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Olho d’água, São José do Rio Preto, 11(2): p. 1–215, Jun.–Dez./2019. ISSN: 2177-3807.
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Feminismo King Kong: Paul B. Preciado e
Virginie Despentes fazem amor
ALÉXIA BRETAS*
* Professora do Bacha relado em Filosofia da Universidade Federal do ABC – UFABC – 09210-580 – Santo
André – SP – Brasil. E-mail: alexia.bretas@ufa bc.edu.br.
RESUMO: Avata r de uma sexualidade polimorfa e superpoderosa, King Kong encontra-se além
da fêmea e do macho, postando-se na encruzilhada entre o homem e o animal, o adulto e a
criança, o primitivo e o civilizado. É a possibilidade do híbrido diante da obrigatoriedade do
binário, como explica Despentes, autora de Teoria King Kong. O mesmo leitmotif, por sinal, ressoa
em Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica – ensaio corporal de
Paul B. Preciado, catalisado por dois eventos quase simultâneos: a morte do escritor Guillaume
Dustan e o encontro com Virginie Despentes. Aquilo que começa como a aproximação de duas
realidades incompatíveis em um plano que não as convém resulta em um fulgurante lampejo
sexo-lítero-filosófico produzido pela interpenetração de duas potentes versões de autoteoria
concebidas nos limiares do feminismo.
PALAVRAS-CHAVE: Paul Beatriz Preciado; Virginie Despentes; Pornografia; Queer;
Transfeminismo.
ABSTRACT: Avatar of a polymorphous and super-powerful sexuality, King Kong lies beyond
female and male, standing at the crossroads between man and animal, adult and child, good and
bad, primitive and civilized. It is a possibility of the hybrid before the mandatory of the binary,
as Virginie Despentes, author of King Kong Theory, explains. e same leitmotif resonates in
Testo Junkie: Sex, Drugs and Biopolitics in the Pharmacopornographic Era – Paul B. Preciado’s
body essay, catalyzed by two almost simultaneous events: the death of the writer Guillaume
Dustan and the encounter with Virginie Despentes. What begins as the approximation of two
incompatible realities on a plane that does not suit them results in a brilliant sex-literary-
philosophical flash produced by the interpenetration of two instigating versions of auto-theory
conceived at the threshold of Feminism.
KEYWORDS: Paul Beatriz Preciado; Virginie Despentes; Pornography; Queer; Transfeminism.
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Introdução
Conhecido por sua instigante e prolífica vida artística iniciada junto ao Dadá, Max
Ernst é o autor de uma das mais lapidares definições do método que, segundo Adorno,
corresponde ao princípio construtivo de toda a não pouco heterogênea produção
surrealista, seja ela visual ou escrita: a técnica da colagem.
Uma realidade pronta e acabada, cuja destinação original parece ter sido
fixada de uma vez por todas (um guarda-chuva), encontrando-se subitamente
em presença de outra realidade muito distante e não menos absurda (uma
máquina de costura), num lugar em que a mbas devem sentir-se deslocadas (uma
mesa de dissecção), escapará, por esse fato mesmo, à sua destinação original e
à sua identidade. Ela passará de seu falso absoluto, pelo desvio de um rela tivo,
a um absoluto novo, verdadeiro e poético: o guarda-chuva e a máquina de
costura farão amor. O mecanismo do processo parece-me desvendado por
esse exemplo singelo. A transmutação completa, seguida de um ato puro como
o de fazer amor, se produzirá forçosamente todas as vezes que os fatos dados
tornarem as condições favoráveis: conjunto de duas realidades aparentemente
incompatíveis num plano que presumivelmente não lhes convém (ERNST
apud BRETON, 2001, p. 330–331).
É, portanto, sob os auspícios da montagem surrealista que dou início a esta breve
intervenção, a qual, espero, faça jus aos choques e efeitos inquietantes quase sempre
provocados por uma abordagem um tanto heterodoxa do ponto de vista acadêmico. Pois,
alegoricamente, é assim que a mim se afigura o “encontro fortuito” de duas “realidades
apa rentemente incompatíveis” – como, por exemplo, o de um gua rda-chuva e uma máquina
de costura1 – entre Beatriz Preciado – que, na época, ainda se identificava por esse gênero
e por esse prenome – e Virginie Despentes. A primeira, espanhola de nascimento, filósofa
de formação, ex-aluna de Jacques Derrida e, por anos, vinculada à Universidade Paris 8,
onde ministrou diversos cursos de história da performance e oficinas de desconstrução
de gênero, nos quais buscava alinhar sua experiência intelectual e política como “lésbica
radical” junto às feministas norte-americanas e os então incipientes estudos queer na
França dos anos 2000. A segunda, natural de Nancy, escritora e cineasta agraciada em
2015 com diversos prêmios literários – como os Prix Anaïs Nin, o Prix Landerneau e
o Prix de la Coupole – pelo primeiro volume da trilogia Vernon Subutex – best-seller cult
aclamado como um “magistral e fulgurante” livro de combate concebido como uma
“formidável cartografia da sociedade francesa contemporânea”. Deste “acaso objetivo” e
não menos absurdo – para citar mais uma expressão tão cara ao vocabulário surrealista
1 A definição de Ernst se dá com base nesta célebre passagem de La utréamont – escritor maldito reconhecido
como um dos grandes precursores do surrealismo: “É belo como a retratibilidade das garras das aves de
rapina; ou a inda, como a incerteza dos movimentos musculares nas feridas das partes moles da região
cervical posterior; ou melhor, como essa ra toeira perpétua, que sempre é armada de novo pelo animal
capturado, que pode pegar sozinha os roedores, infinitamente, e funcionar até mesmo escondida sob a palha;
e, principalmente, como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecção de uma máquina de costura e um
guarda-chuva !” (LAUTRÉAMONT, 2005, p. 252).
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– surge uma paixão fulgurante e um amor duradouro: (Paul) Beatriz Preciado e Virginie
Despentes foram casadas por dez anos, vivendo juntas em Barcelona até 2014 – ano ao
fim do qual Beatriz decide tornar-se legalmente Paul Beatriz, um varão não normativo,
como ele próprio se denomina.
Pois bem, feitas as devidas apresentações, procedo à narrativa não simplesmente do
insólito rendez-vous pós-romântico entre uma ativista trans e uma feminista pornô-punk,
senão ao work in progress acionado pelo sublime contágio entre duas obras experimentais –
Testo Junkie e Teoria King Kong – engendradas no intercurso entre dois gêneros filosóficos
insoluvelmente apócrifos: a autobiogra fia e o ensa io corporal. Não por acaso, a fecundidade
de tal constelação escritural, performática e sexual fora recentemente reconhecida pela
própria Paris 8. Por intermédio do Laboratório de Estudos de Gênero e de Sexualidade
(LEGS), a Universidade sediou, entre os dias 14 e 15 de dezembro de 2016, o colóquio
Mutantes/Vampiros: em torno das obras de Virginie Despentes e Paul Beatriz Preciado. Segundo os
organizadores, trata-se de duas autoras que, não obstante a entusiástica recepção de seus
escritos, ainda permaneciam como outsiders da academia francófona. Assim é que, por
meio de uma série de intervenções universitárias, conferências, debates, performances e
peças teatrais, este evento interdisciplinar buscava exatamente preencher tal lacuna, ao
promover um “balanço científico” de suas respectivas contribuições para a literatura e
para os movimentos feministas, sem, contudo, negligenciar o caráter irredutivelmente
transversal de sua intensa experiência autoral, criativa e ativista. Neste sentido, enquanto
a obra literária, cinematográfica e documental de Despentes transita entre o romance,
a graphic novel, o ensaio, as canções, o panfleto e o manifesto, os trabalhos de Preciado
se apropriam igualmente destas duas últimas formas, além de enveredar pela ficção
filosófica, pela crônica, pela performance e, mais recentemente, também pela crítica
de arte e curadoria. A despeito das irredutíveis singularidades, em comum entre as duas
está a firme rejeição pelas noções de norma, sexualidade, gênero, identidade e feminismo
adotadas e reproduzidas pelo mainstream, tanto acadêmico quanto artístico.
Virginie Despentes
Seja como for, situado neste peculiar lugar de fala – o das mulheres “excluídas” –, Teoria
King Kong mostra a que veio, com uma potente enunciação performativa a vibrar como uma
sonora declaração de princípios de sua autora, a qual assume não ter a mínima intenção de
reclamar ou se desculpar pelo desassossego que promete causar sua iminente leitura.
Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal
comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande
mercado da boa moça. E começo assim pa ra que tudo fique bem claro: não me
desculpo por nada, não vim aqui para reclamar. Não trocaria de lugar com
ninguém, porque ser Virginie Despentes me parece um assunto muito mais
interessante do que qualquer outro (DESPENTES, 2016, p. 7).
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Deixando patente seu desdém por um certo Ideal de mulher “sedutora, mas não puta,
bem casada, mas não nula”, Virginie Despentes redige sua teoria de si a contrapelo do
discurso da boa moça. Assumindo a perspectiva contra-hegemônica das múltiplas figuras
do feminino marcadas pelos estigmas do negativo, ela compara: “Como mulher sou mais
King Kong do que sou Kate Moss” (DESPENTES, 2016, p. 8). A julgar pelo que a própria
autora sugere, King Kong assoma, aqui, como o maior epítome de uma sexualidade não-
binária, “polimorfa e superpoderosa”, gestada nos umbrais entre a civilização e a barbárie,
o bem e o mal, o macho e a fêmea.
King Kong [...] funciona como a metáfora de uma sexualidade que precede
a distinção de gêneros tal como politicamente imposta no final do século
XIX. King Kong encontra-se além da fêmea e além do macho. Esse ser está na
encruzilhada entre o homem e o animal, o adulto e a criança, o bom e o mau, o
primitivo e o civilizado, o branco e o preto. Híbrido, diante da obrigatoriedade
do binário (DESPENTES, 2016, p. 94).
Contra os regimes de normalização subjacentes aos binarismos compulsórios
não apenas de gênero, seu relato originário ganha corpo, não por coincidência, via a
rememoração do “evento fundador” que, ao mesmo tempo, a desfigura e a constitui, tanto
como escritora quanto como mulher: o estupro. Quanto a isso, afirma que:
O estupro, para mim, tem essa particularidade: ele nos deixa obsessivas.
Retorno a ele o tempo todo. Vinte anos depois, toda vez que penso ter acabado
com essa história, retorno a ele. Para dizer coisas diferentes, contraditórias.
Romances, contos, canções, filmes. Sempre imagino que um dia poderei pôr
um fim nisso. Liquidar o acontecimento, esvaziá-lo, esgotá-lo.
Impossível. Ele é fundador – disso que sou, como escritora, como mulher
que não se identifica exatamente como tal. É ao mesmo tempo aquilo que me
desfigura e aquilo que me constitui (DESPENTES, 2016, p. 45).
Ao mesmo tempo traumática e persistente, a experiência do estupro foi, por
sinal, o pretexto, seis anos antes da publicação de Teoria King Kong, para a deflagração
de uma outra polêmica, desta vez, inflamada pelo lançamento, em 2000, do filme Baise-
moi – literalmente, “Me foda” ou “Me estupre”. A película adaptava para a linguagem
cinematográfica a experiência lancinante publicada originalmente no livro de mesmo
nome, o qual, em 1993, marcaria sua estreia como escritora pela Florent Massot. Entre os
fatores que explicam a celeuma em torno do filme, contam-se, primeiro, sua classificação
como impróprio para menores e, em seguida, seu enquadramento na categoria “X” –
aplicada apenas a películas de “pornô hard”. Os motivos principais para este rebaixamento
“preventivo” fora m, alegadamente, a recorrência de cenas de sexo não simuladas, bem como
o incentivo à violência e ao terror. De fato, o filme é protagonizado por atrizes e atores
pornôs, e se encerra com uma apoteótica vendetta “ultrafeminista” na qual os estupradores
são furiosamente fuzilados por suas vítimas. Na prática, tanto as críticas moralizantes,
quanto a interdição pela censura tiveram um efeito devastador em sua recepção, já que
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apenas uma sala em toda a cidade de Paris, a MK2 Odéon, e somente uma meia dúzia
em todo o país, estariam dispostas a exibir este tipo de produção insubmissa. Diante do
escândalo, sem dúvida, alimentado pela postura retrógrada assumida pelo Conselho de
Estado sob pressão de grupos conservadores religiosos e políticos, criou-se uma intensa
mobilização de artistas, cineastas e ativistas em apoio a Virginie Despentes e pela liberdade
de expressão, entre os quais estava o próprio Jean-Luc Godard. Assinada por Pascal
Mérigeau, uma matéria publicada em 28 de junho de 2000 pelo jornal de centro-esquerda
Le Nouvel Observateur pode ser apontada como o pivô desta acalorada controvérsia, de
certo modo, contribuindo para disseminar o posicionamento fundamentalista daqueles
dispostos a “promover os valores judaico-cristãos e obstaculizar o incesto, o estupro e o
homossexualismo”. Além de acusar Baise-moi de ignorar o caráter meramente “sugestivo”
do cinema como “arte da alusão”, propondo, em vez disso, uma “reconstituição servil da
realidade do sexo”, a crítica do Le Nouvel Observateur insistia em desqualificar a película,
mesmo quando comparada a outros títulos polêmicos como Os idiotas, de Lars von Trier,
O romance, de Catharine Breillat e Cães de aluguel, de Quentin Tarantino, por exemplo.
No entanto, longe de ser apenas uma propaganda pornográfica embalada por
“estupros, carnificina e música techno”, Baise-moi é algo inteiramente outro que um
mero “filme a serviço da barbárie” – como alegavam, em coro, seus detratores. Tanto
o livro quanto a película cinematográfica significaram para a sua autora a chance de
lidar proativamente com o trauma inevitável do estupro, contribuindo para não se deixar
abater e, por fim, sucumbir à subalterna posição de vítima – agredida, humilhada e quase
sempre silenciada, seja pelos sentimentos de impotência e culpa, seja pelo temor de futuras
repercussões. Despentes, ao contrário, assume em público uma postura nada passiva,
sendo empoderada, paradoxalmente, pela própria vulnerabilidade imanente. Como ela
relembra, nos idos dos anos 1990, escritos da “pós-feminista” Camille Paglia como Vamps
and Tramps vieram ao encontro das ideias e afetos desta então jovem aspirante a escritora,
oferecendo importantes argumentos para que a experiência de abuso e violação sofrida
não tivesse por fim o impacto de uma fatídica tragédia pessoal – degradante, aniquiladora e
insuperável –, senão acenasse como o ponto de virada para uma a utêntica transubsta nciação
de sua persona sexual tanto como artista, quanto como mulher não normativa.
Na verdade, este processo, sem dúvida, catártico de “cura”, renascimento e reinscrição
performativa do corpo não permaneceu circunscrito ao registro simbólico exclusivamente.
Depois do ocorrido, Despentes, fênix do sexo, adere à prostituição e, após algum tempo,
também ao trabalho remunerado como atriz em diversos filmes pornôs de baixo orçamento:
A prostituição foi uma etapa crucial, no meu caso, da reconstrução depois do
estupro. Um esforço de indenização, nota por nota, daquilo que me havia sido
tirado com brutalidade.
Aquilo que eu podia vender, a cada cliente, havia até então mantido intacto. Se
o vendia dez vezes seguidas, é que aquilo não se estragava com o uso. Esse sexo
pertencia só a mim, não perdia seu valor à medida que era utilizado e podia
ser rentável. Novamente, me encontrava numa situação de ultrafeminilidade,
mas dessa vez eu tirava um benefício líquido (DESPENTES, 2016, p. 60).
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Ressaltando o papel essencialmente disruptivo daquilo a que se refere como “ritual
de sacrifício do pornô”, Despentes pretende não simplesmente chocar ou desestabilizar
os velhos bastiões da moral e dos bons costumes, senão fazer de sua experiência corporal
um eloquente testemunho de resistência e luta contra os expedientes sócio-normativos
da sexualidade, os quais, em nome da preservação dos valores tradicionais, acabam por
legitimar uma ordem social “fundada na exploração de todos”.
Entendemos então que a única maneira de explodir o ritual de sacrifício do
pornô será levar as filhas de boa família para ele. Aquilo que explode, quando
se explodem as censuras impostas pelos dirigentes, é a ordem moral fundada
na exploração de todos. A família, a virilidade guerreira, o pudor, todos esses
valores tradicionais são concebidos para designar um papel a cada um. Os
homens, em cadáveres gratuitos para o Estado, as mulheres, em escravas dos
homens. No final, todos muito bem servidos, nossas sexualidades confiscadas,
policiadas, normatizadas. Há sempre uma classe social interessada em que as
coisas permaneçam como estão, e que a verdade sobre suas motivações mais
profundas não seja dita (DESPENTES, 2016, p. 91).
Sua démarche encontra intensa ressonância junto à experiência artística e política
de feministas sexo-positivas como Annie Sprinkle, Norma Jean Almodóvar e Carol
Queen, dentre tantas outras. Articulando-se como movimento a partir da querela com
as feministas antipornografia, notadamente a partir dos anos 1980, este grupo bastante
heterogêneo de mulheres reúne desde trabalhadoras sexuais a escritoras, sociólogas,
cineastas, performers e ativistas empenhadas em desassociar a pornografia do discurso da
objetificação compulsória do corpo feminino – tornado hegemônico, em especial, pela
voz das militantes de orientação marxista e/ou socialista.
Neste sentido, o documentário Mutantes: feminismo pornô-punk, dirigido por
Virginie Despentes entre 2005 e 2009, é especialmente elucidativo de seu notório
amadurecimento como cineasta e feminista pró-sexo. Composto de uma série de shows,
conversas e entrevistas com alguns dos nomes e corpos mais proeminentes da cena pós-
pornográfica pulsante em São Francisco – cidade que Paul Beatriz Preciado viria chamar
de “o clitóris da América” (PRECIADO, 2017) –, o filme fora exibido pela rede Pink TV
em 2009 e lançado em DVD pela Blaq Out em 2010, com a importante contribuição de
Marie-Hèléne (Sam) Bourcier e da própria Beatriz Preciado – quem, por sinal, aparece
nominalmente nos créditos como “curadora de gênero”. Em trânsito por cidades norte-
americanas, francesas e espanholas, o documentário dialoga com algumas das vozes mais
eloquentes entre manifestações estético-políticas as mais diversas como, por exemplo,
o pornô Butch/Fem ( Jackie Strand), o punk lésbico (Lynee Breedlove), o BDSM (Maria
Beatty, Betony Vernon, Madison Young), as performances drag king e trans (Del Lagrace
Volcano), além de apresentar o trabalho criativo de vários coletivos queer como os Dirty
Diaries, o Post OP e o La Quimera Rosa.
Em suma, punk pela origem, mutante por vocação, a reconstituição da trajetória
artística e biográfica de Despentes – iniciada com Baise-moi, encorpada em Teoria King
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Kong e lapidada em Feminismo pornô-punk – só faz reforçar a distância programática
mantida tanto do feminismo mainstream quanto das mais diversas militâncias avessas
ao reconhecimento de sua própria heterogeneidade interna. Confirmando sua verve
insubmissa, a autora conclui seu libelo contra todas as formas de normatização e gestão
social da sexualidade, em particular, das mulheres, com um eloquente apelo em prol de
uma verdadeira revolução em processo:
O feminismo é uma revolução, não um reagrupamento de conselhos de
marketing, não apenas uma vaga promoção da felação ou dos clubes de swing,
não se trata apenas de melhorar os salários. O feminismo é uma aventura
coletiva para as mulheres, para os homens e para os outros. Uma revolução
em marcha. Uma visão de mundo. Uma escolha. Não se trata de opor as
pequenas vantagens das mulheres às pequenas conquistas dos homens, mas de
dinamitar tudo isso.
Dito isso, boa sorte meninas, e boa viagem... (DESPENTES, 2016, p. 121).
Paul Beatriz Preciado
Se o feminismo é uma revolução em marcha, (Pa ul) Beatriz Preciado assume seu luga r
entre as insurgentes, dando início, em 2005, ao exercício performativo de desconstrução de
si, cujos protocolos seriam publicados, em 2008, como Testo Junkie – literalmente, “viciada
em testosterona”. Durante 236 dias, ela se aplica, diariamente, 50 mg de testosterona em
gel, com o propósito maior não exatamente de efetuar a passagem de uma ficção política
a outra, senão de transgredir os limites do sexo que lhe foram impostos socialmente. Neste
sentido, após renunciar à identidade feminina, Paul Beatriz assumirá publicamente sua
nova persona em fins de 2014, vindo a consumar juridicamente a mudança de gênero em
16 de novembro de 2016. Para situar a alteração de nome de seu autor, lê-se em nota
de esclarecimento à quarta edição norte-americana de Testo Junkie – obra finalista do
prêmio Anagrama (2010):
“Em uma data que não posso me lembrar ao certo, entre 18 e 22 de dezembro
de 2014, tomei a decisão (indecidível) de mudar meu nome para Paul – como
os escravos, depois de comprar sua liberdade escolhiam novos nomes, como
os nomes das vilas palestinas mudarão quando forem pronunciados mais uma
vez por aqueles em exílio” (PRECIADO, 2013, p. 10).
Ressaltando o aspecto essencialmente libertador e autopoiético de tal gesto fundador,
Preciado enfatiza que não se trata de uma transição derradeira de uma construção
normativa a outra, senão de uma performance subversiva mobilizada como “prática de
deslocamento e resistência” (PRECIADO, 2013, p. 10) irredutivelmente coletiva. Solicitando
aos leitores o direito de usar esta “máscara”, o autor chama atenção à tríplice dimensão do
nome, simultaneamente, como “rastro”, “apagamento” e “promessa”. E adverte: “entendam
que Paul absorve e assume tudo que um dia foi BP” (PRECIADO, 2013, p. 10).
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Esclarecida a questão da autoria, Testo Junkie tem início com uma descrição precisa
de sua própria genealogia:
Este livro não é uma autoficção. Trata-se de um protocolo de intoxicação
voluntária à base de testosterona sintética que concerne ao corpo e aos
afetos de BP. É um ensaio corporal. Uma ficção, é claro. Em todo caso, e se
for necessário levar as coisas ao extremo, uma ficção autopolítica ou uma
autoteoria. Durante o tempo que dura este ensaio sucedem duas mutações
externas no contexto próximo do corpo experimental, cujo impacto não tinha
sido calculado, nem poderia ter sido computado como parte deste estudo,
porém, constituem os dois limites em torno dos quais se adere a escritura:
primeiro, a morte de GD, condensado humano de uma época que se desva nece,
ídolo e último representante francês de uma forma de insurreição sexual
através da escritura; e, quase simultaneamente, o tropismo do corpo de BP
até o corpo de VD, ocasião irrenunciável de perfeição e de ruína (PRECIADO,
2013, p. 11).
O luto pela morte do amigo Guillaume Dustan é, sem dúvida, fundamental para se
compreender o caráter de “renascimento” indissociável deste exercício de transmutação
corporal, no qual a literatura e o erotismo se fecundam e se confundem em uma forma
inebriante de ativismo sexual de alta voltagem filosófica e política. “Je vis dans un monde
où plein de choses que je pensais impossibles sont possibles”2 (DUSTAN apud PRECIADO, 2013,
p. 7), diz a epígrafe extraída do romance mais conhecido de GD, Dans ma chambre (1996), a
funcionar como uma espécie de vaticínio daquilo a que (Paul) Beatriz se refere, ma is adiante,
como a própria encarnação das metamorfoses de uma época (PRECIADO, 2013, p. 22).
Transgredindo e reenquadrando a questão kantiana sobre as condições de
possibilidade de um pensamento corporificado e em trânsito permanente entre o impossível
e o improvável, ela retoma as contingências físicas e libidinais que tornaram factível seu
encontro – no limite, “surreal” – com Virginie Despentes – “ser perfeito”, no qual, segundo
BP, o feminismo e a pornografia se interpenetram, atingindo o âmago do sublime.
Nós nos encontramos em um momento fractal, no limite de uma tragédia
tecnogrega: ela estava começando a sair com meninas, e eu a aplicar
testosterona. Ela está se tornando lésbica; e eu estou me tornando qualquer
coisa que não uma ga rota. Ela ama peitos, eu amo pintos. Mas ela é o que estou
procurando. E eu sou o que ela está procurando. Ela tem o pau do qual preciso,
e eu tenho os peitos que ela quer. Cada um desses vetores da vida poderiam
ter se movido em uma direção diferente, mas convergiram em nossa direção e
se encontraram aqui, exatamente, sob sua pele e a minha (PRECIADO, 2013,
p. 86-87).
Assim como as montagens surrealistas de Max Ernst eram configuradas a partir
da aproximação de duas realidades aparentemente incompatíveis em um plano que
supostamente lhes era estranho, os choques provocados pelo corpo de VD no corpo de BP
2 No original: “Vivo em um mundo onde muitas coisas que pensei impossíveis são possíveis” (DUSTAN apud
PRECIADO, 2013, p. 7).
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acendem as centelhas de um transfeminismo à flor da pele, retroalimentado pela “força
orgásmica” – potentia gaudendi –, gerada pela excitação total de um corpo.
Quando nós transamos, sinto como se minha história política inteira, todos
os meus anos de feminismo, estivessem se movendo em direção ao centro
do seu corpo e fluindo com ele, como se sua pele oferecesse seu único nicho
real. Quando eu gozo, Wittig e Davis, Woolf e Solanas, La Pasionaria, Kate
Bornstein e Annie Sprinkle borbulham comigo. Ela está coberta com meu
feminismo como se fosse uma ejaculação diáfana, um mar de cintilância
política (PRECIADO, 2013, p. 97).
Combustível alta mente inflamável, Virginie ca talisa um turbilhão de ena moramento,
obsessão e volúpia que Preciado compara, de modo não apenas figurativo, às espirais de
sensações causadas pelas próprias drogas. “Dependente de Despentes” (PRECIADO, 2013,
p. 251): com esse trocadilho, reconhece estar duplamente viciada em testosterona e em
sexo, sendo em ambos os casos VD seu ponto de partida e de chegada.
Ela está escrevendo o seu livro, Teoria King Kong, diante de mim. As costas muito
retas. O cabelo loiro ema ranhado de roqueira, um anel em cada dedo. Na mão
direita, um crânio e ossos cruzados; na mão esquerda, um diamante falso. De
vez em quando ela enrola um falso baseado e o fuma enquanto escreve, sem
olhar para o teclado e com a velocidade de uma impressora eletrônica. Eu leio
seus capítulos recém-acabados, recebo-os como bebês ainda adormecidos que
acordam pela primeira vez diante dos meus olhos. Fico excitada. Reconheço
a voz que me excita, a voz que me come: uma voz de adolescente punk que
aprendeu a falar com um programa de produção de gênero de homem cis,
uma mente aristocrática de loba futurista que habita um corpo de puta, a
inteligência de uma vencedora do prêmio Nobel encarnada em um corpo de
vira-lata. Um milagre biopolítico: a evidência de que novas recombinações
genético-políticas e literárias são possíveis. (PRECIADO, 2013, p. 320-321).
Tal “milagre”, no entanto, traz resultados desestabilizantes, sobretudo, em relação à
identidade de Beatriz como ativista feminista e “sapatão trans” (gouine trans): “Que tipo de
feminista eu sou hoje: uma feminista viciada em testosterona, ou um corpo transgênero
viciado em feminismo?” (PRECIADO, 2013, p. 21-22). Longe de chegar a uma resposta
definitiva, experimenta a dissolução de fronteiras entre o “feminino” e o “masculino”, o
“animal” e o “humano”, celebrando as glórias dessa indeterminação existencial como uma
reprogramação endócrina com desdobramentos inesperados e fins políticos.
Ela me induz a produzir uma forma de feminilidade que nunca havia me
permitido. Não uma feminilidade essencial, nem uma na tureza que estivesse
escondida em mim por trás do drag king, mas um tipo de “feminilidade
masculina”, uma “feminilidade drag king”. Sou sua cachorra king, sua puta
trans, um menininho que mostra sua periquita por trás de seu enorme
pau. Eu me torno sua escrava, sendo raivosamente aberta, como uma
ninfomaníaca que abre todas as braguilhas procurando sexos para levar à
boca, para enfiar em cada um dos meus orifícios. Sem ela, se não a tivesse
conhecido, teria me conformado com meu insaciável instinto de penetração.
Olho d’água, São José do Rio Preto, 11(2): p. 1–215, Jun.–Dez./2019. ISSN: 2177-3807.
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Só ela, a rainha das putas, estava autorizada a transformar este corpo em
um buraco permanentemente aberto à sua disposição. Gloriam penetrationis
(PRECIADO, 2013, p. 318).
Assim, recusando-se a aderir a um certo projeto de masculinização prescrito pelos
discursos médicos e propagado pela indústria farmacopornográfica, o filósofo busca
situar seu auto-experimento corporal à luz não da disforia de gênero, senão da categoria
deleuziana do “devir molecular”.
Mas de todos os efeitos mentais e físicos causados pela autointoxicação
baseada em testosterona em gel, a sensação de transgredir os limites do gênero
que me foram socialmente impostos foi, sem dúvida, o mais intenso. O novo
metabolismo da testosterona no meu corpo não seria efetivo em termos de
masculinização sem a existência prévia de uma agenda política que interpreta
essas mudanças como uma parte integral de um desejo – controlado pela
ordem farmacopornográfica – de mudança de sexo. Sem este desejo, sem o
projeto de estar em trânsito de uma ficção sexual a outra, tomar testosterona
não seria algo além de um devir molecular (PRECIADO, 2013, p. 143).
São Valentim é um lixo
Em crônica publicada pelo Libération em 5 de agosto de 2014, intitulada “A
estatística, mais forte que o amor”, Preciado reflete sobre o término de sua relação com
Virginie Despentes, valendo-se de um quadro comparativo, à la Descartes, apoiado nas
certezas inabaláveis dos cálculos matemáticos. A partir de uma análise dos números que
traçam uma espécie de raio-X das relações amorosas na França, chega à conclusão que
“a estabilidade é um fator de controle político. Portanto, uma sociedade na qual todos os
casais se separem seria uma sociedade revolucionária, talvez, a sociedade da revolução
total” (PRECIADO, 2014). Mostrando-se, a um só tempo, surpreendida e aliviada de
encontrar-se, para todos os efeitos, “dentro da norma”, confessa sentir-se bem diante da
confiável imobilidade das cifras.
Depois de uma releitura detalhada dos meus diários e de uma conta
escrupulosa feita graças ao tempo livre e à energia obsessiva que deixam
as rupturas, calculo que eu a amei em 93% dos dias que passei com ela. Que
fui feliz 67% do tempo, infeliz 11%. Não posso me pronunciar, por falta de
memória ou recenseamento preciso, sobre 22% do tempo restante. Fizemos
amor 60% dos dias, com 90% de satisfação nos três primeiros anos, 76% nos
dois seguintes e apenas 17% durante os últimos. Dormimos juntas 87% das
noites, nos abraça mos antes de dormir 97,3% dos dias. Fomos para a cama
juntas 99% dos dias. A qualidade relativa (98%) das palavras trocadas durante
nossa relação foi quase invariável ao longo do tempo – à exceção dos dias que
precederam a separação (PRECIADO, 2014).
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Ao “prever” o destino mesmo de um casal nada paradigmático composto por um
“trans in between não operado” e uma mulher fora dos padrões, as estatísticas revelam-se,
por fim, mais estáveis que o amor e a própria política queer. Diante do fato, (Paul) Beatriz
conclui melancolicamente sua narrativa, destacando a incompatibilidade entre a energia
requerida para a revolução e o esgotamento resultante do colapso amoroso.
Nosso casal, hipérbole da perversão segundo a psicologia heterocentrada,
está perfeitamente dentro da norma. Nunca os instrumentos da biopolítica
hegemônica me reconfortaram tanto. Constato assim que a capacidade de
agenciamento crítico e de rebelião é inversamente proporcional à intensidade
do sofrimento amoroso. Como Spinoza anunciara em 1677, antes da invenção
da estatística, um único e mesmo afeto não pode ser empregado em direções
divergentes. Estou na época da ruptura e das agitações que tocam diretamente o
plexo solar, fazendo fugir os heróis. Tem início no meu coração a batalha entre
o apaziguamento da estatística e o furor da revolução (PRECIADO, 2014).
Mas se a crônica redigida ainda sob o estado “comatoso” do fim de seu casamento
termina por constatar certo arrefecimento do pathos de insubmissão política diante da
fatalidade dos números, alguns meses depois, Preciado – inteiramente refeito em suas
ganas revolucionárias – reelabora suas reflexões, desta vez, ressaltando que a forma–
amor–entre–um–casal deve ser superada em nome de novos modos de viver o desejo e a
potência de gozo entre duas (ou mais?) máquinas vivas. Ao definir o amor não como um
sentimento, senão como uma “tecnologia de governo dos corpos” encarregada de gerir a
reprodução social, desafia São Valentim – o protetor dos enamorados –, concluindo seu
texto com loas antiplatônicas ao amor anormal.
Isto é o que nós faremos: destroçar a ficção normativa do amor e correr.
Cada um a sua maneira, a partir da precariedade, tentamos agora inventar
outras tecnologias de produção de subjetividade. E agora que já não creio
mais no amor, pela primeira vez, estou preparado para amar: de forma finita,
imanente, anormalmente. Ou dito de outro modo, sinto que começo a me
preparar para a morte. Feliz São Valentim (PRECIADO, 2015).
BRETAS, A. King Kong Feminism: Paul B. Preciado and Virginie Despentes Make Love.
Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 11, n. 2, p. 146-157, 2019. ISSN 2177–3807.
Referências
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LAUTRÉAMONT. Cantos de Maldoror. Tradução: Claudio Willer. São Paulo: Iluminuras,
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Era. Tradução: Bruce Benderson. New York: e Feminist Press at the City University of
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Recebido em: 29 ago. 2019
Aceito em: 27 set. 2019