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Portugal 1910-2010 117
O restauro de pintura em Portugal
no tempo de Luciano Freire
António João Cruz
De part ame nto de Art e. C onse rvaç ão e Restauro
Instituto P olitécn ico de Tomar
Durante séculos o restauro de pintura foi uma arte sem estatuto executada por pintores
que livremente procediam à replntura e à renovação de obras danificadas pelas usuras
do tempo e os acidentes da história ou, tâo-só, desactualizadas pelas mudanças de
gosto ou modos de olhar para os assuntos representados, divinos ou terrenos. Mesmo
quando às obras em causa era expressamente atribuído relevante valor artístico, o que só
tardiamente aconteceu, as liberdades do artista restaurador nâo se subordinavam a esse
reconhecimento, sendo admissível e Justificada toda a sorte de modificações, por vezes
efectuadas sob o pretexto de melhorarem a obra original. Em Portugal nâo eram apenas
obscuros pintores que se encarregavam dessas tarefas, de restauro correctivo e utilitarlsta
como Já foram designadas, mas também artistas de renome, todos vanglorlando-se dessa
actividade que, afinal, mais nâo era do que simples pintura.
A partir de meados do século XVIII, por Itália, Inglaterra e França, aos poucos começaram
a surgir exemplos de outra prática - que se tornou dominante no século XIX e com essa
Importância se manteve, pelo menos, até às primeiras décadas do século XX. Exercida por
restauradores que frequentemente tinham uma carreira paralela de pintor, mas que no
restauro se deviam reger por outros valores ainda que tal nem sempre tenha acontecido,
tornou-se essa prática uma das artes da dissimulação. Efectivamente, valorizando a obra
original, nessas Intervenções pretendia-se devolver a uma pintura o seu estado primitivo,
cuidadosamente dissimulando todos os danos - ainda que frequentemente seja de monta
a distância entre a teoria e a prática.
118 anos d© patrim ónio
memófi a e ide ntidade
O restauro deixou de envolver apenas o repinte ou a repintura e passou a incluir também,
aliás com muito mais frequência, limpezas de vernizes amarelecidos e escurecidos, e
sujidades que nos vernizes com o tempo se vâo acumulando e à obra tiram visibilidade.
Para o efeito eram empregues vários materiais e tratamentos que, a avaliar pelos que sâo
mencionados em diversas publicações destinadas a amadores e curiosos, bem como pelo
estado em que algumas pinturas até nós chegaram, em grande parte se caracterizavam
por uma excessiva agressividade. As intervenções de restauro igualmente passaram entâo
a integrar operações como o reforço dos suportes, por exemplo através da reentelagem,
ou, mais drástica e menos comum, a transposição de suporte, designadamente a
passagem de uma pintura mural para um suporte móvel.
Por outro lado, a arte da dissimulação impunha o repinte das zonas danificadas da
superfície cromática, como as lacunas, num estilo mimético em que os dotes artísticos
do restaurador tinham um papel fundamental. Este repinte, ainda que fantasista quando
as dimensões ou a localização das lacunas nâo permitiam uma segura reconstituição
da imagem perdida, de acordo com as melhores práticas ou, pelo menos, as melhores
intenções, limitava-se a essas áreas deterioradas e nâo se sobrepunha à pintura original
nem conscientemente a tentava modificar.
Esta era a concepção do restauro de pintura que na Europa prevaleceu durante o século
XIX e início do século XX, pelo menos entre os profissionais de maior renome e exigência.
No entanto, o próprio restauro de pintura, e nâo esta prática em particular, tinha os seus
opositores, como especialmente se observou, cerca de 1850, quando uma sistemática
campanha de limpeza de pinturas antigas teve início na National Gallery, em Londres,
e trabalhos semelhantes foram realizados no Museu do Louvre, em Paris. Por razões
estéticas a que nâo foram alheios os valores românticos de entâo, ainda que por vezes
certas questões de ordem técnica tenham sido levantadas, as intervenções de restauro
e, mais especificamente, as limpezas de vernizes escurecidos, foram por alguns rejeitadas
e combatidas com o argumento de que o tom envelhecido de um verniz aumentava a
beleza, a harmonia, a subtileza e o mistério de uma pintura. Afinal, tratava-se de uma
valorização da história e das marcas que a história deixa numa pintura, semelhante à
atitude, com mais impacto, que John Ruskin desenvolveu, mais ou menos na mesma
época, a respeito do restauro arquitectónico.
A situação portuguesa, tal como foi descrita num pequeno livro de divulgação
(Restauração de Quadros e Gravuras) publicado em 1885 por um pintor e conservador
do então recém-criado Museu Nacional de Belas-Artes, Manuel de Macedo, enquadrava-
-se bem no contexto europeu atrás esboçado. Segundo Macedo, a actividade do
restaurador de quadros tinha duas componentes bem distintas. A primeira, que designava
por restauração, é «apenas um ofício» e envolve trabalhos técnicos de remoção do verniz
e dos repintes de má qualidade, o conserto das «telas rotas, esburacadas e estaladas» ou,
em último caso, a transposição de suporte e, finalmente, a aplicação de massas («betume»)
nas «gretas 'estaladas' e espaços onde salta a tinta». A segunda componente, a que
Macedo dava o nome de retoque, «constitui a parte artística do mister do 'restaurador'»
e tem como objectivo completar as partes em falta de uma pintura. Para isso, «o bom
restaurador não pode deixar de ser um pintor consumado e possuidor de talento», ainda
que, se for um «artista consciencioso», deva «poupar com o máximo escrúpulo até aos
limites do possível os pormenores da pintura primitiva» e limitar o retoque aos «pontos em
que haja faltas de tinta - e nesses, ainda assim, com muita parcimónia». O retoque só
rumjgai i y i u - <íu i u 11 9
José d e Figueir edo e Lucla no Freire na ofic ina de restau ro do Cons elho d e Arte e A rque ologia
Lisboa, c. 1922
Museu N aciona l de Arte Antiga
deve ser Iniciado quando, por um lado, se tem «a certeza de se poder Imitar com rigorosa
exactidão o estilo, o colorido e o toque do pintor cuja obra se tem entre mâos» e, por outro
lado, se dispõe de «documento que elucide o restaurador a restabelecer na composição
do quadro os pormenores que desapareceram». Este documento, ou melhor, esta
Informação, consegula-se através de diligente procura em colecções de pintura públicas
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memória e Identidade
© particulares e ©m «qualquer estampa ou série de estampas e reproduções de quadros»,
como as que se encontravam nas «lojas de alfarrábios e gravuras velhas»1. Por isso, a
pintura saída das mâos do restaurador podia corresponder a uma obra que nunca existiu,
como Ruskln notava a propósito dos restauros de arquitectura efectuados por Eugène
Viollet-le-Duc.
Um pouco antes de Macedo, em 1875, Francisco de Assis Rodrigues, que tinha sido professor
e director-geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa, já havia esclarecido que esse
retoque, o supremo trabalho da dissimulação mas também da verosimilhança, devia ser
feito com «tal esmero e arte» que, no final, o quadro apresente «tal homogeneidade de
tons que apenas deixe, mesmo a homens inteligentes, a dúvida se foi ou nâo restaurado»2.
Porém, obviamente que os restauradores nâo tinham todos a mesma técnica nem a
mesma arte e Macedo lamentava que fosse «balda de certos restauradores, Já por falta
de consciência e de respeito pelo quadro (...), já por se quererem esquivar ao fastio
da tarefa, repintarem excessivamente»3. Mas nâo era o único a queixar-se. Em 1895, a
propósito da intervenção realizada em 1861 num quadro de Garcia Fernandes, o director
da Biblioteca Nacional, Gabriel Pereira, generalizava dizendo que «esta restauração foi
seguramente uma fatalidade, como tantas outras restaurações de pinturas que se têm
perpetrado neste país, arruinando para sempre Jóias de subido valor»4. Na década de
1910 e de 1920, era o restaurador Luciano Freire que, entre outros casos de maus restauros,
mencionava os efectuados por um espanhol a quem o conde de Almedina encarregara
de alguns trabalhos, que «limpava os quadros como quem limpa caçarolas de cobre»,
deixando nas obras «vestígios Indeléveis da sua Incompetência»5.
A situação do restauro de pintura em Portugal descrita por Manuel Macedo incluía também
aqueles que, como outros noutros países, consideravam que «a própria vetustez de uma
relíquia artística concorre para lhe realçar o carácter, embelezando-a» e que «todo e
qualquer conserto ou modificação roubar-lhe-á fatalmente alguma coisa do cunho
artístico e diminuirá sempre o seu valor arqueológico». O seu número seria significativo,
não só pelo facto de a eles se referir, como por expressamente Macedo dizer que «acham-
-se as opiniões (...) ainda hoje multo divididas» sobre a questão de saber se «devem ou
nâo devem restaurar-se as obras de arte»6. Ilustração dessa divisão foi o caso ocorrido
numa sessão da Academia Real de Belas-Artes, em 1859, onde se pretendia decidir se
devia ou não ser feito o restauro de uma pintura de Vieira Lusitano com problemas de
destacamento da matéria cromática. Mesmo após «uma larga discussão», tal como
ficou registado na acta, não houve unanimidade7 - isto numa instituição que, desde a
década de 1840, supostamente tinha responsabilidades a esse respeito. No entanto, não
obstante os princípios antl-restauro de alguns, os restauros lá se iam fazendo e, por isso,
dizia o historiador Joaquim de Vasconcelos em 1895 que uma pintura que ainda não foi
restaurada é, Infelizmente, «quase um milagre neste País»8.
: MACEDO, M anuel d e - Restauração de quadro s e gravuras p. 6, 28-30 e 38-39.
“ RODRIGUES, Francisco de Assis - Dicciona rio technic o e historico de pintura, esculptura , archite ctura e gravura, p. 326.
3 MACEDO, cit. 1, p. 6.
4 PEREIRA, Gabriel - Estudos diversos, p. 114.
5 FREIRE, Lucia no - Memórias, ca p. VI.
0 MACEDO, cit. I, p. 5.
r A pud NETO, Maria João Baptista - A propósito d a descob erta' dos Painéis de São Vicen te de Fora, p. 239.
0 VASCONCELLOS, Joaquim de - A pintura portug ueza nos sec. XV e XVI, p. 33.
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Restauros mal feitos, que desvirtuavam as obras originais nâo obstante os princípios parece
que eram os que predominavam no final do século XIX, pelo menos segundo uma certa
elite letrada capaz de olhar criticamente para uma pintura. Compreendem-se assim as
dúvidas e os receios do historiador José de Figueiredo quando foi decidido, em 1909,
que deveriam ser objecto de tratamento os painéis pouco antes encontrados em São
Vicente de Fora, ainda não atribuídos a Nuno Gonçalves, mas já considerados de suma
importância. O trabalho foi adjudicado ao pintor Luciano Freire somente por pertencer à
Academia Real das Belas-Artes e nesta instituição, a que competia preservar o património
artístico, ser considerado quem afinal estava melhor habilitado para a tarefa, ainda
que nesse assunto fosse um autodidacta, inicialmente «guiado por uns livrecos», como
escreveu depois, e que apenas tinha restaurado algumas pinturas de «bem insignificante
valor»9. O trabalho dos Painéis de São Vicente, graças ao bom acolhimento que de
uma forma geral recebeu, acabou por ser o primeiro de uma longa série de restauros
efectuados por Luciano Freire num contexto institucional, ao abrigo de um programa
nacional apresentado pela academia em 1909, que acabou por remeter os outros
restauradores para uma ignorada e secundária situação. Segundo este programa, sem
paralelo nacional pela sistematização e dimensão que veio a ganhar, o tratamento das
pinturas antigas «deveria consistir, primeiro, em fixar a tinta que ameaça desprender-se e
depois em impregnar a madeira de substâncias que a tornem menos sensível às variantes
de temperatura e, quanto possível, refractária à acção (...) dos insectos que a corroem;
em proceder a lavagens que façam desaparecer não só a tinta aplicada nos trechos
repintados, como as sucessivas camadas de óleo, vernizes e pó que cobrem os quadros
(...); e, finalmente, em cobrir de tons aproximados os pontos em que a tinta haja
saído, mas sem a pretensão (...) de ocultar a ruína sofrida»10. Desta forma dava a
academ ia concretização a uma das suas competências, posto que estabelecida
várias décadas antes.
Neste programa, por detrás do qual Freire certamente esteve, além das referências a
operações comuns, surgiu a novidade, ainda que não absoluta, da não dissimulação
dos repintes - um princípio que não era então adoptado e em que raros pensavam,
mas que depois veio a informar as melhores práticas. No entanto, Luciano Freire hesitou
na sua aplicação nos restauros que efectuou durante mais de duas décadas. Segundo
as suas notas, seguiu-o nalguns casos, nomeadamente nos Painéis de São Vicente: «o
preenchimento de faltas de tinta que eram numerosas (...) foi feito tendo apenas em
vista restituir aos painéis o aspecto harmónico inicial, sem procurar disfarces condenáveis
principalmente em documentos desta natureza. O facto de se distinguir os sítios onde
se operou, será por muitos atribuído a imperícia do restaurador, pois será julgado por
eles preferível o perfeito disfarce. E foi o querer satisfazer a este desejo o que perdeu
muitos restauradores»11. Porém, noutros casos não foi isso que sucedeu, como num dos
tratamentos que efectuou em 1922: «completei o quadro como me foi possível e com o
maior escrúpulo, e a não ser que com o tempo alterem os retoques que fui forçado a dar,
será muito perito quem os descobrir»12. Semelhante hesitação parece que teve também
a respeito da reconstituição das zonas em falta: de uma forma geral, afirmava não tentar
refazer o motivo pictórico original quando os vestígios não eram suficientes, mas nalguns
casos, especialmente em pormenores de menor importância, não seguiu esse princípio
Q FREIRE, cit. 5.
10 Apud NETO, cit. 7, p. 257.
!! FREIRE, cit. 5.
12 FREIRE Lucian o - Elementos para um relatorio ace rca do tratam ento da pintura antiga em Portugal, p. 45.
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memória e Identidade
e completou a pintura, mesmo que a área em falta correspondesse à superfície de
uma tábua de um suporte constituído por oito, como aconteceu num quadro que
tratou em 1919.
Embora nem sempre chegando a uma mesma solução, possivelmente por causa das
especiflcidades de cada um dos casos, nâo há dúvida de que Luciano Freire tinha
preocupações que traduziam uma atitude, que tentava conciliar o respeito pelas obras
originais com a sua história material, que nâo era comum na época, mesmo num contexto
internacional. Comum também não era a sua perspectiva integrada que nâo esquecia o
ambiente em que eram colocadas as obras depois do restauro, pois, como escreveu, «de
contrário será apenas temporário o efeito do tratamento»13. Igualmente não era frequente
o cuidado que tinha com a documentação das intervenções que se traduziu, por exemplo,
quer no uso da fotografia, ainda que não sistematicamente, para o registo do estado de
conservação das obras e seu tratamento (algo que, porém, já tinha sido feito por Manuel
António Moura em 1890), quer nos apontamentos escritos que tomou sobre cada um dos
restauros. Pelo contrário, na reclusão da sua oficina, ignorou completamente o auxílio
proporcionado pelos meios laboratoriais - nomeadamente a radiografia, que certamente
teria sido de grande utilidade nalgumas intervenções, usada já pelo restaurador Carlos
Bonvalot, em 1923, e, de uma forma mais sistemática, por Roberto de Carvalho e Pedro
Vitorino, a partir de 1928.
A prática do restauro de pintura de Luciano Freire, sem dúvida que actualizada para a sua
época, constituiu um paradigma em Portugal e, primeiro no Convento de São Francisco
e depois no Museu Nacional de Arte Antiga, durante décadas foi continuada sem
modificações significativas por alguns dos seus discípulos directos e de segunda geração,
não obstante as mudanças teóricas e práticas que, no entanto, iam acontecendo noutros
países num contexto cada vez mais especializado e de colaboração internacional.
' ■ FREIRE, idem. p. 48.