Content uploaded by Virgínia Ferreira
Author content
All content in this area was uploaded by Virgínia Ferreira on Jan 14, 2020
Content may be subject to copyright.
Estudos de Género na universidade performativa
Ferreira, Virgínia
Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, vf.virginiaferreira@gmail.com
Palavras-chave: Estudos de Género, universidade performativa,
disciplinarização, resistências, legitimidade epistemológica contestada.
Introdução
Nesta comunicação, procuro refletir sobre os desafios que se colocam
atualmente ao ensino e pesquisa dos estudos de género nos sistemas
universitários cada vez mais marcados pelas políticas neoliberais, pelos cortes
orçamentais e por estilos de gestão managerialistas. Alguns dos processos em
curso merecem ser objeto de reflexão, nomeadamente a globalização neoliberal
dos sistemas de ensino e que transformam ideias em produtos comerciais; a
burocratização, exploração e medição do trabalho académico; a
hiperespecialização e a disciplinarização; o desafio dos estudos sobre mulheres,
género e feministas; a 'ideologia de género' e os antimovimentos sociais; riscos
de invisibilidade associados à estratégia de mainstreaming de género; riscos
decorrentes da natureza exportadora da disciplina da Sociologia (para estudos
pós-coloniais, LGBTI e Queer, etc.).Dadas as restrições de espaço, abordarei
apenas alguns deles.
1. A universidade globalizada pelo neoliberalismo
Têm sido avassaladoras as mudanças introduzidas nos sistemas universitários,
ao longo das últimas décadas, sob a égide dos princípios neoliberais. Com
ligeiras adaptações nacionais, encontramos hoje na literatura fiéis
caracterizações de desenvolvimentos semelhantes em muitos países.
A primeira característica que ressalta é a da entrega cega à concorrência global.
Todas as instituições de ensino superior procuram manter ou melhorar os
respetivos posicionamentos nos rankings. Esta lógica concorrencial acentuou-se
em face da retração do financiamento estatal, reduzido ao mínimo, impelindo as
instituições a captar outros financiamentos (através do pagamento de propinas
a quem recorre aos seus serviços, ou da abertura ao financiamento privado de
cursos ou de projetos de investigação). Este processo tem levado à
mercadorização do ensino superior e à introdução de lógicas managerialistas.
Em Portugal, estas tendências são evidentes.
Nova gestão pública nas universidades
À nova configuração institucional têm sido dados nomes diversos:
McUniversidade, universidade corporativa, universidade neoliberal, universidade
empresarial, universidade performativa, etc. (Steinþórsdóttir et al., 2019; Hark,
2016; Pereira, 2016; Santos, 2014). Para responder às necessidades das
instituições, as administrações recorrem à contratação de docentes com
contratos precários e a tempo parcial. Segundo dados do Sindicato Nacional do
Ensino Superior, em Portugal, 31,2% de docentes do ensino superior público tem
contratos precários.
1
Na academia, as relações de género são patentes nos padrões de segregação
horizontal e vertical. As mulheres tendem a ocupar as posições académicas mais
precárias, enquanto os homens dominam os mais qualificados e permanentes e
os campos das ciências, tecnologias, engenharias e matemática (CTEM)
(Comissão Europeia, 2016). Vários estudos mostram a associação duradoura
entre CTEM e a masculinidade (Francis et al., 2017). Os campos culturalmente
masculinos são considerados de maior valor, mais respeitados. Esta hierarquia
implícita favorece claramente as CTEM nas opções financeiras e de gestão das
instituições académicas (Steinþórsdóttir et al., 2019). Basta que pensemos nos
rácios padrão estabelecidos para efeitos de financiamento público das diferentes
áreas científicas, em Portugal: 1 docente a tempo integral por cada 11
estudantes nas Engenharias; 1 para cada 6, em Medicina; 1 para 20, nas
Humanidades
2
.
Efeitos Matilda e Mateus potenciam-se
O efeito Matilda preside a muitíssimas situações do quotidiano das instituições
de ensino e investigação, visível na desvalorização dos contributos das
mulheres. A perspetiva de género aplicada ao funcionamento destas instituições
é fundamental para compreendermos na sua plenitude a discriminação indireta
originada pelos sistemas de avaliação de desempenho docente que valorizam
as publicações e o seu impacto, o número de citações e o financiamento captado
e desvalorizam tarefas fundamentais como a lecionação, a supervisão de
estudantes e a participação na governação institucional em cargos de menor
visibilidade e de extensão universitária. Estas tarefas desvalorizadas compõem
o trabalho de casa académico, invisível (Steinþórsdóttir et al., 2019).
A gestão das universidades, geridas como se de empresas lucrativas se
tratassem (Lynch, 2006), tem-se socorrido da institucionalização de
procedimentos de total monitorização e controlo da atividade docente e de
investigação, introduzindo uma lógica de projetificação das atividades de
investigação com claro prejuízo da investigação fundamental. Assim, o efeito
Mateus surge em associação ao efeito Matilda, ao atribuir mais recursos a quem
mais possui
3
.
Neste processo, a educação e as ideias tornaram-se mercadorias, o corpo
estudantil foi transformado em cliente pagante e o pessoal docente em
precariado. A função docente perdeu autonomia, ficou sujeita a uma enorme
pressão para ser orientada para os resultados e acolheu um cansaço e um stress
exorbitantes que a conduzem ao burn out (Pereira, 2016).
1
Cf. http://www.snesup.pt/es/59/infografia.pdf.
2
Veja-se MCTES http://www.snesup.pt/htmls/_dlds/formula_financiamento_2005.pdf [acesso
em: 20 de setembro de 2018]
3
Na Universidade do Minho, a publicação de um artigo em revista International Scientific
Indexing confere à/o docente o direito à redução de trabalho letivo no ano seguinte.
O acumular de pesquisa, com o ensino e as tarefas administrativas criam uma
sobrecarga de trabalho com impacto em múltiplas esferas – familiar, saúde,
cultura, cidadania. Há sempre uma oferta de financiamento a que é preciso
concorrer e uma constante necessidade de prestar contas sobre o que se faz,
que afasta o foco da pesquisa e do trabalho académico. A docência desaparece,
rebaixada a uns meros 20% na avaliação dos currículos de concorrentes a
qualquer posição, seja ela de docência ou de investigação.
Para vingar no mercado é preciso produzir ideias dóceis – a universidade
substituiu as finalidades humanistas por vocacionais, pela aquisição de
informação factual, de competências práticas, desinvestindo da aprendizagem
do pensamento crítico. Este desígnio intimida as administrações. Da parte do
pessoal docente emerge a autocensura, como estratégia de sobrevivência.
A instabilidade contratual e a falta de perspetivas provocam elevada insatisfação
com o trabalho. No caso das mulheres, permanecem na academia, porque os
empregos que encontram fora desta são frequentemente subqualificados e
continuam a ser fontes de insatisfação laboral relativamente à sua situação
laboral. No árduo percurso que leva à construção de um “cv” suficientemente
“importante”, que lhes possibilite, num futuro longínquo, o acesso a uma posição
permanente na academia perde-se o sentido e o gosto pelo envolvimento na
investigação.
Assimetrias de poder sexualizadas, racializadas e classistas
Não terminarei este ponto, sem sublinhar que esta afirmação da degradação das
condições de trabalho na academia não implica um apagamento das assimetrias
de poder, sexualizadas, racializadas e classistas, que sempre marcaram as
relações no seu seio. Uma perspetiva interseccional é necessária para
percebermos que, enquanto as mulheres brancas se ressentem da
intensificação da performatividade, controlo e desvalorização epistemológica,
outras sempre estiveram sujeitas a esses processos de integração condicionada
na academia e continuam a estar. Para estas não há ruturas, mas continuidade.
As académicas-mães são talvez o grupo dominado no seio do grupo dominante
(Amsler e Motta, 2019).
Parti das alterações materiais para dar conta de algumas condições subjetivas
que surgem com esta compulsão de se ser produtiva todo o tempo, em
permanente exercício de benchmarking.
Abordarei, em seguida, as questões epistemológicas.
2. Desvalorização epistemológica e disciplinarização
O novo quadro institucional veio agudizar dilemas e desafios que os Estudos
sobre as Mulheres/de Género/Feministas (EMGF) sempre tiveram que enfrentar.
Griffin identifica 6 fases na profissionalização dos EMGF: ativista; de instalação:
de integração: de profissionalização; de disciplinarização; e de autonomia. Nesta
última fase, os EMGF são supostos funcionar como qualquer outra área
disciplinar com a mesma credenciação, financiamento e capacidade de
atribuição de graus." (2005: 89-90).
Nenhum país europeu alcançou uma institucionalização abrangente de EMGF
em consonância com este modelo. Os indicadores definidos para estimar o nível
de institucionalização dos EMGF incluem: número de cátedras e posições de
docência; existência de centros ou departamentos autónomos de EMGF;
dimensão do staff envolvido no ensino e investigação; número e variedade de
programas que atribuem graus de graduação e pós-graduação; número de
disciplinas envolvidas nos EMGF; quantidade e tipo de apoio financeiro
disponível; capacidade de investigação; reconhecimento da disciplina ao mais
alto nível do sistema de ensino superior (Griffin, 2005: 90-91).
Autonomia versus fechamento
Num seminário em 1984, na Universidade de Brown, nos EUA, Derrida
preconizou que os estudos sobre as mulheres se transformariam noutro “cell in
the university beehive” (outra célula na colmeia da universidade”, a sua
legitimidade estabelecer-se-ia e o seu futuro estaria assegurado. Ao mesmo
tempo, advertia que o seu triunfo teria custos – a disciplinarização do campo, a
imposição de uma certa ortodoxia e a perda do seu eixo crítico. Interrogava-se
se ao fazer-se dos estudos sobre as mulheres um departamento igual aos outros,
se isto não era um sinal do insucesso dos seus princípios (apud Scott, 2008: 1).
Este debate suscitou várias questões:
Se o aumento de mulheres a ensinar e se o conhecimento que produziam
e transmitiam não era em si subversivo numa instituição que tinha sido,
segundo Derrida, “falocêntrico” (masculino na composição, no foco e no
comprometimento com a defesa da Lei);
Não estávamos, enquanto professoras e investigadoras, desafiando o que
contava como conhecimento e quem contava como conhecedor?
Era importante saber se a revolução seria alcançada através da
institucionalização de programas de estudos separados ou através da
infiltração nas disciplinas, “feminizando o curriculum”, integrando as
mulheres em todas as disciplinas?
Se se conservar o axioma filosófico, considerando as mulheres como
sujeitos, então temos que retomar todo o enquadramento em que a
universidade está construída.
Tudo questões que retomo aqui de Scott (2008: 2).
Ao longo das três últimas décadas, ocorreram em simultâneo um processo
autónomo de institucionalização e uma reação defensiva às mudanças pelas
quais a universidade estava a passar. Cerravam-se fileiras. O resultado foi uma
concentração no detalhe – a administração de programas, a implementação ou
ajustamento das ofertas curriculares, a supervisão de cursos de graduação, a
atração de estudantes de doutoramento, a luta por maiores orçamentos.
Instalou-se uma certa ortodoxia nos EMGF com a fixação de padrões de
admissão no campo e na elaboração de métodos e teorias à semelhança do que
acontece nas outras disciplinas. Negociações com as direções das faculdades e
departamentos sempre foram difíceis neste contexto. No processo, os EMGF
perderam alcance crítico - tornam-se orgânicos.
A hiperespecialização e o entrincheiramento disciplinar respondem às ameaças
trazidas pelos critérios de mérito (associados à capacidade de atrair
financiamento e ao impacto social) e novas métricas de medição de
desempenho.
O fechamento disciplinar é generalizado no sistema científico, especialmente
nas CSH. Pratica-se uma disciplinaridade defensiva:
Questão: como pode a interdisciplinaridade dos EMGF sustentar a sua
legitimidade epistemológica, constantemente posta em causa, vivendo
em permanência na necessidade de se redizer, de se reafirmar, de se
recriar?
OS EMGF desafiados
Ainda com Scott (2008) questionamo-nos:
– Que exclusões praticamos ao insistirmos numa categoria homogénea de
“mulheres”?
– Quando procuramos a inclusão, haverá alternativas à proliferação das
identidades particulares (raciais, sexuais, etc.)
– Como superar as dificuldades de articular EMGF com estudos pós-coloniais,
raciais, étnicos e queer? Os estudos pós-coloniais e LGBTQI buscam outros
lugares e a sua própria autonomia.
– Quem sai dos EMGF deixa de se identificar com a disciplina (identificada com
feminismo ocidental, branco, heterossexual, classe média).
Acentuam-se as resistências macro e micro, apesar do MeToo. O combate à
chamada “ideologia de género” varre continentes, sob pressões religiosas.
Discursos de ódio contra teorias feministas e políticas de promoção da igualdade
e não-discriminação invadem redes sociais.
A contestação estudantil aos EMGF afirma-se: testemunhos de estudantes que
se dizem “ofendidos” ou “excluídos” por materiais recomendados num curso;
listas divulgadas na net para intimidar docentes que expressam “visões radicais”;
pressão para não atribuição de tenure a quem expresse conhecimento crítico.
Conclusão
A polarização entre campos científicos acentua-se - ciências e tecnologias
masculinizadas, de um lado, e ciências sociais e humanas, feminizadas, sem
empregabilidade e prejudicadas na distribuição dos 3 rs - recursos,
reconhecimento e representação.
A legitimidade epistemológica do conhecimento dos EMGF é desafiada tanto
pelo lado dos estudos pós-coloniais, Queer e LGBTQI, como do lado da ciência
mainstream, suposta integrar contributos dos Estudos de Género, porque
passou a incluir mais frequentemente a variável sexo (travestida de género) nas
análises empíricas. A estratégia de mainstreaming de género foi anunciada, mas
as condições da sua efetiva concretização não foram asseguradas. Faltaram
recursos e formação de docentes. Continuam sem legitimação nas disciplinas
tradicionais. Estudo recente realizado em Espanha por Pilar Ballarín Domingo,
baseado em recolha de testemunhos de docentes de universidade em Espanha
e na consulta de programas de unidades curriculares, põe em evidência a
predominância de resistências, crenças e preconceitos aos contributos do
feminismo académico nos diversos campos do conhecimento. Estes contributos
não são integrados nos conhecimentos trabalhados nas aulas de Pedagogia,
Medicina, Psicologia e História. Há quem os ignore, quem os conheça mas não
lhes reconheça natureza científica e, por fim, quem os integre (quase
exclusivamente professoras, enquanto nos dois primeiros é indiferente ser
mulher ou homem). Estão presentes conceções positivistas da produção de
conhecimento, feminização da produção científica no quadro dos EMGF, e a
consideração de que estas questões são de consciência, de atitudes e valores e
não de conhecimento. Como, por outro lado, consideram que a igualdade entre
mulheres e homens já é algo alcançado, negam a necessidade de incluir
interpretações e explicações pertinentes para a compreensão da construção
social das desigualdades e são de opinião que há que apostar na mudança de
mentalidades, a começar na educação que as pessoas recebem na
família…Este quadro de considerações é também aplicado quando se trata de
avaliar pedidos de financiamento de projetos, o que tem levado a uma ausência
de criatividade teórica e metodológica (Santos, 2014).
O teto de vidro e o labirinto em que vivem as mulheres na academia ajuda a
compreender este diagnóstico. Voltando ao mainstreaming de género, a sua
defesa apoia-se na ideia de que “o importante é que estas matérias estejam
transversalizadas no curriculum”, já que “toda a gente pode opinar”, porque
“somos todos e todas iguais”, rebaixando deste modo os conhecimentos à
categoria de “opinião”, inadmissível em qualquer campo científico.
Bibliografia
Amsler, S., Motta, S.C. (2019). The marketised university and the politics of
motherhood. Gender and Education, 31(1), 82-99.
Ballarín Domingo, Pilar (2013). Docencia universitaria y conocimientos en torno
al género. Resistencias, creencias y prejuicios. Cuestiones de género: de la
igualdad y la diferencia 8, 89-106.
Brown, W. (1997). The impossibility of Women’s Studies. differences 9(3), 79-
101.
Francis, B. et al. (2017). The Construction of Physics as a Quintessentially
Masculine Subject: Young people's Perceptions of Gender Issues in Access to
Physics. Sex Roles, 76(3–4), 156–174.
Griffin, G. (2005). The Institutionalization of Women’s Studies in Europe. In G.
Griffin (ed.), Doing Women’s Studies (pp. 89-110). Londres: Zed Books.
Hark, S. (2016). Contending directions. Gender studies in the entrepreneurial
university. Women's Studies International Forum, 54(July), 84-90.
Lynch, K. (2006). Neo‐liberalism and marketisation: The implications for higher
education. European Educational Research Journal, 5(1), 1-17.
Pereira, M.M. (2016). Struggling within and beyond the Performative University.
Women's Studies International Forum, 54(January–February), 100-110.
Santos, A.C.(2014). Academia without walls? Multiple belongings and the
implications of feminist and LGBT/Queer political engagement. In Yvete Taylor
(ed), The Entrepreneurial University (pp. 9-26). Palgrave/macmillan,
Basingstoke.
Scott, J. W. (2008). Introduction. In J.W. Scott (ed.), Women’s Studies on the
Edge (pp. 1-13). Durham, NC, Duke University Press.
Steinþórsdóttir, F.S. et al. (2019). New managerialism in the academy: Gender
bias and precarity. Gender, Work and Organisation, 26(2), 124-139.