ArticlePDF Available

MULHERES E DOCÊNCIA NA EBTT: ESPAÇO PARA HOMENS?

Authors:

Abstract

Resumen: Este artículo discute la investigación realizada en la Educación Básica Técnica y Tecnológica de un Instituto Federal, a partir del Máster Académico en Educación Profesional y Tecnológica de la Universidad Federal de Santa María. Buscamos percibir cómo se constituyeron sus trayectorias formativas y sus saberes docentes en los Cursos Técnicos, las posibles implicaciones del ser mujer en la construcción profesional y significaciones de docencia. Nuestra elección metodológica fue la investigación cualitativa con narrativas orales de vida, bajo las lentes del Imaginario Social. Los datos fueron producidos con entrevistas individuales y el análisis de los mismos se organizó con el Análisis de Contenido Categorial Temática. La investigación apunta significaciones instituidas en el contexto sociohistórico, así como relaciones de poder que aparecen imbricadas en esos espacios de formación y de trabajo. Palabras clave: Trayectos formativos; Docencia y Género; Imaginario Social
192
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
FOTOS: Irina Morán Revista Alfilo Periodista Feminista.
Militante de Ni Una Menos Córdoba y Mujeres por un parto Respetado
193
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
MULHERES E DOCÊNCIA NA EBTT: ESPAÇO PARA HOMENS?
Eliane Quincozes Porto
1
Vantoir Roberto Brancher
2
Resumo: Este artigo discute a pesquisa realizada na Educação Básica Técnica e Tecnológica de um
Instituto Federal, a partir do Mestrado Acadêmico em Educação Profissional e Tecnológica da
Universidade Federal de Santa Maria. Buscamos perceber como foram constituídos seus trajetos
formativos e seus saberes docentes nos Cursos Técnicos, as possíveis implicações do ser mulher na
construção profissional e significações de docência. Nossa escolha metodológica foi a pesquisa
qualitativa com narrativas orais de vida, sob as lentes do Imaginário Social. Os dados foram produzidos
com entrevistas individuais, e a análise dos mesmos organizou-se com a Análise de Conteúdo Categorial
Temática. A pesquisa apontou significações instituídas no contexto sócio-histórico, bem como relações
de poder que aparecem imbricadas nesses espaços de formação e de trabalho.
Palavras-chave: Trajetos formativos; Docência e Gênero; Imaginário Social.
MUJERES Y DOCENCIA EN LA EBTT: espacio para hombres?
Resumen: Este artículo discute la investigación realizada en la Educación Básica Técnica y Tecnológica
de un Instituto Federal, a partir del Máster Académico en Educación Profesional y Tecnológica de la
Universidad Federal de Santa María. Buscamos percibir cómo se constituyeron sus trayectorias
formativas y sus saberes docentes en los Cursos Técnicos, las posibles implicaciones del ser mujer en la
construcción profesional y significaciones de docencia. Nuestra elección metodológica fue la
investigación cualitativa con narrativas orales de vida, bajo las lentes del Imaginario Social. Los datos
fueron producidos con entrevistas individuales y el análisis de los mismos se organizó con el Análisis de
Contenido Categorial Temática. La investigación apunta significaciones instituidas en el contexto socio-
histórico, así como relaciones de poder que aparecen imbricadas en esos espacios de formación y de
trabajo.
Palabras clave: Trayectos formativos; Docencia y Género; Imaginario Social.
PARA COMEÇAR: OS PRIMEIROS PONTOS
A cada ponto, um encontro e um mosaico de histórias que entrelaçam as
narrativas e a disposição para o olhar e a escuta cuidadosos com a pesquisa. Como uma
composição de imagens, trouxemos, neste artigo, o corpus dos dados produzidos
durante a pesquisa desenvolvida entre os anos de 2016 e 2018, entremeados de
referenciais teóricas que embasaram a investigação. Descobertas no universo das
memórias provocaram-nos a desfazer certezas amarradas, oriundas de nossas formações
e imaginários que foram sendo desmanchadas e reconstruídas como as correntes de um
crochê.
1
Docente Educação Especial AEE do Instituto Federal Farroupilha, Campus Julio de Castilhos.
Graduada em Educação Especial (UFSM), e Mestra em Educação Profissional e Tecnológica (UFSM).
2
Docente de Pedagogia do Instituto Federal Farroupilha Campus Jaguari, Doutor e Mestre em
Educação (UFSM).
194
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
Diante disso, fizemos a escolha pela Pesquisa Narrativa como um novelo
3
para a
investigação, as entrevistas semiestruturadas serviram de via para a produção das
narrativas orais das colaboradoras, tendo como viés a História Oral Temática, com a
intenção de perceber as significações imaginárias do ser mulher na docência,
revisitando trajetos formativos e olhando para a construção das identidades, num
contexto social e institucional.
A questão principal de pesquisa buscou saber Como foram constituídos os
trajetos formativos e os saberes docentes de professoras da Educação Profissional e
Tecnológica? Ao investigarmos os trajetos formativos de professoras de Ensino
Técnico de um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, situado no Rio
Grande do Sul, identificamos as implicações do ser mulher na construção dessas
professoras. Para tanto, recorremos ao conceito de Imaginário Social pela perspectiva
do filósofo CASTORIADIS 1982, 1987, 2006) e o entrecruzamos com o imaginário
sobre mulheres professoras.
CAMINHOS PERCORRIDOS: A PRODUÇÃO DA TRAMA
As Marias: Helena, Valentina, Beatriz, Fernanda e Luísa, nossas colaboradoras
de pesquisa, participaram, com suas histórias de vida e formação, seus saberes e
disposições para a docência, significações imaginárias, sua anima... Assim, escolhemos,
como a primeira colaboradora, uma professora que atua/atuou na Educação Básica
Técnica e Tecnológica de um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia,
localizado no Rio Grande do Sul, e a entrevistamos. A escolha da primeira colaboradora
aconteceu a partir do vínculo institucional construído, da formação inicial da mesma e
do conhecimento sobre o tema em investigação. E, também, por serem os primeiros
participantes denominados “sementes”, na Técnica Metodológica adotada, que se
assemelha à “Snowball Sampling” (Bola de Neve ou Cadeia de Informantes).
Essa forma de amostra não probabilística, é comum em pesquisas educacionais,
pois trabalha com cadeias de referência. Nesse sentido, a primeira participante indicou
outras e, assim, sucessivamente, até que o “ponto de saturação”, ou seja, o objetivo
proposto, foi alcançado (BALDIN e MUNHOZ, 2011). Ocorreu, de tal maneira, que o
“ponto de saturação” foi alcançado quando percebemos repetições diante dos conteúdos
3
Novelo: amontoado de fios enovelados; fios enrolados.
195
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
surgidos nas entrevistas iniciais sem o acréscimo de dados diferenciados à pesquisa.
As entrevistas foram realizadas a partir da perspectiva de Meihy (2011, p. 14),
para o encaminhamento natural das análises, o que descreve como “corpus documental
provocado”. Ainda com esse pensamento, utilizamos a expressão “colaboradora” à
procura de um conceito ético com as entrevistadas, superando a referência de “objeto de
pesquisa”, “atrizes sociais” ou “informantes”, também na proposição de Meihy (2011,
p. 25) proporcionando a dialogicidade entre quem grava ou registra narrativas de outras
pessoas, fazendo, desses encontros, momentos de grande significação.
Do emaranhado de fios em narrativas à produção da escrita, vinculada ao campo
teórico do Imaginário Social, em que situa a pesquisa entre o simbólico e o vivido, tem-
se como centro a formação docente atravessada pelas histórias das mulheres e pelo
gênero, sendo rememoradas e ressignificadas. As análises das narrativas fizeram
emergir eixos que serão discutidos neste artigo: trajetos formativos: o ponto a ponto na
construção da identidade docente; os fios que produziram o desenho da Identidade
Profissional: a mulher-professora na/da EBTT; na trama dos fios... as disposições para a
docência e docência e gênero: a ocupação feminina produzindo novas imagens.
ENTRELAÇANDO FIOS: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Dialogamos com a pluralidade de perspectivas da pesquisa narrativa e das
recordações-referência (JOSSO, 2004). Por meio da memória, foi possível o recontar e
o reorganizar de experiências individuais ou coletivas, imagens reconstruídas e
acontecimentos que produziram as mais diferentes significações, num processo de
investigação/formação, apresentado em Oliveira (2006, p. 172): “não temos objetos de
estudo, mas sujeitos, pessoas que se colocam como pesquisadoras de si, com o auxílio
da memória, reconstruindo imagens, representações construídas sobre professores,
sobre escolas, sobre formas de ser e de estar na docência”, como uma escolha pelo
respeito mútuo entre os envolvidos (nesse caso, as envolvidas), bem como a autoria
compartilhada e o anonimato.
Esse passado (não tão passado, assim), evocado na forma de narrativas de vida e
de formação, na busca por sentidos e significações. Para desenhar minha experiência,
recorremos a Larrosa (2003, p. 64), que diz “o vivido se torna recordação na lei da
narração que é, por sua vez, a lei de sua leitura. E aí, se torna outra vez vivo, aberto,
196
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
produtivo. A memória lê e quem conta é a memória em que o era uma vez converte-se
em um começa!” E começamos...
TRAJETOS FORMATIVOS: O PONTO A PONTO NA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE DOCENTE:
A diversidade apresentada pelos excertos das narrativas mostrou que os trajetos
formativos das colaboradoras foram atravessados por momentos importantes que
influenciaram e contribuíram para a escolha da carreira docente. Foram os primeiros
contatos e maneiras para pensar o ensino como uma atividade profissional, como sugere
Josso (2004, p. 38): uma “manifestação de um ser humano que objetiva as suas
capacidades autopoiéticas.
A escolha pela profissão mostrou-nos a riqueza de diferenças na construção
dessas tramas: a pedido da família, surpresas após a saída da universidade, desejos de
infância...são histórias de cinco mulheres, cheias de vida e de possibilidades reflexivas
a partir das experiências vividas. Apresentamos um quadro com grupo de colaboradoras
e o destaque para a área de formação inicial e de atuação, na fase de produção dos
dados:
QUADRO 1 As colaboradoras
COLABORADORA
ÁREA DE FORMAÇÃO
INICIAL
ÁREA DE ATUAÇÃO
(na fase de produção dos dados)
MARIA HELENA
AGRONOMIA
Em processo de aposentadoria
MARIA
VALENTINA
MEDICINA
VETERINÁRIA
Gestão Institucional
MARIA BEATRIZ
ENGENHARIA CIVIL
Docência no Ensino Médio
Integrado/Coordenação de Eixo
MARIA
FERNANDA
ADMINISTRAÇÃO DE
EMPRESAS
Docência em Cursos de
Licenciatura e Bacharelado
MARIA LUÍSA
ENGENHARIA
QUÍMICA
LICENCIATURA EM
MATEMÁTICA
Docência em Curso de
Licenciatura/Coordenação de
Curso
197
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
Fonte: Elaborado pelos autores.
A compreensão sobre o processo de escolha da profissão como uma das
experiências mais significativas e marcantes na vida surge nas vozes de Maria Helena e
de Maria Beatriz:
Eu fiz... Fiz Agronomia, no caso, muito voltada por questões familiares.
Como eu era a filha mais velha, não tinha irmão, meu pai foi me
levando pro ramo da Agronomia e eu como gostava, seguir. Até porque
eu tinha certa prática, de campanha, assim... de morar pra fora, família
italiana e alemã. [...] Daí eu fiz a formação pedagógica, sou licenciada
para as disciplinas de segundo grau, no caso... Naquela época e,
enquanto eu estava fazendo a formação pedagógica eu comecei a dar
aula de Técnicas Agrícolas em contratos temporários no Estado. Então,
eu com o quê? Uns vinte e quatro, vinte e cinco anos (rsrs) eu tava
dando aula de Técnicas Agrícolas nas escolas estaduais. (MARIA
HELENA)
O acesso a si mesmo, provocado pela narrativa, como no crochê as laçadas são
estendidas em relação ao mundo, foi permitindo, a cada um de nós, interpretar e
ressignificar experiências. Nessa lógica, Dewey (1976, p. 11) sugere que “[...] descobrir
a relação que existe dentro da experiência entre as realizações do passado e os
problemas do presente. A solução estará na descoberta de como a familiarização com o
passado poderá traduzir-se em poderosa instrumentalidade para melhor lidar
efetivamente com o futuro”. A busca pela construção de aprendizagens que possa
melhorar a formação e a prática é, por esse viés, um trajeto não construído
subjetivamente, mas também na coletividade, embora isso não seja sempre explícito.
Na verdade quando eu estava terminando o Ensino Médio, pra gente... o
terceiro ano científico, todos os testes vocacionais que eu fiz era pra
Humanas. Todas pra Humanas. E... Minha mãe dizia: “Tá loca”, não vai
fazer nenhuma “gia”... Porque não ia ganhar dinheiro e tal... Essas
coisas assim. Então era Direito, Medicina, ou era Engenharia. E eu
fiquei naquela, neh? Meu pai era professor universitário e,
inconscientemente, eu segui a profissão dele. (MARIA BEATRIZ)
Os excertos apontam que a docência não esteve presente no desejo inicial da
formação, mas constituiu-se no/do entrelaçamento das vivências e oportunidades que
foram surgindo, como sugere Josso (2004, p. 43): “as experiências, de que falam as
recordações-referências constitutivas das narrativas de formação, contam não como a
vida lhes ensinou, mas o que se aprendeu experiencialmente nas circunstâncias da
vida”. O saber-fazer e o saber-ser das professoras apontaram memórias da perspectiva
198
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
freireana, do amor pela docência, que, sozinho, o sustenta a prática profissional, é
elemento imprescindível para a profissionalidade docente.
Acerca disso, Maria Luísa narra a imagem da mãe como uma das memórias
vividas. A relação familiar, as falas e os mandatos ocupam lugar central, unindo
sentimentos e responsabilidades que assinalam esse tempo que ficou guardado, embora
não esquecido. A sequência da narrativa revela que, apesar de iniciar com uma
formação de Bacharelado, ela e a docência continuaram a buscar-se:
Eu na verdade sempre quis ser professora, minha mãe é professora de
Língua Portuguesa e eu sempre acompanhei a trajetória dela.
Participava dessa coisa de corrigir prova, de preparar aula, eu sempre
gostei disso, que a minha mãe é professora estadual e achava assim,
que eu tinha potencial para ser outras coisas, ela não queria que eu fosse
professora, então quando eu fui fazer o vestibular. Minha mãe queria
muito que eu fosse médica, mas eu não me sentia nessa área de
Medicina. Optei por engenharia, a minha primeira graduação, que
aqui eu não me realizava, não me motivava aquelas atividades.
(MARIA LUISA)
A possibilidade das implicações de gênero na docência surgiu na fala de Maria
Valentina, que se coloca , de imediato, como mulher, antes mesmo de narrar-se
enquanto educadora. Ela também traz para a narrativa as filhas, a família e as cenas de
sua história. O entusiasmo, ao revisitar seu trajeto formativo, foi um momento precioso
da pesquisa. O brilho no olhar, a alegria, a imagem que foi se instituindo enquanto
relatava. Foram muitos e coloridos os pontos dessa trama.
Sou uma mulher, educadora, que se constituiu profissionalmente, na
Educação Profissional e Tecnológica, desde 1992, quando ingressei na
Escola Agrotécnica Federal atuando fundamentalmente com Ensino
Técnico de Nível Médio [...] também uma pessoa que tem uma família,
mãe de três filhas, que acredita que, apesar de tudo, a educação é a
forma mais potente da gente conseguir fazer transformação na vida das
pessoas. E foi muito interessante essa relação. A questão da docência,
essa retroalimentação que se tem da gente com os alunos e dos alunos
com a gente. Foi tão bom pra mim, eu me esforcei tanto, no que eu fiz,
que os meninos (eu dei aula para eles um mês) e que quando foram
escolher os homenageados, me convidaram para professora
homenageada. Eu fiquei num estado... De êxtase! E eu tinha... Acho que
vinte e dois anos, por aí... Formei-me com vinte e um. (MARIA
VALENTINA)
Maria Valentina falou sobre a relação com seus alunos e as surpresas que
recebeu a cada turma, o que reforça os sentidos do desenvolvimento pessoal do
professor, nas perspectivas individuais e coletivas. A formação docente assume uma
199
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
tarefa de valorização e de reconhecimento da dimensão prática da atuação dos
professores, a partir de propostas reflexivas que possam ser promotoras de
transformação.
O relato de Maria Fernanda mostrou a busca pelo autoconhecimento bastante
intenso. Agregou as questões pessoais, familiares, profissionais e seu cuidado ao olhar-
se. Das colaboradoras, foi a que trouxe mais fortemente sua história de mulher, gostos,
desgostos e superações. Falou no tempo e na experiência, na maneira como compreende
essa relação. Foi possível sentir que o trabalho é sua base, produzido de forma dinâmica
nas frentes e lutas às quais adentrou, sempre escolhendo o amor.
Sou uma mulher forte, corajosa... Destemida, persistente, lutadora.
Acho que às vezes impositiva demais assim em algumas coisas que eu
acredito. Mas uma mãe. Acho que acima de tudo, toda essa força vem
muito da maternidade, dos desafios que ela traz. Então fui me
constituindo ao longo do tempo e hoje eu gosto da mulher que eu olho.
Teve um tempo que eu não gostava, mas hoje eu olho pra essa mulher e
eu gosto... gosto do que eu vejo, gosto de onde eu cheguei, gosto das
lutas que eu acho que são válidas de entrar... Mas é um caminho né? 50
anos. Acho que assim, eu me defino uma professora que é apaixonada
pelo que faz, também, eu me realiza na atividade da docência, ela me
traz muita esperança e muita liberdade de atuação. Isso é uma coisa que
eu prezo, acho que eu sou uma mulher liberta. A atividade que eu
exerço me essa possibilidade de andar e transitar por áreas que me
trazem satisfação e que me dão uma perspectiva de uma transformação
com quem eu trabalho. Então, eu acho que isso é uma coisa boa.
(MARIA FERNANDA)
O comprometimento de Maria Fernanda com um projeto transformador fica
claro ao ouvi-la, da mesma forma que declara os desafios institucionais e pessoais.
Aproximamo-nos de sua fala quando narra que a atividade exercida lhe mobilidade,
pois amplia o espectro das coisas que dão prazer e satisfação, mostrando o
amadurecimento ao longo do percurso.
OS FIOS QUE PRODUZIRAM O DESENHO DA IDENTIDADE
PROFISSIONAL: A MULHER-PROFESSORA NA/DA EBTT:
O encontro das pesquisas em formação de professores com os postulados de
Nóvoa (1991) problematizam a Identidade Profissional: De que maneira, quando e
como nos tornamos professores? Existe influência sobre a ação pedagógica, das
características pessoais e profissionais dos professores? Nesse sentido, Nóvoa (1991, p.
200
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
16) propõe:
A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é
um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço
de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é
mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla
dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz
professor.
O autor sugere, com isso, que as experiências provocam mudanças identitárias,
fazendo com que o olhar movimente-se entre as formações, atual e anteriores, numa
reflexão sócio-histórica e processual de histórias, imagens, conhecimentos e ações.
Buscamos a narrativa de Maria Luisa para apresentar alguns dos desafios da
carreira:
A imagem de docente da minha mãe, de alguns professores do Ensino
Médio... Lembro-me da professora de Química, que ela exerceu uma
grande influência pela minha opção por Engenharia. Eu acho que é um
desafio um pouco diferente de um Ensino Médio normal ou Ensino
Superior normal. Você tem que apresentar os conteúdos do teu
componente curricular, mas dentro dum contexto profissional,
mostrando as possíveis aplicações que eles possuem. Então isso é um
desafio porque os professores falam por mim, nem sempre conhecem
aplicações dos seus conteúdos em todas as áreas. (MARIA LUISA)
Nesse sentido, Clandinin e Connelly (2015, p. 99) retratam que, enquanto
pesquisadores, entramos nesse campo e revivemos nossas histórias, assim como nossos
colaboradores, pois “[...] suas vidas não começam no dia em que chegamos, nem
terminam quando partimos. Suas vidas continuam. [...] Suas instituições e
comunidades, suas paisagens no sentido mais amplo, também estão envolvidas no meio
das histórias”. Os aspectos relacionais são desestabilizadores, no sentido em que, ao
olhar para as histórias, fez com que voltássemos às nossas. E, ao nos mover, nesse ir e
vir, percebemos que nós e nossas colaboradoras nunca estivemos sozinhos.
A imagem positiva da profissão docente revelou a experiência formadora, ao
imprimir, nas vivências em família, as marcas da atuação profissional. Nóvoa (1991)
corrobora, para isso, ao descrever a ação docente como algo que não se limita ao espaço
da sala de aula, mas que se relaciona de forma muito próxima aos vínculos e à
constituição pessoal e profissional do professor.
Atuar na Educação Básica, Técnica e Tecnológica, na Rede Federal, apresentou-
se como um desafio em particular. Trabalhar no sentido do desenvolvimento
201
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
omnilateral, com pessoas numa diversidade etária, e, ainda, contemplar o atendimento
aos diferentes níveis: Ensino Médio Integrado, Técnico Subsequente, Tecnólogo e
Superior. Repensando a proposta dos Institutos Federais, MOURA (2007) discute uma
questão bastante significativa que transita por imaginários docentes no que se refere à
gestão e à organização institucionais. Segundo o autor, a Educação Profissional e
Tecnológica sofreu um abandono de décadas e, com isso, sua reestruturação originou
um quadro diversificado de servidores. Diante desse cenário, a perspectiva de gestão
tem feito com que assumam atividades na administração dos campi, nas coordenações,
nas atividades de ensino, de pesquisa e de extensão. Muitas delas com gratificações.
Nesse sentido, o referido autor descreve que não é estranho que sejam atendidas, com
maior ênfase, as questões político-financeiras em relação às de ensino e de
aprendizagem.
A colaboradora Maria Fernanda atuou na rede privada de Educação Profissional,
o que lhe proporcionou uma base para o momento em que teve ingresso no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, como relatou:
Eu já atuava na Educação Profissional, na área privada. Eu trabalhei nos
cursos técnicos, então ali começou um olhar um pouco diferente. Mas
foi realmente no CEFET, em 2008 quando entrei... Faz 10 anos que
eu atuo na rede pública. Desde lá que realmente eu fui me constituindo
essa educadora da Educação Profissional e Tecnológica, tomando
consciência do que que é, dos desafios que traz, de toda a trajetória
mesmo da Educação Profissional. Acho que eu peguei um período
muito bom assim, que foi o período da criação dos Institutos Federeais e
isso me ajudou muito a compreender o que é a caminhada da Educação
Profissional, a importância do instituto dentro desse processo também.
(MARIA FERNANDA)
Os relatos de Maria Fernanda sobre sua atuação à época da criação dos Institutos
Federais contribuíram para que repensássemos o trabalho na coletividade, como
possibilidades formativas através dos “gatilhos de memória”, uma vez que, ao ouvir e
refletir sobre o que os colegas pensam, fazem e dizem, podemos fazer com que
sentimentos, até então adormecidos, comecem a pulsar. Josso (2004, p. 130) retoma
esse pensamento: “ele sentido, ajuda-nos a descobrir a origem daquilo que somos
hoje. É uma experiência formadora que tem lugar na continuidade do questionamento
sobre nós mesmos e de nossas relações com o meio”. Entendemos que esse tempo
permite um olhar mais cuidadoso e generoso com os demais profissionais da docência,
na compreensão solidária do caminhar: para si e para o outro... Com o outro. Nos
202
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
excertos a seguir, destacamos, das falas das professoras Maria Valentina e Maria
Beatriz, as especificidades também visíveis no lócus da pesquisa, nas abordagens de
Ensino, Pesquisa e Extensão:
Outro elemento que também eu acho que é bem singular, talvez, do
meu trabalho, é que... talvez por uma característica minha e porque eu
entendo que isso também é papel, principalmente no Ensino Técnico, é
o fato de articular muito teoria e prática. Ser professor da Educação
Profissional e Tecnológica em lugares onde a estrutura, a infraestrutura
permite, é muito fácil da gente conseguir essa articulação… (MARIA
VALENTINA)
A articulação problematizada por Maria Valentina é apresentada por Josso
(2004, p. 63) quando se refere aos múltiplos sentidos, à “existência singular-plural,
criativa e inventiva do pensar, do agir e do viver junto. Um trabalho formador de si,
ligado à narração das histórias de vida e a partir delas”, fato que ressalta os aspectos
importantes da formação pelas experiências de educação dos professores como bem
demarcaram as colaboradoras.
Quando Maria Helena questiona-se durante a entrevista narrativa: Será que eu
fiz certo? Ehh... Fiz! Eu fiz certo, sim! Dei o que eu pude... Recordamos Anastasiou
(2003, p. 13) ao afirmar que “ensinar é deixar marcas e essas marcas deveriam ser de
vida, de busca e de despertar para o conhecimento”. Nesse sentido, passamos a olhar
para os saberes e para as disposições para a docência.
Sou docente do Instituto Farroupilha, da nossa antiga Escola
Agrotécnica Federal, desde o ano de 1992. Mãe, mulher, mas muito
sempre muito voltada à parte do trabalho. Ele traz satisfação, retorno
profissional pra gente. Trouxe muito retorno profissional... Eu estou
assim, num período de aposentadoria, em que tu já está repensando...
tudo o que tu fez: Será que eu fiz certo? Ehh... Fiz! Eu fiz certo, sim!
Dei o que eu pude... Gostaria de ter dado mais, até... porque,
principalmente aquele atendimento ao aluno que precisava da gente,
aquele aluno que veio ali, interno e ficou.Eu não me vejo, não me vi
nunca, fazendo outra coisa que não fosse professora. E está muito difícil
me desligar... sabe? (MARIA HELENA)
NA TRAMA DOS FIOS... AS DISPOSIÇÕES PARA A DOCÊNCIA:
Os elementos apresentados pelas colaboradoras evocam as “disposições para a
docência” apontadas por Nóvoa (2009), no sentido de retomar o “tato pedagógico” nos
203
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
diálogos e no convívio dos pares mais experientes. Ademais, evocam toda a história
relacional que envolve o trabalho docente, promovendo o transcender do espaço
escolar. Nas palavras de Cunha (2008), os “contextos vivenciais”, como relata Maria
Helena:
Para a gente era importante a Formação Pedagógica. Quando nós
ingressamos no Instituto, nenhuma de nós tinha Mestrado, nós fomos
fazendo durante todo o curso. O meu trabalho era um pouquinho
pesado, a gente não tinha o envolvimento com a docência, nós
tínhamos o produto para entregar. No meu caso, era a industrialização
de alimentos. O perigo de perder o leite, era tu entregar... Imagina tu
fazer um setor andar no serviço público, ainda mais no serviço público
antigo? Tu não tinha carro adequado e eu, com aqueles queijinhos ali,
precisando de refrigeração? A gente foi... A minha área até que foi em
frente. Como era uma área que o governo estava investindo, eles
queriam implantar Cursos de Agroindústria, queriam trabalhar com
agroindústria, que os alunos tivessem essa formação porque viam uma
oportunidade deles trabalharem na propriedade, eu recebi bastante
capacitação. (MARIA HELENA)
Observamos o compromisso com a formação continuada, uma vez que relata
que, ao ingressarem, a maioria dos professores ainda não havia concluído o Mestrado.
No entanto, isso não constituiu fator para minimizar as buscas por uma educação de
qualidade e pelo “fazer ciência”.
Já Maria Luisa dialogou com as significações referentes à docência. A primeira,
pautada no “espaço onde encontrou possibilidades” de construção profissional:
Então, eu fui pra um campo que era mais aberto, porque o fato da gente
ser professora em si, era suficiente, aqui dentro da Licenciatura em
Matemática. Cada um com suas experiências em outros cursos parecem
que não. (MARIA LUISA)
As significações construídas acerca do papel da aprendizagem biográfica na
formação e na pesquisa são promotoras de diálogos e reflexões múltiplas, contribuindo
enormemente nos processos de Formação de Professores, ao adentrar a trama da vida
destes, suas experiências pessoais e coletivas, perpassando temáticas simbólicas e
materiais como os aspectos emocionais, fatores salariais e a condição humana da
docência. Ao inferir sobre as biografias, Delory-Momberger (2012, p. 37) contribui:
Essa escrita, pela qual tornamo-nos os recitantes de nossa vida, nos
inscreve na história e na cultura. A imersão do fato biográfico na
linguagem da narrativa remete à historialidade das linguagens da
narrativa: as histórias que contamos de nossa história se escrevem sob
204
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
as condições sócio-históricas da época e da cultura (das culturas) às
quais pertencemos, uma história (uma historialidade) do “narrar a
vida”, como uma história (uma historialidade) do “indivíduo”, da
“consciência de si”, do “sujeito”, [...] constituem, desse modo, o
material privilegiado para se ter acesso à forma como os homens de
uma época, de uma cultura, de um grupo social, biografam sua vida.
Narrando-se, Maria Valentina mostrou trechos desse caminho:
Como professora foi algo que foi acontecendo com o tempo. Eu me
formei, terminei a minha faculdade e à época as possibilidades de pós-
graduação eram muito reduzidas e eu fui atuar, na área da produção
animal. Aí eu trabalhei na Emater e por insistência da minha mãe, que é
professora docente da Rede Estadual, eu fiz... Um Curso de Formação
de Professores. Naquela época, a gente chamava de Formação
Pedagógica. Mas na verdade era Formação de Professores para
Disciplinas Especializadas do Ensino de Segundo Grau: esse é o nome
que vem no diploma. Era uma Licenciatura, à noite. Por insistência da
minha mãe, eu trabalhava de dia e fiz esse curso. Eu sempre gostei
muito de estudar e era a única possibilidade... pois como eu te disse não
tinha Pós-graduação onde eu vivia. (MARIA VALENTINA)
Dessa forma, os escritos de Nóvoa (1991, p. 17) discutem “a maneira como cada
um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como pessoa quando
exercemos o ensino”, provocando uma reflexão a respeito da construção dos processos
identitários e de autonomia para o exercício da docência, considerando as implicações
dos sentimentos são envolvidos no controle do trabalho.
DOCÊNCIA E GÊNERO: A OCUPAÇÃO FEMININA PRODUZINDO NOVAS
IMAGENS:
Pensar o Imaginário Social como base para a pesquisa provocou-nos a buscar
compreender os atravessamentos das questões de gênero e da história das mulheres na
docência, constituindo e estruturando o social.
As relações de gênero estão inerentemente ligadas às questões de poder. Nesse
sentido, nossa preocupação foi buscar elementos na História das Mulheres visivelmente
percebidos nas falas das colaboradoras.
Os excertos a seguir trazem as discussões do campo do Gênero à procura da
convergência com a História das Mulheres, professoras de Cursos Técnicos.
Recorremos a Foucault (1991) para pontuar que se torna evasiva a discussão das
relações de gênero dissociadas das relações de poder.
205
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
Eu não tive coragem de concorrer com ele. Mas eu acho que foi uma
ideia minha, sabe? Porqueeee... ehhh... claro, ele ficaria em primeiro
lugar porque ele era mais titulado, no caso ele tinha
Especialização, tinha mais experiência de aula, ficaria na minha
frente. Mas, durante o trabalho, a gente não tinha problemas. Tivemos
problemas durante o concurso, que eu tive medo e, quando eu fui fazer
concurso, que nós fazíamos uma prova teórica. (MARIA HELENA)
Maria Valentina destaca elementos de grande significação ao comentar que,
mesmo sem manifestação de preconceito explícito, era perceptível a diferenciação, em
especial pelos silêncios eventuais que se faziam nas salas de convivência, quando um
grupo de professores homens estava conversando e uma professora mulher se
aproximava. Expressa, no entanto, que, nos grupos de alunos e alunas, tais ações não
eram tão evidentes.
Nas disciplinas básicas tínhamos outras colegas mulheres. Mas, nas
disciplinas técnicas era um universo muito masculino e, dentro da sala
de aula, essa situação se reproduzia, totalmente... a gente chegava a ter
turmas, que não tinha meninas. Que eram meninos. Mais do que a
questão numérica, quantitativa, a questão de... (pausa) discriminação
acho que é a palavra, eu nunca sofri explicitamente por parte dos meus
colegas. Mas a gente percebia muito facilmente... por exemplo, às vezes
tu chegavas na sala dos professores... eles emudeciam, claro! O que eles
estavam falando? Era um assunto que eles achavam que eu, enquanto
mulher, não deveria ter acesso ou não saberia participar, sei lá. Agora,
engraçado que com os estudantes, essa questão era exatamente o
inverso. Talvez até porque éramos muito poucas mulheres, eles nos
acolhiam muito bem, eles nos tratavam muito bem, com muito
respeito... Uma relação de muuuuito respeito. Nunca houve nenhum
problema que a gente pudesse dizer... Disciplinar, ou de um aluno
menosprezar a minha capacidade profissional (MARIA VALENTINA)
Em sua narrativa, Maria Valentina expressa as marcas do preconceito velado
que vivenciara ao mostrar os silenciamentos diante da presença feminina nas salas de
convivência de professores e professoras. O lócus da Educação Básica, Técnica e
Tecnológica apresenta o trabalho como um princípio educativo. Sendo assim, a
narrativa de Maria Luísa evidencia as questões profissionais da docência, uma vez que
atuou nos cursos técnicos de nível médio; na contemporaneidade, desenvolve suas
atividades nos cursos de Licenciatura. De sua memória no trajeto formativo, aponta que
em alguns contextos, precisou de maior esforço como se fosse uma garantia de
competência e profissionalidade.
206
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
Na questão profissional, assim, de professor de sala de aula eu acho que
é normal, não existe nenhum tipo de diferenciação, eu acho assim que,
que dentro do curso superior licenciatura em matemática estou mais
próxima hoje, a gente trabalha naturalmente, apesar de predominar o
gênero feminino. Então, tu se sente mais à vontade. Eu já trabalhei, por
exemplo, em outras escolas, ou até em cursos técnicos diferentes:
técnico em segurança do trabalho, por exemplo, onde era mais homens,
e assim às vezes a gente é desafiada, porque tu tem que mostrar
competência dentro do técnico, do ensino médio mesmo. (MARIA
LUISA)
Em Meyer (2003), o conceito de gênero é apresentado como algo que aponta
para a noção de que, através de outras instituições e práticas sociais, as pessoas vão se
constituindo homens e mulheres, num processo translinear, não-progressivo nem
harmônico, por sua vez, também inconcluso. Entrelaçam-se, assim, gênero e educação,
pois, nessa perspectiva, os processos educativos transcendem o espaço escolar,
contemplando os vínculos familiares, as infâncias, a arte e seus entornos, em que os
sujeitos aprendem a significar suas identidades. A autora ainda apresenta, de maneira
bastante pontual, a sutileza e a naturalização com que tais processos se instituem e se
enredam.
O encontro com Maria Beatriz trouxe falas carregadas de problematizações e
desafios nos fizeram viver uma experiência belíssima de formação. Como contribui
Perrot (2017, p. 16), “escrever a história das mulheres é sair do silêncio em que elas
estavam confinadas. Mas por que esse silêncio? Ou antes: será que as mulheres tem
uma história”? Acrescentamos ainda: Quem está contando ou contou a história das
mulheres?
... Entrei numa sala de aula e um aluno me disse: a disciplina quando o
professor fulano dava, era muito melhor porque é homem, porque ele
não cobrava tanto, alguma coisa desse tipo. Eles não respeitam a gente
como mulher. E assim, eu sinto esse receio, sabe? A hoje. Porque
você entrar numa turma de homem pra dar aula, você ali se
expondo, sabe? E foi por isso que eu gostei também dessa questão de
empoderamento... Pra gente se valorizar mais, não só como mulher, mas
como profissional também. Mas eu ainda tenho receio, de entrar nas
turmas... Eu sinto isso, principalmente que as mulheres são machistas
também, ainda. O que a gente nota entre colegas, se a gente está numa
reunião, se a gente está falando... Eles interpelam. Eles não deixam a
gente falar. Mas eu vi várias coisas, como... Professora tal tem que casar
pra não ser tão agressiva, essas conversas que eles dizem... Ah, não
transando, essas coisas que a gente escuta de outros alunos, que,
provavelmente falam de mim, igual. Então, são situações assim, que são
corriqueiras e que a gente tem assim, no dia a dia. Eles não entendem e
isso, aos pouquinhos, a gente vai conversando e vai trazendo. Alguns eu
207
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
sei que não pensam dessa forma. Mas... são as raízes, a forma como eles
foram criados, entende? E eu acho que agora é o momento da gente
fazer essa transformação, pra que eles consigam enxergar a gente de um
modo diferente. O pior de tudo o que eu acho são as mulheres, as alunas
mulheres que protegem os professores homens e a gente não. (MARIA
BEATRIZ)
O que Maria Beatriz revela como situações corriqueiras materializa o
preconceito naturalizado em direção às relações de gênero, quando as mulheres
precisam se autoafirmar constantemente para garantirem seus direitos e terem sua
presença respeitada enquanto sujeitos. É chegado o momento da transformação.
Ampliando o diálogo acerca da invisibilidade das mulheres, Perrot (1998, p. 65)
aponta: “De um modo geral, as mulheres constituíram auditórios às vezes cativos [...]
cuja avidez se manifestava pela afluência e pela atenção [...] Essa grande presença
tornava visível no espaço público a existência cultural delas, ainda que muda”. Maria
Fernanda ocupa essa “voz” ao falar sobre a maternidade:
Eu acho que a maternidade tem que falar, porque acho que pra qualquer
mulher é complicado. Pra mim, quando os guris eram pequenos... eu já
tinha os três filhos e eu decidi que tinha que fazer o Mestrado. eu
tive que escolher, eu tive que deixar eles, eu deixava os três e fui fazer o
Mestrado. Foi muito difícil deixar os guris por um ano, que eu ficava
indo e vindo, então foi acho que um pouco essa minha trajetória. Foi
sacrifício deles, toda essa trajetória eu devo a eles, de todo o sacrifício,
da ausência da mãe que eles tiveram que suportar, tentava compensar...
Mas acho que não existe isso... compensar. Tem que olhar que a cada
tempo é um tempo, o tempo deles pequenininhos ali, aquele ano eu
perdi. Eu tentei compensar escrevendo pra eles, mandando cartas,
anotando minha dor, meu sofrimento, porque foi muito sofrido pra eles
e pra mim também, mas eu tinha na frente o que eu queria, que era um
emprego federal, era melhor condição de vida pra eles e tal. Não sei,
acho que deu pra compreender isso, hoje eles não me cobram essa
ausência, mas foi muito. Eu vejo, que pra mulher, ela se estabelecer
profissionalmente é a duras penas, não é simples. Para o homem não,
ele não tem a responsabilidade dos filhos, então pro homem é natural,
ele vai, viaja, sai, mas a mulher cada vez que ela sai tem que planejar
toda a estada dos filhos: Quem que vai fornecer a alimentação? Como
que vai dar conta da escola? Do uniforme? E ela ta lá, ela
trabalhando, e ela tá longe... pensando nisso tudo. O homem não pensa
nisso. É uma marca do gênero, da história. (MARIA FERNANDA)
Maria Fernanda são todas as mães, mulheres, trabalhadoras, servidoras públicas
que ocupam seus espaços na bravura e no empoderamento, muitas vezes silencioso.
Rupturas e atravessamentos que o campo dos Estudos de Gênero e o revisitar da
História das Mulheres promovem à Educação.
208
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
Aqui, uma breve pausa com as palavras de Maria Fernanda, que enriqueceu este
trabalho com imagens carregadas de sentidos, relatando seu trajeto formativo,
atravessado pelas mudanças, transformações e por eles: os filhos. Perrot (2017, p. 114)
confirma suas palavras, mostrando que:
O trabalho doméstico é fundamental na vida das sociedades, ao
proporcionar seu funcionamento e reprodução, e na vida das mulheres.
É um peso nos seus ombros, pois é responsabilidade delas. É um peso
também na sua identidade: a dona de casa perfeita é o modelo sonhado
da boa educação, e torna-se um objeto de desejo para os homens e uma
obsessão para as mulheres. O caráter doméstico marca todo o trabalho
feminino: a mulher é sempre uma dona de casa. Isso se espera também
da perfeita: que ela coloque flores e cuide de seu patrão.
Nessa trama de fios, nem sempre tão bonitos ou fáceis de trabalhar, vão sendo
produzidos sujeitos e imaginários. Que as falas dessas mulheres, aliadas às que
problematizações que possamos fazer para que o espaço feminino na docência e nas
instituições, seja uma construção possível.
O QUE NARRAM OS DADOS PRODUZIDOS?
Escolher os fios, as cores, o motivo e começar a crochetar... A busca ao mapear
significações de docência construídas pelas professoras dos Cursos Técnicos da EBTT,
sob as lentes dos Estudos de Gênero e do Imaginário Social, oportunizou-nos viver,
aprender, descobrir, desapegar, desconstruir certezas e verdades que pensávamos
indiscutíveis. Transformamos em aprendizagem e hoje, sentimos que desejamos mais. E
mais... Ainda faltaram fios nessa trama! Muitas teorias, estudos, pesquisas e histórias de
mulheres estão à espera para serem envolvidas na crochetura. Conhecidas, narradas,
contadas e publicizadas. Pontos, entrepontos, correntinhas, composições coloridas e
diversas... Ainda falta! Porém, o desejo nasce da falta!, uma discussão pelos rumos da
Psicanálise para olhar o desejo de saber, de conhecer e de poder saber-conhecer.
Conhecer narrativas de vida e, a partir delas, novas possibilidades foi uma
aprendizagem intensa. Mulheres: professoras, colaboradoras que nos acolheram em
suas histórias, presenteando-nos com a riqueza em dados que, aqui, procuramos
apresentar e olhar com zelo e cuidado. Imaginários instituídos que nos fizeram perceber
as identidades, os trajetos de formação, o trabalho, a docência, as relações de gênero,
enfim... professoralidades.
209
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
Os dados referentes a trajetos formativos das professoras apontam para uma
formação em Bacharelado, nos cursos de Engenharia Civil, Engenharia Química,
Administração de Empresas, Agronomia e Medicina Veterinária, ao menos no aspecto
documental de início de carreira. Todas participaram, cada qual em um dado momento,
da formação docente. Para algumas, isso já vinha sendo pretendido, enquanto outras se
depararam com a oportunidade de ingressar na Rede Federal de Educação e buscaram
tal formação.
Todas as colaboradoras concluíram o curso de Doutorado e sua área de atuação
foi descrita em tabela no corpo deste artigo. Salientamos o papel institucional no
oferecimento de possibilidades para que todas participassem de formação continuada,
tendo em vista que, no ingresso da carreira, algumas possuíam apenas a Formação
Inicial de Graduação.
No que se refere aos saberes e às disposições para a docência, as professoras
asseguram a necessidade dos saberes específicos, sem hierarquizá-los, apontando
alguns como imprescindíveis à prática pedagógica, como os disciplinares, aqueles
específicos na relação com alunos, o desenvolvimento profissional, enfim, uma
multiplicidade de saberes. Ao dialogar sobre a origem desses saberes, dão ênfase para o
fazer-fazendo, sem deixar de atribuir significado à importância da formação, do
investimento e do desenvolvimento profissionais, a construção da identidade docente e
dos saberes relacionados à experiência, num processo contínuo e inacabado.
Demarcaram, também, o papel do trabalho em coletividade, do enriquecimento
de propostas integradas e transdisciplinares de Ensino, Pesquisa e Extensão, como
dispositivos de formação. Nessa perspectiva, as colaboradoras relataram experiências
vividas ao longo da profissão, quando a instituição ainda não havia sido reestruturada
para Instituto Federal.
PALAVRAS FINAIS: DOS ARREMATES
As mulheres conquistaram com muito esforço a escritura e as artes
plásticas. Mas a arquitetura, essa ordem das cidades, a música,
linguagem dos deuses, assim como no campo dos saberes, a filosofia ou
as matemáticas, permanecem hostis a elas. Essas divisões simbólicas
dos sexos são, de todas, as mais sólidas e as mais invisíveis. (PERROT,
1998, p. 91)
Trabalhar com a perspectiva de gênero na educação possibilitou-nos puxar fios
210
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
de diferentes novelos, uma vez que ampliamos o olhar e a escuta às questões
institucionais, curriculares e do campo de saberes onde atuamos.
Ao adentrarmos na categoria Gênero e Docência, percebemos que os
atravessamentos que ocuparam as narrativas foram bastante diversos. No entanto,
salientamos que foram unânimes as relações estabelecidas entre questões de gênero, na
ótica da História das Mulheres e as relações de poder, pelo viés foucaultiano. As
colaboradoras compreendem como naturalizados os discursos da diferença e percebem
como são construídos, produzidos ou reforçados os diálogos com os lugares na
instituição, bem como quais os saberes e atribuições possíveis de demandados por ser
mulher ou ser homem. As áreas técnicas são fortemente atravessadas pelo imaginário
instituído de lugar para homem, de pertencimento masculino e de como são construídas
tais significações.
esperávamos que, quaisquer fossem os resultados da pesquisa, iriam
transcender nossas aprendizagens pessoais, fortalecendo o entrelaçamento de pesquisa e
formação, como procuramos expressar por meio das categorias de análise emergentes:
trajetos formativos e saberes docentes; identidade profissional; disposições para a
docência e docência e gênero. Essa história continua.
REFERÊNCIAS
ANASTASIOU, L. G. C. Docência como profissão no Ensino Superior e os saberes
científicos e pedagógicos. Revista Univille Educação e Cultura, v. 7, n. 1, jun. 2003.
BALDIN, N.; MUNHOZ, E. M. B. Snowball (bola de neve): uma técnica metodológica
para pesquisa em educação ambiental comunitária. Disponível em:
http://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/4398_2342.pdf. Acesso em: 15 jun. 2017.
CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginária da Sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra,
1987.
CASTORIADIS, C. Uma sociedade à deriva: entrevistas e debates, 1974 1997.
Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.
CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiências e história na
pesquisa qualitativa. Uberlândia: UDUFU, 2015
CUNHA, M. I. Conta-me agora! As narrativas como alternativas pedagógicas na
pesquisa e no ensino. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 23, n. 1-2, jan.
211
Momento: diálogos em educação, E-ISSN 2316-3100, v. 28, n. 3, p. 192-211, set./dez, 2018.
/dez. 1997.
DELORY-MOMBERGER, C. Abordagem metodológica na pesquisa biográfica.
Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 51, 523-740, set./dez. 2012.
DEWEY, J. Experiência e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1991.
JOSSO, M. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
LARROSA, J. Pedagogia profana: danças piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003.
MEIHY, J. C. Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades,
famílias. São Paulo: Contexto, 2011.
MEYER, D. E. Gênero e educação: teoria e política. In.: LOURO, G. L. Corpo, gênero
e sexualidade: um debate contamporâneo na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
MOURA, D. H. Educação Básica e Educação profissional e Tecnológica: dualidade
histórica e perspectivas de integração. Holos, Ano 23, Vol. 2 2007. P. 4-30.
NÓVOA, A. A Formação Contínua Entre a Pessoa-Professor e a Organização-Escola.
In: Inovação. Lisboa: Revista do Instituto de Inovação Educacional, v. 4, n. 1, 1991.
NÓVOA, A. Professores imagens do futuro presente. Lisboa: EDUCA Instituto de
Educação/Universidade de Lisboa, 2009.
OLIVEIRA, V. F. Narrativas e saberes docentes. Ijuí: UNIJUÍ, 2006.
PERROT, M. Mulheres públicas. São Paulo: UNESP, 1998.
PERROT, M. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2017.
Article
Full-text available
A Educação Profissional e Tecnológica (EPT) mobiliza um expressivo número de professores, caracterizados pelo saber técnico e científico, são eles: bacharéis e tecnólogos. Este estudo buscou compreender as representações docentes de professoras não licenciadas através de suas narrativas de formação. Foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa com a aplicação de entrevistas semiestruturadas, com sete professoras bacharéis e tecnólogas. Constatamos que as representações docentes permeiam a busca pelo conhecimento pedagógico, a experiência e a docência como espaço de conquista das mulheres.
Article
Full-text available
The Educação Profissional e Tecnológica (EPT) mobilizes an expressive number of teachers, characterized by technical and scientific knowledge, they are: bachelors and technologists. This study sought to understand the teacher representations of non-licensed teachers through their training narratives. A qualitative research was carried out with the application of semi-structured interviews with seven female teachers and technologists. We found that the teacher representations permeate the search for pedagogical knowledge, experience and teaching as a space of conquest of women
Article
Trata-se de uma reflexão sobre as narrativas como instrumental educativo, tanto na pesquisa como no ensino . Recupera-se o sentido das narrativas e parte-se do pressuposto de que, trabalhar com elas na pesquisa e/ou no ensino é partir para construção/desconstrução das experiências do professor. Defende-se a idéia que as narrativas provocam mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros e, por este motivo, são, também importantes estratégias formadoras de consciência numa perspectiva emancipadora. Explora-se a dupla vertente de possibilidades no campo: a investigação da narrativa usada no ensino e na pesquisa que usa a narrativa.
Docência como profissão no Ensino Superior e os saberes científicos e pedagógicos
  • L G C Anastasiou
ANASTASIOU, L. G. C. Docência como profissão no Ensino Superior e os saberes científicos e pedagógicos. Revista Univille Educação e Cultura, v. 7, n. 1, jun. 2003.
  • A Formação Contínua
NÓVOA, A. A Formação Contínua Entre a Pessoa-Professor e a Organização-Escola. In: Inovação. Lisboa: Revista do Instituto de Inovação Educacional, v. 4, n. 1, 1991. NÓVOA, A. Professores imagens do futuro presente. Lisboa: EDUCA -Instituto de Educação/Universidade de Lisboa, 2009.
Snowball (bola de neve): uma técnica metodológica para pesquisa em educação ambiental comunitária
  • N Baldin
  • E M Munhoz
BALDIN, N.; MUNHOZ, E. M. B. Snowball (bola de neve): uma técnica metodológica para pesquisa em educação ambiental comunitária. Disponível em: http://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/4398_2342.pdf. Acesso em: 15 jun. 2017.
As encruzilhadas do labirinto
  • C Castoriadis
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
Uma sociedade à deriva: entrevistas e debates
  • C Castoriadis
CASTORIADIS, C. Uma sociedade à deriva: entrevistas e debates, 1974 -1997. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.
Abordagem metodológica na pesquisa biográfica
  • C Delory-Momberger
DELORY-MOMBERGER, C. Abordagem metodológica na pesquisa biográfica.
Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto
  • J C Meihy
MEIHY, J. C. Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.
Contínua Entre a Pessoa-Professor e a
  • A Nóvoa
  • Formação
NÓVOA, A. A Formação Contínua Entre a Pessoa-Professor e a Organização-Escola. In: Inovação. Lisboa: Revista do Instituto de Inovação Educacional, v. 4, n. 1, 1991.