Available via license: CC BY 4.0
Content may be subject to copyright.
Fronteiras: Revista Catarinense de História [on-line], Florianópolis, n.19, p.29-52, 2011.
A implantação da ordem republicana burguesa
na Manaus da borracha e o processo de legitimação
da luta operária no jornal Vida Operária1
The implementation of a bourgeois republican order
in Manaus, the rubber city, and the legitimization process
of the working class struggle in the newspaper ‘Vida Operária’
Luciano Everton Costa Teles2
Resumo:
O presente artigo busca
realizar uma reflexão acerca do espaço
urbano manauara na virada do século
XIX para o século XX, apresentando os
mecanismos de implantação de uma
ordem republicana burguesa e os
impactos causados por este processo em
determinados grupos, notadamente os
operários. Estes últimos assimilaram
alguns elementos desta ordem
republicana para legitimar uma luta
política em função de melhorias nas
condições de vida e de trabalho.
Palavras-chave: Espaço urbano,
Manaus, ordem republicana, operários,
imprensa operária.
Abstract
:
This paper seeks to reflect
upon the urban space of Manaus at the
turn of the nineteenth to the twentieth
century, showing the implantation
mechanisms of a bourgeois republican
order, as well as the impact of this
process on specific groups, markedly
the workers, who have assimilated some
of the elements of this republican order
to legitimize the political struggle for
the improvement of their living and
working conditions.
Keywords: Urban space, Manaus
(Brazil), republican order, workers,
working class press.
Introdução
O espaço urbano manauara e o das demais capitais do Brasil,
sobretudo Rio de Janeiro, São Paulo e Belém, passaram por um processo de
1 O artigo é versão reelaborada de fragmento do capítulo 2 da dissertação de mestrado
intitulada A vida operária em Manaus: imprensa e mundos do trabalho (1920), defendida em
outubro de 2008 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas.
2 Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. Professor assistente da
Universidade do Estado do Amazonas. E-mail: lucianoeverton777@hotmail.com
Luciano Everton Costa Teles
30
transformação significativo, na virada do século XIX para o século XX,
fruto da expansão econômica – no caso do sudeste, com o café, e no norte,
com a borracha – e marcado por mudanças espaciais e comportamentais que
causaram embates e conflitos entre os grupos que marcaram presença no
interior da urbe. Com efeito, o espaço urbano presenciou disputas sociais
que reverberaram nos documentos da época, em especial na imprensa diária
e operária e nos documentos oficiais, tais como códigos de posturas,
regulamentos sanitários, mensagens dos governadores e similares.
O objetivo deste artigo é apresentar o universo do trabalho urbano
em Manaus, que foi se constituindo na virada do século XIX para o século
XX, discutindo os mecanismos de implantação de uma ordem republicana
burguesa e os impactos deste processo no universo operário – revelando a
apropriação, neste universo, de alguns elementos desta ordem burguesa, no
sentido de utilizá-los para legitimar uma luta política visando melhorias de
vida e trabalho.
O universo do trabalho urbano em Manaus
Na primeira metade do século XIX (meados de 1830 em diante), a
borracha presente na Amazônia já era exportada, ainda que em quantidades
modestas, para as nações industrializadas. Na chamada indústria de
produtos de borracha, ela era utilizada como matéria-prima para a produção
de bens industriais e bens de consumo. Entretanto, a sua utilização era
limitada em virtude das influências que sofria das mudanças de
temperatura.3
Esta limitação só foi superada após o processo de vulcanização
(1839), empreendido por Charles Goodyear, que tornou a goma elástica
resistente ao calor e ao frio. Assim, a chamada “borracha vulcanizada”
passou a ter sua utilização ampliada. Rodas dentadas, correias, mangueiras e
outros produtos passaram a ser produzidos tendo-a como matéria-prima,
crescimento que pode ser observado no seguinte quadro:
3 A borracha possuía alta sensibilidade a mudanças de temperatura; por exemplo, “botas de
borracha tornavam-se duras como pedra no inverno e grudentas como piche no verão”.
WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São
Paulo: Hucitec, 1993. p. 22.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
31
PRODUÇÃO DE BORRACHA NA AMAZÔNIA
ENTRE 1827 E 1860
Ano Volume (kg) Ano Volume (kg)
1827 31.365 1846 673.725
1830 156.060 1850 1.446.550
1836 189.225 1856 1.906.000
1840 388.220 1860 2.673.000
Fonte: WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia:
expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec, 1993. p. 22.
O processo de vulcanização acabou por impulsionar o consumo de
borracha pelas nações industrializadas. Tal consumo se tornou ainda mais
intenso com a produção e difusão da bicicleta, em 1890, e a popularização
do automóvel, a partir de 1900 (sobretudo pelo desenvolvimento de
pneumáticos).
Conhecida e utilizada pelos indígenas da Amazônia, a
hévea torna-se produto comercial de crescente
importância após a descoberta da vulcanização da
borracha, em 1840. Neste período praticamente toda a
borracha era extraída na área amazônica, em território
brasileiro ou de países limítrofes, sendo comercializada
nos portos de Manaus e Belém. [...] a borracha ganha
[...] destaque em nossa pauta de exportação [Brasil] a
partir de 1851-60, ocupando o terceiro lugar nela em
1881-90 e o segundo a partir de 1891 até o fim da
Primeira Guerra Mundial.
A demanda da borracha nos países industrializados
crescia fortemente, devido à utilização da mesma na
fabricação de pneus de veículos: de bicicleta primeiro,
de automóveis depois.4
4 SINGER, Paul. O Brasil no contexto do capitalismo internacional (1889-1930). In:
FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira - v. III: o Brasil Republicano
(1889-1930). São Paulo: Civilização Brasileira, 1997. p. 360-361.
Luciano Everton Costa Teles
32
Desta forma, no decorrer do século XIX, sobretudo a partir das três
últimas décadas, a Amazônia foi incorporada ao mercado mundial
articulado. Neste sentido, como aponta Paul Singer na passagem
anteriormente citada, duas cidades tornaram-se centros comerciais: Belém e
Manaus.
No Amazonas, o processo de expansão econômica trouxe consigo
um conjunto de transformações que atingiram sua capital, Manaus. Neste
processo de expansão, dois elementos foram de profunda importância: a
implantação de uma rede de comercialização da borracha e o
desenvolvimento de uma infraestrutura necessária para o escoamento do
produto.
Com relação ao primeiro elemento, o que interessa destacar é a
atuação das casas aviadoras. Conhecidas também como “casas
recebedoras”, possuíam uma posição central na cadeia comercial da
Amazônia. Eram estes estabelecimentos que tinham a função de financiar e
comercializar a borracha, decidindo inclusive quando e a quem vender este
produto extrativo. Além disso, assumiam múltiplas funções: negociavam,
com as casas importadoras, as mercadorias que seriam passadas para o
negociante do vilarejo, ao regatão, ao seringalista e por fim ao seringueiro;
providenciavam o transporte e a distribuição dos retirantes que se
deslocavam do Nordeste, fugindo dos problemas gerados pela seca, em
busca de trabalho no Amazonas (seringais); atuavam como representantes
legais e financeiros de seus clientes mais ricos que residiam no interior e,
por fim, realizavam a abertura de novos seringais.5
O papel desempenhado por esses estabelecimentos
comerciais foi o de financiar e comercializar a borracha
na região, fazendo chegar os implementos necessários à
organização e funcionamento da vida econômica dos
seringais, bem como recebendo deles, no final do
período de extração, as remessas de borracha que,
posteriormente seriam exportadas para a Europa e
Estados Unidos.6
Como a borracha se mostrou um empreendimento rendoso, o capital
estrangeiro passou a atuar na região com objetivo de viabilizar a exploração
5 WEINSTEIN. A borracha na Amazônia... , op.cit., p. 33-34.
6 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto
de Manaus (1899-1925). Manaus: Edua, 1999. p. 37.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
33
do produto, contribuindo desta forma não só para a
reconstrução/revitalização da cadeia comercial desenvolvida na Amazônia,
ancorada no sistema de aviamento, como também para a construção, na
cidade de Manaus, de uma infraestrutura que possibilitasse o escoamento do
produto.
Neste ponto reside o segundo elemento de expansão econômica: a
infraestrutura era importante para o escoamento da produção, facilitando a
circulação de pessoas e capitais. Como a produção da borracha se dava fora
do espaço urbano (nos seringais), a cidade se colocava como ponto de
escoamento deste produto, daí a necessidade de criar uma gama de
atividades econômicas ligadas à circulação, consumo e serviços
(transportes, limpeza pública, água, luz, esgoto).
Desta forma, o capital estrangeiro, sobretudo inglês, tornou-se o
maior responsável pela execução dos grandes projetos de reforma da
cidade,7 realizados, sobretudo na última década do século XIX e nos anos
iniciais do século XX. Conforme Pinheiro, praticamente todos os serviços
urbanos, por concessão, estavam nas mãos de firmas inglesas que passaram
a agenciar melhoramentos ou mesmo criar serviços até então inexistentes na
cidade. Empresas como a Manáos Markets, Manáos Tramways and Light,
Manáos Improvements, Manáos Harbour, Amazon Engineering, Amazon
Telegraph, Booth Line e Amazon River8 passaram a manter relações
cotidianas com a população local.9
A cidade de Manaus passou a assumir a função de centro comercial.
Diversas atividades, em grande medida moldadas pela posição econômica
assumida pela cidade, foram desenvolvidas no interior do espaço urbano.
Além das firmas estrangeiras que atuavam na administração dos serviços
urbanos (porto, transporte, energia, abastecimento de água etc.) ocorreu uma
ampliação significativa da praça comercial nos anos iniciais do século XX.
Diversos estabelecimentos comerciais passaram a comercializar uma
variedade de produtos nacionais e importados, assim como uma gama
variada de serviços (hotéis, restaurantes, botequins etc.) começou a ser
oferecida na cidade. Além disso, a cidade passou a presenciar o surgimento
de marcenarias, sapatarias, alfaiatarias, fábricas de tecido, fábricas de
roupas, fábricas de cestas e vassouras, funilarias, tabacarias, fábricas de
7 DIAS, Ednéa Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Editora
Valer, 1999. p. 50.
8 Em geral, estas empresas passaram a atuar em Manaus nos anos finais do século XIX e
início do século XX. Ver: DIAS Ednéa Mascarenhas. A ilusão do fausto... op. cit. p. 69-92.
9 PINHEIRO. A cidade sobre os ombros..,, op. cit. p. 42.
Luciano Everton Costa Teles
34
panificação, fábrica de cerveja e gelo, fábrica de sabão e outros.10 Enfim, os
ramos econômicos desenvolvidos tinham como alicerces as atividades de
circulação e consumo, havendo a atuação, em pequena escala, de
oficinas/fábricas específicas. Com efeito, a ampliação do mercado de
trabalho manauara se deu ancorada nestas bases.
Cabe lembrar também que a imigração foi essencial para a
ampliação das atividades acima destacadas. A partir do final do século XIX,
Manaus passou a recepcionar uma onda imigratória crescente. Um número
significativo de pessoas, entre estrangeiros e nacionais, acabou por chegar
ao universo urbano e a disputar espaços de trabalho nas mais diferentes
atividades. Este processo se intensificou ainda mais a partir do aumento das
exportações da goma elástica. Segundo Dias:
É no decorrer desse processo [de expansão econômica]
que Manaus passa a vivenciar a ampliação e
remodelação de seu espaço, assim como o aumento de
sua população. Se em 1852 a cidade contava com uma
população de 8.500 habitantes, em 1890 já tem sua
população ampliada para 50.300, sendo o processo
migratório o principal responsável por este crescimento
populacional. O centro urbano se constitui como polo
de atração de gente das mais diversas nacionalidades:
ingleses, alemãs, portugueses, espanhóis, italianos,
franceses, deslocam-se para cá, como também
imigrantes de vários estados do país.11
Assim, a ampliação do mercado de trabalho manauara se deu em
virtude da expansão econômica associada ao crescimento populacional.
Manaus e a implantação da ordem republicana burguesa
A acumulação de capital proporcionada pela exportação do látex
produziu, por volta de 1890, um processo de modernização e urbanização na
capital do Amazonas. Produziu também o deslocamento de um conjunto
significativo de pessoas tanto do estrangeiro quanto das demais regiões
10 COSTA, Francisca Deusa Sena da. Quando viver ameaça a ordem urbana: cotidiano de
trabalhadores em Manaus, 1915-1925. São Paulo, 2000. Dissertação de Mestrado. PUC-SP.
p. 53.
11 DIAS. A ilusão do fausto..., op. cit. p. 38.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
35
brasileiras (sobretudo do Nordeste) que, atraídas pelas propagandas
institucionais acerca das potencialidades econômicas da região,12 passaram a
se fazer presentes na cidade.
Por conta disso, a elite política e econômica desenvolveu um
conjunto de ações em torno de dois eixos principais: o próprio espaço
urbano e as relações nele desenvolvidas. No que tange ao primeiro eixo,
ocorreu uma intervenção cirúrgica visando à adaptação do espaço urbano às
exigências econômicas e sociais surgidas neste momento (são as obras de
infraestrutura e a implantação dos serviços urbanos). Estas intervenções
nortearam a ocupação de novas áreas e definiram os rumos da expansão
urbana, com destaque para os padrões de edificação (prédios e casas
construídos com fachadas padronizadas) e de arruamento (ruas largas com
traçado em ângulos perpendiculares de 90 graus).13
A reordenação da espacialidade urbana veio acompanhada de um
conjunto de regras de condutas que pretendiam eliminar os comportamentos
e hábitos classificados, a partir de então, como indesejáveis. Neste ponto se
encontra o segundo eixo das ações:
Em lei promulgada em julho de 1893, ficavam
proibidas dentro de “determinado perímetro da cidade”
as hortas, capinzais e cocheiras e eram autorizadas por
lei a colocação de placas de denominação das ruas e a
numeração das casas. Eram inúmeras as medidas que
promoviam a regularização e o controle do espaço da
cidade, racionalizando seus usos e expulsando do
perímetro urbano comportamentos indesejáveis que
viessem a macular a imagem de “progresso”
pretendida.14
12 Maior exemplo neste sentido é o álbum sobre a região de Barão de Santa-Anna Nery,
publicado em 1901, divulgado e distribuído por diversas regiões do globo. Ver: DAOU, Ana
Maria. A cidade, o teatro e o país das seringueiras: práticas e representações da sociedade
amazonense na virada do século XIX. Rio de Janeiro, 1998. Tese de Doutorado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. p. 205-212.
13 Cabe lembrar que as transformações ocorreram nas áreas comerciais e seus entornos. Desta
forma, podem-se destacar dois polos irradiadores: a Avenida Eduardo Ribeiro e a Rua
Municipal. Consoante Costa, as normatizações das posturas faziam-se presentes nesses dois
polos e nas vias secundárias em redor. COSTA, Francisca Deusa Sena da. Quando viver
ameaça a ordem urbana, 1900-1915. In: FENELON, Dea Ribeiro. Cidades: pesquisa em
História. São Paulo: Olho D’Água, 2000. v.1, p. 95.
14 DAOU. A cidade, o teatro e o país das seringueiras..., op.cit. p. 193.
Luciano Everton Costa Teles
36
Os códigos de posturas produzidos neste momento eram os
instrumentos por excelência a impor as regras de condutas e o uso racional
do espaço. Porém, a atuação dos populares, sobretudo dos operários,
contrariaria as regras impostas pelos setores dirigentes, conforme será
comentado adiante.
Além disso, as demandas por emprego e serviços na cidade foram
superiores à capacidade de absorção do mercado de trabalho, o que produziu
um contingente de desempregados, carentes e marginais. Estes excluídos do
látex acabaram por desenvolver no espaço urbano estratégias de
sobrevivência diversas,15 que também caminhavam na contramão da cidade
idealizada pela elite local.
Assim, a exclusão social, presente no bojo das transformações
socioeconômicas que ocorreram no final do século XIX e início do século
XX em algumas das principais capitais da Primeira República brasileira,
gerou um processo conflitivo entre grupos sociais.
Com efeito, em Fortaleza, em função das atividades ligadas à
produção de algodão e criação de gado, as transformações urbanas foram
operadas pelo poder público e norteadas pela imposição/adoção de condutas
e etiquetas tidas como “civilizadas”. “De acordo com técnicas de
planejamento do espaço físico e social, desenharam-se correções, coações,
normatizações que agiram mapeando Fortaleza”.16
Considerando exemplos mais específicos, no Rio de Janeiro, a
moradia popular – cortiços, estalagens e similares – foi cedendo espaço às
grandes avenidas e edificações sofisticadas construídas pelos grupos
abastados, assim como determinadas práticas sociais, como a capoeira,
foram perseguidas, neste processo de transformações urbanas, por não
estarem alinhadas às normas e ao comportamento tidos como “modernos”.
Neste sentido, uma parcela significativa da população negra teve que se
deslocar para locais distantes da área central para sobreviver. Este processo
contribuiu para a emergência da ideia de duas cidades, uma europeizada
(padrões de conduta e sociabilidade tidos como “modernos”), outra
15 São elas o roubo, o furto, a gatunagem, a mendicância, a venda ambulante, dentre outras.
Ver: MARREIRO JÚNIOR, Paulo dos Santos. Criminalidade e criminalização de práticas
populares em Manaus, 1906-1917. São Paulo, 2006. Dissertação de Mestrado. PUC-SP.
16 BARBOSA. Entre casas de palha e jardins: Fortaleza nas primeiras décadas do século XX.
In: FENELON (org.). Cidades..., op.cit. p. 158.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
37
quilombada.17 Desta forma, percebe-se que a “exclusão social” opera-se por
meio de parâmetros sociais e econômicos e nem sempre num sentido total.18
Ainda considerando o mesmo contexto carioca, Menezes destacou
algumas das ações desenvolvidas por grupos presentes tanto no mundo do
trabalho quanto por aqueles que viviam a sua margem, e que eram vistas
pelos setores dirigentes como desordem urbana. Assim, os “desordeiros”
eram aqueles que
[...] por palavras ou ações, voltavam-se contra a ordem
política, econômica, moral e social existentes,
considerados nocivos à sociedade e perigosos à
segurança pública – regra geral, aqueles que, por meios
variados, contestavam a propriedade, o trabalho, a
família, a moral cristã e os poderes constituídos,
apresentando-se como desviantes aos padrões de
comportamento socialmente aceitos – desordeiros, na
apreensão global do termo.19
Além do Rio de Janeiro e Fortaleza, São Paulo,20 Porto Alegre,21
Belém22 e outras capitais do Brasil presenciaram, ao longo da Primeira
República brasileira, cada uma a seu modo, embates e conflitos
desenvolvidos no interior do espaço urbano por grupos sociais que aí se
relacionavam. Não resta dúvida de que o espaço urbano se caracterizou
então como palco principal das contradições e conflitos desenvolvidos.
Embora com as marcas das especificidades locais, em Manaus não
foi diferente. Filhos da expansão da economia gomífera e de seus
17 Embora fossem percebidas desta forma pelos grupos que formavam a elite carioca, estas
“duas cidades” estavam em constante interação. NEDER, Gizlene. Cidade, identidade e
exclusão social. Tempo, Rio de Janeiro, n. 3, 1997.
18 Isto porque os setores populares, alvos das pressões sociais e econômicas, imprimiram
resistências ao processo de modernização das cidades, ora permanecendo nas áreas centrais,
ora perpetuando suas práticas sociais e culturais.
19 MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade -
protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
p. 91.
20 HAHNER, June. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil, 1870-1920. Brasília:
EDUNB, 1993.
21 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do
século XIX. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2001.
22 SARGES, Maria de Nazaré. Um outro olhar sobre a “Paris dos Trópicos” (1897-1911). In:
SOLLER, Maria Angélica, MATOS, Maria Izilda. A cidade em debate. São Paulo: Olho
D’água, 2001. p. 49-73.
Luciano Everton Costa Teles
38
desdobramentos, com destaque para a urbanização e modernização, as
contradições, os embates e os conflitos não só fizeram-se presentes no
espaço urbano manauara como também o transformaram em palco de
disputas sociais. Estas disputas se materializaram nas questões referentes a
moradia, saúde, lazer e trabalho.
No bojo dessas disputas sociais, uma questão se apresentou como
fundamental: a organização do trabalho. Cabe destacar que esta era uma
questão de âmbito nacional e remontava à transição do trabalho escravo
para o trabalho livre. Neste período, nas principais capitais do Brasil esta
questão estava na ordem do dia, como afirma Gizlene Neder:
A modernização das cidades [...] constitui, contudo, um
dos aspectos do processo histórico de passagem ao
capitalismo que envolve, na virada do século XIX para
o século XX, o aprofundamento do aburguesamento,
com a implantação do regime republicano. Neste
contexto, deve-se considerar a passagem do regime de
trabalho escravo para o trabalho livre e seus
desdobramentos no tocante às formas históricas de
controle social definidora dos marcos de exclusão
social que se vão imprimindo na cidade.23
No Brasil, a implantação do regime republicano veio acompanhada
da necessidade de organização do trabalho livre. Para os grupos que
compunham as elites políticas e econômicas, era necessário elaborar,
desenvolver e implantar mecanismos de disciplina e controle que
garantissem ao mesmo tempo a presença do trabalhador no espaço de
trabalho e uma significativa produtividade. Neste sentido, a construção da
noção de vadiagem e o desenvolvimento de um aparato jurídico-policial
tiveram papel preponderante.
No que tange à primeira assertiva, nota-se que a construção da
noção de vadiagem está intimamente associada à elaboração e difusão de
uma nova ética do trabalho. Segundo Chalhoub, em 1888, ainda no período
imperial, foi apreciado na Câmara dos Deputados um projeto de repressão à
ociosidade, de autoria do ministro Ferreira Vianna. Este projeto foi
motivado pela abolição da escravatura, sobretudo porque ela significava
“uma ameaça à ordem, porque nivelava todas as classes de um dia para o
23 NEDER, Gizlene. Cidade, identidade e exclusão social. Tempo, Rio de Janeiro, n. 3, 1997,
p. 111.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
39
outro, provocando um deslocamento de profissões e de hábitos de
consequências imprevisíveis”.24
O projeto de combate à ociosidade produziu no Parlamento
inúmeras discussões acerca do trabalho e do trabalhador. Produziu também
um consenso: com o término da escravidão, a ordem estava ameaçada. Este
sentimento acabou se refletindo no Código Penal de 1890, que definiu a
vadiagem como um delito de grande amplitude. Por meio deste instrumento,
a vadiagem era definida como:
Deixar de exercitar profissão, ofício ou qualquer mister
em que ganhe a vida, não possuindo meios de
subsistência e domicílio certo em que habite; prover a
subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou
manifestamente ofensiva da moral e dos bons
costumes.25
Não resta dúvida que a noção de vadiagem foi construída tendo
como contraponto a construção da valorização do trabalho. O trabalho,
considerado outrora como aviltante e degradante em função da sua
vinculação com a escravidão, era agora elevado ao patamar de ordenador da
sociedade, visto como elemento essencial para a produção de riquezas.
Como valor social supremo da modernidade, o trabalho era fundamental
para a sociedade e o indivíduo.
Com efeito, no Código de Posturas de Manaus (1890) esta questão
apareceu sob a forma de pressão sobre aqueles que estavam sem trabalho.
O indivíduo que viver sem indústria, emprego ou
profissão habitual certa, honesta e suficiente é
considerado vadio e vagabundo e como tal obrigado,
desde que for intimado pelo Fiscal, a tomar uma
ocupação honesta dentro de 15 dias e no fim desse
tempo deve provar ter tomado um emprego ou
ocupação que lhe garanta a subsistência.26
24 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da Belle Époque. São Paulo: UNICAMP, 1991. p. 67.
25 Código Penal dos Estados Unidos do Brazil [Cap. XIII, art. 399]. Collecção de Atos do
Governo Provisório. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891.
26 Citado por DIAS. A ilusão do fausto..., op. cit.. p. 33.
Luciano Everton Costa Teles
40
Portanto, percebe-se a preocupação em forçar, por meio de um
instrumento específico, as pessoas sem trabalho a procurá-lo o mais
brevemente possível, sob pena de serem consideradas vadias.
Em geral, a consideração da vadiagem (o não trabalho) como
contravenção se assentou na ideia de que ela se configurava como pré-
condição para o crime. Deste modo, abarcava em seu universo várias
contravenções, o que permitiu englobar “num só conjunto [...] tanto
mendigos, bêbados e desocupados” quanto gatunos, falsários e vigaristas, o
que demonstra sua grande amplitude.27
Com efeito, a ideia de vadio não somente contribuiu
significativamente para a elaboração de um aparato jurídico-policial como
nele se fez presente. É possível perceber este fato a partir do processo de
reordenação do espaço urbano ocorrido em Manaus no período em questão.
Este processo trouxe, em seu bojo, um conjunto de leis que passaram a
nortear inclusive a ação policial, no sentido de moldar padrões de conduta e
comportamentos desejáveis. Com base nos relatórios da chefatura de polícia
e nas mensagens dos governadores a respeito da segurança pública em
Manaus, é possível perceber na ação policial um “caráter inibidor-
repressivo”, o que contribuiu significativamente para a construção de uma
fronteira separando o “mundo da ordem” (do trabalho) do “mundo da
desordem” (do não trabalho).28
Com efeito, desenvolveu-se a partir de então uma fiscalização e
vigilância daquilo que seria considerado “desvio de conduta” ou
“comportamento indesejável”. Em mensagem lida perante o Legislativo
Estadual, por ocasião da abertura da primeira sessão ordinária da sétima
legislatura, em 10 de julho de 1910, o governador do Estado, Antônio
Clemente Ribeiro Bittencourt, apresentou algumas informações sobre os
delitos criminosos em Manaus. Tais informações identificavam a época do
ano em que os delitos ocorriam com maior intensidade, a sua natureza e
causas sociais. Quanto às duas últimas questões, os crimes eram
considerados “de natureza leve”, tendo como “causas principaes” o
“alccolismo e a prostituição”. Apontava ainda a mensagem que, “de 381
prisões effectuadas de janeiro a maio”, todas haviam sido causadas “por
27 MENEZES. Os indesejáveis..., op.cit. p. 132.
28 A ideia do mundo da ordem, ligado à organização do trabalho, e do mundo da desordem,
como o mundo do não trabalho, foi retirada de NEDER. Cidade, identidade e exclusão
social..., op. cit. p.106-134.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
41
embriaguez”, e finalizava condenando o jogo, o alcoolismo e a
prostituição.29
No relatório do Chefe de Segurança Pública de Manaus, a
embriaguez, os distúrbios, as algazarras, as desordens, a vadiagem, a
gatunagem e os pequenos furtos eram os delitos mencionados nos anos
iniciais do século XX.30 Desta forma, práticas como jogo, prostituição, uso
de bebida alcoólica, elementos vistos como integrantes do “mundo da
desordem”, foram focalizadas e condenadas pelo poder público e pelos
jornais da imprensa diária, que se esforçavam em desqualificá-las
construindo imagens estereotipadas daqueles que nelas estavam inseridos
(como os operários).
Ao tratar dos operários na cidade de São Paulo na Primeira
República brasileira, Decca apontou que:
Os meios operários eram vistos por instituições e
grupos dirigentes como extremamente perniciosos para
a “moral e disciplina do trabalho”, focos de agitação e
revolta social. Hábitos operários no escasso tempo de
lazer eram considerados vícios, e a recreação do
operariado era considerada “improdutiva”.31
Inseridas no quadro de delitos presente no relatório da Chefatura de
Polícia, as práticas ligadas ao lazer operário eram vistas como
comprometedoras da “capacidade de trabalho”.32 Desta forma, é possível
entender a solução apresentada pela mensagem do Executivo anteriormente
citada, que em outra passagem destacava a construção e funcionamento de
espaços que promovessem a educação (e neste aspecto a tentativa de se
29 Mensagem lida perante o Congresso dos Representantes por occasião da abertura da
primeira sessão ordinária da sétima legislatura, em 10 de julho de 1910, pelo Exm.Sr.
Governador do Estado, Cel. Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, acompanhada dos
relatórios dos chefes das repartições. Manáos: Seção de Obras da Imprensa Oficial, 1911.
30 Relatório do Chefe de Segurança Pública, contido em: Mensagem lida perante o
Congresso dos Representantes por occasião da abertura da 1ª. sessão ordinária da 5ª.
legislatura pelo Governador do Estado Exm.Sr. Dr. Silvério José Nery, em 10 de julho
de 1904, acompanhada dos relatórios dos chefes das repartições do Estado. Manáos:
Typographia do Amazonas, 1905. [Nota da editora de Fronteiras: as citações extraídas
diretamente de documentos produzidos no período analisado não foram modernizadas.]
31 DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. A vida fora das fábricas: cotidiano operário em
São Paulo (1920-1934). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 89.
32 Relatório da Chefatura de Polícia do Estado do Amazonas, contido em: Mensagem lida
perante o Congresso dos Representantes... [10 de julho de 1904], op.cit.
Luciano Everton Costa Teles
42
construir uma ética do trabalho) e a vida em família.33 Portanto, pelo menos
dois aspectos do cotidiano operário eram alvos de preocupação e controle
para os grupos dirigentes de Manaus: o lazer e a moradia.
Essas duas esferas privadas do cotidiano operário foram objeto de
discussões e debates entre os setores dirigentes, girando em torno da criação
de padrões de conduta e comportamento que viabilizassem maior vigor para
o trabalho. Pensadas como extensão do espaço de trabalho, estas esferas
tinham que proporcionar ao operário a renovação de sua capacidade
produtiva.
Com relação à moradia no Rio de Janeiro no início do século XX,
Margareth Rago, ao procurar entender o processo de formação da família
nuclear moderna e os mecanismos de controle da família operária, destacou
que
A habitação [...] não escapará ao desejo de
disciplinarização do proletariado manifesto pelos
dominantes. Na moradia operária, a burguesia [...], os
higienistas e os poderes públicos visualizam a
possibilidade de instaurar uma nova gestão da vida do
trabalhador pobre e controlar a totalidade de seus atos,
ao reorganizar a fina rede de relações cotidianas que se
estabelecem no bairro [...], na casa e, dentro desta, em
cada compartimento. Destilando o gosto pela
intimidade confortável do lar, a invasão da habitação
popular pelo olhar vigilante e pelo olfato atento do
poder assinala a intenção de instaurar a família nuclear
moderna, privativa e higiênica, nos setores sociais
oprimidos.34
A tentativa de “reorganizar a fina rede de relações cotidianas” se fez
presente também na esfera do lazer. Procurando desenvolver atividades de
lazer que fossem ao encontro dos valores presentes no mundo do trabalho
(como a competitividade e a disciplina), o poder público buscou associá-los
e torná-los constantes no dia a dia operário.
33 Mensagem lida perante o Congresso dos Representantes...[10 de julho de 1910], op.cit..
p. 33.
34 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil (1890-1930).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 163.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
43
Valorização do trabalho e do trabalhador em Manaus: ordem
republicana burguesa e legitimação da luta operária no jornal Vida
Operária
Em Manaus, na virada do século XIX para o século XX, a expansão
econômica e o crescimento populacional contribuíram para a ampliação do
mercado de trabalho urbano. Neste momento, era fundamental para os
grupos econômicos e o poder público a organização do universo do
trabalho. Na implantação da ordem republicana e burguesa, mecanismos
foram criados não somente para viabilizá-la como também para organizar o
trabalho.
Desta forma, o espaço urbano de Manaus sofreu transformações na
sua estrutura física e na forma de utilizar essa nova estrutura, ou seja, na
conduta de seus habitantes, que tinham que se comportar a partir de
referências tidas como “modernas”. Caso caminhassem na contramão da
ordem almejada, poderiam se tornar “indesejáveis” e sofrer as
consequências que o Código de Posturas estabelecia.
Imersos neste processo, os operários buscavam superar dificuldades
relacionadas às condições de trabalho e de vida. Entretanto, tinham que agir
sem serem acusados de “indesejáveis” e “desordeiros”. Para compreender
esta ação, o jornal Vida Operária foi fundamental, por se direcionar aos
operários e por incorporar questões ligadas ao universo operário.35
O jornal Vida Operária passou a circular em Manaus em 8 de
fevereiro de 1920. Foram 26 números publicados, sendo o último no dia 26
de setembro do mesmo ano.
Em seu primeiro número, em artigo intitulado Como surgimos, o
jornal registra o espaço em que foi idealizado, quem o idealizou e como,
enfim, surgiu. Assim, numa espécie de “bohemia espiritualizada”, em torno
de uma banca de mármore (provavelmente em algum botequim), entre
tragos de cigarro e café, cinco indivíduos – Elesbão Luz, Oswaldo Mário,
Hemetério Cabrinha, Anacleto Reis e Nicodemos Pacheco – interessados na
ideia de fundar um jornal operário, o conceberam.
35 O jornal Vida Operária não era produzido por operários, mas era direcionado a este grupo.
Ver: FERREIRA, Maria Nazareth. Imprensa operária no Brasil. São Paulo: Ática, 1988.
p.13-14.
Luciano Everton Costa Teles
44
Sim a Vida Operária...
Responde o Velho professor.
Surgirá! Exclama Oswaldo enthusiasmado!
E brilhará! Murmura Cabrinha agitado, dizendo: o Luz
será o diretor!
E a parte litterária é sua! exclama Oswaldo.
Irrevogável! Pois você é o sucurijú da prosa e a águia
do verso!
E é logo alli sobre a mudez impenetrável do mármore
que se idealiza o artigo de fundo... a vida mundana... o
programma...
Nada! Diz o Cabrinha com os dedos entre os cabellos
desalinhados. Há de ser assim...
E já a passarada celebrava os funeraes do sol, quando
dalli sahimos intoxicados de jornalismo, e de ideas
grandes.
E foi assim que surgimos!36
Nas duas primeiras páginas eram distribuídos os artigos e as
notícias. Na análise da distribuição de ambos, percebeu-se a existência de
dois eixos principais no discurso do jornal. O primeiro, ligado à elaboração
de críticas ao sistema capitalista e sua atuação exploradora e opressora sobre
o operário. O segundo, associado à orientação para uma determinada ação
operária, no sentido de se obter uma mudança social.
Os desdobramentos que surgiam a partir daí traziam como questões
a importância de um veículo de comunicação para a discussão e difusão de
ideias, as desigualdades sociais presentes no mundo moderno, a situação
política do operariado amazonense, a ação operária a ser seguida, a
organização dos trabalhadores em associações, a fundação de um partido
operário, a importância do processo político-eleitoral e denúncias sobre
questões do trabalho (acidentes de trabalho, demissões arbitrárias, multas e
penalidades) e da vida (carestia dos gêneros de primeira necessidade,
alcoolismo, jogatina e outros).
As matérias veiculadas nas páginas do jornal eram assinadas por
diversas pessoas, como demonstra o quadro seguinte:
36 Vida Operária, Manaus, n. 1, 8 fev. 1920. Optou-se por não modernizar as citações do
periódico, mantendo a ortografia então adotada.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
45
AUTORES PRESENTES NO JORNAL VIDA OPERÁRIA
Autores Artigo(s) Edição
do jornal
Arnaldo de Barcellos Reportagens oportunas n.16
Benjamin de Araújo Lima Aos operários do Amazonas n.23
Cleomenes Honório Dias O que é o operariado n.26
Cursino Gama O momento n.9
Elesbão Luz Sem comentários n.13
Flávio Remar Operariado n.2
A carestia da vida n.3
Fulton O dia 14 de Julho e a eleição
governamental do Amazonas
n.21
Guilherme de Oliveira Aurora promissora n.1
Outro rumo n.6
Hemetério Cabrinha Está na hora n.13
J. Pimenta Finanças da Vida Operária n.18
João do Monte Collaboração n.2
A postos n.4
Maia Filho Operariado amazonense e as demais
classes trabalhadoras do Amazonas
n.17
Manoel Sérvulo Palavras simples n.6
Mauro Santos Amor e Trabalho n.25
Nicodemos Pacheco Bilhete aos reaccionários n.20
Oswaldo Mário Como surgimos n.1
Plínio O Sr. Camilo Prates em luta
contra o operariado nacional
n.23
Rita da Conceição Alves O Dia do Trabalho n.14 e n.15
Salustino Liberato Não se illudam n.12
União e Coragem n.16
Santos Filho Aproxima-se n.4
Venicius O futuro governo e as demais forças
vivas do Estado
n.19
Fonte: Jornal Vida Operária (n.1 ao n.26)
Luciano Everton Costa Teles
46
Nomes como Guilherme de Oliveira, Manoel Sérvulo, Cursino
Gama, Nicodemos Pacheco, Hemetério Cabrinha, Elesbão Luz, Oswaldo
Mário, Flávio Remar e J. Pimenta apareciam ligados a sociedades operárias
(Sindicato dos Cigarreiros, Centro Operário, União Operária e outros).
Porém, percebe-se que, em momentos tidos como especiais, notadamente o
1º. de maio e as eleições, outras vozes se colocavam, como a da professora
da Escola de Aprendizes-Artífices Rita da Conceição Alves, falando sobre o
1º. de maio de 1920, e as de Maia Filho, Fulton e Venicius, tratando das
eleições governamentais. Existiam ainda artigos que não eram assinados.
É importante destacar a constante presença, no cenário político
amazonense, de nomes como Nicodemos Pacheco, Elesbão Luz, Anacleto
Reis e Cursino Gama. Para citar um exemplo desta presença: em 1919
ocorreu uma “greve geral” em favor da jornada de oito horas de trabalho,
alvo de manifestações em nível nacional. Em Manaus foi formado o Comitê
de Operários Amazonenses para conduzir a greve. Este comitê era composto
pelos senhores acima citados, sendo que Nicodemos Pacheco era seu
presidente.37
Mesmo após a greve de 1919 ter sido sufocada pela repressão e o
Comitê extinto e expulso do seu local de funcionamento, este grupo parecia
não desistir de lutar em prol da melhoria das condições de trabalho e de vida
da classe operária, como demonstra a sua presença na elaboração, produção
e difusão do jornal Vida Operária e, após o desaparecimento deste, no
jornal “comemorativo” denominado 1º. de maio (1928), cujo diretor era
Cursino Gama.
O jornal Vida Operária era distribuído em espaços restritos, como
associações, colégios, institutos, e nos bares e botequins. Dentre as
associações estavam a União Operária Nacional, o Centro Operário
Nacional, a Associação de Classe das Quatro Artes da Construção Civil, a
Sociedade Beneficente União dos Foguistas, o Sindicato dos Estivadores, a
Associação de Trabalhadores de Artes Gráficas, a União dos Moços e
Marinheiros, a União de Classe dos Pedreiros, o Sindicato dos Cigarreiros, a
Associação dos Construtores Civis e, por fim, a Coligação dos Oficiais da
Marinha Mercante.
Focar o jornal Vida Operária possibilitou compreender como os
editores e colaboradores do jornal se apropriaram de elementos presentes na
impl antação d a ord em b urgue sa para a prom oção de um a lu ta
37 PINHEIRO. A cidade sobre os ombros.., op. cit. p.172-173.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
47
política.38 Neste sentido, o jogo era uma prática condenada no referido
jornal:
Campeia livremente até altas horas da noite, em
diversos pontos desta cidade, o cancro social – o jogo –
onde centenas de pessoas vão deixar o dinheiro que
ganharam durante o dia com mil sacrifícios.
A maior parte das vezes, infelizes operários, atrahidos
por esse maldito quino, perdem o último vintém, e no
dia seguinte, as suas famílias ficam entregues aos
negrumes da fome.
Além de tudo esses antros perniciosos convertem os
habitués em alcoólatras inveterados, maus cidadãos e
maus chefes de família.
Terminando, pedimos em nome do operariado
enérgicas providências ao exmo. Snr. Desembargador
Raposo da Câmara, d. d. chefe de polícia, para que
ponha termo a essa jogatina desenfreada.39
Percebe-se que, no artigo extraído do jornal, o álcool é mencionado.
A bebida alcoólica, da mesma forma que o jogo, era contestada nas páginas
do Vida Operária:
Outro vício não menos pernicioso é o álcool, que já
contaminou quase todos os habitantes da terra [...]
apellamos para a Assembleia Legislativa do Estado que
se acha em trabalhos, para que nos dê leis, que cohiba o
álcool, o jogo, a prostituição e alguma cousa mais.40
Como se pode notar, o conteúdo presente nos dois artigos
publicados é o mesmo presente nos discursos produzidos e difundidos pelos
38 No jornal Vida Operária, a proposta política defendida e difundida pelo jornal apontava
para a fundação de Associações Operárias ligadas a um Centro Federativo (cada Estado da
Federação teria o seu). Este Centro se ligaria à Confederação do Trabalho, cuja sede seria na
Capital Federal. O Partido Operário estaria ligado ao Centro Federativo e teria âmbito
nacional. O objetivo era articular os operários em associações ligadas a um Centro, que por
sua vez estaria articulado ao Partido Operário; o Partido Operário se empenharia em lançar
nomes para participar do processo político-eleitoral, a fim de eleger representantes que
atuariam no sentido de realizar, via legislação, as reformas sociais.
39 Vida Operária, Manaus, n. 21, 25 jul. 1920.
40 Vida Operária, Manaus, n.22, 8 ago. 1920.
Luciano Everton Costa Teles
48
setores dirigentes sobre aquilo que se constituem práticas do lazer operário.
E mais, ainda são pedidas providências para as autoridades cercearem estas
práticas.
Ao que tudo indica, menos que reproduzir passivamente a voz das
instituições e setores dirigentes, a posição assumida pelo jornal operário
parece ter uma lógica subjacente. Esta lógica se configura ao longo de suas
páginas, por meio da presença de uma proposta de valorização do trabalho e
do trabalhador.
No jornal Vida Operária, a questão da valorização do trabalho e do
trabalhador se apresenta em torno da ideia da produção de riquezas e da
regeneração moral. No primeiro caso, afirma-se que
O trabalho [...] gera a electricidade, o telegrapho, que
transmite os nossos pensamentos atravez dos
continentes; [...] o vapor, que leva os transatlânticos por
todos os mares desde o estreito de Behring ao cabo de
Horn e da Islândia ao cabo da Boa Esperança.
[...]
Para que haja progresso numa nação, para que adquira
logar saliente entre as demais, a primeira condição é
que seus cidadãos sejam amigos do trabalho.
A nação será o que seus filhos por seus actos, por seus
trabalhos determinem; e o caracter do cidadão será o
caracter da nação de que faz parte.41
Portanto, para o jornal, o papel desenvolvido pelo trabalho era o de
construir os rumos do progresso, entendido como avanço tecnológico e
material. No bojo desta construção aparecia o trabalhador, cuja função era
desenvolver com afinco o seu papel social de gerar riquezas para sua região
e/ou país. Daí que, para o periódico citado, o operário seja aquele que
desenvolve atividades na terra “indo arrancar das adherências nativas o
carvão que arde nas fornalhas candentes das usinas que condensam a
electricidade”; é todo aquele que o “braço influe no dynamismo
commercial, agrícola e industrial de um povo”; é aquele que “age
construindo os tectos que nos abrigam, calçam as ruas que transitamos,
aformoseam a cidade”, ou seja, o que por meio de sua atividade produz
41 Vida Operária, Manaus, n.14, 9 maio 1920.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
49
riquezas.42 Enfim, trabalho e trabalhador são definidos pelo jornal como
instrumentos necessários para o desenvolvimento material de um povo.
Esta proposta de valorizar o trabalho e aquele que o desenvolve
esteve presente, aliás, em outras regiões do país. Ângela de Castro Gomes,
analisando o primeiro jornal socialista brasileiro – A Voz do Povo –,
produzido no Rio de Janeiro nos anos iniciais do regime republicano,
identificou uma proposta neste sentido. Segundo a autora, como a vida do
trabalhador passou a ser alvo de discussões em várias esferas da sociedade,
sobretudo nas instituições do governo, o jornal A Voz do Povo, não se
eximindo da questão, posicionou-se a respeito destacando dois elementos
considerados como fundamentais para o trabalhador brasileiro: a revelação e
o destaque de sua existência e a construção de uma identidade. No primeiro
caso, “a operação implicava inverter os sinais pelos quais a categoria
trabalho era identificada na sociedade de então”.43 Antes vistos como sinal
de desgraça e atraso, eram agora encarados, tanto o trabalho como o
trabalhador, como elementos de prosperidade, riqueza e progresso. Quanto
ao segundo, a construção de uma identidade do trabalhador era necessária
para unificar elementos diferenciados em torno de um programa de ação
conjunta, uma vez que o “povo trabalhador era um conglomerado
heterogêneo e disperso que precisava ganhar contornos para si mesmo e
para a sociedade em geral”.44 Ou seja, era preciso construir uma identidade
social para o operário e dar-lhe lugar e presença no mercado, destacando o
seu papel essencial na produção de riquezas.
Neste sentido, a ação do operário por meio do trabalho era
fundamental para a sociedade em geral, na medida em que sua labuta diária
estava diretamente associada ao desenvolvimento material de uma região, e
mais amplamente, de um país.
No jornal Vida Operária, além disso, o trabalho foi encarado
também como regenerador moral:
O trabalho encurta o tempo, enchuga as lágrimas,
esquece os desgostos soffridos, evita crimes horríveis e
dissipa os males. Elle é um bem: aqui, curando feridas
42 Vida Operária, Manaus, n.5, 7 mar.1920.
43 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994. p. 23.
44 Idem, p. 25.
Luciano Everton Costa Teles
50
da alma; alli, evitando maos pensamentos e além
fazendo a felicidade do que pratica. 45
Neste fragmento extraído do jornal se observa, além de outros
aspectos, que o trabalho “evita crimes horríveis”. Aqui se está claramente
diante da noção de vadiagem (do não trabalho) associada aos crimes.
Também se está diante da ideia de que o ocioso contribui significativamente
para a decadência de uma nação, como demonstra a citação a seguir:
[...] se seus filhos forem ociosos, entregando-se
somente ao trabalho deshonesto como o roubo, ou por
outras palavras não forem firmes e pontuaes no
cumprimento dos seus deveres, a nação jamais
conquistará o respeito e o progresso das demais.46
Diferentemente do jornal A Voz do Povo, analisado por Gomes, que
tinha na sua proposta apenas a definição de trabalho como produtor de
riquezas, no jornal Vida Operária as duas noções (trabalho como produtor
de riquezas e regenerador moral) estavam presentes. Cabe destacar também
que, nesta folha operária, o trabalho possuía uma outra dimensão, onde a
exploração burguesa era sentida e denunciada; porém, no que tange à
questão da valorização do trabalho e do trabalhador, esta dimensão assumia
uma posição secundária, ao contrário de quando se enfatizava a luta política,
em relação à qual a exploração do capital por meio do trabalho era
explicitada.
O capitalismo na immensa brutalidade de tudo
conquistar tem opprimido victimas indefezas e
arrastado em turbilhões, pela ambição [...] e pelo direito
da força.
O operariado esmagado pela prepotência sanguinária
do capital há de saccudir o jugo em que se acha
manietado, e proclamar debaixo da ordem aos quatro
cantos os seus direitos conspurcados pelo próprio
capital. 47
45 Vida Operária, Manaus, n.14, 9 maio 1920.
46 Vida Operária, Manaus, n.15, 16 maio 1920.
47 Vida Operária, Manaus, n. 4, 29 fev. 1920.
A implantação da ordem republicana burguesa na Manaus da borracha
51
Quanto ao trabalhador, foram identificados, nos textos do jornal,
dois tipos: o honesto cumpridor de seu papel social e aquele que
desenvolvia outros tipos de atividades, consideradas nocivas (como roubo,
gatunagem, furto etc.). Deste modo, assim como as ações dos grupos
politicamente dominantes, o jornal queria supostamente separar o
trabalhador do não trabalhador, mas com um propósito bem definido:
legitimar a luta política.
No interior da sociedade em que o jornal estava inserido, mostrar-se
como trabalhador e cumpridor de seus deveres (afastado do jogo e do uso
abusivo do álcool, considerados nocivos e responsáveis por prisões, já que
eram delitos) era fundamental, uma vez que o simples fato de não possuir
trabalho poderia significar uma visita ao xadrez (conforme o Código Penal
Brasileiro e o Código de Posturas Municipal de Manaus, ambos de 1890).
Esta forma de cercear a liberdade do indivíduo foi largamente utilizada nas
décadas iniciais do século vinte e foi denominado de “prisão para
averiguações” 48 (inserida nas ações policiais de caráter inibidor-repressivo).
Grande parte dos chamados “indesejáveis” era da classe
trabalhadora que, nos anos iniciais da Primeira República, sofria com baixos
salários, falta de assistência social, instabilidade no emprego e demais
contingências que os colocavam constantemente à margem do processo
produtivo. Geralmente ficavam desempregados, caíam na mendicância etc.
A possibilidade de mudar esta situação se colocava como um desafio e a
ação coletiva dos trabalhadores era clamada, pelas associações e sindicatos,
como essencial para este fim. Porém, os movimentos coletivos dos
trabalhadores – como protestos, passeatas e greves – podiam ser
enquadrados como desordem pública e os envolvidos presos por isso.49
Neste jogo, o reconhecimento social e profissional (valorização do trabalho
e do trabalhador) era extremamente fundamental para legitimar uma luta
política em prol de melhores condições de vida e de trabalho.
48 Prisão para averiguações “era o modelo de prisão por 24 horas, na qual o elemento era
ainda considerado suspeito. Era o tempo exigido pela polícia para as investigações”. Ver:
SANTOS JÚNIOR. Criminalidade e criminalização de práticas populares em Manaus.
Op. cit. p. 157.
49 Conforme Bretas, no Rio de Janeiro várias manifestações de trabalhadores foram
encaradas e enquadradas como ameaça à ordem pública (portanto caracterizadas como
desordem e os envolvidos como desordeiros). Deste modo, eram passíveis de repressão
policial. Ver: BRETAS, Marcos Luis. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. Em Manaus, ver: DIAS. A ilusão do
fausto..., op. cit.
Luciano Everton Costa Teles
52
Considerações finais
Observou-se que o processo de transformações do espaço urbano
manauara e os mecanismos de implantação da ordem republicana e
burguesa ocorridos em Manaus na última década do século XIX e nas duas
iniciais do século XX trouxeram em seu bojo um conjunto de normas e
regras de condutas tidas como “modernas”, principalmente no que tange à
organização do trabalho pelos grupos econômicos e políticos que
compunham a elite manauara.
Os segmentos populares que caminhassem na contramão das regras
e normas estabelecidas eram tidos como “indesejáveis” e como tais
passíveis de punição por parte da legislação da época (principalmente o
Código Penal e o Código de Posturas, como demonstrado). No caso dos
operários, a viabilização de uma luta política significava apropriação de
determinados elementos da ordem vigente, reelaborando-os para legitimar
um conjunto de ações, como formação de associações operárias, partido
operário, centro federativo etc.
Este processo passava pela construção e valorização do trabalho e
do trabalhador, entendidos como elementos produtores de riquezas,
indispensáveis à sociedade moderna e, portanto, merecedores de
participação política (dentro das regras estabelecidas) e de melhoria das
condições de trabalho e de vida. Era neste sentido que a proposta política
contida no jornal Vida Operária caminhava para a criação de uma estrutura
específica que articulasse os operários em associações ligadas a um centro
federativo, por sua vez vinculado a um partido operário empenhado em
lançar nomes para participar do processo político-eleitoral; tais
representantes, uma vez eleitos, buscariam promover reformas sociais por
meio da legislação.
Artigo recebido em maio de 2011; aprovado em dezembro de 2011.