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PROCESSOS SANITÁRIOS EM ESPAÇOS DE FRONTEIRA: O CASO DAS CIDADES GÊMEAS DE
OIAPOQUE, BRASIL E SAINT GEORGES, GUIANA FRANCESA NO PERÍODO DE 2015 A 2018.
HEALTH PROCESSES AT THE INTERNATIONAL BORDER: THE CASE OF THE TWIN CITIES OF
OIAPOQUE, BRAZIL AND SAINT GEORGES, FRENCH GUYANA.
Paulo Peiter
Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz -FIOCRUZ
paulopeiter@gmail.com
Benoit Van Gastel
ARS- Guiana Francesa
Emmanuel Roux
IRD – France
Martha Suarez Mutis
Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz -FIOCRUZ
Vivian Da Cruz Franco
Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz -FIOCRUZ
Resumo : O objetivo deste artigo é mostrar que os espaços fronteiriços e as cidades gêmeas são
espaços de vulnerabilidade para a saúde de suas populações, entendendo-se a vulnerabilidade como
um processo produzido socialmente, mas também influenciado pelo contexto geográfico. Foram
selecionados e analisados indicadores de sociais e de saúde com foco na vulnerabilidade às doenças
transmitidas por vetores, um problema importante nas fronteiras no atual contexto sócio-sanitário das
fronteiras brasileiras, e optou-se pelo recorte na escala local de duas cidades gêmeas da região norte
do Brasil, Oiapoque, no estado do Amapá e Saint Georges na Guiana Francesa, por serem cidades
frequentemente atingidas por surtos e epidemias de malária e arboviroses de importância internacional,
como a malária, a dengue, a Chikungunya e a Zika. Foram realizados trabalhos de campo nos anos de
2015 e 2016 para o levantamento de informações sobre a percepção dos profissionais de saúde e da
população à respeito dessas doenças e das necessidades de saúde da populações em geral. Os
resultados aqui apresentados referem-se primordialmente à malária nessa fronteira. Aspectos dos
serviços de saúde e da vigilância da malária foram obtidos em entrevistas e trabalho de campo.
Resultados: A vulnerabilidade em saúde na fronteira Brasil-Guiana Francesa relaciona-se com a
elevada mobilidade populacional e as dificuldades da vigilância, bem como às barreiras ao atendimento
aos pacientes fronteiriços, apontando a necessidade de cooperação transfronteiriça e
compartilhamento de informações.
Palavras-Chave: Malária, vulnerabilidades, fronteiras, cidades gêmeas, Brasil, Guiana Francesa.
Abstract: The objective of this article is to show that border spaces and twin cities are spaces of
vulnerability for the health of their populations, meaning vulnerability as a socially produced process,
but also influenced by the geographic context. Social and health indicators were selected and analyzed
with a focus on vulnerability to vector-borne diseases, a major border problem in the current socio-
sanitary context of Brazilian borders, and the decision was taken select two local twin cities in the region
northern Brazil, Oiapoque in the state of Amapá and Saint Georges in French Guiana, as cities
frequently hit by outbreaks and epidemics of malaria and arboviruses of international importance, such
as malaria, dengue, Chikungunya and Zika. Fieldwork was carried out in the years 2015 and 2016 to
collect information about the perception of health professionals and the population regarding these
diseases and the health needs of the population in general. The results presented here refer primarily
to malaria at this border. Aspects of health services and malaria surveillance were obtained through
interviews and fieldwork. Results: Health vulnerability in the Brazilian-French Guiana border is related
to poverty, lack of sanitation and high population mobility as well as many difficulties for surveillance,
like the political barriers to care for foreign border patients, pointing to the need for cross-border
cooperation and information sharing.
Keywords: vulnerability, malaria, borders, twin cities, Brazil, French Guiana.
I. INTRODUCAO.
Fronteira, Saúde e Vulnerabilidade
Neste artigo, a fronteira é definida como um contexto geográfico particular, caracterizado
fundamentalmente pela sua posição entre dois ou mais países e se estendendo sobre uma dada zona,
de um lado e de outro da linha do limite internacional. Este limite cria assim sua própria região: a zona
de fronteira (Prescott, 1987; Rumley e Mingui, 1991; Foucher, 1991; Machado, 2000)
No marco da geografia da saúde, predominam os estudos que relacionam a fronteira à circulação
internacional de doenças. Esta abordagem tem interessado a um grande número de pesquisadores,
principalmente após o início da pandemia de AIDS, durante os anos 1980, e está na origem da noção
de “doenças emergentes” (Morse, 1993; Grmeck, 1995). Neste contesto histórico as fronteiras
internacionais tornam-se objeto privilegiado de pesquisas em saúde, particularmente a vigilância
epidemiológica ou vigilância de doenças nas zonas de transfronteiriças.
Os fluxos internacionais de pessoas e mercadorias que caracterizam as fronteiras flutuam segundo
variações de câmbio, brechas jurídicas, política internacional e a própria dinâmica das relações
econômicas e culturais transfronteiriças. A dinâmica fronteiriça favorece a existência de um
determinado tipo de população flutuante que não se fixa por muito tempo nessas cidades como
acontece com os militares dos destacamentos de fronteira, os funcionários públicos em missão
temporária, os comerciantes itinerantes, os imigrantes em trânsito para outras cidades, os garimpeiros,
entre outros. Este tipo de comportamento conforma um conjunto de problemas particulares para os
serviços de saúde locais, pois estas populações altamente móveis são de difícil acompanhamento,
prejudicando a estimativa das necessidades de recursos e o planejamento das ações a serem
implementadas no nível local (Seid e col., 2003; Peiter, 2007; Litleton e Amaripal, 2013). Por esse
motivo, pode-se dizer que a fronteira internacional potencialmente produz vulnerabilidades,
particularmente para a vigilância e controle de doenças nesses espaços.
Tomando-se o exemplo de doenças transmitidas por vetores como a malária, as dificuldades na
vigilância e no controle de vetores e portadores humanos (sintomáticos e/ou assintomáticos) se vê
prejudicada nos contextos de fronteira internacional, onde principalmente na região Amazônica,
endêmica para a doença, dada a elevada mobilidade de grupos populacionais mais expostos aos
vetores (anofelinos) e com menor acesso aos serviços de saúde como os garimpeiros e os indígenas
(Peiter, 2005; Edwards e col.2015). Cabe mencionar que além da malária que é endêmica na região,
outras doenças vetoriais como a dengue, a Chikungunya e Zika também têm trazido problemas para
as populações fronteiriças na Amazônia e as cidades de fronteira muitas vezes podem representar a
porta de entrada desse tipo de doenças no país.
Ainda que a situação de saúde nas fronteiras internacionais brasileiras, ao longo dos mais de 16 mil
quilômetros de extensão, seja bastante heterogênea, a distância aos grandes centros econômicos, as
dificuldades de acesso e o menor desenvolvimento econômico e social da maior parte desses territórios
acaba por indicar uma maior vulnerabilidade sócio sanitária das populações que aí vivem,
principalmente aquelas situadas no Arco Norte da fronteira (do Acre ao Amapá).
Portanto, o objetivo desse artigo é o de apresentar diferentes dimensões da vulnerabilidade
relacionadas ao contexto geográfico das fronteiras no Brasil, com um foco nas cidades gêmeas de
Oiapoque e Saint Georges, na fronteira entre o Amapá, Brasil e a Guiana Francesa, Departamento
Ultramarino da França.
Trata-se de uma pesquisa quali-quantitativa com dados de saúde obtidos no DATASUS e no SIVEP-
Malária e dados sócio-demográficos do IBGE, bem como dados coletados em campo nas cidades de
Saint Georges e Oiapoque por observação e grupos focais (grupos de discussão) com profissionais de
saúde das duas localidades com objetivo e apreender a percepção destes atores sobre a situação de
saúde em geral e da malária em particular, sobre o acesso aos serviços de saúde pela população
dessas comunidades na zona transfronteiriça, bem com a percepção desses atores sobre os
instrumentos de cooperação transfronteiriça em saúde. Os trabalhos de campo foram realizados nos
anos de 2015 e 2016.
II. Espaços que contribuem dada a sua dinâmica na existência de vulnerabilidades de saúde
As cidades gêmeas são cidades situadas no limite internacional ou próximas dele e que estabelecem
relações de troca constantes e podem desenvolver uma certa relação de dependência. As cidades
gêmeas representam um lócus privilegiado para o intercâmbio transfronteiriço e por esse motivo
também recebe a maior incidência dos problemas decorrentes das relações interestatais
Na região da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, objeto desse artigo, encontram-se as cidades
gêmeas de Oiapoque, no Amapá (Brasil) e de Saint Georges na Guiana Francesa. Estas duas cidades
são um interessante exemplo para o estudo da vulnerabilidade fronteiriça uma vez que vem sofrendo
recentemente com sucessivas crises sanitárias devido a doenças transmitidas por vetores como a
malária, a dengue, a Chikungunya e a Zika. Compreender o contexto geográfico dessas fronteiras e
sua relação com a vulnerabilidade social é o objetivo desse artigo. Para tal tomamos emprestada a
noção de vulnerabilidade de Acselrad (2013) que a define como uma condição socialmente construída
e dependente das percepções que as populações têm dos riscos aos quais estão submetidos
determinados grupos da população em uma sociedade. Este autor critica o conceito de vulnerabilidade
tal como vem sendo utilizado pelas ciências naturais e pela epidemiologia, afirmando que suas
abordagens individualizam a exposição ao risco e focaliza sobre o déficit de capacidade de autodefesa
dos indivíduos, em lugar de considerar os processos que tornam os indivíduos mais vulneráveis.
Para Ayres (2009; 2011) a vulnerabilidade vai além do indivíduo, abarcando aspectos coletivos e
contextuais que levam a susceptibilidade as doenças e transtornos. A vulnerabilidade é, pois, ligada
aos aspectos estruturais da sociedade, que são as desigualdades de renda, educação e acesso aos
serviços. Ela é igualmente ligada aos aspectos fisiológicos e perceptivos. Os últimos incluem a noção
de risco, em particular a maneira como essa noção se exprime no imaginário social e seus diferentes
significados historicamente (Ayres, 2009). O conceito de vulnerabilidade social estima que os fatores
sociais tais como a estrutura de governo, as crenças religiosas e a pobreza influenciam a capacidade
de redução da vulnerabilidade individual, seja diretamente, seja por intermédio de políticas públicas,
necessitando assim uma abordagem intersetorial.
Nesse sentido, o contexto social deve então ser tomado em conta na análise das epidemias, como
elemento influenciador não somente da vulnerabilidade à infecção, mas igualmente o impacto da
epidemia sobre os indivíduos e a sociedade em seu conjunto e sobre o sistema de saúde em si.
Do ponto de vista da saúde pública, as fronteiras são consideradas como territórios muito vulneráveis,
os agentes patogênicos e os vetores atravessam sem dificuldade os limites internacionais e o limite é
normalmente uma barreira artificial aos fluxos naturais e também aos fluxos sociais.
III. Situação de saúde nas fronteiras do Brasil
A situação de saúde em cada região da fronteira é influenciada por vários elementos ligados ao
ambiente, a dinâmica demográfica, as condições de vida, a disponibilidade e acesso aos serviços de
saúde, as interações transfronteiriças, etc. Os recursos de saúde (infraestruturas, equipamentos,
profissionais de saúde) estão concentrados na fronteira Sul do Brasil o que resulta em fortes
desigualdades (Peiter, 2005)..
No nível local, a fronteira representa uma descontinuidade, uma ruptura, que marca a diferença entre
os cidadãos nacionais e estrangeiros. E estes estrangeiros não podem se beneficiar dos bens coletivos
– serviços de saúde por exemplo – do país vizinho. Neste caso a fronteira é vivida como um lugar de
separação de exclusão.
Em geral, a fronteira brasileira continua como uma região carente de recursos de saúde, notadamente
no arco Norte. Em todas as fronteiras brasileiras a região mais crítica é a fronteira Amazônica onde as
dificuldades logísticas, operacionais, a precariedade da infraestrutura e dos recursos humanos de
saúde são insuficientes desempenhando um papel fundamental para o processo de vulnerabilização
das populações que aí vivem. Consequentemente os municípios da fronteira internacional do Arco
Norte (faixa que se estende do Amapá – fronteira com a Guiana Francesa – ao Acre – fronteira com o
Peru e a Bolívia) são os de maior risco para a malária, sendo que também seja frequentemente atingido
por arboviroses como a Dengue, a Chikungunya e a Zika.
IV. A zona de fronteira Brasil-Guiana Francesa – ZTBG
A zona transfronteiriça Brasil-Guiana (ZTBG) se situa ao norte da América do Sul na zona equatorial
com um clima quente e úmido. A ZTBG agrupa 4 municípios (ou communes francesas), nomeadamente
o município de Saint-Georges de L’Oyapoque, Camopi e Ouanary do lado guianês e o município de
Oiapoque no lado brasileiro. O rio Oiapoque separa fisicamente o Brasil e A Guiana (Figura 1).
Figura 1: Localização da ZTBG. A parte mais clara define a zona transfronteiriça de interesse. Fonte:
Roux et al., 2014.
Uma estrada nacional de 192 km liga Saint Georges a Caiaena (3 horas de viagem), do lado brasileiro
uma estrada de 590 km, sendo 150 em pista não asfaltada (de terra) liga Oiapoque à Macapá (a capital
do estado do Amapá). A viagem leva em torno de 12 horas, mais pode chegar a vários dias (no período
das chuvas) dependendo o estado do trecho não asfaltado e das pontes em madeira existentes.
A população da ZTBG atinge cerca de 30 mil habitantes, entre os 23.628 de Oiapoque, os 4.046 de
Saint Georges, 1.657 de Camopi e 113 de Ouanary. Esta população constituída de imigrantes
surinameses, brasileiros e franceses metropolitanos, haitianos correspondem a cerca de 30 % da
população da ZTBG (Piantoni, 2011). A cidade de Oiapoque é a maior da ZTBG e um importante local
de passagem na fronteira Brasil-Guiana Francesa, apesar das inúmeras dificuldades de acesso
impostas.
O movimento migratório sempre foi muito importante na ZTBG. Um movimento que privilegia a Guiana
Francesa como região de acolhida de imigrantes vindos do Brasil (a origem da terça parte dos
imigrantes estrangeiros na Guiana). Os imigrantes brasileiros vêm dos estados do Amapá, Pará e
Maranhão. Os principais destinos são as cidades de Caiena e Kourou, mas também Saint Georges e
diversos sítios de garimpo clandestinos.
A Guiana atrai os imigrantes brasileiros por conta das assimetrias de renda entre os dois países e
também pela atividade de garimpo. Do ponto de vista da renda a discrepância é enorme. Se o salário
mínimo no Brasil é de cerca de 180 euros em 2014, na Guiana era de 1.400 euros. O crescimento da
ZTGB deve-se principalmente à atividade do garimpo na Guiana e no Suriname, mas também pelas
oportunidades do comercio transfronteiriço entre os países vizinhos. O resultado destes fluxos foi o
crescimento do número de caso importados de malária importada no Brasil (vinda da Guiana), a maioria
correspondendo aos garimpeiros brasileiros que adquiriram malária em território guianês. A partir dos
anos 2000 esta tendência mudou por causa do fechamento de vários sítios de garimpagem na Guiana
pelas forças armadas francesas (Operações Anaconda em2007, Harpie 1 e 2 em 2008 e 2009).
O contexto muito mutante da ZTBG originada pela instabilidade das atividades econômicas da região
criou um território muito vulnerável do ponto de vista social. O crescimento da cidade de Oiapoque foi
desordenado com graves problemas de infraestrutura para acolher a nova população (saúde,
saneamento, telecomunicações, habitação, segurança pública, etc.). A situação atualmente é de
precariedade com pessoas que vivem em habitações inadequadas, que contribuem para a proliferação
de vetores e a transmissão de doenças como a malária, a dengue, e mais recentemente a Chikungunya
e a Zika.
A mobilidade populacional responde as múltiplas mudanças econômicas, jurídicas, políticas e sociais
que ocorrem na fronteira, assim como a procura de oportunidades do outro lado do limite internacional.
A fronteira do Oiapoque é um lugar de passagem entre dois países que estimula uma circulação
constante de pessoas e mercadorias. Apesar das barreias especificas que foram estabelecidas pela
França ao acesso de brasileiros ao território guianês: um visto de entrada ou uma carteira de morador
da fronteira obrigatórias e uma barreira de polícia para o controle sistemático. Neste caso os pacientes
em situação ilegal tornam-se “invisíveis” aos sistemas de informação de cada país.
V. A malária na ZTBG: o caso de Oiapoque
Os dados do Ministério da Saúde mostram que os 98 municípios que compõem a faixa de fronteira
Norte (Arco Norte), contribuíram com 37,2% de todos os casos de malária registrados no Brasil em
2010 (Ministério da Saúde do Brasil, SIVEP-Malária, 2011). Deste número, 16 municípios fronteiriços
produziram 68% dos casos. A maioria pode ser classificada como de risco médio para malária (mais
que 50 casos/1.000 habitantes). O ministério da Saúde do Brasil por intermédio do Programa Nacional
de Controle da Malária – PNCM está atento à situação e considera a fronteira internacional como uma
região prioritária para o controle da malária na Amazônia (Peiter, 2013).
Oiapoque é um município compreendido entre os prioritários da fronteira para o controle da malária,
com uma forte incidência de malária, número de casos importados, e grande mobilidade transfronteiriça
de grupos vulneráveis de população e apresenta elevação da incidência da malária urbana. Este
município de grande extensão (22.652 km²), situado na bacia do rio Oiapoque, é caracterizado pela
presença de florestas úmidas da Guiana, com fortes precipitações, temperaturas médias elevadas ao
longo de todo o ano.
O ponto de vista demográfico tem uma forte presença de populações indígenas nas aldeias dispersas
em todo o seu território, fraca densidade de população e presença de populações flutuantes compostas
principalmente por garimpeiros provenientes de diversas regiões como o Pará e Maranhão que realizam
suas atividades de garimpagem na Guiana Francesa e no Suriname.
Para a reprodução do parasita (plasmódio), o contato efetivo entre o vetor e o hospedeiro é diretamente
facilitado pelas condições socioeconômicas e culturais da população. O homem de modo permanente
ou temporário, frequenta ou reside nas zonas de alto risco, onde a exposição ao vetor pode ser facilitada
pelas condições de vida precárias, a falta de saneamento, as condições de trabalho e em particular a
dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a precariedade de ações de controle, estas situações são
diretamente ligadas ao aumento da taxa de transmissão da doença (Suarez-Mutis e col. 2013).
A mobilidade de pessoas é um fator de risco chave em vários municípios da Amazônia brasileira e
especificamente em Oiapoque (AP) fornecendo permanentemente população suscetível à malária na
região de transmissão ativa da doença, assim como agem como um elemento de difusão de cepas de
Plasmódio, ou mesmo pela introdução de parasitas nas zonas que ofereçam condições de
receptividade gerando novos focos de malária (Marques, 1982 e 1983; Suárez-Mutis, 1997; Villemant,
2013).
A malária produziu em Oiapoque 50.886 casos no período de 2003 a 2013, uma média de 5.089 +
990,4 casos (IC 95%%:4380-5797) com uma mediana de 5.186 casos. A incidência parasitária anual
(IPA) 2003-2013 foi 286,03 casos por 1.000 habitantes.
Entre os casos notificados, 25.459 eram autóctones e 25.728 importados de outros municípios ou
outros países. Analisando estes dados pode-se observar dois períodos, o primeiro de 2003 à 2007 e o
segundo período de 2008-2013 (gráfico 2). No primeiro período, 67,7% das notificações foram de casos
importados de um outro país, 1,4% notificações eram de casos importados de outros municípios e
30,9% de casos autóctones.
A Guiana francesa foi o país que exportou a maio parte dos casos para o município de Oiapoque ao
longo dos dez anos de estudo (98,1%). Do total dos casos recebidos pela Guiana francesa 42,4%
(10.710/25,232) deviam-se ao Plamodium falciparum (a malária mais grave). Normalmente são os
brasileiros que trabalham na Guiana nos garimpos clandestinos e que são diagnosticados de malária
em Oiapoque do lado brasileiro da fronteira, onde eles não têm problemas de fazer o exame e obter o
tratamento. No lado guianês o acesso ao diagnóstico e tratamento é mais difícil, pois eles são
imigrantes ilegais e eles tem medo de serem presos e expulsos do país.
Uma outra característica da malária em Oiapoque é que ela se tornou cada vez mais urbana no período
analisado. Os casos autóctones urbanos representam 14,3% do total de casos no município em 2003,
e dez anos mais tarde, em 2012 eles passaram a representar 53,7%.
Uma pesquisa CAP que acaba de ser realizada na cidade de Oiapoque (Franco e col., 2013) concluiu
que existem vários pontos fracos no sistema de vigilância e controle da malária neste município,
principalmente no que se refere à falta de recursos humanos (profissionais de saúde) e equipamentos,
bem como a descontinuidade das ações devido a elevada rotatividade e a penúria de mão-de-obra e
por outro lado o desconhecimento da malária e suas formas de transmissão (Peiter e col. 2013).
Estes dados mostram a importância de manutenção do controle da malária em Oiapoque, e a relação
entre a situação epidemiológica dos dois lados e a fronteira, a saber, criar mecanismos de controle
compartilhados entre as autoridades brasileiras e guianenses.
Entre a Guiana Francesa e o Brasil, mesmo se o acesso à saúde é um dos temas de discussão na
cooperação em matéria de oferta de serviços de saúde, não existe até agora um acordo entre os dois
países sobre esse tema. Existe um fluxo de pacientes entre os dois países vizinhos que são atraídos
pela oferta de serviços na zona transfronteiriça, mas as diferenças entre os sistemas de saúde e de
acesso ao cuidado condicionam as possibilidades de utilização dos serviços pelo estrangeiro.
Na ZTBG os sistemas dos dois países coabitam de cada lado da fronteira com suas especificidades,
mesmo se seus princípios fundamentais sejam próximos, principalmente quanto ao direito à saúde e o
acesso universal aos cuidados. No Brasil, o Estado financia e assegura as atividades de atenção e
prevenção (sistema do tipo Beveridge). Na França, a seguridade social reembolsa os custos dos
cuidados e o Estado ou o setor privado asseguram a prestação de saúde (sistema Bismarqueano).
A operacionalização local apresenta também especificidades em cada um dos países, principalmente
do fato da falta de pessoal de saúde, do isolamento geográfico e da precariedade das populações: no
Brasil o programa “Mais Médicos” criado no Governo Dilma Roussef, permitiu a instalações de médicos
cubanos nos postos de saúde de Oiapoque, para complementar no segundo nível, a atividade de
campo dos agentes comunitários de saúde (infelizmente esse programa foi gradativamente desativado
pelo Governo Temer e mais recentemente Bolsonaro). Na França, o Estado financia, por intermédio do
Hospital Regional de Caiena, 4 centros de saúde na ZTBG. O conjunto destes dispositivos, entretanto
não permite uma resposta às necessidades da população no mesmo nível do restante do país: a título
de exemplo, as proporções de médicos por habitantes de um lado e de outro da fronteira na ZTBG são
da ordem de 20-30% da média nacional.
Uma cooperação transfronteiriça entre o Brasil e a França na Guiana francesa existe com um quadro
institucional fixado desde 1996 por políticas públicas em geral com uma “Comissão mista
transfronteiriça”. Desde 2011 existe um “Grupo de saúde transfronteiriça” para a cooperação em saúde.
O grupo discute questões relativas ao atendimento e prevenção de doenças infecciosas e vetoriais.
Duas vezes por ano desde 2012, as semanas de prevenção (uma sobre as doenças sexualmente
transmissíveis e uma sobre as doenças transmitidas por vetores) mobilizam os atores da saúde e da
prevenção na ZTBG. A partir de 2013 o “Conselho do Rio” permite a consulta da sociedade civil da
zona transfronteiriça sobre os problemas encontrados pela população. Para além dos eventos
“institucionais” as associações de promoção da saúde cooperam para assegurar uma resposta
adaptada, principalmente em matéria de acesso ao cuidado em saúde com a associação DAAC por
exemplo. As dificuldades encontradas ao nível da cooperação transfronteiriça têm em primeiro lugar o
fato que a mobilização dos atores para a cooperação se agrega à atividade cotidiana já carregada pela
falta de profissionais e da importante atividade dos atores de campo.
VI. Considerações Finais
As cidades gêmeas da fronteira internacional ou aquelas muito próximas do limite internacional entre
países são confrontadas com forças de atração e repulsão, ou em outros termos, a forças de união e
de separação. Essas forças opostas respondem à logicas políticas de integração e de seguranças
nacionais. O momento político atual, culminado pela crise na Venezuela e as eleições no Brasil põe em
cheque a política de integração e cooperação com os países vizinhos cujo marco foi a criação do
MERCOSUL nos anos 1990. As políticas de integração dos governos brasileiros anteriores tentaram
colocar em prática medidas que favoreciam a integração transfronteiriça (MI, 2005; SIS-Fronteiras,
etc.), entendendo que a solução dos problemas das zonas de fronteira passavam pelo estabelecimento
de ações conjuntas e coordenadas com os países vizinhos e com a participação das instituições dos
representantes das comunidades de cada lado da fronteira. Entretanto, mesmo no contexto de “boa
vontade” política entre os vizinhos as diferenças culturais, políticas, jurídicas e sociais dificultavam a
cooperação transfronteiriça. O desconhecimento e a falta de comunicação entre os dois lados da
fronteira estão na origem da desconfiança e do ceticismo que pode travar os processos de cooperação
entre os diferentes atores da zona de fronteira. No campo da saúde, essas dificuldades são reforçadas
pela rotatividade elevada dos profissionais (médicos, enfermeiros, etc.) que formam as equipes de
saúde na fronteira, além do mais, os marcos legais que enquadram a cooperação transfronteiriça em
saúde são muito recentes (datam de 2012), e portanto ainda são instáveis e com poder limitado de
ação em relação aos desafios a enfrentar, pois trata-se de uma região politicamente sensível e que
está submetia a regras e forças estabelecidas em outras escalas de poder.
Os sistemas de informação de parte a parte da fronteira não têm os mesmos objetivos e são guiados
por diferentes lógicas, o que torna mais difícil a compatibilização e comparação das respectivas bases
de dados, o que impõe um grande esforço de compatibilização para permitir o compartilhamento dos
dados, além das questões de sigilo das informações sensíveis. A vigilância em saúde transfronteiriça,
principalmente a que concerne as doenças transmissíveis como a malária, ressente-se dessas
limitações e dificuldades, o que contribui para a vulnerabilização da região de fronteira como um todo.
Contudo, houve avanços no lado brasileiro da ZTGA como a inauguração do campus binacional da
UNIFAP em Oiapoque em 2011, e a implantação dos cursos de Letras-Francês, História, Geografia,
Pedagogia, Ciências Biológicas, Direito e Enfermagem; a inauguração do novo hospital estadual em
2013; a implantação do Programa Mais Médicos que levou para o município cerca de 15 médicos
cubanos, quando anteriormente havia apenas 3 médicos e, o melhoramento da atenção primaria (PSF)
com novos financiamentos de ONGs que inauguraram a promoção da saúde no município.
Outras iniciativas cabe mencionar como o Projeto Guyamazon, uma cooperação entre pesquisadores
brasileiros e franceses voltados inicialmente para a vigilância da malária através do monitoramento por
satélite e outras ferramentas de geoprocessamento (Projetos Guyamazon I ,II e III). Cabe mencionar o
projeto de cooperação entre o Amapá e a Guiana Francesa para a implantação de um sitio sentinela
para a malária na fronteira entre Oiapoque e Saint Georges. Este projeto compreende várias instituições
de pesquisa brasileiras e francesas e visa a diminuição da vulnerabilidade na ZTBG.
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Este estudo teve o financiamento do CNPq e do Institute de Recherche pour le Development – IRD
(França)