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Nascentes
Fólio – Revista de Letras
Vitória da Conquista
v. 11, n. 2
jul./dez. 2019
SEXUALIDADE, SEGURANÇA E DISCIPLINA:
CORPO E DISCURSO FÍLMICO EM
“REFORMATÓRIO DAS DEPRAVADAS” (1978), DE ODY FRAGA
Tyrone Coutinho Chaves Filho*
Nilton Milanez**
RESUMO: Nosso intuito, com esse artigo, é problematizar o corpo em meio às relações
de poder/saber que o marca historicamente, produzindo um tipo específico de visibilidade
para o sujeito, para o sexo e sexualidade. Dessa forma, partimos da materialidade fílmica
de “Reformatório das depravadas”, um drama erótico dirigido em 1978 por Ody Fraga,
para verificar, fílmico-discursivamente, como o corpo é atravessado por uma política dis-
ciplinar e de controle, no interior de um momento específico da história brasileira, que
mobilizam e ventilam discursos acerca de um modelo ideal de sexualidade e políticas de
vida. Este trabalho se insere nos estudos da Análise do Discurso de linha francesa, cuja
principal contribuição são os postulados de Michel Foucault.
PALAVRAS-CHAVE: Corpo; Sexualidade; Segurança; Discurso; Foucault.
Introdução
Existe na sociedade, desde o século XVIII, uma política em torno dos corpos que
tem consistido, como mostra Foucault (2008), em resolver os problemas sociais que, à
época, na Europa, tratava-se inicialmente, ou em todo caso mais urgentemente, de questões
* Mestre em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
** Professor Pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Doutor em Linguística e Língua Portu-
guesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) campus de Araraquara. Pós-doutor
(PDE/CNPq) em Discurso, Corpo e Cinema na Sorbonne Nouvelle, Paris 3.
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ligadas à permanência e desenvolvimento das espécies em relação à saúde. Para que a saúde
e, consequentemente, a garantia de vida fosse assegurada, a sociedade se viu obrigada, por
meio de seus governos, a invocar estratégias que consistiam tanto em dispor melhor o
espaço urbano quanto a forma como os doentes eram afastados do convívio com os demais
ou como se administravam a morte (os cadáveres) e a doença, em potencial, que dali po-
deriam emergir. Nesse mesmo período, embora não concomitantemente, uma profusão de
discursos enquanto cuidados em torno da sexualidade dos sujeitos começam a circular,
conforme Foucault (1988) e, a partir daí, o sexo começa a figurar no centro de toda uma
intervenção de segurança, segurança essa que consistia na administração das espécies atra-
vés de um biopoder que se operava por meio da gestão da saúde, da natalidade, dos usos
dos prazeres, da sexualidade de modo geral. É nesse contexto que o corpo se configura
como um espaço ideal para intervenções diversas, que correspondem a toda uma aparelha-
gem que tem por finalidade esquadrinha-lo, observa-lo, diagnostica-lo, vigia-lo, tudo em
nome da tentativa de confirmar a segurança da espécie. Não à toa a sexualidade dos ado-
lescentes, como a masturbação, começa a ser vigiada, ou há toda uma campanha contra o
incesto ou simplesmente uma divulgação exaustiva do casamento como formas de exercer
uma sexualidade “sadia” para que o futuro das espécies pudesse descansar em leito tran-
quilo. Como afirma Foucault (1988, p. 27), “no século XVIII o sexo se torna questão de
‘polícia’”, não no sentido de se ter que reprimi-lo, proibi-lo, silenciá-lo, mas no sentido de
se arrolar a ele um rigor e um alerta em nome de uma maior utilidade social. O sexo passa
a ser policiado. E não só por uma polícia propriamente, braço operador de um discurso
jurídico, mas pela igreja e por toda a sociedade. Todas essas questões acampam o cerne de
um ideal de sociedade que aspira a um sucesso que só é possível visualizando em seu hori-
zonte uma gestão calculada da sexualidade. Segundo Foucault (1988, p. 29),
É verdade que já há muito tempo se afirmava que um país devia ser
povoado se quisesse ser rico e poderoso. Mas é a primeira vez em
que, pelo menos de maneira constante, uma sociedade afirma que
seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao número e à
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virtude dos cidadãos, não apenas às regras de casamentos e à orga-
nização familiar, mas à maneira como cada um usa seu sexo. (FOU-
CAULT, 1988, p. 29)
Instala-se, dessa maneira, uma ortopedia social (FOUCAULT, 2013, p. 87) cujo ponto
de partida para o tratamento é a sexualidade. Desde os colégios, no século XVIII, até os
espaços civis, públicos ou privados, a sociedade começa a adquirir uma arquitetura propícia
para a vigilância dos corpos. Um panoptismo sexual que inserirá, no corpo, as marcas de um
constante controle que fará do sexo um intocável lugar, um lugar de obscura e mística
verdade. Nesse sentido, esses espaços denotam não somente uma sociedade de controle e
de disciplina, mas uma sociedade de segurança. Trazendo Foucault (2008, p. 16) para a
discussão, esquematicamente nós teremos uma sociedade tripartite que exercerá a gover-
namentalidade nos seguintes níveis: a soberania em relação ao território, a disciplina sobre
o corpo dos indivíduos e a segurança sobre a população.
Dessa maneira, o corpo é pensado não como um lugar individual e íntimo, mas
como uma engrenagem essencial que faz funcionar a sociedade. O corpo, objeto de segu-
rança social, se torna uma superfície onde políticas múltiplas se desenvolvem para manter
o bem-estar da sociedade: é nesse ponto que o corpo se torna, acima de tudo, um elemento
indispensável de governabilidade. No final do século XVIII, com a Revolução Industrial e
a “descoberta” do corpo como potencialidade produtiva, em termos capitalistas, esse res-
guardo e essa governamentalidade a qual nos referimos se intensifica ainda mais.
Obra de vigilância e de interferência, o corpo passa a figurar no centro de toda uma
produção, tanto material quanto de saber. Este último é que nos interessa, na medida em
ele se presta ao nosso intuito de encontrar na sexualidade, na vigilância e no poder formas
de produção e circulação de discursos.
Assim, o intuito desse artigo é verificar, a partir de uma materialidade fílmica de
1978, como uma biopolítica é capaz de, discursivamente, emergir um ideal de corpo e de
políticas de vida segundo as condições de existência para o sujeito em um momento sócio
histórico específico, no nosso caso aqui, o final da década de 1970, momento que o país
atravessava uma ditadura civil-militar, período que compreendeu os anos de 1964 até 1985.
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Portanto, nossa análise consiste em avaliar o corpo discursivamente em um período histó-
rico da vida brasileira, para problematizar o tipo de visibilidade possível em meio a uma
disciplinarização que visava a produzir um ideal de sujeito.
Reformatório das depravadas: corpo, norma e controle.
Inegavelmente vivemos em uma sociedade de controle. Mas esse controle só é cer-
tificado mediante uma vigilância, que por sua vez, procura verificar o estabelecimento de
normas e de instituir um raio-X social, cuja preocupação assegura uma estrutura social uni-
forme, não no nível dos indivíduos, mas no nível de direitos e deveres que dão fundamento
ao funcionamento regular de uma sociedade. Nesse sentido, é o corpo o espaço central de
intervenção: corpo, corpo-espaço e corpo-população se configuram enquanto lugares onde
uma ordem do discurso deverá sempre ser alcançada. Nesse contexto, a materialidade fíl-
mica de Reformatório das depravadas, filme dirigido em 1978 por Ody Fraga, constitui um
interessante exemplo, enquanto metonímia, para o funcionamento dessa sociedade de ob-
servação-controle.
No interior de uma escola de correção para moças de classe média que não conse-
guiram se adequar às normas preconizadas, principalmente, por seus estratos sociais de
origem, a vigilância e a disciplina são rígidas e constituem elementos decisivos na pedago-
gização dos corpos. Deste modo, o reformatório, coordenado por uma diretora rigorosa,
se torna o lugar para onde o olhar social irá confluir para se retirar de lá um saber não só
sobre a transgressão, puramente, mas da transgressão enquanto mecanismo de reafirmação
da norma, uma vez que uma existe para ratificar a outra.
Dessa maneira, essa materialidade fílmica, assim como inúmeras que fazem parte
da assinatura da pornochanchada ou aquelas que se enquadram sob a classificação WIP
(Woman in prison), mobiliza discursos em torno dos modos de subjetivação e formas de
adequação do corpo consoante um poder que orienta a nossa constituição enquanto sujei-
tos. Esse poder, é importante frisar, só o é enquanto algo que produz saber. Na medida em
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que ele circula, não do alto de uma organização social, mas em trânsito livre entre os sujei-
tos, alguns saberes vão se reunindo em torno dos corpos e isso produz efeitos de verdade.
Essa verdade das condutas, por assim dizer, só é perceptível e assimilável enquanto sujei-
ção, não uma sujeição estática, como quer em análises que privilegiam a ideologia, mas uma
sujeição móvel que permite a cada um dos sujeitos se encaixarem em um espaço onde força
e resistência reconfiguram lugares e olhares. É importante encarar a sujeição não como algo
cristalizado, mas como ponto de partida para uma pergunta essencial que devemos nos
realizar, segundo Foucault (2015, p. 283), enquanto sujeitos:
[...] não perguntar por que alguns querem dominar, o que procuram
e qual a sua estratégia global, mas como funcionam as coisas no nível
do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos
que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamen-
tos etc. (FOUCAULT, 2015, p. 283)
Nesse sentido, essa é uma das perguntas principais que nos guiam ao longo de
toda a nossa proposta. Reconfigurando essa indagação, nos termos que nos interessa aqui,
nós temos o seguinte questionamento: que tipo de vigilância e de segurança a materialidade
fílmica de Reformatório das depravadas parece querer nos prognosticar? A resposta já foi dada
no início do tópico, de modo superficial, mas é pungente nos aprofundarmos um pouco
mais nessa questão.
O enredo de Reformatório das depravadas consiste em mostrar, no âmbito de uma ins-
tituição corretora para moças de classe média, o dia a dia de mulheres que não se encaixa-
ram nas normas recomendadas por suas famílias, sendo relegadas a um tipo especial de
educação, educação esta que gira em torno de valores cristãos e conservadores, uma vez
que a instituição é dirigida por uma mulher austera e religiosa, que não mede esforços para
inserir as alunas naquilo que a moral judaico-cristã, conservadora e burguesa, separou para
a sexualidade e, principalmente, para as mulheres. A materialidade fílmica apresenta os ata-
ques a um corpo que, historicamente, vem sofrendo silenciamentos. Ao confinar moças
que não se encaixaram em uma norma esperada em micro sociedades (as famílias, por
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exemplo), a instituição corretora coloca diante de nós um debate sobre corpos utópicos
que não conhecem o seu lugar no discurso e, por isso, causam uma fissura no mesmo: ao
negar a adequação de uma sexualidade e de um modo de vida segundo os preceitos de uma
moral conservadora e patriarcal, as mulheres produzem um discurso de resistência que vai
de encontro com os princípios vigentes em uma sociedade em que ainda reina um tipo de
hegemonia sexual em que as mulheres ocupam o lado social periférico. Temas como na-
moro proibido ou lesbianismo fazem parte do universo fílmico, tornando o ambiente e os
corpos ali presentes um heterotópico lugar de sexualidades polimorfas que encontram pre-
cariamente possibilidade de manifestação na sociedade “normal”.
Nesse contexto, identificamos, na materialidade fílmica, discursos de poder e de
resistência que se revezam, ora para combater essas sexualidades “não autorizadas”, ora
para dar vazão às mesmas. Diante disso, ao partir da premissa de que a escola de punição
funciona para combater essas “ilegitimidades” dos corpos, nos deparamos com um dis-
curso conservador central que consiste em reafirmar a ideia de família enquanto origem do
lugar de domínio, posse e controle do corpo: antes de adequado à sociedade, os corpos
devem estar adequados em um núcleo menor, a família. Isso supõe uma ideia de pedagogia
do corpo e da sexualidade de uma vida “interna” para uma “externa”, assim como supõe
uma moralidade para a sexualidade e para a vida do sujeito, de modo geral. Para Carlos
Roberto Winckler (1983, p. 20),
[...] a família mantém a angústia sexual e o sentimento de culpa das
massas oprimidas, suprimindo a capacidade crítica dos explora-
dos. Ao introduzir a noção de que os filhos pertencem aos pais,
ela cria as condições para que o indivíduo adulto aceite a autori-
dade do Estado e do Capital (WINCLER, 1983, p. 20).
Objeto irretocável e sagrado, segundo os preceitos judaico-cristãos e de uma moral
conservadora, a família constitui o lugar de preservação e de resguardo por excelência. É a
partir dela e em nome dela que temas como incesto, sexualidade precoce ou relação sexual
fora do casamento constituirão assuntos da ordem da segurança, não somente segurança
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intrafamiliar, mas segurança da espécie, do trabalho e de uma moral. Para que isso fosse
assegurado, eram bastante comuns, até o século XX, escolas e internatos para moças ou
para rapazes. O ideal era que indivíduos do sexo oposto vivessem separados, seja da mesma
família ou não, para que o corpo fosse amparado de investidas do desejo e para que a moral
vigente fosse preservada. Obviamente esses tipos de escolas estavam reservadas apenas
para as famílias mais abastadas, aquelas que possuíam um poder aquisitivo maior para apli-
car, aos filhos, um tipo de educação específica.
No interior desses internatos, a educação era rígida e bastante normativa. Em Vigiar
e Punir, Foucault (2013, p. 137) afirma que a disciplina – requisito fundamental para tornar
os corpos dóceis – é alcançada da maneira mais plena, por exemplo, em colégios internos,
assim como nos quartéis, onde há um princípio de cerca em que os internos, protegidos do
mundo exterior, enclausurados em um espaço analítico que só reconhece suas leis e funci-
onamentos próprios, dão curso a uma educação mais homogênea.
Irradiava, no cerne desses centros, um poder que procurava arrancar dos corpos
um saber que pudesse servir à norma a qual se julgava oficial; um poder que pudesse pro-
duzir, nesses corpos internos, um tipo de condicionamento à par de uma moral preconi-
zada; um poder que pudesse mobilizar e perpetuar um discurso sobre sexualidade, corpo e
família segundo um parâmetro preestabelecido.
Para que esses valores pudessem ser assegurados e impressos aos corpos, uma vigi-
lância constante e ostensiva se instalou em torno deles. Para Joaquim Tavares da Conceição
(2012, p. 153), nos internatos “Buscava-se educar pelo exemplo, mas também pela vigilân-
cia visando coibir condutas em desacordo com a moral”. Freiras, padres, diretores, educa-
dores ou bedéis, encarregados da regulagem desses corpos, funcionavam como panópticos
móveis cujos olhares atentos estavam a serviço da normalização das condutas, normaliza-
ção segundo uma ordem do discurso presente nesses ambientes. Nesse sentido, esses es-
paços caracterizam um lugar específico de poder e saber, na medida em que uma educação
para o corpo é transmitida por meio de um confinamento e de um conjunto de práticas
que fazem do corpo um objeto de escrutínio, de análise e de reparação.
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Nessas instituições de correção, o que se vê é o controle de uma moralidade, tendo
o corpo como ponto material de inserção do poder: como bem demonstrou Foucault
(2015), o corpo é a superfície onde o exercício do poder e a produção do saber se consolida.
Não podemos pensar o poder separado do saber, isto é, o poder é a ferramenta para a
produção do saber. Sem essa premissa, estaríamos nos valendo de uma análise muito co-
mum entre os teóricos que se utilizam de uma noção verticalizada de poder, equiparando-
o a noção de repressão e violência. Deste modo, é pungente pensarmos o poder como um
requisito para o aparecimento de saberes e de resistências. No nosso caso, aqui, esses sa-
beres se reúnem em torno do corpo no sentido de que algumas normas são criadas e geridas
para o funcionamento de uma sociedade, como o controle da sexualidade pela natalidade,
pelo casamento ou da masturbação; por outro lado, a instituição de um poder pressupõe
uma resistência na medida em que, em seu bojo, opacamente, involuntariamente, imper-
ceptivelmente, efeitos de inversão e de transgressão são iniciados.
Os controles da masturbação praticamente só começaram na Eu-
ropa durante o século XVIII. Repentinamente, surge um pânico: os
jovens se masturbam. Em nome desse medo foi instaurado sobre o
corpo das crianças – através das famílias, mas sem que elas fossem
a sua origem – um controle, uma vigilância, uma objetivação da se-
xualidade com uma perseguição dos corpos. Mas a sexualidade, tor-
nando-se assim um objeto de preocupação e de análise, como alvo
de vigilância e de controle, produzia, ao mesmo tempo a intensifica-
ção dos desejos de cada um pelo próprio corpo. (FOUCAULT, 105,
p. 236)
Adiante, como dito anteriormente, não podemos ignorar o corpo enquanto instru-
mento para a produção de riquezas. A questão que circunda a preservação do corpo para
servir a uma moral conservadora ou para, supostamente, prevenir a espécie de males em
torno da saúde não se encerra aí: temos, do mesmo modo, como pano de fundo, o germe
de uma consciência econômica que direciona, inclusive, a vida íntima dos sujeitos. O ad-
vento do homo oeconomicus fez reunir, em torno do corpo, uma ideia dele enquanto ferra-
menta para a qual se deveria lançar direitos e deveres para a sua prevenção, ou melhor, para
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assegurar que um potencial produtivo não fosse corrompido. Conforme Foucault (2015, p.
286),
[...] já que o corpo humano se tornou essencialmente força produ-
tiva, a partir dos séculos XVII e XVIII, todas as formas de desgastes
irredutíveis à constituição das forças produtivas – manifestando,
portanto, a própria inutilidade – foram banidas, excluídas ou repri-
midas. (FOUCAULT, 2015, p. 286)
Nesse contexto, a questão que perpassa a iniciativa de resguardar o corpo está ar-
rolada a toda uma economia do poder que faz dele um território “sagrado” em função do
que ele desempenha ou pode desempenhar, nos mais diversos níveis. Discursivamente, não
estamos diante somente de uma moral judaico-cristã que atribui aos corpos um direciona-
mento transcendental, mas estamos diante, antes e sobretudo, de uma moral que, de forma
subjacente, inconsciente, visa atribuir ao corpo uma importância que ele possui enquanto
engrenagem social: é necessário que os corpos estejam em funcionamento conveniente,
segundo uma norma, para que a sociedade funcione adequadamente.
Diante desse quadro, é natural que em torno dos corpos alguns olhares institucio-
nais atentos acompanhem seu trajeto e sua performance. Seja na escola, na fábrica, na em-
presa, na igreja ou simplesmente dentro de casa, no seio familiar. O corpo é a superfície,
por excelência, onde os olhares sociais irão se confluir. A medida dos atos, o cálculo dos
gestos, a equação do poder ou inteligibilidade das moralidades terão no corpo um equiva-
lente físico capaz de dizer quem somos ou como estamos, por isso um intenso escrutínio
anátomo-político para preservar aquilo que é considerado não um bem particular, somente,
mas um órgão social.
Abaixo, nós temos um grupo de fotogramas que fazem parte do encadeamento
fílmico de Reformatório das depravadas. Os movimentos da câmera, por exemplo, produzem
esse efeito de vigilância constante acerca do corpo o qual nos referimos. Ao aparecer, na
materialidade fílmica, uma multiplicidade de lugares estratégicos onde as câmeras estão lo-
calizadas, nós temos a ideia de que o corpo não somente é vigiado o tempo inteiro, mas
avaliado, invadido, medido e, posteriormente, julgado.
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Figura 1 – Fotogramas retirados do filme “Reformatório das depravadas”.
Fonte: REFORMATÓRIO DAS DEPRAVADAS. Direção: Ody Fraga. Produ-
ção: Antônio Polo Galante. São Paulo: Titanus Filmes; Ouro Filmes; Fama Filme
S.A., 1978. 82 min, Eastmancolor, Som, Cor. Formato: 35 mm.
Do primeiro plano, onde há uma plongée absoluta (câmera alta localizada em um
vértice do objeto filmado), ao último, onde há uma câmera frontal, coincidindo com a
imagem da bedel que vigia as internas, temos nesse estrato a ilustração de um movimento
de câmera que, à par da natureza do nosso objeto de análise, constitui o recurso por exce-
lência para a produção dessa ideia de vigilância ostensiva direcionada aos corpos, fato que
produz um tipo de discurso em torno do corpo em que uma atenção onipresente e onisci-
ente nos acompanha o tempo inteiro. Essa atenção onipresente e onisciente nada mais é
do que a norma, a norma que nos persegue e que visa nos inserir em sistemas de utilidade
e segundo um funcionamento julgado socialmente adequado.
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Figura 2 – Fotogramas retirados do filme “Reformatório das depravadas”.
Fonte: REFORMATÓRIO DAS DEPRAVADAS. Direção: Ody Fraga. Produ-
ção: Antônio Polo Galante. São Paulo: Titanus Filmes; Ouro Filmes; Fama Filme
S.A., 1978. 82 min, Eastmancolor, Som, Cor. Formato: 35 mm.
Figura 3 – Fotogramas retirados do filme “Reformatório das depravadas”.
Fonte: REFORMATÓRIO DAS DEPRAVADAS. Direção: Ody Fraga. Produ-
ção: Antônio Polo Galante. São Paulo: Titanus Filmes; Ouro Filmes; Fama Filme
S.A., 1978. 82 min, Eastmancolor, Som, Cor. Formato: 35 mm.
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Acima, as figuras 2 e 3 nos auxiliam a pensar a respeito desse rigor vigilante como
modos de nos remeter a um panoptismo onipresente. Assim como a figura 1, as figuras 2
e 3 constituem sequências de fotogramas oriundas de Reformatório das depravadas, sequências
essas que correspondem a uma situação vivenciada em um banheiro, no qual uma das re-
formadas da instituição realiza seus momentos de banho e higiene pessoal. Ao ser flagrada
por uma câmera que acompanha todas as medidas do seu corpo, a interna possui diante de
si um olhar interminável que prestará atenção aos seus atos até nos momentos mais impro-
váveis, tendo sua privacidade violada em nome da segurança de um corpo que não pode
fugir da utilidade social que ele carrega em si. O movimento da câmera, ao longo dos oito
planos que compõe as figuras 2 e 3, destaca anatomicamente o corpo da mulher e sua
relação com aquele espaço, reforçando a ideia de uma privacidade transgredida em nome
de uma garantia para a sociedade e para família em função daquilo que o corpo representa
para a manutenção de interesses diversos que movimentam a dinâmica das sociedades. Ao
capturar, em partes, o corpo se despindo e se dirigindo para o seu momento íntimo de
assepsia, a câmera coloca diante de nós, sujeitos-espectadores, uma condição real que existe
acerca dos nossos corpos, condição que faz da nossa intimidade e dos nossos corpos terri-
tórios onde não há nada que possamos declarar autenticamente nosso: nossos corpos utó-
picos são sempre invadidos pelo outro e é isso que nos torna sujeitos. Além disso, o movi-
mento da câmera perscruta o corpo de tal modo que uma ideia de direito ao corpo e ao
sexo se desloca do interno para o externo, do privado para o público, ressaltando nosso
sexo como objeto de análise e de avaliações sociais: o olhar voyerista da câmera (que é o
nosso olhar, que é o olhar da norma) faz de pedaços de corpo objetos de observação e
gerenciamento.
A partir desses estratos fílmicos, as figuras 1, 2 e 3, nos deparamos com um juízo
acerca da sexualidade enquanto algo sempre propenso à contemplação e à advertência aos
corpos. Não à toa, nesses dois estratos (assim como ao longo de todo o filme), as situações
de vigilância são todas referentes a corpos nus, como se a sexualidade vasculhada dos su-
jeitos, nesse caso das mulheres detidas, fosse o objeto central para esse cuidado.
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Como mostra Foucault (1988, p. 27), o sexo não é apenas julgado, mas adminis-
trado. Há, em torno dele, uma gama de procedimentos que fará com que um princípio de
utilidade pública seja alcançado, o sexo deve ser regulado para que um padrão ótimo de
funcionamento beneficie a todos. Isso implica em fazer do sexo um constante elemento de
análise, para que o mesmo alcance, cada vez mais, as formas legítimas segundo as quais se
esperam na sociedade, onde determinados valores e morais são rechaçados ou legitimados.
É por isso que, como afirma Foucault (1988, p. 27), a partir do século XVIII um princípio
de policiamento se instala ao redor do corpo.
Toda esta atenção loquaz com que nos alvoraçamos em torno da
sexualidade, há dois ou três séculos, não estaria ordenada em função
de uma preocupação elementar: assegurar o povoamento, reprodu-
zir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em
suma, proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politi-
camente conservadora? (FOUCAULT, 1988, p. 37-8)
Essa polícia do corpo e do sexo é exercida em sua forma máxima através de uma
vigilância que sinaliza uma segurança: segurança da espécie, das forças de trabalho, do fun-
cionamento dito adequado de uma sociedade que, desde então (século XVIII) passa a ser
regida por uma mentalidade balizada pelo capital e pelo que ele representa socialmente. É
nesse sentido que esse poder dispensado aos corpos, sob forma de vigilância ou advertên-
cia, na ótica foucaultiana, é positivo, pois não pode ser encarado como manifestações co-
ercitivas ou de repressão, mas como instrumento capaz de mobilizar saberes.
Abaixo, mais uma vez, essa ideia de panoptismo nos é revelada a partir da
observação que há em torno do corpo, dispensada pela diretora da escola de correção a
uma das internas do estabelecimento. Interessante notar, além disso, que o movimento da
câmera, que gira ao redor dos corpos, nos três primeiros planos, e depois, em um movi-
mento vertical, nos dois últimos planos, produz uma leve contraplongée (câmera de baixo para
cima), recurso que permite pensarmos, em termos de efeitos fílmicos-discursivos, mais uma
vez, no corpo enquanto objeto de exame, análise, adequação e submissão a uma hierarquia.
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Figura 4 – Fotogramas retirados do filme “Reformatório das depravadas.
Fonte: REFORMATÓRIO DAS DEPRAVADAS. Direção: Ody Fraga. Produ-
ção: Antônio Polo Galante. São Paulo: Titanus Filmes; Ouro Filmes; Fama Filme
S.A., 1978. 82 min, Eastmancolor, Som, Cor. Formato: 35 mm.
Na História da sexualidade 1 – a vontade de saber, Foucault (1988) nos ensina que um
dos maiores mecanismos de extração da verdade do ser é a confissão. Em Reformatório das
depravadas, a partir de uma vigilância devotada e peremptória, o corpo se submete a um tipo
de confissão constante para arrancar dele não somente a verdade de seu ser, mas para fazer
dele um artefato apropriado segundo uma norma. Com isso, estamos diante de um princí-
pio de adestramento do corpo para fazer dele um elemento disponível e adequado social-
mente. Essa é a forma da disciplina, estágio final do poder, na ótica foucaultiana. “A disci-
plina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos
ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício”. (FOUCAULT,
2013, p. 164)
Conclusão
Nosso objetivo com esse artigo foi problematizar o corpo em um momento espe-
cífico da vida brasileira, a partir de um corpus cuja natureza, julgamos, possui o potencial de
reunir a historicidade, a cultura, as tenções, os discursos e as políticas de vida dos sujeitos
Sexualidade, segurança e disciplina: corpo e discurso fílmico em “Reformatório das depravadas” (1978), de Ody Fraga
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em um país em particular, nesse caso o Brasil, discursivizadas em imagens. Diferente da
avaliação de um espectador comum e despropositado, as pornochanchadas funcionam
como um material rico para a análise em torno dos corpos e de suas visibilidades no mo-
mento da história que compreende a década de 1970 até início da década de 1980, material
esse capaz de nos mostrar o percurso do corpo na cadeia da avaliação social ao longo dos
tempos.
A partir de Reformatório das depravadas, filme de 1978 dirigido por Ody Fraga, cons-
tatamos que a vigilância não só é essencial para manter o controle, mas que ela própria (a
vigilância) é o controle: um controle que acompanha os corpos para retirar deles o máximo
potencial de assujeitamento às normas que são a substância para o estabelecimento de uma
sociedade disciplinar.
À priori, incompreendida e maldita, os filmes que compõem a assinatura do que
ficou conhecido por pornochanchada causaram (e continuam causando) choque e incô-
modo a certa parcela da sociedade que insiste em atribuir a esse tipo de entretenimento um
juízo de valor depreciativo e precipitado, uma vez que ela, a pornochanchada, foi e continua
sendo, para muitos, um período fílmico que contribuiu para o enfraquecimento e para a
transgressão de uma moral conservadora e cristã, além de um suposto declínio cultural
sustentado pelas massas populares que consumiam este tipo de entretenimento em salas de
cinemas ao redor do país.
Entretanto, em contato íntimo com essas materialidades fílmicas, o que verificamos
é que, de forma discursivizada, essas películas nada mais fazem do que reafirmar a moral
vigente e os valores sociais que atravessavam o momento histórico da época. Reformatório
das depravadas, um produto do seu tempo, portanto, não tem nada de transgressor, ao con-
trário, de forma discursiva ela nos coloca em uma conexão direta com a norma e o modelo
disciplinado dos corpos, ela funciona como um dispositivo capaz de ventilar, para aqueles
que a observam, um paradigma de corpo e sexualidade, um padrão de subjetividade e po-
líticas de vida que só encontram inteligibilidade e sustentação de acordo com a sociedade
normalizadora.
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Tyrone Coutinho Chaves Filho; Nilton Milanez
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SEXUALITY, SAFETY AND DISCIPLINE: BODY AND DISCOURSE
IN ODY FRAGA'S “REFORM OF THE DEPRAVED” (1978)
Abstract: Our aim, with this article, is to problematize the body in the midst of the power
/ knowledge relations that mark it historically, producing a specific type of visibility for the
subject, for sex and sexuality. Thus, we start from the filmic materiality of Reform of the
depraved, an erotic drama directed in 1978 by Ody Fraga, to verify, filmically and discursively,
how the body is crossed by a disciplinary and control policy, within a specific moment of
brazilian history, which mobilize and ventilate discourses about an ideal model of sexuality
and life policies. This work is part of the studies of French Discourse Analysis, whose main
contribution are the postulates of Michel Foucault
KEYWORDS: Body; Sexuality; Power; Discourse; Foucault.
REFERÊNCIAS
CONCEIÇÃO, J. T. Internar para educar. Colégios-internatos no Brasil (1840- 1950). Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Fe-
deral da Bahia, Bahia. 2012.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 1 – a vontade de saber. Trad. de Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhou Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
______. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. 20ª Ed. Petró-
polis: Ed. Vozes, 2013.
______. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
REFORMATÓRIO das depravadas. Direção: Ody Fraga. Produção: Antônio Polo Ga-
lante. São Paulo: Titanus Filmes; Ouro Filmes; Fama Filme S.A., 1978. 82 min, Eastman-
color, Som, Cor. Formato: 35 mm
WINCKLER, Carlos Roberto. Pornografia e sexualidade no Brasil. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1983.
Recebido em: 31/08/2019.
Aprovado em: 16/01/2019.