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OS DESAFIOS DO DIREITO EM NORMATIZAR E
“NORMALIZAR” AS NARRATIVAS AFETIVAS E
AMOROSAS
THE CHALLENGES OF LAW IN REGULATING AND
“STANDARDIZING” AFFECTIVE AND LOVING NARRATIVES
Doglas Cesar LucasI
André Leonardo Copetti SantosII
Resumo: O objetivo do presente artigo é fazer um breve
itinerário conceitual do amor e de como ele delineou
as relações familiares e suas narrativas. Percebe-se,
inicialmente, que as famílias tradicionais se organizavam
em torno da gura paterna e exclusivamente mediante o
casamento, não importando os laços amorosos entre seus
membros para a unidade familiar. Atualmente as relações
familiares estão menos sólidas, menos arraigadas, mais
complacentes, democráticas, igualitárias e plurais,
baseadas no amor e nos laços de afetividade entre seus
membros. Em decorrência de tais transformações, novos
saberes e práticas passaram o constituir o campo de
estudo das ciências sociais e humanas, interessando para o
presente trabalho notadamente o direito. O enfrentamento
dessas categorias se deu exclusivamente por meio de
revisão bibliográca e valendo-se de postura teórica
interdisciplinar e metodologicamente dialética.
Palavras-chave: Amor. Direito. Família. Modernidade.
Afeto.
Abstract: The purpose of this article is to make a brief
conceptual itinerary of love and how it outlined family
relationships in the last decades and their narratives. It
is noticed, initially, that the traditional families were
organized around the paternal gure and exclusively
by means of the marriage, no matter the loving bonds
between its members for the familiar unit. Today,
family relationships are less solid, less ingrained, more
compliant, democratic, egalitarian and plural, based
on love and affection bonds between its members. As
DOI: /10.20912/rdc.
v15i35.3313
Recebido em: 11.11.2019
Aceito em: 17.12.2019
I Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (UNIJUÍ),
Programa de Pós-Graduação
em Direito da UNIJUÍ, Ijuí,
RS, Brasil e Faculdade CNEC
Santo Ângelo (CNEC), Santo
Ângelo, RS, Brasil. Doutor
em Direito. E-mail: doglasl@
unijui.edu.br
II Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e
das Missões (URI), Programa
de Pós-Graduação em Direito
da URI, Santo Ângelo,
RS, Brasil e Universidade
Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do
Sul (UNIJUÍ), Programa de
Pós-Graduação em Direito
da UNIJUÍ, Ijuí, RS, Brasil.
Doutor em Direito. E-mail:
andre.co.petti@hotmail.com
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a result of these transformations, new knowledge and
practices have become the eld of study of the social
and human sciences, being interesting for the present
work notably law. The confrontation of these categories
occurred exclusively by bibliographical revision and
using theoretical and interdisciplinary methodologically
dialectical posture.
Keywords: Love. Law. Family. Modernity. Affection.
Sumário: 1 Introdução. 2 Amor e afeto na narrativa
familiar. 3 Os desaos do direito em normatizar e
“normalizar” as narrativas afetivas, amorosas e familiares.
4 Considerações nais. Referências.
1 Introdução
Seja como for, amor como louvor religioso, amor cortês, amor
paixão, amor romântico, amor caridoso, o fato é que o amor e suas
diferentes formas de (se) comunicar e de ser narrado, de constituir
e de ser constituído, acompanham a aventura de viver desde a mais
inicial experiência que se tem da humanidade. E mais do que em
qualquer outro tempo, o amor, contemporaneamente, parece ter se
transformado em algo a ser buscado a todo custo, uma condição para a
felicidade, um elemento indispensável para se viver uma vida boa. Nem
mesmo a liberação sexual, que permitiu novos arranjos envolvendo
o desejo, foi capaz de libertar o amor e ressignicá-lo para além das
institucionalidades que ainda o percebem como um vetor de perenidade,
segurança e estabilidade.
Sucesso nanceiro, grande saber intelectual, notoriedade e
reconhecimento sociais são, sem dúvida, aspectos importantes da
vida. Mas parece que é somente no amor que a experiência de existir
e estar na vida acontece de modo pleno1. É como se as noções de
autorrealização e individualização projetaram em nossas experiências
1 MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
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sexuais e amorosas/afetivas um fator de reconhecimento tanto ou
mais importante do que fazemos em relação às nossas possibilidades
nanceiras ou intelectuais, por exemplo. Isso signica que o amor e o
afeto possibilitam o reconhecimento ou a sensação de perda de valor
próprio dependendo das capacidades sexuais de cada sujeito2.
A questão central do presente artigo é demostrar como o
aparecimento das novas narrativas amorosas ressignicaram as
estruturas familiares e transformaram o amor numa aventura a dois
que cada vez menos interessa à comunidade e que se esgota nas regras
denidas pelos amantes, para quem o direito quase nada pode dizer.
Por isso que o primeiro momento do texto é uma tentativa de escavar
e entender historicamente os elementos que permitiram, literalmente,
desde os primórdios da tradição judaica, fundar instituições baseadas
nas diferentes formas de amar. Na parte nal do artigo reforçamos a
tese que os novos arranjos amorosos são fundados na liberdade e na
autenticidade permitidas aos amantes que nenhuma regra jurídica
poderá entabular. Ao não regular o amor que o direito lhe garante a
sua maior potência, concluímos. O artigo foi construído a partir de
uma revisão bibliográca interdisciplinar e conduzida por recortes
metodológico crítico- dialéticos, capaz de respeitar a diferença entre os
períodos analisados, a clareza conceitual das categorias tratadas e sem
perder a o estilo um pouco ensaístico que o tipo de análise demandava.
2 Amor e afeto na narrativa familiar
Discutir sobre o afeto e como ele se constitui no seio das relações
familiares não é um assunto novo, mas ganhou certo protagonismo
com a modernidade e suas tendências individualistas. O amor, como
afeto básico, como desejo ou como um vínculo, sempre foi colocado
em questão na denição das relações familiares e conjugais, tanto
que se podem vislumbrar inúmeros relatos e “teorizações” desde as
2 ILLOUZ, Eva. ¿Por qué duele el amor? Una explicación sociológica. Buenos
Aires: Katz, 2016.
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literaturas antigas até às pós-modernas. Embora tenha modicado suas
representações e institucionalidades ao longo do tempo, o amor continua
perpassando e dando condições às experiências humanas. Irrompem da
ideia de amor narrativas biológicas e biográcas de diferentes matizes.
O amor nunca vem solto. Tem suas formas próprias de comunicar e
ser comunicado. Tem linguagem e dá sentido real e simbólico a um
conjunto de instituições que depositam no amor a sua legitimidade.
Ele opera forte na denição da paixão, da família, do casamento, da
amizade, da solidariedade e, ainda hoje (e por que não sobretudo hoje?),
da sexualidade. Seu estatuto mudou muito de programação ao longo da
história, mas é praticamente impossível enfrentar a história das relações
interpessoais olvidando o trato dado às relações afetivas e amorosas na
denição das racionalidades e normalidades de cada época.
Para May3 a história do amor é marcada por quatro grandes
transformações que produziram o seu itinerário conceitual na sociedade
ocidental. A primeira transformação, situada, segundo o autor, entre
Deuteronômio e Agostinho, refere-se ao valor do amor, transformado
em uma espécie de virtude suprema. As escrituras hebraicas ordenam
que Deus seja amado com toda a força, pois Deus é o amor e este amor
é a fonte de toda a virtude verdadeira. O amor ao próximo também
é ordenado pela lei divina. O amor assim percebido tem uma força
ética, funciona como obrigação moral ao determinar que se deva amar
a todos, inclusive o inimigo, o estrangeiro, o desconhecido. Por conta
de uma segunda transformação, entre os séculos IV e XVI, foi atribuído
ao homem um poder, literalmente divino, de amar. O homem torna-
se divino pela capacidade de amar, apesar de o amor ao semelhante
decorrer do amor a Deus. Uma terceira fase histórica, prossegue
May4, iniciada no século XI e que atingiu seu ápice no século XVIII,
humaniza o amor, depositando na experiência humana, antes reservada
3 MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
4 MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
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a Deus, a possibilidade de amar e de ser amado. Os limites entre o
divino e o mundano, entre o natural e o sobrenatural, começam a se
estreitar. Por m, a quarta transformação na história do amor, que teve
seu começo no século XVIII e que segundo o autor ainda está em curso,
diz respeito ao amante, que se torna sujeito, um eu que se encontra,
que se torna autêntico. O amor ganha seu estatuto, seu lugar próprio
e torna-se projeto por todos desejado. Nos caminhos do amor há certa
continuidade do sagrado, uma potência de estabilidade, de conforto, de
projeto e, especialmente, de satisfação. Eis que o amor se fez Deus e
fundou sua própria religião.
O amor foi o tema central da obra “O banquete”, do lósofo grego
Platão (428–347 a. C). Nesse diálogo, Fédro, Pausâneas, Erixímaco,
Aristófanes, Agatão, Alcebíades e Sócrates, reunidos na casa de um
deles para comemorar o sucesso de Agatão num concurso de tragédias,
escolheram o amor como tema de conversação. Não falaram de seus
amores particulares, mas do amor em geral. Dois discursos se destacam:
o do poeta Aristófanes e o de Sócrates. Num primeiro momento o
poeta retrata um mito, uma história que se desenvolveu num tempo
primordial. Nesta época inaugural os homens e mulheres teriam sito
duplos. Tinham quatro braços, quatro pernas, dois rostos, dois sexos, e
tudo o mais nessa mesma proporção. Os homens eram homens porque
tinham dois sexos de homem. As mulheres eram aquelas que tinham dois
sexos de mulher. Os andrógenos (que em grego é literalmente homem-
mulher; sexo composto) tinham o sexo de homem e o sexo de mulher.
Ocorre que esses humanos tinham uma força e uma audácia exagerada,
a ponto de decidirem escalar o céu e enfrentar as divindades. Os deuses
não gostaram dessa empreitada e foram falar com Zeus, o qual, após
ponderar entre diferentes soluções, resolveu cindir os humanos em
dois e fazê-los mais fracos e mais úteis. Isso explicaria porque temos
dois braços, duas pernas, mas também sugere que fomos amputados
e mutilados. Os humanos teriam perdido a sua completude e com
isso caram fadados para sempre a sentir falta da metade que lhe fora
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arrancada. Separadas as partes, cada uma delas colocou-se a procurar
a outra. Morriam de fome e inanição, pois cindidas não queriam fazer
mais nada. O amor, explica Aristófanes, seria capaz de reestabelecer a
unidade, de garantir a completude, fundir os dois corpos, banir a solidão
e garantir a felicidade. O amor reside, nesse cenário, no encontro com
o outro, com a alma-gêmea, com a cara metade, com a outra metade da
laranja, um desejo de “ser unido e fundado no amado! Serem apenas
um!”5.
Para Sócrates, essa visão romântica do amor colocada por Platão
na representação de Aristófanes, por quem nutria certo descaso pelo
fato de ter debochado de seu mestre, carregava uma ponta de exagero
e de ingenuidade. Sócrates, pela boca de Platão, critica a visão poética
e ilusória de Aristófanes e pronuncia a sua verdade sobre o amor: o
amor é amor por alguma coisa, alguma coisa que se deseja e que lhe faz
falta. Amamos o que desejamos e desejamos aquilo que não temos. O
desejo se constitui pela falta, pela incompletude e não pela completude.
O amor é desejo e o desejo é falta. E justamente por isso o amor é
um demônio, intermediário entre os homens e os deuses; lho da
pobreza – pois desejoso do que falta – e da Riqueza – pois bravo,
resoluto, contente... cheio de recursos – tenta possuir o bem e a
felicidade por diversos caminhos, que vão de geração carnal à
atividade mais elevada do espírito. Ora a dialética ascendente
nos eleva do amor dos belos corpos ao das belas almas e depois,
nalmente...o da ciência. Desejoso de imortalidade e aspiração
do Bem em si, o amor terrestre conduz ao amor celeste6.
Além de nos fazer completos, o amor da teoria platônica é um
amor que é despertado pela beleza, não apenas da natureza física, mas
pelo belo enquanto virtude do comportamento, da alma. Se pode cobiçar
aquilo que não se acha belo, diz Platão, mas dicilmente não se amará
esta mesma coisa. Nisso o amor permite superar a supercialidade e
acessar o verdadeiramente valioso das coisas e das pessoas. Do desejo
5 PLATÃO. Diálogos: o banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
6 DURAZOI, Gerard; ROUSSEL, André. Dicionário de Filosoa. Campinas:
Papirus, 1996, p. 369.
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físico ao paraíso diria Platão. O amor extrai de nós o melhor como
amantes. Embora se inicie como atração sexual, permite lançar luzes
sobre nós mesmos. Essa é uma dimensão quase espiritual que Platão
empresta ao amor. O amor é um desejo natural de acessar a bondade e a
virtude, de estar unido a elas, de cultivá-las.
Em linhas bastante gerais pode-se dizer que os gregos descreveram
o amor de três diferentes formas. O amor como paixão, Eros, é um amor
doentio, que se constitui pela falta e nunca poderá ser completo. Nesse
tipo de amor a felicidade é uma impossibilidade. Na leitura inicial de
Sócrates, no “Banquete”, essa posição é bem evidente. Uma segunda
manifestação do amor é percebida na Philia, na amizade, e se constitui
como um afeto para o outro que está presente, que não é ausência,
que se estabelece entre iguais. “Philia é uma forma de devoção cuja
melhor tradução é ‘amor-amizade’, mas que oresce não apenas entre
o que costumamos chamar de ‘amigos’, como também em todos esses
outros tipos de relação em sua melhor forma”7. Aristóteles distinguiu
três diferentes espécies de amizades, em número igual às coisas que
merecem ser amadas: a amizade por prazer, a amizade por utilidade e
a amizade segundo a virtude. Enquanto as duas primeiras são efêmeras
e podem ser conquistadas até mesmo pelos homens maus, a amizade
como virtude é um atributo dos homens bons, uma amizade de tipo raro.
Se nas duas primeiras formas a amizade se esvai quando cessa o prazer
e as vantagens delas decorrentes, constituindo-se em amizades de tipo
acidental, a amizade (a verdadeira amizade) decorrente da virtude é
reservada aos homens bons pelo fato de poderem ser amigos pelo que
são por si mesmos. Neste cenário, a amizade e a bondade encontram-
se na mesma pessoa. Neste sentido, a amizade tem uma conotação
ética e é constitutiva de uma relação pública. Tem, por consequência,
um signicado político, conecta os cidadãos e os faz ter objetivos
7 MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p. 81.
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comuns8. A lealdade e a virtude que guiam a amizade verdadeira tornam
desnecessária a noção de justiça entre os amigos. Por m, a terceira
forma de amor, tal como entendida pelos gregos, encontra-se na Ágape,
na Caritas dos romanos, na ideia de solidariedade. É um amor àquele
que não se conhece, de quem não se é íntimo, um amor que é dedicado
ao outro pela sua condição de humanidade comum.
Obviamente que estas diferentes formas de amar adquiriram
ao longo dos tempos outros nomes, novas funções e conceitos, além
de terem sido experimentadas concomitantemente, em intensidades
diferentes e em relações distintas. Sem olvidar que a experiência afetiva,
entendida aqui de modo amplo, é, ao mesmo tempo interpessoal,
subjetiva e também social, uma relação e uma possibilidade individual,
interessa-nos aqui é compreender como as novas congurações do
amor e afeto, iniciadas sobretudo com o protagonismo do indivíduo
moderno, permitiram novas narrativas e a formação de novos tipos de
relações legítimas constitutivas da própria ideia de família.
A escolha do âmbito das relações familiares para tratar das novas
congurações do afeto é proposital, porque é nas relações familiares,
de modo amplo, que o amor e o afeto (e a falta de ambos) adquiriram
representações bem vivas de suas potencialidades e debilidades.
Mudanças na intimidade, na sexualidade, na relação com os lhos e
com os sistemas de produção reordenaram a família como instituição
social e como espaço simbólico.
A família passou por várias transformações ao longo da história.
Das gigantescas famílias que reuniam sob seu signo (e sob um mesmo
espaço geográco) todos aqueles dependentes de um mesmo chefe e
líder, incluindo-se entre eles os escravos, até as famílias monoparentais
contemporâneas, muitas transformações afetaram a sua estrutura
orgânica e funcional, bem como a denição de seu papel na constituição
dos sujeitos individuais e das instituições sociais.
8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002.
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Nas civilizações antigas o casamento não se apresentava
como uma união afetiva, uma vez que tinha como principal função o
nascimento de lhos homens, os quais iriam dar continuidade ao culto
da religião doméstica. Fustel de Coulanges assim declara:
O casamento era assim obrigatório. Não tinha por m o
prazer; o seu objeto principal não estava na união de dois
seres mutuamente simpatizantes um com o outro e querendo
associarem-se para a felicidade e as caseiras da vida. O efeito
do casamento, à face da religião e das leis, estaria na união de
dois seres do mesmo culto doméstico, fazendo deles nascer um
terceiro, apto para ser continuador desse culto9.
Os laços afetivos nas instituições familiares não eram vinculados
ao amor ou à escolha pessoal, senão uma forma de se perpetuar os
dotes, como na Idade Média, a partir do casamento arranjado. O amor
entre cônjuges era, inclusive, um mal a ser evitado. Os casamentos e
o sexo servem para a procriação e não para o deleite, a ponto de São
Jerônimo armar que um homem que está ardentemente apaixonado
por sua esposa é um adúltero10. O corpo é diabolizado, desvalorizado,
fonte de pecado e de luxuria, prisão e veneno da alma. Por isso mesmo
a prostituição sempre foi tolerada pela igreja, considerada um mal
necessário para manter a sanidade moral e sexual do resto da sociedade.
No que tange à educação dos lhos, nesta mesma época, a família
“não podia portanto, alimentar um sentimento existencial profundo
entre pais e lhos”11, o que não signica que os pais não amassem seus
lhos. Segundo Ariès, os pais “se ocupavam de suas crianças menos
por elas mesmas, pelo apego que lhes tinham, do que pela contribuição
que essas crianças podiam trazer à obra comum, ao estabelecimento
da família. A família era uma realidade moral e social, mais do que
sentimental.” 12
9 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. 12. Ed. São Paulo: Hemus, 1975, p. 69.
10 RICHARDS, Jeffrey. Sexo desvio e danação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
11 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Cientícos, 1981, p. 15.
12 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Cientícos, 1981, p. 15.
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Philippe Ariès fez um extenso trabalho iconográco em que
percorreu a trajetória da família desde a Idade Média até os tempos
modernos. O autor aponta para a descoberta da infância (e do sentimento
que lhe é particular) como o principal agente de transformação
no despertar do sentimento de família. Durante a Idade Média o
sentimento de família era desconhecido, pois o que apresentava valor
à época era a linhagem que ia além dos laços de sangue, abrangendo
a todos os descendentes de um mesmo ancestral, não importando se
essas pessoas coabitavam e se tinham intimidade. Nesta perspectiva, a
família se restringia ao grupo de pessoas que residiam juntas, às vezes
correspondendo a mais de um casal com seus lhos que moravam na
mesma residência. A intimidade, tão característica da família moderna,
era desconhecida nessa época. Ela não constituía, era um ainda-não.
Não tinha seu estatuto, uma ontologia.
Como a Idade Média foi um período muito marcado por valores
ligados à religião, era muito comum que as pessoas se dedicassem
às vocações religiosas como forma de santicação. O casamento era,
nas palavras de Ariès, uma questão de último caso, uma concessão à
fraqueza da carne. Somente a partir dos nais do século XVI e início do
XVII que passou a ser admitida “a possibilidade de santicação fora da
vocação religiosa, na prática dos deveres civis.”13
Na Idade Média o pai tinha sobre os lhos e a esposa, segundo
Badinter14, o direito de vida e de morte, o direito de castigá-los a seu bel
prazer, de até mesmo excluí-los da família. Nesse modelo de relações
patriarcais, refere Roudinesco15, interessa a transmissão do patrimônio
e os casamentos arranjados são a tônica das uniões, sem que os desejos
e o amor dos futuros cônjuges fossem levados em consideração. Porém,
13 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Cientícos, 1981, p. 146.
14 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do Amor Materno. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
15 ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
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aos poucos, passa-se a considerar a mãe-esposa não uma escrava,
mas uma companheira. Como um reexo do preceito segundo o qual
é preciso “amar ao próximo como a si mesmo”, ocorreu um freio ao
autoritarismo dos pais, instituindo-se o casamento como uma instituição
divina.
Essas transformações no seio familiar não tardaram a alcançar
também o casamento, como instituto. Até a metade do século XVIII,
Badinter16 arma que o amor não era considerado um valor familiar
e social, o que não quer dizer que não existisse, mas não ocupava um
lugar, nem tinha a importância que adquiriu na Modernidade. A família
residia seu tempo e seu posto no silêncio e não portava sentimentos
sucientes para fomentar a inspiração de escritores, artistas e poetas.
Devemos atribuir a esse longo silêncio uma signicação
importante: não se conferia um valor suciente à família.
Da mesma forma, devemos reconhecer a importância do
orescimento iconográco que a partir do século XV, e
sobretudo XVI, sucedeu a esse longo período de obscuridade:
o nascimento e o desenvolvimento do sentimento de família.
Daí em diante, a família não é apenas vivida discretamente, mas
é reconhecida como um valor e exaltada por todas as forças da
emoção17.
Um marco decisivo para o surgimento de um novo paradigma
fundante da família, em termos materiais e simbólicos, está diretamente
relacionado ao desenvolvimento industrial18. Transformações ocorridas
entre os séculos XVI e XVII marcaram o rompimento com o modelo
de família da Idade Média, engendrando o início da família moderna
e consequentemente um novo sentimento: o sentimento de família e o
sentimento de amor romântico.
A partir da segunda metade do século XVIII, as esposas
passaram, lentamente, a ocupar o lugar de companheiras e o casamento
16 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do Amor Materno. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
17 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Cientícos, 1981, p. 152.
18 HORKHEIMER, Max. Autoridade e família. Lisboa: Apaginastantas, 1983.
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o lugar privilegiado da felicidade, da alegria e da ternura. Essa nova
família passa a ser considerada, nos dizeres de Badinter, “uma unidade
sentimental que engloba marido, esposa e lhos. É o nascimento da
moderna família nuclear, que constrói pouco a pouco o muro de sua
vida privada para se proteger contra toda intrusão possível da grande
sociedade”19. O amor, aos poucos, vai ocupando o vácuo deixado pelo
cristianismo. No lugar de “Deus é amor”, exsurge o “amor é Deus”, de
modo que ele se torna a religião não declarada do ocidente. Em certa
medida, pode se dizer que nas culturas forjadas pelo cristianismo, o
amor genuíno se molda a partir de uma imagem do amor divino20.
Mas isso não quer dizer que o amor tenha se instalado,
denitivamente, como um acontecimento ontológico já no início da
idade moderna, nem mesmo na losoa. Depreende-se da leitura
contratualista e naturalista de Rousseau, por exemplo, que “a mulher
é feita especialmente para agradar o homem [...]. Não se trata da lei
do amor, concordo; mas é a da natureza anterior ao próprio amor.”
A diferença natural que é evidente entre eles, marca também suas
atribuições morais. Um, por isso, é forte e ativo e outro, fraco e passivo21.
Kant22 também atribuiu às mulheres uma posição de inferioridade em
relação aos homens. Apesar de não negar sua inteligência, em igualdade
de condições, insiste de que se trata de uma inteligência bela, tomada de
ingenuidade, sem profundidade. Sua autonomia não é plena e por isso
seus papeis sociais são essencializados como menores, como passivos.
Tais premissas, evidentemente, não permitem que se viva o amor, o
poder e o direito em igualdade de condições e como expressão de
liberdade e autonomia.
19 BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 179.
20 MAY, Simon. Amor: uma história. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
21 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emilio: ou, Da Educação. Tradução de Sérgio Milliet.
3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 424.
22 KANT, Immanuel. Observações sobre o belo e o sublime. Campinas: Papirus,
2000.
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Nem mesmo as revoluções liberais do século XVIII, como a
francesa, alterou profundamente a situação do protagonismo masculino.
De fato consagraram princípios de liberdade e igualdade, mas
inuenciadas e direcionadas por um visão masculina e heteronormativa
de sociedade. Liberto da religião, o amor ainda estava prisioneiro das
formas repressoras de separação e segregação de gênero que somente
nas décadas de 60 e 70 do século XX seriam denunciadas de modo mais
contundente.
Somente aos poucos, portanto, a intimidade se instala nas relações
familiares. Afeta os corpos e aproxima mães de lhos e mulheres de
seus próprios corpos, e a sexualidade começa a construir um itinerário
separado e independentemente da reprodução. Inicia-se um caminho,
trilhado ao longo dos últimos séculos, da sexualidade como possibilidade
instalada nos corpos, como algo apartado da biologia que identica o
sexo com a reprodução indispensável à continuidade familiar. Segundo
Giddens, “a intimidade implica uma total democratização do domínio
interpessoal, de uma maneira plenamente compatível com a democracia
na esfera pública.”23
Para Luhmann24, na medida em que a sociedade moderna tornou-
se mais complexa, mais individualizada, o amor como paixão, distinto
do amor cortês medieval, aparece como um código de comunicação
simbolicamente generalizado das individualidades. A literatura
romancista teria contribuído com a proliferação deste código na medida
em que propagava um tipo ideal de relação amorosa e descrevia os
comportamentos adequados a serem esperados dos amantes. No século
XVII o amor como paixão surge como código distinto daquele amor
vinculado a ideia de serviço e de veneração à amada, típico de uma
sociedade estraticada. O amor paixão instala a possibilidade de escolha
23 GIDDENS, Anthony. As transformações da intimidade: sexualidade, amor e
erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1993, p. 11.
24 LUHMANN, Niklas. O amor como paixão: para a codicação da intimidade.
Lisboa, Difel, 1991.
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do parceiro e livra-se, até certo ponto, do controle social externo. Passa
a ser uma questão de decisão do amante em amar e ser amado, mas
que também envolve um sofrimento involuntário, sem regras e sem
controle. Ama-se por que se ama. O amor torna-se conquista, excesso,
ilimitado, esquizofrênico, e por isso paradoxal. Deseja comunicar a
paixão ao amante sem ter como fazê-lo de modo pleno.
Porém, somente a partir do século XVIII, prossegue Luhmann25,
o amor paixão vai sendo suavizado, civilizado, estabilizado e ganha
contornos de um amor romântico que consegue ser mais eciente
na comunicação e garantidor das individualidades a ponto de se
constituir numa condição desejável inclusive para o casamento. Nesse
momento o amor romântico transforma-se num código generalizado de
comunicação das individualidades e da intimidade, distinto dos demais
tipos de códigos de comunicação social. O amor é descaracterizado
como paixão sem limites e passa a ser regrado e estável como um
valor em si mesmo que não precisa de justicação. A partir do século
XX, ainda segundo o autor alemão, o amor estaria perdendo a sua
capacidade de comunicação de individualidades diferenciadas, pois
se tornou condição não apenas para o casamento, como também para
a proliferação dos encontros casuais. Esta constatação do amor como
modelo contemporâneo para encontros casuais parece-nos exagerada
e induz a uma confusão entre desejo puramente sexual ou biológico e
amor que não permite uma conceituação segura da innidade de tipos
de relações possíveis entre parceiros eventuais.
A Modernidade funda um império da intimidade e potencializa
suas formas de representação. O amor romântico, como uma
possibilidade da individualidade livre e autônoma, numa sociedade
em que se esvanecem as formas tradicionais de pertença e identidade,
transforma-se em um veículo de esperança para a felicidade e para a
auto- realização, uma espécie de religião depois da religião, diriam Beck
25 LUHMANN, Niklas. O amor como paixão: para a codicação da intimidade.
Lisboa, Difel, 1991.
239
Os Desaos do Direito em Normatizar e “Normalizar” as Narrativas Afetivas e Amorosas
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e Beck-Gernsheim26. Isto é, o amor como forma de religião terrena, pois
o centro da vida hoje está ocupado não mais pela religião, pela luta
pela sobrevivência ou pelos papéis tradicionais de gênero, mas pelas
exigências de autodesenvolvimento, o que implica novas formas de
vida, de amor e de exercício da sexualidade. Nesta religião, entretanto,
os próprios amantes assumem a totalidade das regras e dos acordos.
Nada que é exterior tem a potência de colocar regras e fazer juízos de
justiça. Só os amantes e ninguém mais sabem do seu amor.
En la sociedad occidental de los últimos siglos se ha ido
fraguando una forma absolutamente dominante de concebir lo
humano y de representar los vínculos entre las personas, que
denominaré Pensamiento Amoroso: un conjunto articulado
de símbolos, nociones y teorías en torno al amor, que permea
todos los espacios sociales, también los institucionales, e
inuye directamente en las prácticas de la gente, estructurando
unas relaciones desiguales de género, clase y etnia, y un modo
concreto y heterosexual de entender el deseo, la identidad y, en
denitiva, el sujeto27.
O amor romântico inaugura, portanto, uma nova relação com
o afeto. Ele é constituído de afeto, de existencialidade no lugar de
funcionalidade. Poder escolher o próprio marido, apaixonar-se por
ele e sonhar com a felicidade no casamento é uma grande mudança
de paradigma que auxilia na elaboração da ideia de autonomia e
consciência de si. Isto é,
o surgimento da ideia de amor romântico tem de ser
compreendido em relação a vários conjuntos de inuencias
que afetam as mulheres a partir do nal do século XVIII. Um
deles foi a criação do lar. Um segundo foi a modicação nas
relações entre pais e lhos; um terceiro, o que alguns chamam
de “invenção da maternidade”. No que dizia respeito à situação
das mulheres, todos eles estavam intimamente ligados28.
26 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIN, Elisabeth. El normal caos del amor: las
nuevas formas de la relación amorosa. Barcelona: Ediciones Paidos Ibérica, 2001.
27 ESTEBAN, Mari Luz. Crítica del pensamiento amoroso: temas contemporáneos.
Barcelona: Bellaterra, 2011, p. 23.
28 GIDDENS, Anthony. As transformações da intimidade: sexualidade, amor e
erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1993, p. 53.
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Com a prática de casamento arranjado sendo deixada de lado
em nome do amor e de um novo conceito de família como refúgio,
a promessa era a de que essa moderna família encontrasse alívio,
felicidade e ternura diante de um mundo que começava a se delinear de
competitividade e brutalidade. Segundo Christopher Lasch29, a criação
dos lhos se converteu em algo mais exigente e os laços entre pais e
lhos se intensicaram, sendo uma fonte de tensão na família, dada a
sobrecarga emocional na relação entre pais e lhos. Ainda de acordo com
Lasch, é nas relações com entes queridos e suas guras de autoridades
que a criança tem suas primeiras experiências. “A socialização faz com
que o indivíduo queira fazer o que deve fazer e a família é o agente ao
qual a sociedade cona essa tarefa complexa e delicada.”30
Pensando de acordo com Simmel31 ou Goode32, o amor passou a
se destacar com maior relevância desde as primeiras décadas do século
XX. Primeiramente, se xou como centro na reconguração histórica da
vida privada, desde Ariès, que escolheu a sentimentalização das relações
familiares como uma das linhas de força da Modernidade, frisando a
importância do romantismo que, orescente no século XIX, concedeu
destaque aos afetos – entre cônjuges, entre pais e lhos –, legitimando
um ideal de família refúgio, íntima e livremente escolhida33.
Além das alterações já mencionadas, a Modernidade trouxe
consigo um forte apelo à individualidade e a novas formas de viver
“plenamente” a sexualidade, o corpo, o trabalho, o casamento, o amor
e sobretudo as relações que se estabelecem nesse ínterim. O sentimento
29 LASCH, Christopher. Refúgio num Mundo sem Coração: A Família: Santuário ou
Instituição sitiada? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
30 LASCH, Christopher. Refúgio num Mundo sem Coração: A Família: Santuário ou
Instituição sitiada? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 26.
31 SIMMEL, Georg. On the sociology of the family. Theory, Culture and Society, 15
(3-4): 283-293, 1998 [1895].
32 GOODE, Willian J. The theoretical importance of love. American Sociological
Review, 24: 38-47, 1959.
33 COSTA, Sergio. Amores fáceis: romantismo e consumo na modernidade tardia.
Novos Estudos, 2005, v. 73, p.111-124.
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Os Desaos do Direito em Normatizar e “Normalizar” as Narrativas Afetivas e Amorosas
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amoroso é, assim, um dos pilares da individualização, pois desaou
a instituição, constituindo uma força subversiva e ameaçadora da
fundação matrimonial, subordinada aos interesses da reprodução
familiar e social.
Anthony Giddens trabalha essa mudança de paradigma, situando
as transformações da intimidade como novas formas de se relacionar
com o mundo e com a autonomia. Referindo-se às mudanças ocorridas
no laço amoroso, refere que o
[...] lar passou a ser considerado um ambiente distinto, separado
do trabalho, e, pelo menos em princípio, converteu-se em um
local onde os indivíduos poderiam esperar apoio emocional,
em contraste com o caráter instrumental do local de trabalho.
Particularmente importantes em relação a sexualidade, as
pressões para se constituírem famílias grandes, características
virtuais de todas as culturas pré-modernas, deram lugar a uma
tendência a se limitar de forma rigorosa o tamanho da família.
Tal prática, aparentemente uma estatística demográca inocente,
colocou um dedo no gatilho histórico, no que dizia respeito à
sexualidade. Pela primeira vez, para uma população maciça
de mulheres, a sexualidade se aparta de um círculo crônico de
gravidez e parto.34
Além das mudanças ocorridas na esfera privada, algumas foram,
inclusive, decorrentes dela. Para Foucault35, por exemplo, a invenção
da sexualidade foi um processo de formação das instituições sociais
modernas. Invenção porque daí para frente o sexo adquire um conteúdo
próprio que diz do sujeito, enunciando a sua verdade interna. Os estados
Modernos, para ele, assim como as organizações modernas dependem
do controle meticuloso das populações através do tempo e do espaço.
Tal controle foi gerado pelo desenvolvimento de uma anatomia-política
do corpo humano – tecnologias de controle corporal que visam ao
ajuste, mas também a otimização, das aptidões do corpo36.
34 GIDDENS, Anthony. As transformações da intimidade: sexualidade, amor e
erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1993, p. 36-37.
35 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 22. impr. Rio
de Janeiro: Graal, 2012.
36 GIDDENS, Anthony. As transformações da intimidade: sexualidade, amor e
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Mais e mais transformações do encontro amoroso se fazem
presente. Bauman37 refere-se às sociedades Modernas e pós-modernas
como produtoras de liquidez. Isso signica dizer que o mundo anterior,
cheio de verdades absolutas, dogmas consolidados e, por natural,
minados de certezas e seguranças, hoje se perdeu. A certeza que
vigorava em épocas passadas não se faz presente nesta. A realidade que
nos é imposta contribui para que valores, costumes e hábitos estejam
em constante mudança onde o novo é efêmero, ou como diriam Marx e
Engels, “tudo que é sólido desmancha no ar.”
Essa liquidez abrange todas as dimensões do indivíduo. Os
relacionamentos são mais virtualizados, portanto menos simbolizados,
até mesmo porque as possibilidades são inúmeras. Qualquer um sabe
que “estar num relacionamento” signica muita “dor de cabeça”, mas
sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e
verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa
ou no momento preciso.”38
Bauman39 ainda menciona que “onde há dois não há certeza”, e
que hoje vivemos “uma relação de bolso”, e o que revela essa analogia
é a “encarnação da instantaneidade e da disponibilidade”40. A tirania da
intimidade promove a substituição do erotismo pela sexualidade como
satisfação individual. Sexo torna-se um ato de prazer individual e não
uma ação, e a sexualidade é desconectada da ideia de uma construção
relacional, feita a dois e compromissada. Nesse sentido muitas formas
de relação são constituídas e alimentadas pelo interesse dos parceiros.
O consentimento é a única coisa que não permite, nesse tipo de relação,
ser questionado.
erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1993, p. 31.
37 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
38 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 29.
39 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 35.
40 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 36.
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Os Desaos do Direito em Normatizar e “Normalizar” as Narrativas Afetivas e Amorosas
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O fato é que a introdução da ideia de amor e afeto no seio familiar
fez com que a família passasse “a desempenhar um papel ainda mais
crucial para a constituição de novas narrativas da identidade, por estar na
própria origem do eu e por ser aquilo de que ele precisava se libertar.”41
As expectativas hoje são outras e, se há lugar para o amor, temos de
admitir que há lugar também para a agressão e para a indiferença. É que
esse amor moderno não se pode alcançar sem algumas contrapartidas
amargas: decepção, ódio, rancor, amargura, tristeza. O fato de que os
pais voltem todas as suas atenções para o lho constitui também uma
exigência permanente para a criança. Ou seja, se antes o lho devia aos
pais respeito e obediência, hoje a súplica é por amor e, em contrapartida,
os pequenos fornecem suporte emocional aos pais em meio ao mundo
caótico e conturbado no qual vivem. O lho confronta o pai e a mãe
com sua própria história de vida42.
Mas se o amor moderno é um sentimento que se fundamenta
em si mesmo, ou seja, somente nos sujeitos que o vivenciam, então
talvez “el no amar no es una infracción de las leyes, no es un acto
criminal, aunque con ello se hiera la vida de otros más profundamente
que con un robó o una lesión.”43 Logo, quem sacrica o matrimônio,
a família, a paternidade e, ao m e ao cabo, o bem-estar “dos seus”,
talvez não esteja cometendo crime ou pecado, pois está cumprindo a lei
da autorrealização, mandamento primeiro da sociedade moderna. “El
amor no se puede forzar”, dirão Beck e Beck-Gernsheim44.
Então, em decorrência desses novos rearranjos e dessas
novas possibilidades do encontro, a partir de 1960 a família tem
41 ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Zahar, 2011, p. 16.
42 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIN, Elisabeth. El normal caos del amor: las
nuevas formas de la relación amorosa. Barcelona: Ediciones Paidos Ibérica, 2001.
43 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIN, Elisabeth. El normal caos del amor: las
nuevas formas de la relación amorosa. Barcelona: Ediciones Paidos Ibérica, 2001,
p. 302.
44 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIN, Elisabeth. El normal caos del amor: las
nuevas formas de la relación amorosa. Barcelona: Ediciones Paidos Ibérica, 2001,
p. 302.
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como particularidade dois indivíduos que se juntam através de uma
durabilidade relativa em busca de relações íntimas ou realização
sexual, de modo que a transmissão da autoridade vai se tornando mais
difícil e questionada à medida que os divórcios, a fragmentação e as
reorganizações conjugais aumentam, no qual a família não é mais
garantida pela presença indesatável do divino através da convenção
do casamento, tornando-se cada vez mais um acordo livre e outorgado
entre os indivíduos enquanto o amor resistir45.
3 Os desaos do direito em normatizar e “normalizar” as narrativas
afetivas, amorosas e familiares
Por mais que a Modernidade tenha inaugurado um novo estado
de coisas no campo político e jurídico que melhorou as condições
de sociabilidade do mundo ocidental, é também verdadeiro que este
mesmo período não atendeu às exigências de acesso à complexidade.
A sua potência igualizadora e homogeneizadora consagrou narrativas
racionalistas e instituições totalizantes, reduzindo o plural, as formas
autênticas marcadas pela diferença. A igualdade abstrata é a grande
chave para acessar a modernidade jurídica.
Com o direito não foi diferente. Sua expressão moderna
normatizou a normalidade e criminalizou a “anormalidade”46. No
contexto de governamentalidade neoliberal o direito reduziu sua carga
de interdições e repressões, e passou a controlar pela denição das
subjetividades normais e anormais que pretende normalizar. No campo
da regulação sexual e de tudo o que ele envolve, a normalidade visada
pelo direito, signatário dos valores do seu tempo, era a manutenção das
uniões familiares de tipo heterossexual e com nalidade reprodutiva.
Havia uma sexualidade e um tipo de desejo tido com impróprio e,
45 ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
46 FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2014.
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Os Desaos do Direito em Normatizar e “Normalizar” as Narrativas Afetivas e Amorosas
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portanto, alvo de denúncia e expurgo pelos sistemas sociais. A família
tinha um estatuto denido e sua forma de representação um conteúdo
claro, uma sexualidade clara, funções claras, sujeitos com papéis
denidos. Um tipo de direito de amar que portava vantagens apenas ao
homem, ao marido47.
As ondas liberalizantes, o afrouxamento religioso e moral
e a hiperindividualização da vida colocaram o direito numa nova
direção. Hoje, o direito normaliza a descontinuidade dos casamentos,
a possibilidade da ruptura permanente. Normaliza os diversos tipos
de encontros amorosos que tornam a regulação por oposição uma
alternativa obsoleta. Não tem sentido regular, no caso amoroso, quando
praticamente tudo é possível. Não tem sentido a norma reprimir quando
não existem, no campo do desejo, ilícitos e anormalidades a serem
“combatidos” e evitados.
O amor romântico, em sua origem, é uma espécie de
conspiração contra a sociedade. Não conhece limites. Nem os limites
dos estamentos e das classes, nem os limites da lei e da moral48. Aos
poucos ele é aprisionado como um projeto e passa a fazer eco das
normas e da própria comunidade. Sendo o amor romântico uma
utopia da felicidade individual, transforma-se num projeto totalizante
e por isso numa impossibilidade. Ele perde sua capacidade de gerar
segurança e é facilmente dissolvido na paternidade, sexo, erotismo,
convivência, ertes, relação amorosa, união familiar etc. Beck e Beck-
Gernsheim chegam a falar da morte do amor, de sua incapacidade de
comunicar para além dos próprios sujeitos da relação. Atualmente, com
a liberalização da vida pelo afrouxamento das barreiras estamentais e
familiares, o amor perde sua capacidade de comunicar e estabelecer
laços duradouros, mas abre-se como possibilidade, como aventura,
como projeto de hipóteses imprevisíveis.
47 RODOTÀ, Stefano. Diritto d’amore. Bari: Laterza, 2015.
48 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIN, Elisabeth. El normal caos del amor: las
nuevas formas de la relación amorosa. Barcelona: Paidos Ibérica, 2001.
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Desse modo, ainda com Beck e Beck-Gernsheim, com a liberação
da moral e do direito, o amor se converte num assunto exclusivo dos
indivíduos que se amam, num modelo de salvação individual que se
prometem sujeitos isolados. É uma resposta contra a individualização,
uma aposta na formação de um sentido de pertença a dois. Por isso a
individualização da vida ter produzido o ideal de matrimônio por amor.
O amor se justica de modo individual e emocional e não de
modo tradicional. Só os amantes podem falar do seu amor. São titulares
daquilo que sentem e os únicos que dispõem da verdade e do direito
de seu amor. Por isso estabelecem papeis entre si, como atores que
devem representar um personagem pregurado. O direito externo não
possui alcance sobre eles, os quais são os únicos a fazerem a justiça
e justicarem-se. “El amor no se puede reclamar ante los tribunales,
no hay posibilidad de revisión. El amor y la justicia son palabras que
pertenecen a idiomas totalmente distintos.”49
O amor se auto fundamenta, apresentando-se como um local
de segurança para os amantes. Numa sociedade líquida, transforma-se
numa espécie de refúgio. Mas é, por outro lado, uma fórmula vazia
que exige uma complementação geralmente alcançada pelo consenso
daqueles que amam. Apresenta-se diverso, distinto, em se tratando dos
conteúdos que lhe dão sentido. Por isso, o consenso é a única coisa
que está aberta para a validação pública, não os conteúdos acordados.
Nesse sentido o direito estatal reduz a sua capacidade de intervenção
substancial, limitando-se a garantir a legitimidade dos procedimentos
de acordos. O direito é chamado apenas para reestabelecer as regras do
jogo democrático a dois50.
Esse movimento de liberalização regulatória desempenhou um
papel simbólico e institucional importante, especialmente no tocante
49 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIN, Elisabeth. El normal caos del amor: las
nuevas formas de la relación amorosa. Barcelona: Ediciones Paidos Ibérica, 2001,
p. 340-341.
50 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIN, Elisabeth. El normal caos del amor: las
nuevas formas de la relación amorosa. Barcelona: Ediciones Paidos Ibérica, 2001.
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Os Desaos do Direito em Normatizar e “Normalizar” as Narrativas Afetivas e Amorosas
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ao reconhecimento de famílias até então desprezadas pelo direito. O
casamento homossexual e outras formas de união ganharam sentido e
proteção justamente por conta da proibição de se regular os corpos e
o amor. A proteção jurídica, nesse caso, é o resultado de um evento
paradoxal: justamente por não poder regular mais o amor, o sexo, é
que a liberdade dos amantes se tornou condição para todo e qualquer
tipo de proteção. A proteção dos homossexuais está mais centrada
na impossibilidade de se regular, na liberdade dos sujeitos, no que
na possibilidade de se regular. A proteção jurídica lhes dá garantias
objetivas e um reconhecimento inegavelmente importante, mas é
na condição de amor libertado do direito que as uniões se fundem e
ganham vida.
Libertado do direito, os sujeitos, contudo, não libertaram o amor,
no sentido de construir novas concepções sobre ele. É interessante notar
que a liberdade sexual não fundou um amor livre. A busca pelo amor,
pela pessoa certa, parece ser o objetivo de todas as relações afetivas.
Como efeito de um eu narcísico-depressivo típico da sociedade
ocidental, o outro é (ou deveria ser) mero prolongamento do eu, de
modo que nas relações afetivas também as expectativas giram em torno
de um amor, no mínimo, agradável, em meio ao que Han denomina de
um “inferno do igual”51.
Nessa utopia do amor sem limites, da possibilidade do amor com
esperança pessoal, o direito, quando requisitado, continua avançando
declaradamente o sinal. Parece que a liberdade do amor incomoda o
direito, e um avanço estrutural e epistemológico é notório quanto o tema
é o amor, o afeto, pois o direito e os Tribunais, geralmente, têm dito
mais do que poderiam dizer. Juridicizou o que não era possível fazê-lo.
Streck52 tem apontado, com propriedade, sobre a indevida e excessiva
51 HAN, Byung-Chul. A agonia de Eros. Lisboa: Relógio D’Água Ed., 2014.
52 STRECK, Lenio Luiz. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuciente de
princípio: dilemas da crise do direito. Revista de Informação Legislativa, a. 24,
n. 194, p. 07-21, abr./jun. 2012. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/
bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf?sequence=1. Acesso em: 23 jan. 2017.
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utilização dos princípios como forma de o direito colonizar aquilo que
lhe é estranho. Denuncia a confusão, tão difundida na teoria e prática
jurídicas nacionais, entre valores e direito, entre afetos e direito, entre
política e direito, como se tudo pudesse, de alguma forma, apresentar-se
no direito sob a roupagem de princípios.
Tornou-se comum, por exemplo, a utilização da afetividade
como princípio do direito de família, a ponto de um grande número de
decisões judiciais e a doutrina dedicada ao tema terem reservado um
capítulo especial sobre o assunto. É igualmente habitual a defesa da
afetividade como uma categoria jurídica capaz de instituir e destituir
tutelas e garantias jurídicas.
É evidente o exagero. Sentimento pode ser direito? Qual o limite
para essa eleição? Quais os sentimentos merecem proteção? Quem
escolhe esses sentimentos? A doutrina, os Tribunais? Ora, pode-se até
querer (e isso querem os mais variados sistemas sociais) que as famílias
se constituam e preservem seus laços afetivos da melhor forma possível,
mas o afeto como tal não é algo que possa ser codicado pelo sistema
jurídico como uma condição de possibilidade de um direito. Da mesma
forma que se fala do amor, a afetividade é encruada na relação subjetiva
que invariavelmente não requer elementos externos de conrmação. São
os envolvidos na relação afetiva os únicos donos e juízes de seu afeto.
Ao colocar a noção de afetividade como contraposta a de parentalidade
biológica, os Tribunais indicam uma preferência pelas escolhas dos
indivíduos, pelos seus acordos, pela segurança que o afeto representa
numa sociedade em que os laços forjados pela tradição diminuíram.
O problema é que o afeto, tal qual o amor, ao ser transformado pelo
direito em norma ou princípio, passa a indicar uma posição de correto
e de necessário, de obrigação, impondo sanções no caso de afetos não
correspondidos. Certamente aqui estamos, como dito antes, diante de
um excesso e o direito passa a dizer mais do que poderia e consegue
dizer.
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É legitimo que um pai ou um lho queiram o amor um do outro
até o m de seus dias, mas certamente não será o direito que garantirá
que isso aconteça. Do amante, do pai, do lho, da mãe, daqueles que
esperamos amor, só nos resta uma correspondência, uma palavra que
se torne ato e acolhimento, um beijo que não seja por obrigação e um
cuidado que não esteja codicado na lei. Relações psicanalíticas de
toda ordem conformam uma relação de afeto. Pais amam lhos que
não os amam (e vice-versa) por diversas razões. Sujeitos amam de
modo diferente por conta de sua historicidade. Se é possível falar num
amor e num afeto por obrigação, é plausível que se exija do direito que
conceitue um afeto adequado, um bom afeto, um afeto que o direito
considere suciente. Ou como saberemos estar amando de modo
adequado juridicamente? Os pais e as famílias deixam de existir quando
não amam na medida em que se espera deles?
Denitivamente não se poder normatizar o desejo e o amor.
O direito, ao menos nas suas facetas mais liberalizantes, já não pode
dizer mais nada sobre licitudes e ilicitudes do amor, que se abre como
possibilidade, como substância e existencialidade do sujeito enquanto
tal e apenas isso. Justamente ao libertar-se do direito e de seus códigos
castradores é que o amor tornou-se livre e capaz de ser plenamente o que
é. O amor não necessita de legitimação jurídica, mas, paradoxalmente,
quer tornar-se direito para realizar-se plenamente. O direito ao amor
é um apelo a não intervenção, a não expropriação, a não castração, a
possibilidade de libertação que encontra seu amparo no desejo que
institui democraticamente e autonomamente cada sujeito. No lugar das
subjetividades construídas pelo saber dominante, que destrói o sujeito,
aposta-se na autenticidade de cada um como elemento emancipatório
que plenica a ideia de liberdade em condições de paridade entre os
diversos sujeitos. Denitivamente, o “amor, como a democracia,
demanda sempre a presença de um sentido inesperado.”53
53 WARAT, Luis Alberto. O amor tomado pelo amor. Crônica de uma paixão desmedida.
In: Territórios desconhecidos. V.1. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
250
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4 Considerações nais
No momento em que o direito libertou o amor de seus códigos
de licitude e de ilicitude, de sua dimensão castradora e reguladora, é
que sua potência mais intensa se tornou possível. O direito pleno ao
amor surge quando o próprio amor se liberta dos sistemas de regulação
social tradicionais e se instala como direito de pura liberdade, como um
acontecimento autêntico.
Apesar de o direito e os tribunais propagarem uma função
constitutiva normativa da dimensão afetiva, é evidente que o amor ou
a falta dele é um assunto exclusivo daqueles que amam e o direito, por
melhores intenções que tenha, não é capaz de acessar o seu estatuto.
As novas famílias, as novas formas de amar, resultam da defesa da
democracia como lugar da autonomia, como espaço simbólico e
histórico de manifestação das diferenças que constituem o desejo de
cada sujeito. Amar é um direito, mas um direito de se amar a seu modo
e não ao modo de um direito que impõe restrições e obrigações, como
de regra sempre fora o direito balizado por padrões heteronormativos.
O amor como experiência plena é fundamental para a construção
de espaços democráticos que dependem da autenticidade, da alteridade
e do reconhecimento da diferença do outro. Tem um apelo ético, uma
carga de sentido nunca completa que se alimenta da constante incerteza e
insegurança que funda os desejos e os interesses de cada cidadão. Nessa
direção, o amor, em seus diversos formatos e modos de representar,
é importante para a justiça, para a formatação de uma sociedade de
acontecimentos livres, autônomos e em igualdade de condições. Trata-
se de uma função pública do amor, da possibilidade de ele conduzir
todos os tipos de narrativas, de desejos, de gozos, de entendimentos
compartilhados e abertamente vividos por todos os sujeitos como
um direito de verdade. Se o amor é importante para a construção
dos destinos e para a qualidade moral de cada ser individualmente,
seguramente vai inuenciar na reforma estrutural e na formação dos
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novos arranjos familiares. Cada pessoa individualmente considerada
é a unidade da distribuição política e os direitos em igualdade de
condições são a condição de possibilidade para que cada sujeito se
realize como um projeto independente54. Por isso, entendemos que o
STF decidiu adequadamente quando reconheceu o mesmo direito das
uniões heterossexuais para as uniões entre pessoas do mesmo sexo,
pois potencializou a vida, a liberdade, a autonomia, valores e direitos
fundamentais importantes em qualquer democracia.
O direito pode impor o dever de cuidado, de zelo, respeito e
proteção. Isso, além de desejável em qualquer relação, pode ser cobrado
de quem quer que seja. É uma ação objetiva que se pode determinar,
inclusive de modo nanceiro. Contudo, não se pode cobrar amor de
quem não tem para dar, simplesmente, pois amar não é uma obrigação,
amar não é um acontecimento objetivo que possa ser encapsulado e
exigido de modo material. Do mesmo modo não se pode castrar o
desejo e o amor de quem o possui. Assim como não se pode obrigar
alguém a apaixonar-se, o direito é incapaz de impedir que alguém ame
ou deixe de amar. Todos podem amar e podem amar a seu modo, sem
regulamentos, sem etiquetamentos e sem restrições. Os novos nomes
do amor se abrem como possibilidade e como liberdade. O Amor é,
denitivamente, um evento a dois, uma democracia a dois. Exige um
itinerário seu, sem restrições, proibições, imposições e obrigações.
Anal, como diz Caetano Veloso, em sua música Paula e Bebeto,
“qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale
amar”.
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