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Entre o conhecimento e a verdade: o desafiador dilema da educação
contemporânea
Between Knowledge and truth: the challenging dilemma of contemporary education
Pedro Goergen
Doutor pela Universidade de Munique/Alemanha; Posdoutor pela Universidade de Bochum/Alemanha e pelo
Instituto Max Planck de Berlim/Alemanha; Doutor h. c. pela Universidad del Centro de la Província de Buenos
Aires/Argentina. Professor Titular da Universidade de Sorocaba, São Paulo, Brasil; Professor Titular (aposentado)
da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil y Coordenador do Convênio Internacional
Unicamp/UPF/UNICEN.
E-mail: pedro.goergen@hotmail.com
Resumo
O ensaio analisa a relação hoje existente entre
educação e mercado. Trata-se de uma realidade cada
vez mais forte e evidente, com influência
determinante sobre os rumos, os sentidos e as
práticas pedagógicas. Cada vez mais a educação é
funcionalizada no sentido de tornar-se uma prática
voltada ao atendimento dos interesses e objetivos
do mercado e não da formação das pessoas
enquanto seres humanos autônomos e livres. O
texto defende o ponto de vista de que a educação,
muito embora deva preparar as pessoas para o
exercício profissional, deve ter, como
responsabilidade fundamental, a educação integral
das pessoas, envolvendo as dimensões racional, ética
e estética. O texto tem, portanto, o objetivo de
chamar a atenção do leitor para o risco do
reducionismo pedagógico que trata apenas de
preparar os jovens para o mercado de trabalho, cujos
interesses são permeados pelo produtivismo,
competitividade, monetarismo e a concorrência
generalizada entre as pessoas. Tal tendência reduz e
desqualifica qualquer potência transcendente de
natureza ética que valoriza o cenário de direitos e
deveres entre os seres humanos focados no bem
comum, objetivo maior da educação.
Abstract
The essay a nalyses the relationship between
education and the market today. It is a reality that is
becoming stronger and more evident, with a dec isive
influence on directions, senses and pedagogical
practices. Increasingly education is functionalized in
the sense of becoming a practice aimed at meeting
the interests and objectives of the market and not
the training of people as autonomous and free
human beings. The text defends the view that
education, although it should prepare people for the
professional exercise, should have, as fundamental
responsibility, the integral education of the people,
involving the rational, ethical and aesthetic
dimensions. The aim of the text is therefore to draw
the attention of the reader to the risk of pedagogical
reductionism that is only concerned with preparing
young people for the labor market, whose interests
are permeated by productivism, competitiveness,
monetarism and widespread competition between
people. Such a tendency re duces and disqualifies any
transcendent power of an ethical nature that values
the setting of rights and duties among human beings
focused on the common good, the highest goal of
education.
Palabras Clave: Educação e mercado, conhecimento
e verdade, formação humana.
Key words: Education and market, knowledge and
truth, human education.
GOERGEN, P. (2019) “Entre o conhecimento e a verdade: o desafiador dilema da educação contemporânea ”,
en Espacios en Blanco. Revista de Educación, núm. 29, vol. 2 – jul./dic. 2019, pp. 277-292. Universidad
Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Tandil, Argentina
RECIBIDO: 17/12/2018 – ACEPTADO: 28/12/2018
PEDRO GOERGEN
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Introdução
A educação em geral e a educação escolar em particular enfrentam hoje enormes
desafios relacionados aos objetivos e sentidos da prática pedagógica. Trata-se de
encontrar respostas adequadas para a pergunta a respeito da natureza e dos objetivos
da educação no contexto do atual sistema político/econômico capitalista neoliberal,
focado prioritariamente na eficácia econômica. Em outras palavras, trata-se do ideal,
modelo ou imagem de ser humano que serve de paradigma para a orientação do
processo educacional. A formação para o mercado e a formação humanista, são duas
perspetivas que denotam desafiadora ambivalência pedagógica entre o que o sistema
político/econômico impõe às pessoas como condição de sobrevivência material e o que
se espera do ser humano enquanto sujeito livre e ético. Nas atuais condições sócio
econômicas, a educação se vê desafiada por dois ideais distintos: a formação como
sujeito ou a educação como con-formação à realidade sócio-econômica.
Sobre a teoria da educação encarregada de desvendar e resolver o dilema
mencionado paira o presságio hegeliano
1
, segundo o qual, a coruja só levanta voo ao
entardecer, ou seja, nossas teorias nesse campo sempre se embasam em práticas já
realizadas. Mesmo assim, como também nos ensina o filósofo (1990) não haveria novo
amanhecer sem o voo da coruja ao entardecer. Apesar do amplo domínio da educação
sistêmica, e talvez em razão disso, torna-se mais premente que nunca indagar pelo
sentido da educação enquanto condição para a construção de uma sociedade mais
humana, digna e justa. O estrito reconhecimento da inumanidade do real é condição
para a construção de uma humanidade melhor (pp.16-17).
Desejo argumentar que o desafio de pensar a prática pedagógica implica sempre
uma dinâmica crítica de dupla face, envolvendo, de um lado, a realidade educacional
responsável pela preparação dos jovens para o mundo do trabalho e, de outro, a
conscientização dos jovens visando sua formação para a responsabilidade ética e social.
A face real da historicidade implica, portanto, pressupostos relacionados tanto ao
preparo dos jovens para a vida profissional num contexto sócio/econômico dado e, de
outro, à formação de jovens conscientes, dispostos a constituir sua subjetividade e
autonomia indispensáveis para a construção de uma sociedade melhor e mais humana.
O que está em jogo com o capitalismo neoliberal é a forma de nossa existência
humana, a maneira como nos relacionamos com o mundo, com o sistema econômico,
com os outros e, em última análise, com nós mesmos. Vivemos numa engrenagem
sistêmica movida pela competição generalizada, verdadeira luta de uns contra os outros,
entre países, grupos sociais e indivíduos. As pessoas para ‘vencer na vida’ são instadas a
se esmerar na arte da competição num ambiente de subserviência sistêmica que exige
constante modelagem e adaptação. Neste contexto, a educação se torna a principal
estratégia indutora de subserviência do ser humano às premissas e exigências do
sistema econômico.
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Meu propósito é argumentar em defesa da educação integral do ser humano,
envolvendo as dimensões racional, ética, estética e biológica, como condição essencial
de realização do humano, enquanto ser autônomo e livre. Defendo a ideia de que a
educação pode (e deve) contribuir para estimular a consciência crítica da realidade, dos
riscos e desafios que o ser humano enfrenta hoje para construir sua humanidade no
interior do sistema capitalista neoliberal que reduz as pessoas a peças de sua
engrenagem. Considero este o tema central e a tarefa primeira da política educacional,
promotora da justiça social.
- I -
Inicialmente, convém esclarecer o sentido da palavra ‘dilema’, presente no título acima.
Dilema se refere a uma situação problemática entre a possibilidade de duas alternativas
contraditórias, porém, ambas aceitáveis a depender do ponto de vista assumido. Neste
sentido, quando se diz que alguém ou uma realidade se encontra frente a um dilema,
subentende-se que se trata de uma situação dúbia e de difícil solução. Desde o ponto de
vista filosófico, o raciocínio que configura um dilema consiste de um argumento que
apresenta duas alternativas ou cenários contrastantes, ambos não satisfatórios, mas
eticamente correlacionados. Assim sendo, nenhuma das hipóteses é plena, visto que, se
tomadas isoladamente, provocam sensação de desconhecimento ou mesmo de cegueira
ideológica entre posturas que falam, mas não conversam; que ouvem, mas não escutam.
No campo da educação, este dilema ocorre em função da complexidade e do
envolvimento de perspectivas técnico/profissionais, de um lado, e ético/humanistas, de
outro, que regem as condutas das pessoas em sociedade. Muitos veem as faces desse
dilema como excludentes; pretendo argumentar, em sentido oposto, que tais horizontes
não são alternativos, mas co-relativos. A meu juízo, não se trata simplesmente de
contrapor um projeto educacional interessado no preparo das pessoas como ‘capital
humano’ para o mercado a um modelo educacional que visa ao desenvolvimento da
subjetividade e liberdade de sujeitos, comprometidos com um sistema social mais
humano, igual e justo.
No entanto, a realidade educacional hoje vigente retrata precisamente uma
realidade dividida em dois projetos pedagógicos dos quais um se orienta por princípios
utilitaristas, visando ao preparo das pessoas para o mercado de trabalho, e outro que
busca uma educação integral humanista. Efetivamente, o cenário pedagógico atual se
encontra marcado por este dilema entre, de um lado, o aparelhamento das pessoas ao
sistema econômico e, de outro, a promoção de uma educação libertadora de sujeitos
livres e autônomos. O ponto fulcral desse embate é o crescente predomínio da
correlação educação/mercado sobre o ideal da educação como formação humana e o
desafio posto é o de encontrar caminhos que conduzam à integração equilibrada entre
estas duas faces da praxis pedagógica das quais nenhuma pode ser descartada sob pena
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ou de tornar a educação alienada da realidade econômica ou de deixá-la desprovida de
sentido humano.
Em termos provocativos, pode-se dizer que, nas condições atuais de centralidade do
econômico, tendencialmente, o ser humano deixa de ser, enquanto tal, a referência
central de seu próprio processo formativo. Ao contrário, as práticas educativas passam a
priorizar o aparelhamento do ser humano às exigências e expectativas do sistema
econômico ao invés de formá-lo enquanto ser humano. Neste sentido, pouco importa
perder tempo com questões ético/filosóficas a respeito do que é o ser humano e quais
são ou deveriam ser seus objetivos de vida. Tais questionamentos são tidos como
inócuos visto que nada acrescentam de útil em termos de conhecimentos e habilidades
requisitados pelo sistema econômico. Num contexto social em que o mercado dita os
rumos e os caminhos do sucesso, em termos de trabalho e emprego, importa às novas
gerações submeter-se e atender às suas exigências. São, pois, os ditames do econômico
e não os nobres e altruístas ideais humanistas que ditam os procedimentos e conteúdos
do processo educacional. A própria realização do ser humano e seu reconhecimento
social se limitam ao sucesso econômico.
No contexto desta lógica sócio-econômico-cultural, com suas exigências e
prerrogativas, impõe-se a performatização econômico/profissional como referência de
qualidade educacional; numa palavra, a educação é tanto melhor quanto mais bem se
ajusta e qualifica para o mercado. Nestes termos, produção e consumo se tornam os
paradigmas comuns ao mundo econômico e pedagógico; economia e educação,
portanto, partilham o ideal comum do bom funcionamento da grande máquina sistêmica
cuja mecânica serve ao giro constante da produção e do consumo. Sobrevivem os que
encontram lugar, ou seja, os que estão devidamente preparados, qualificados e,
sobretudo, adaptados às expectativas e exigências do sistema econômico, enquanto os
demais passam a vegetar nas margens do sistema como um peso que onera e dificulta a
vida dos bem-sucedidos.
Nestes termos, cada vez menos importam preferências ou escolhas subjetivas
relacionadas ao convívio e à justiça social e sempre mais a qualificação técnica para a
otimização do processo produtivo, a integração e submissão ao sistema econômico, no
qual, em razão da natureza do próprio capitalismo neoliberal, não há lugar para todos.
Hardt e Negri (2016) lembram que
“a exclusão de grande parte da população global até mesmo desses circuitos de
exploração [...] funcionam como um a priori. É difícil até reconhecer isso como
violência, pois é tão normalizado e sua força é aplicada de maneira tão impessoal!
O controle e a exploração capitalistas não repousam basicamente num saber
soberano externo, mas em leis invisíveis e internalizadas” (p. 22).
Disso resulta a guerra competitiva levada a termo, tanto no nível individual entre
pessoas na busca de emprego, quanto no nível coletivo da competição entre instituições
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no ranqueamento de melhor inserção econômica. Com isso, dilui-se o espaço da ‘esfera
pública: o comum’, tão bem destacado por Arendt (1981)
“A presença dos outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-
nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida
privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do
surgimento da era moderna e do concomitante declínio da esfera pública, sempre
intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e
sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da
realidade do mundo e dos homens” (p. 60)
O ‘bom’ funcionamento da máquina produtiva se torna o objetivo maior, o sentido
último do labor humano, acima de quaisquer princípios éticos de convivialidade e justiça
social. As expectativas individuais de empregabilidade, eficácia e eficiência, definidas a
partir da racionalidade econômica representam o horizonte do processo formativo. Tal
sina configura, cada vez mais, o novo sentido da vida humana, conforme mostram
Dardot e Laval (2016). Os autores perguntam se o ser humano ainda tem condições
efetivas de preservar sua liberdade e humanidade no contexto de um sistema
econômico cada dia mais envolvente, determinante e individualizante. Trata-se,
portanto, de um momento histórico de grave e profunda reorientação na história da
cultura pedagógica e, por conseguinte, do próprio ser humano ocidental. Como
destacam os referidos autores, ”a racionalidade neoliberal tem como característica
principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como
modelo de subjetivação” (p. 17).
Não é exagerado dizer que nos encontramos num momento de ruptura com a
tradição antropológica e ético-política ocidental iniciada na Grécia antiga, de
distanciamento do ideal da salvação da pessoa no universalismo religioso medieval e
mesmo de negação da autonomia intelectual do racionalismo científico moderno. Na
medida em que o ideal da autodeterminação do indivíduo ancorado no ideal, na fé ou
razão cede lugar à subserviência ao sistema, o sujeito se submete e alinha seu processo
formativo às regras da gramática econômica. Dois aspectos deste cenário histórico
merecem especial consideração: de um lado, o ser humano moderno se torna mais
empoderado e livre, porém, de outro, se submete aos parâmetros e exigências do
sistema econômico. No dizer de Adorno e Horkheimer (1985),
“O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da
consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda
significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da
aparelhagem econômica que a tudo engloba” (pp.41-42).
Com a eliminação ou, pelo menos a relativização da consciência, o sujeito passa a ser
envolvido e determinado pelo sistema do qual ele mesmo é autor. Este envolvimento se
expressa hoje como relação mercantil, subvertendo o ideal da autonomia, vertente e
utopia da própria modernidade. Desta maneira, inverte-se a relação entre sistema e
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sujeito, sendo que agora o sujeito deve submeter-se e amoldar-se ao sistema na ilusão
de alcançar autonomia e liberdade. Na verdade, são os parâmetros do mercado como
produtividade, eficiência técnica e competitividade que se impõem e se sobrepõem aos
interesses humanos de autonomia e liberdade, engendrando no sujeito primazias cujo
efeito disjuntivo põe em risco a integralidade subjetiva da pessoa. Tal inversão impacta a
educação que se transforma num conjunto de estratégias de adaptação e
funcionalização das pessoas ao sistema econômico. Neste sentido, quanto mais
adaptado e ajustado ou, em outros termos, quanto mais útil ao sistema econômico for a
pessoa, mais apreciada será, não pelo que ela é como sujeito, mas pela sua ajustada
servidão ‘voluntária’ ao sistema
2
. Nestes termos, a tarefa e o sentido da educação tende
a restringir-se ao papel de preparar mentes e corpos para o bom funcionamento do
sistema econômico. Em ‘Vigiar e Punir’, lembrando a imagem do panótico de Geremias
Bentham, Foucault (1977) prefigura esta realidade nos seguintes termos: “a economia, a
eficácia dos movimentos [...] que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de
docilidade-utilidade” (p.126).
No curso da emergente modernidade, os ideais iniciais de autonomia e liberdade,
aos poucos, se reconfiguram em subserviência. As críticas de Adorno e Horkheimer, de
1947, representam algo como uma profecia do que viria acontecer com o fim do estado
europeu de bem-estar-social e a imposição do regime político/econômico do
neoliberalismo a partir da década de 1970. Não se tratava, então, apenas de uma nova
forma de regência político/econômico/social, mas também e sobretudo, da
performatização de um neosujeito que idealiza e internaliza a performance do novo
modelo econômico como ideal de realização humana. Este novo sujeito encarna as
esferas práticas do modelo das relações econômicas, manejadas pelos princípios de
produtividade e eficácia econômicas.
- II -
O modelo de subserviência do humano ao sistema, delineado nas páginas anteriores,
não tem apenas o efeito de submissão das pessoas ao sistema como um processo de
constrangimento universal igualmente aplicável a todos. O avanço científico/tecnológico
levou à produção de máquinas capazes de realizar com mais eficiência o trabalho
humano, deixando um contingente cada vez maior de pessoas econômica e socialmente
excluído
3
. Do ponto de vista sistêmico, a ênfase recai sobre a qualificação para o
trabalho; pelo lado da educação, a prioridade se inverte do trabalhador con/formado ao
sistema econômico para a formação do humano, sujeito autônomo e ético. Nesta nova
perspectiva, o cuidado de si, na conhecida expressão da Hermenêutica do Sujeito de
Foucault (2004), perde seu sentido ético/humanista, passando a significar a capacitação,
em termos de conhecimentos e habilidades, para servir ao mercado. O sucesso no
mercado traz recompensa e reconhecimento; o insucesso gera exclusão econômica e
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social. O que importa já não é a pessoa humana, mas o funcionamento do sistema
econômico
4
. Este gap entre os interesses humanistas e os interesses
sistêmico/econômicos certamente representa um dos maiores desafios antropológicos e
sociais da contemporaneidade, com incidência direta sobre o processo educacional.
Esta nova tecnologia de poder tenta disfarçar, mediante o uso de discursos
ideológicos, a estratégia cada vez mais eficaz de sujeição que constitui, como explicam
Dardot e Laval, (2016), “a marca da mais inflexível e mais clássica das violências sociais
típicas do capitalismo: a tendência a transformar o trabalhador em uma simples
mercadoria” (p. 329). Neste mesmo sentido, o enfraquecimento dos sindicatos sela
definitivamente a completa dependência individual dos trabalhadores em relação às
empresas que podem exigir total disponibilidade e entrega por parte de seus,
ironicamente, chamados ‘colaboradores’. É precisamente para este cenário que a
educação deve preparar as pessoas, desde a infância e para o resto da vida. A nova
educação se restringe à modelagem das pessoas, tornando-as competentes e aptas a
suportar as condições impostas pelo sistema econômico. A mais impressionante ironia é
que quanto mais competentes e bem preparadas as pessoas se tornam, tanto mais elas
contribuem para o acirramento de suas próprias condições de dominação e
dependência. Na formulação dos mesmos Dardot e Laval (2016),
“A gestão neoliberal de si mesmo consiste em fabricar para si mesmo um eu
produtivo, que exige mais de si mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente,
com a satisfação que se sente por desempenhos passados. [...] A coerção
econômica e financeira transforma-se em auto coerção e ato de culpabilização, já
que somos os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece” (p. 344-345).
Para um melhor entendimento me permitam um breve desvio histórico. Foi sobretudo a
partir da emergência do racionalismo cartesiano que se alcançou um novo fundamento
para a verdade puramente racional, desconectada de qualquer sentido ético/humanista
da verdade. A nova soberba epistêmica hegemônica se descola da verdade como
conjunto espiritual de práticas e experiências, de asceses e renúncias, constituintes da
verdade ética do mesmo ser sujeito. Nesse sentido, a questão socrática que
recomendava às pessoas desconfiar de suas crenças infundadas e cuidar mais de sua
formação humana, foi requalificada na modernidade pela valorização unilateral das
certezas racionais, operacionalizadas no século XIX como ciência e tecnologia, em
prejuízo das verdades humanas que fundamentam a subjetividade e a convivência ética.
Hoje tangenciamos limites que ameaçam até mesmo a destruição da vida terrestre caso
não mudarmos nossas posturas.
A espiritualidade não nega o conhecimento racional/científico, mas postula uma
perspectiva mais plena, abrangente e profunda de verdade que transforma o humano
em sua integralidade subjetiva e ética. Este é, no sentido de Foucault (2004), o trabalho
do si para consigo, de elaboração do sujeito capaz de verdade, pois, “na verdade e no
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acesso à verdade, há alguma coisa que completa o próprio sujeito, que completa o ser
mesmo do sujeito e que o transfigura” (p. 21). Isso quer dizer que não há verdade
(embora possa haver conhecimento) sem conversão ou transformação, subjetiva e ética,
insisto, do sujeito.
Encontramo-nos aqui no ponto divisor de águas, no momento tensional de fratura
do conceito de verdade que, embora metafisicamente fundamentado na individualidade
subjetiva, se restringe, progressiva e perigosamente, à correspondência entre
pensamento e realidade. É em função deste estreitamento que o conceito de verdade se
reduz à neutralidade e objetividade, desonerando-se de qualquer inferência espiritual ou
ética. Esta visão objetiva, exata, científica e supostamente neutra tende a universalizar-
se como critério exclusivo de validade epistêmica. Dito de outro modo, o conhecimento
objetivo das coisas, da realidade e do sistema, se distancia do sentido abrangente de
verdade que envolve a subjetividade, a liberdade e a eticidade (socialidade) humanas.
Diria, então, que precisamos resgatar o conceito de verdade do estreitamento científico
ou, dito de outro modo, precisamos romper o estreitamento científico, abrindo-o para a
verdade humana.
Trata-se de uma questão central da filosofa da educação. Independente da admissão
de ‘um corpo positivado preexistente’ ou de um excedente em seu objeto, entendo que
a educabilidade do ser humano (aqui deveríamos dar a palavra a Rousseau)
historicamente comprovada exige uma confluência ontológica, ou seja, uma congruência
mínima como ancoragem da socialidade e da liberdade. A educação precisa ajudar os
jovens a conquistar espaços de resistência contra a sua integração, contra a sua anulação
pelos interesses e poderes do sistema econômico.
Neste sentido, o cuidado de si é o trabalho do sujeito de si para consigo, a
elaboração de si mesmo, a transformação constante de si mesmo mediante um esforço
próprio que podemos chamar de ascese do sujeito. Ao contrário do conhecimento que
apenas se agrega ao sujeito, o acesso à verdade, em seu sentido mais comprometido e
profundo, completa e transforma o próprio sujeito. Do ponto de vista da filosofia da
educação, ou seja, desde a perspectiva da plenitude humanista, este me parece o maior
desafio que enfrentamos na atualidade. Se, na belíssima imagem de Hegel, assumirmos
o olhar da coruja que levanta voo ao entardecer e visualizarmos os caminhos
percorridos, somos tomados, de forma cada vez mais pungente e preocupante, por uma
sensação de mal-estar e sofrimento.
Em todos os lugares, embora em distintas intensidades, se acentua e expande a
preocupação com a tensão entre a situação subjetiva e sistêmica do ser humano. As
críticas que são formuladas, logo são absorvidas pelo sistema econômico, favorecendo
uma sempre maior identificação entre sujeito e sistema. O funcionamento do sistema
impõe-se como parâmetro de bem e a integração do sujeito no sistema como ideal de
virtude. Trata-se, então de perguntar, na formulação de Zizek (2016) “como os
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indivíduos subjetivam ideologicamente sua condição” (p. 271). Encontramo-nos diante
de uma situação aparentemente sem saída uma vez a que a subjetividade sempre se
constitui a partir da ‘interpelação’ sistêmica, vale dizer que sempre somos constituídos a
partir do sistema que deixa em nós marcas indeléveis.
Neste contexto, permito-me citar outra passagem de Zizek (Op. Cit.) em que o autor
contrapõe argumentos de Habermas e Foucault a respeito dessa temática.
“O paradoxo em ação aqui é que o próprio fato de não haver um corpo positivado
preexistente em que se possa fundamentar ontologicamente nossa resistência aos
mecanismos disciplinadores do poder é que torna possível a efetiva resistência. Ou
seja: o argumento habermasiano usado contra Foucault e os ‘pós-estruturalistas’
em geral é que, uma vez que negam a existência de qualquer padrão normativo
isento em relação ao contexto histórico contingente, eles são incapazes de fundar
uma resistência ao edifício do poder existente. O contra-argumento foucaultiano é
que os próprios mecanismos disciplinadores ‘repressivos’ abrem espaço para a
resistência, na medida em que geram um excedente em seu objetivo” (pp.272-
273).
Para se transformar, o sujeito necessita, antes de tudo, saber o que ele é enquanto ser
humano. Platão se refere a isto no seu famoso diálogo ‘Alcibíades’, o jovem belo e rico
que pretendia ser político. A recomendação de Sócrates ao jovem foi que ele, antes de
mais nada cuidasse de si mesmo. Cuidar de si mesmo, significa se aprimorar como
pessoa humana. O intuito de Platão era alertar para uma questão primordial da
educação, ou seja, que é impossível conduzir a formação do ser humano sem ter clareza
sobre o que é o ser humano. Para Platão, estes princípios existiam no mundo luminoso
das ideias, onde se poderia chegar pela filosofia, libertadora das amarras e da escuridão
da matéria e do corpo. Oito séculos mais tarde, Agostinho ensinou a existência de um ser
supremo que teria revelado aos homens os rumos a seguir. Com o início da
modernidade, veio a convicção de que tais fundamentos poderiam ser encontrados pela
razão. Hoje se considera que as diretivas do agir humano são culturais e, portanto,
diferentes segundo o tempo e o lugar. Com isso, abre-se um novo, complexo e
ambivalente cenário de transcendência e imanência, ou seja, de permanência e
transitoriedade histórico/culturais, confluentes na constituição do humano.
Dependemos da conversão do olhar sobre nós, enquanto subjetividades individuais, de
um lado, e dos condicionantes históricos, enquanto seres sócio-culturais, de outro.
Hoje nos encontramos num momento histórico extremamente conflituoso entre a
imanência e a transcendência, ou seja, num momento em que a razão científica,
instrumental e integrativa, se dissemina e universaliza como o logos do conhecimento
que bloqueia qualquer exercício ou esforço crítico que tenha como horizonte a
subjetividade e o humanismo. Conhecimento e técnica se tornam os eixos estruturantes
do pensar, impondo-lhe os princípios do produtivismo, da competitividade, da
operacionalidade, da adaptabilidade e da flexibilidade no jogo da eugenia econômica.
Por mais funesto e injusto que seja o sistema capitalista neoliberal, enquanto
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educadores não nos resta outra alternativa senão preparar os jovens para o mercado
trabalho. Neste sentido, Laval et al. (2012) afirmam que, “o novo mundo do trabalho
impõe novas condições ao mundo educativo” (p. 11).
- III -
Mas porque tanta insistência nesta triste e desalentadora realidade, exatamente num
momento em que os jovens precisam de alento e esperança num mundo melhor e mais
humano para o seu futuro e o futuro de toda a sociedade. A resposta, na verdade, é
bastante óbvia, pois de nada valeria esconder a realidade ou desviar o olhar dos
problemas; a melhor contribuição para um futuro mais auspicioso, é ajudar os jovens a
superar a alienação e assumir a direção de seu próprio destino ou, em outros termos,
despertar sua consciência crítica da realidade. Não se trata, portanto, de gerar desânimo
ou resignação, mas de despertar a consciência crítica como condição e estratégia de
superação da situação limite em que o ser humano se encontra. Na minha forma de ver,
gerar consciência significa defender a aprendizagem do pensar como tarefa central do
processo formativo, pois, a educação, sobretudo aquela que planejamos com cuidado e
consciência na escola, não pode ser apenas um processo de aparelhamento dos jovens
ao sistema econômico.
Se permitirmos isso e nós educadores assumirmos essa orientação em nossa prática
educativa, segundo Baudrillard (2007) “nos tornamos funcionais” ao ponto de a
capacidade de consumo se transformar em ideal e sentido de vida (p. 15). Na verdade, a
contabilidade da vida contemporânea, mais e mais, é permeada por relações de
consumo que, aos poucos, se transformam na essência não só das relações sociais, mas
de todo o nosso ser. Na medida em que o consumo se torna o ideal de realização e
felicidade humanas, a educação perde suas prerrogativas humanistas e se assume como
estratégia transformar as pessoas em parte funcional do sistema econômico.
Não se trata aqui da construção de um cenário fictício, pois, basta lançar um olhar
sobre as normas diretivas das políticas públicas e para as práticas pedagógicas para
constatar que os alunos estão sendo estimulados a se envolverem, o mais eficaz e
incondicionalmente possível, com as exigências do mercado, de modo que, assim
integrados e feitos parte do sistema, cada qual se torne especialista de si mesmo,
empregador de si mesmo, inventor de si mesmo e, sobretudo, empreendedor de si
mesmo: “a racionalidade impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim,
sobreviver na competição” (Dardot e Laval, 2016: 331). Neste sentido, o sujeito cuida de
si mesmo, mas não para si mesmo; sacrifica sua autonomia e liberdade, ou seja, abre
mão de sua identidade subjetiva em troca da sobrevivência no interior de um sistema
que se torna a razão última de tudo, inclusive, do próprio ser humano. A educação leva
os jovens a ‘consumir educação como requisito para a sua integração sistêmica e não
para a sua formação enquanto sujeitos autônomos e livres.
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Esta estreita e quase intrínseca relação entre sujeito e mundo econômico lança os
fundamentos de uma nova educação ética, cuja norma suprema se resume ao seguinte
princípio: o que é bom para o sistema deve ser considerado bom para o sujeito. O
sistema, portanto, torna-se o padrão da eticidade das relações humanas. Neste sentido,
a empresa não representa apenas um modelo geral a ser imitado, mas o próprio
paradigma ético da educação dos jovens e dos alunos. No contexto desta nova razão, as
crianças e os jovens precisam, desde cedo, acostumar-se não só a aceitar, mas também a
assumir e incorporar a ideia de que o mais importante na vida é conquistar os
conhecimentos e as habilidades esperadas pelo mercado. O mercado é a soberana e
inquestionável realidade, o polo fixo sempre cambiante de princípios e valores ao qual
convém reconhecimento e submissão incondicional.
Nestes termos, o sujeito é avaliado segundo seu valor de mercado, à semelhança de
qualquer outro objeto; vale dizer que o sentido da pessoa é estabelecido, desde a
infância, em função de uma instância externa, cujos critérios de valor se restringem à
dimensão econômica, sendo, portanto, sempre da ordem do privado e não da ordem do
comum. No contexto desta dinâmica, a educação passa a ser entendida e valorizada
como importante estratégia de autogestão da pessoa como empresa útil, competente e
competitiva. Dito de forma incisiva, a práxis educativa perde seu sentido de formação
humanística para tornar-se um processo de aparelhamento, funcionalização e submissão
de cada pessoa aos interesses, desígnios e expectativas do capital. Este é o sentido
profundo disso que hoje se designa, superficial e sistemicamente, de ‘capital humano’.
Envolvido nesse processo e, portanto, assumindo como seus os mesmos critérios de
sentido e valor da nova imanência sistêmica, o sujeito se torna parte da dinâmica
econômica. Em suma, este novo sujeito nasce, vive e morre com e no sistema, sem outra
perspectiva de transcendência, mesmo que puramente secular. Por conta disso, segundo
se expressa Dufour (2005),
“De modo geral, toda a figura transcendente que vinha fundar o valor é doravante
recusada, há apenas mercadorias que são trocadas em seu estrito valor de
mercadorias. Hoje, os homens são solicitados a se livrar de todas as cargas
simbólicas que garantiriam suas trocas. O valor simbólico e assim desmantelado,
em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de tal forma que
nada mais, nenhuma outra consideração (moral, tradicional, transcendente,
transcendental) possa entravar sua livre circulação. Os homens não devem mais
entrar em acordo com os valores simbólicos transcendentes, simplesmente devem
se dobrar ao jogo da circulação infinita e expandida da mercadoria” (p. 130).
Estaríamos, então, definitivamente presos na ‘jaula de aço’ (Weber) ou amarrados pelo
cinturão de ferro (Arendt), jogados nos desígnios de forças sistêmicas inomináveis, uma
espécie de biopoder (Foucault), sem esperança de salvação? Será que, como dizem
Adoro e Horkheimer (1985) “a própria razão se tornou um mero adminículo da
aparelhagem econômica que a tudo engloba” (p. 42). Apesar dos fortes interesses que
PEDRO GOERGEN
288
insistem em disseminar o fatalismo inexcusável, é preciso resistir para que não se
erradique do coração dos homens o amor à liberdade e a luta pelos direitos, individuais
e coletivos. Ainda que a ameaça da escravidão e da opressão sistêmicos persista como
estratégia da permanente luta pelo poder, também o desejo de autonomia e liberdade
são a marca indelével do humano. Neste sentido, Arendt embora profundamente
impressionada pelo terror e sem adotar posição salvacionista de superação definitiva do
mal, segue confiante na capacidade humana de resistência à opressão pela vontade
ontológica de liberdade do homem. Também Hardt e Negri, no recente livro Bem estar
comum (2016), afirmam que
“a transição já está em curso: a produção capitalista contemporânea, ao atender a
suas próprias necessidades, possibilita e cria as bases de uma ordem social e
econômica alicerçada no comum. O cerne da produção biopolítica, podemos
constatar retornando a um nível mais alto de abstração, não é a produção de
objetos para sujeitos – como se costuma entender a produção de mercadorias –
mas a produção da própria subjetividade. É este o terreno de onde deve partir
nosso projeto ético e político” (p. 10).
Aqui chegamos ao ponto fulcral da importância da formação e conscientização das novas
gerações no sentido de prepará-las para a ação. Nós, da geração mais antiga, já
fracassamos!
5
. Trata-se de despertar nos jovens o desejo humano de resistir e de agir
contra o movimento que tende a preservar e a fortalecer a lei do sistema opressor que
serviliza a absoluta maioria das pessoas em benefício de uma minoria com base na
ideologia da competência, da produtividade, da utilidade, da eficiência.
O primeiro e fundamental desafio que se coloca agora, no sentido posto por Arendt
(1981), é o de descobrir como resistir ao inescusável enquadramento imposto pelo
sistema econômico (me refiro à preparação dos jovens para o acesso ao mercado de
trabalho) fora do qual não há, pelo menos não a curto prazo, alternativa de
sobrevivência. Os posicionamentos radicais, mesmo os bem fundamentados em discurso
de respeitável e relevante rigor argumentativo, em defesa da formação da consciência
crítica, não contornam a necessidade imediata das novas gerações de ingressar no
mercado de trabalho.
Precisamos alimentar a esperança na possibilidade de conscientização e resistência
contra a sua transformação dos jovens em meras empresas de si mesmos que colocam
suas vidas, seus ideais, enfim, sua humanidade a serviço do sistema capitalista
neoliberal. Para evitar tal catástrofe humana, o único caminho possível é oferecer aos
jovens educação de qualidade humana, ou seja, uma educação que, além de prepará-los
para o mercado de trabalho, também os conscientize da necessidade de sua formação
subjetiva enquanto seres humanos críticos, autônomos e livres. Neste contexto, se
pratica hoje uma perigosa confusão entre ‘conhecimento’ e ‘verdade’. Embora tais
conceitos não sejam contraditórios, do ponto de vistas da educação, eles podem ter
sentidos e conotações distintos no campo da filosofia da educação.
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Do ponto de vista do sistema econômico, a principal tarefa da educação e, na
perspectiva sistêmica, seu sentido próprio (e único), é preparar da forma mais eficiente e
operacional possível os jovens, tornando-os competentes e competitivos portadores de
conhecimentos e habilidades, adequados às expectativas do sistema econômico. Não se
trata, portanto, de perguntar se tais procedimentos e seus resultados são bons ou maus,
verdadeiros ou falsos, humanos ou operacionais do ponto de vista ético ou sociais, mas
tão somente de garantir que sejam, pragmaticamente, adequados e úteis à eficácia
produtiva do sistema econômico. Não parece exagerado dizer que esta forma de pensar
representa hoje o eixo central, o fio condutor das práticas educativas levadas a termo,
pelo menos predominantemente, nas nossas escolas e mesmo nas universidades.
Confirmam-se as palavras de Adorno e Horkheimer (1985) escritas já em 1947: “o
indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos” (p. 14).
O ser humano se torna parte enredada no todo funcional que atende aos interesses
do dinheiro; para prosperar, deve se ajustar aos padrões prefixados e desconectados do
que se poderia designar como a ‘essência formativa’ do ser humano. Este não mais se
forma, mas se con-forma a uma realidade moldada, segundo interesses estritamente
materiais e econômicos. Contrariando os mais elementares fundamentos da
antropologia, os interesses sistêmicos são assumidos como interesses subjetivos e
pessoais, reduzindo, assim, o homem a um corpo de influências e determinações a
serviço de seu entorno sistêmico. Estas condições e exigências assumem o papel de
paradigma indutor das políticas públicas no campo da educação. Não é este o momento
de aprofundar esta temática; basta lembrar que as mais recentes reformas
político/educacionais, levadas a termo pelo Conselho Nacional de Educação e pelo
próprio Ministério da Educação, têm como critério prioritário de suas decisões as
expectativas do sistema econômico e não o direito das crianças e jovens a uma formação
integral enquanto seres humanos livres e autônomos.
Importa perguntar se há no horizonte histórico algum sinal efetivo que justifique a
esperança no efeito positivo dessa resistência? Antes de responder, é preciso lembrar
que nenhuma transformação ocorrerá em consequência de um inexcusável script
histórico, mas que depende da própria sociedade ou, em termos concretos, do
engajamento de cada um, de cada mãe/pai, de cada professor/a e, também, de cada
jovem estudante lutar pela humanidade posta em risco pelo domínio irrestrito dos
interesses econômicos. Há, inclusive, estudiosos que já detectam fissuras sistêmicas que
permitem falar de uma crise não apenas restrita ao sistema econômico neoliberal, mas
de uma crise mais profunda do próprio modo de governar as sociedades
6
. Mas como
este modo geral de governo da sociedade passa obrigatoriamente pelo governo dos
indivíduos, talvez estejamos frente a um germe de esperança que nasce no chão da
formação das novas gerações.
PEDRO GOERGEN
290
Desta maneira, apesar do ímpar sucesso científico/tecnológico não se alcançou, um
correspondente desenvolvimento integral do ser humano. Do controverso tecnicismo
utilitarista da racionalidade moderna resulta um clamor por mais ética nos diferentes
âmbitos sociais, em especial na política, na economia, na ciência/tecnologia, nos meios
de comunicação. Basta abrir uma revista, um jornal, ligar a televisão, olhar a lista de
filmes ou livros recentes ou mesmo entrar na Internet para constatar um quase clamor
generalizado por mais ética. Ética significa mais reconhecimento mútuo, mais igualdade
social, mais respeito racial, menos descriminação sexual, religiosa e cultural. Todos estes
desideratos profundamente humanos vêm se tornando estranhos ao processo
formativo, em flagrante contradição com o intenso debate ético-político que tanto
preocupa a sociedade na atualidade. É um enorme desafio antropológico/cultural que a
sociedade enfrenta para o qual não há solução sem um profundo repensar, em termos
de valores, objetivos e procedimentos, da praxis pedagógica atualmente em curso.
Conclusão
Inicialmente, o texto trata de analisar a relação que hoje se estabelece entre educação
para o mercado e educação humanista integral do sujeito humano. Para tanto, se inicia
pela configuração de um cenário amplo que envolve o dilema da relação entre mercado
e educação. Hoje cada vez mais se impõe o entendimento de que a educação deve estar
a serviço do mercado, ou seja, ela deve preparar os jovens, em termos de
conhecimentos e habilidades, para que eles possam servir às necessidades e interesses
do sistema econômico. Ao contrário da tendência hoje cada vez mais hegemônica,
defende-se aqui a ideia de que os dois lados desse dilema, ou seja, o mercado e a
educação, embora sob muitos aspectos conflitantes, não podem ser considerados
excludentes. Os seres humanos precisam trabalhar para viver e, portanto, não podem
ficar alheios ao mercado que precisamente é o lugar onde se ganha o pão. Ainda que se
defenda um ponto de vista crítico em relação ao modelo capitalista neoliberal, é preciso
admitir que, enquanto ele não for superado por uma revolução radical, é incontornável a
necessidade de preparar os jovens para que possam ganhar a vida integrando-se ao
mercado, inclusive atendendo às suas exigências em termos de conhecimentos,
habilidades e competências de modo geral. O risco a ser evitado é o da subserviência,
transformando a educação num conjunto de estratégias pedagógicas que assumem a
racionalidade econômico, colocando a educação a seu serviço, ou seja, fazendo da
educação um modus operandi que prepara as pessoas para servir ao mercado.
Isto posto, há um outro fator inerente ao sistema capitalista neoliberal que vem
sendo exposto e criticado por muitos autores desde o seu surgimento o século XIX.
Trata-se do desenvolvimento da ciência e tecnologia que facultou a construção de
máquinas que executam com mais rapidez e eficiência as tarefas antes realizados pelas
pessoas. O resultado foi e continua sendo a exclusão de muitas pessoas do mercado de
trabalho. Em consequência e apesar do discurso oficial, não basta mais que a educação
Espacios en Blanco - Serie indagaciones - nº 29 - vol.2 – jul./dic. 2019 (277-292)
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cuide da formação profissional, tendo como suposto que pessoas bem formadas e
treinadas irão conseguir emprego. As máquinas, mais eficientes e rápidas, tomaram o
lugar das pessoas tornando-as economicamente supérfluas e desnecessárias. Disso
decorre o cenário de luta entre competidores pelos escassos postos de trabalho,
buscando aumentar seu potencial mediante a incorporação de conhecimentos e
habilidades pela educação. Tal situação gera um novo e perverso efeito sobre o processo
formativo que cada vez mais se foca na educação profissionalizante, valorizando os
conhecimentos e habilidades que interessam ao mercado. É, portanto, o mercado que
determina o que o ser humano deve saber, pensar e ser.
Esta é a realidade com a qual estamos hoje confrontados. Os jovens, pelo menos em
sua grande maioria, internalizam este discurso sistêmico e tendem a não ver outro
sentido na educação a não ser o de prepará-los para o mercado de trabalho. Este
entendimento, cada dia mais, se naturaliza no contexto do sistema
político/econômico/capitalista neoliberal regido pelo interesse de lucro, potencializado
pela competitividade e luta de uns contra os outros por um lugar no mercado. A esta
realidade, intrínseca ao capitalismo e extremada no neoliberalismo atual, se contrapõe,
mesmo reconhecendo o caráter incontornável da preparação para o mercado, a
perspectiva da formação humana integral que, além de atender aos requisitos da
educação profissional, se preocupa com a essencial dimensão ética/subjetiva de
cidadadania. O drama da razão não é propriamente sua racionalidade econômica, mas
seu excesso excludente que marginaliza parcela crescente da humanidade. Esta é a razão
da crise humanitária em que a sociedade humana está envolvida e da qual só poderá sair
por uma revolução radical e profunda do sistema político/econômico. Concretamente, a
melhor e mais urgente forma de caminharmos nesta direção é a conscientização e a
formação de pessoas capazes de indignar-se frente ao cenário de horror humano que
hoje vivemos.
Notas
1
É famosa a passagem de Hegel na Filosofia do Direito na qual se refere ao pássaro de Minerva como o símbolo
da vigilância, do alerta permanente, da s abedoria intuitiva que permite dominar as trevas. Por isso, a coruja se
tornou o símbolo da filosofia e da docência habilitada a integrar as diferentes formas de conhecimento com um
olhar para a diversidade e a universalidade.
2
Nova na forma, a servidão voluntária nao é propriamente algo novo na história como nos lembra De la Boétie
(2009) já em meados do Séc XVI: “É inacreditável como o povo, desde que se sujeita, caia tão subitamente em tal
e tão profundo esquecimento da Liberdade, que não é possível despertá-lo para libertá-la, servindo tão
livremente e com tanta vontade, que se pode dizer, ao vê-lo, que não perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão”
(p. 43).
3
Segundo estudos do Fórum Econômico Mundial, em 2025, robôs executarão 52% das tarefas profissionais
correntes. Com isso, segundo o mesmo relatório, até 1922, 75 milhões de empregos e m setores como
contabilidade, secretariado, fábricas de montagem, centros de atendimento a clientes ou serviços postais poderão
ser suprimidos.
4
O passo decisivo nesta direção foi a transformação do próprio s ujeito em empresa de si mesmo, designado
‘pessoa jurídica’, uma imagem que reflete a transformação do próprio sujeito em empresa. O ‘PJ’, como é
conhecido, é o símbolo perfeito da precariedade e externalização do trabalhador na atualidade. Os trabalhadores ,
empregados nesta condição, destituídos de quaisquer direitos sociais, são ‘entidades’ performáticas e m
PEDRO GOERGEN
292
competição, visando otimizar sua performance produtiva, sem que a empresa possa ser responsabilizada por
nada, em caso de fracasso. O insucesso do sujeito é naturalizado como seu próprio fracasso enquanto empresa de
si mesmo, tendo, portanto, que assumir todas as consequências daí decorrentes. Além disso, o fracasso se torna
não apenas natural, mas esperado no contexto de um sistema econômico em que, por definição, não há lugar
para todos. O sistema Database aponta que a situação vem se agravando visto que os 10% mais ricos da
população ficaram com 54,3% da renda gerada em 2001 e 55,3% em 2015. (Fonte: Folha de São Paulo, 2017, p.
A2).
5
Este reconhecimento foi assumido em manifestação histórica pelo astronaua alemão Alexander Gerst que,
pouco antes de voltar à terra no dia 19/12/20018, mandou uma mensagem emocionante às futuras gerações
pedindo desculpas pelo estado em que a sua (nossa) geração deixa o planeta para as futuras gerações.
6
Uma visão mais radical de crítica ao capitalismo se e ncontra em: Dardot e Laval Comum. Ensaio sobre a
revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo, 2017.
Referências
ADORNO, Th. y HORKHEIMER, M. (1985) Dialética do esclarecimento. Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro.
ARENDT, H. (1981) A condição humana. Editora Universidade de São Paulo, São Paulo.
BAUDRILLARD, J. (2007) A sociedade de consumo. Edições 70, Lisboa.
DE LA BOETIE, E. (2009) Discurso sobre a servidão voluntária. Editora Revista dos Tribunais, São
Paulo.
DARDOT, P. y LAVAL, Chr. (2016) A nova razão do mundo. Boitempo, São Paulo.
DARDOT, P. y LAVAL, Chr. (2017). Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo
Editorial, São Paulo.
DUFOUR, D. R. (2005) A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal.
Companhia de Freud Editora, Rio de Janeiro.
FOUCAULT, M. (1977) Vigiar e punir. Editora Vozes, Petrópolis.
FOUCAULT, M. (2004) A hermenêutica do sujeito. Editora Martins Fontes, São Paulo.
HARDT, M. y NEGRI, A. (2016) Bem estar comum. Editora Record, Rio de Janeiro.
HEGEL, W. Fr. (1990) Princípios da filosofia do direito. Guimarães Editores, Lisboa.
LAVAL, CHR.; VERGNE, Fr.; CLÉMENT, P. y DREUX, G. (2012) La nouvelle école capitaliste. Editions La
Découverte, Paris.
ZIZEK, Sl. (2016) O sujeito incômodo. Boitempo Editorial, São Paulo.