramente no Manual da década de
1980. Proíbem-se o uso da força, tortura
mental, insulto, ameaça e tratamento
inumano. Afirma-se, também, que o seu
uso não é confiável quanto ao resultado
almejado; seria uma técnica pobre e ter-
minantemente proibida, pois os relatos
conseguidos mediante a força seriam
pouco confiáveis, atrapalhando a inves-
tigação subsequente.
Podemos ver como esses Manuais
tiveram forte influência na América La-
tina e em sua concepção de guerra inter-
na. A tortura foi institucionalizada por
esses militares, com o apoio financeiro
de empresários, como no caso brasileiro,
treinados nestas escolas militares in-
fluenciadas pela Escola das Américas de
onde surgiram esses Manuais.
Vírus disseminado
A concepção de guerra interna in-
fluenciou como o Estado ditatorial via
seu próprio nacional: um agente infil-
trado, subversivo, um inimigo externo
e, logo, que não estava sujeito às leis e
regras internas, mas a um código abo-
minável de guerra – que, por sinal, con-
trariava até mesmo os códigos morais
de guerra acertados em tratados inter-
nacionais, que proibiam a tortura. Esta
vira uma prática cientificada com este
Manual, como pudemos ver com a frase
de um de seus instrutores , Dan Mitrione,
e espalha-se como um vírus pela Améri-
ca Latina.
Com o desvendamento desses casos
e com a opinião pública estadunidense
condenando tais práticas, teremos uma
inflexão no uso da contrainteligência
na década de 1980. Mesmo interrogató-
rios que não usem a força, mas técnicas
como hipnose e drogas não são mais
recomendadas. Entretanto, um outro
problema aparece de forma secundária,
mas que é, para nós, o motivo funda-
mental desta mudança: a perda de lide-
rança moral e prát ica dos EUA com o uso
dessas técnicas fez com que se buscasse
a mudança. Infelizmente, após o atenta-
do de 11 de setembro de 2001, a ideia de
guerra interna, do inimigo disfarçado
volta à tona, bem como a “legalização”
dessas práticas, como vimos em Abu
Ghrabi e Guantánamo.
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