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CINTED-UFRGS Novas Tecnologias na Educação
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V. 17 Nº 1, julho, 2019_______________________________________________________RENOTE
INFLUÊNCIA DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO
(TICs) NO EMPREGO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE NA ESCRITA
DIGITAL: REVISITANDO UMA NOÇÃO
Renan Belmonte Mazzola1 - UninCor/MG - mazzola.renan@gmail.com
Resumo: Este trabalho objetiva analisar alguns aspectos do funcionamento do argumento
de autoridade na escrita digital hoje a partir dos estudos de argumentação e retórica e do
campo dos letramentos digitais, com vistas a explorar possibilidades de ensino em aulas
de produção textual no contexto da educação básica brasileira. Este trabalho justifica-se
por interrogar um gesto de escrita - as manifestações de credibilidade de um argumento
qualquer - muito frequente na Web 2.0. Para este fim, realizamos um levantamento dos
letramentos digitais e nos aprofundamos nos letramentos em hipertexto e em informação.
Em seguida, resgatamos as definições de argumento de autoridade no campo da retórica
e da argumentação. Por fim, analisamos um post de rede social em que o argumento de
autoridade ganha novos contornos e discutimos esses deslocamentos no campo do ensino.
Palavras-chave: retórica; letramento digital; argumento de autoridade; escrita digital;
produção textual.
THE INFLUENCE OF INFORMATION AND COMMUNICATION
TECHNOLOGIES (ICTs) ON AUTHORITY’S ARGUMENT USE IN THE
DIGITAL WRITING: REVIEWING A NOTION
Abstract: This paper aims to analyze some aspects of the authority's argument in digital
writing today, from argumentation and rhetoric studies and from the field of digital
literacies, aiming to explore the possibilities of teaching in textual production, in the
context of Brazilian basic education. This work is justified by questioning an important
gesture of writing - the manifestations of credibility of any argument - very frequent in
Web 2.0. To this end, we have performed a survey on digital literacies and we’ve explored
the literacy in hypertext and information. We have then retrieved the definitions of
authority’s argument in the field of rhetoric and argumentation. Finally, we have analyzed
a social network post in which the authority’s argument has shown new contours and we
have discussed these displacements in the field of teaching.
Keywords: rhetoric; digital literacy; argument of authority; digital writing; text
production.
1 Introdução
Diante de tantos debates acalorados nas redes sociais - popularizadas pelas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) - muitos usuários se digladiam
textualmente para tentar sobrepor seu ponto de vista e fazer calar o adversário. Os motivos
de debate e confronto verbal são variados e perpassam diferentes esferas do discurso
social: entre elas, a política, a religião, a economia, o ensino, a ciência, etc. Diante desse
panorama, observamos a necessidade de apoiar os argumentos em alguma fonte
confiável, de forma que eles possam ser “irrefutáveis”. Para isso, os usuários das redes
1 Professor do Programa de Mestrado em Gestão, Planejamento e Ensino e do Programa de Mestrado em
Letras da Universidade Vale do Rio Verde (UninCor). Coordenador do Argumentare - Grupo de Estudos
de Retórica, Discurso e Polêmicas Sociais.
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sociais utilizam-se dos “argumentos de autoridade” para sustentar seus raciocínios e
“envergonhar seus adversários”, conforme previa o domínio da erística.
A partir desse cenário, este trabalho intenciona analisar alguns aspectos do
funcionamento do argumento de autoridade na escrita digital hoje - em particular nas
redes sociais - a partir dos estudos de argumentação e retórica e do campo dos letramentos
digitais. Essa nova configuração argumentativa online pode ser explorada, acreditamos,
em aulas de produção textual que estejam atentas à algumas mutações das práticas de
escrita consagradas.
Nossa hipótese é a de que o argumento de autoridade vem ganhando novos
contornos, muito em função de algumas características inerentes ao ambiente virtual, que
devem ser observadas e analisadas para que se ampliem as possibilidades de ensino.
Assim, colocamos duas perguntas de pesquisa, das quais partiremos: a) as
definições do argumento de autoridade na teoria da argumentação correspondem ao
funcionamento desse argumento no meio digital? b) como, observando as redes sociais
hoje, podemos lançar um novo olhar sobre o funcionamento do argumento de autoridade?
Este trabalho justifica-se por interrogar um gesto de escrita - as formas de apoio
de um argumento qualquer - muito frequente na web. Para fins de contextualização, a
Web 2.0 é definida por Dudeney et al. (2016, p. 18) como uma “nova geração de
ferramentas baseadas na web como blogs, wikis e sites de redes sociais, focadas na
comunicação, no compartilhamento e na colaboração.” Essas novas configurações
elevam o estatuto do usuário, que passa a ocupar o papel não só de receptor de conteúdo
midiático, mas também de produtor e colaborador no interior de uma cultura
compartilhada.
Este artigo é composto de três partes, além da introdução e da conclusão. Em um
primeiro momento, discutiremos os letramentos digitais e suas potencialidades voltadas
à escrita de textos online. Em um segundo momento, refletiremos sobre as definições
clássicas de argumento de autoridade. Por fim, apontaremos algumas configurações desse
funcionamento argumentativo na escrita digital e apresentaremos os resultados obtidos.
2 Letramentos digitais
Letramentos digitais, para Dudeney et al. (2016, p. 17), são as “habilidades
individuais e sociais necessárias para interpretar, compartilhar e criar sentido eficazmente
no âmbito crescente dos canais de comunicação digitais”. Dessa forma, para pensarmos
em maneiras de introduzir práticas pedagógicas que envolvam a utilização da tecnologia
em sala de aula, precisamos entender quais dessas “habilidades individuais e sociais”
podemos potencializar com o auxílio das Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs). Em seu livro Letramentos digitais (2016), os autores Dudeney et al. listam 16
tipos de letramentos, divididos em quatro categorias, que podem ser trabalhados a partir
do contato dos alunos com as mídias digitais. Resumiremos a seguir cada uma dessas
quatro categorias.
A primeira categoria, com foco na “linguagem”, engloba sete tipos de
letramentos: letramento impresso, em SMS, em hipertexto, em multimídia, em jogos,
móvel e em codificação. A segunda categoria, com foco na “informação”, engloba quatro
tipos de letramentos: letramento classificatório, em pesquisa, em informação e em
filtragem. A terceira categoria, com foco em “conexões”, engloba também quatro tipos
de letramento: letramento pessoal, em rede, participativo e intercultural. A quarta e última
categoria, com foco em “redesenho”, engloba apenas um tipo de letramento: letramento
remix. Vejamos o quadro a seguir:
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Tabela 1 - Quadro dos letramentos digitais (Dudeney et al., 2016, p. 21)
Complexidade
Primeiro foco:
linguagem
Segundo foco:
informação
Terceiro foco:
conexões
Quarto foco:
redesenho
*
-Letramento
impresso
-Letramento em
SMS
**
-Letramento em
hipertexto
-Letramento
classificatório
***
-Letramento em
multimídia
-Letramento em
pesquisa
-Letramento pessoal
-Letramento em
informação
-Letramento em rede
-Letramento em
filtragem
-Letramento
participativo
****
-Letramento em
jogos
-Letramento móvel
Letramento
intercultural
*****
-Letramento em
codificação
Letramento
remix
Gostaríamos de explorar, neste artigo, dois tipos de letramentos: o letramento em
hipertexto e o letramento em informação para, posteriormente, demonstrar como eles
podem ser problematizados em sala de aula a partir da noção de argumento de autoridade.
O letramento em hipertexto define-se pela “habilidade de processar hiperlinks
apropriadamente e de usá-los para incrementar com eficiência um documento ou
artefato.” (Dudeney et al., 2016, p. 27). “Incrementar com eficiência um documento”
corresponde, retoricamente, ao funcionamento do argumento de autoridade. Podemos ler
esse trecho a partir da estratégia argumentativa de produção de discursos pautada em sua
incrementação, em sua maior credibilidade a partir da utilização do recurso de hiperlink.
Os textos digitais que circulam em diferentes contextos, especialmente no contexto
jornalístico (e, com mais discrição, no contexto científico), apresentam esse tipo de
recurso, já cotidiano, aos olhos de um leitor comum. Para os autores,
Se o internetês é um novo registro linguístico, os hiperlinks são uma
nova forma de pontuação (Weinberger, 2009a), que requer o
desenvolvimento de um letramento em hipertexto. Retoricamente, os
links exercem uma persuasão sutil, destacando os pontos mais
importantes de um documento, reforçando seus argumentos principais
e oferecendo um instantâneo de sua abertura e credibilidade.
Navegacionalmente, os links exigem que os leitores decidam se aceitam
convites para ir além do texto atual e se assumem a responsabilidade
pela escolha de seus próprios percursos narrativos na rede mais ampla.
Pelo fato de, às vezes, os hiperlinks criarem uma impressão enganosa –
com uma profusão de links para fontes similares, por exemplo, fazendo
inicialmente um documento parecer mais factualmente embasado do
que ele realmente é – eles carecem de um olho crítico. (Dudeney et al.,
2016, p. 26-27, grifos do autor).
No contexto da produção de texto em ambientes digitais, desenvolver esse tipo de
letramento em especial potencializaria as habilidades dos alunos em embasarem seus
textos com fontes de credibilidade e a favor da tese defendida.
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No entanto, como foi dito, não basta que o aluno traga várias referências para o
texto sem operar uma filtragem nas fontes mobilizadas. Na citação acima, lemos que há
o risco em torná-lo mais passível de crítica a depender das fontes citadas.
Para que o professor possa desenvolver a crítica do aluno em relação às referências
e às fontes a serem trazidas para o texto, deve-se trabalhar com um outro tipo de
letramento digital que tem como objetivo atacar justamente essa questão. É o letramento
em informação, definido como “habilidade de avaliar documentos e artefatos fazendo
perguntas críticas, avaliando a credibilidade, comparando fontes e rastreando as origens
da informação.” (Dudeney et al., 2016, p. 40).
Ele é empregado para enfatizar a avaliação crítica necessária no contato entre os
alunos e a quantidade de informação com que eles se deparam hoje em dia. Toda essa
informação, disponível hoje na internet, não passa por determinados filtros (e censores)
como é o caso os gatekeepers da mídia tradicional.
Apesar da crescente disponibilidade de publicações editadas online,
existem poucos gatekeepers – editores, redatores, bibliotecários ou
professores, controlando a web toda. Clay Shirky, referindo-se ao
jornalismo online, afirma o seguinte: ‘Checar fatos está em baixa, mas
checar depois de o fato ter ocorrido está muito, muito na moda’ (apud
Gillmor, 2010). A responsabilidade de checar, depois de ocorrido o
fato, todos os documentos e artefatos – e não apenas as notícias – cabe
atualmente aos usuários. Nossos estudantes precisam aprender a fazer
perguntas críticas a respeito da informação encontrada online; compará-
la com o patamar de conhecimento existente (portanto, eles precisam
ter de memória os fatos amplamente aceitos) e, nos pontos em que seu
patamar de conhecimento for inadequado, precisam comparar e
contrastar, ou ‘triangular’, múltiplas fontes de informação. Uma
maneira de demonstrar a importância do letramento em informação é
começar com análises críticas de sites paródicos ou falsos, que
frequentemente enganam os estudantes. É importante, como Howard
Rheingold (2012) sugere, ‘promover a noção de que mais
infoletramento é a resposta prática à infopoluição crescente’ (2017).
(Dudeney et al., 2016, p. 40, grifo do autor)
Triangular as informações, checá-las, compará-las, como lemos no excerto acima,
permite a seleção de fontes mais confiáveis de referência informacional. Assim,
acreditamos, essas duas espécies de letramento trabalham em conjunto no momento em
que o aluno elege as suas autoridades para construção dos argumentos em seus textos
online. A seguir, realizaremos um breve percurso sobre as principais definições e
funcionamentos do argumento de autoridade para, mais adiante, demonstrarmos como a
relação entre esses letramentos e os argumentos de autoridade podem resultar em um
ensino mais contextualizado e atual sobre as formas de escrita e citação digitais.
3 Argumento de autoridade
Para Perelman e Tyteca (2014, p. 48), “o argumento de prestígio mais nitidamente
caracterizado é o argumento de autoridade, o qual utiliza atos ou juízos de uma pessoa ou
de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese.” Conhecemos três
tipos mais importantes de argumento de autoridade:
i) Aquele que remete a um especialista em uma área qualquer do saber, como em
“Segundo Aristóteles, os meios de persuasão através da palavra falada são três: o
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primeiro, que depende do caráter pessoal do orador (ethos); o segundo, que leva o
auditório a uma certa disposição de espírito (pathos); e o terceiro, que depende do próprio
discurso (logos) no que diz respeito ao que demonstra ou visa demonstrar.” Relata Fiorin
(2015, p. 176) que “foi o filósofo John Locke quem deu esse nome à estratégia de valer-
se da chancela de uma autoridade respeitada ou de especialista num dado assunto para
sustentar um ponto de vista.” (cf. Locke, 1988). No exemplo acima, para Locke, a menção
a Aristóteles configura “um respeito, uma reverência em relação à autoridade invocada
(...). Por outro lado, seria falta de modéstia, seria mesmo uma insolência, questioná-la.”
(Fiorin, 2015, p. 176). Esse funcionamento caracteriza o argumento de especialista.
ii) Aquele que remete à experiência vivida, sendo esta a responsável por legitimar
o ponto de vista perante uma plateia. Como exemplo, destacamos o argumento “Eu estive
na Segunda Guerra, eu posso afirmar o que aconteceu de fato naquela batalha” como
representativo da estratégia pela experiência. Para Fiorin (2015, p. 176), “nesse caso,
quem argumenta introduz a si mesmo como prova no exame da questão, mencionando
seus conhecimentos ou quaisquer outras qualidades.” Sua experiência seria suficiente
para terminar um debate, para por um fim à discussão, pois ele remete necessariamente a
um poder pretendido: “Trabalho há dez anos nessa universidade, eu sei como fazer as
coisas.” Ainda segundo Fiorin (2015, p. 176), “o objetivo é levar a plateia a aceitar um
ponto de vista, baseando-se na autoridade de quem enuncia, no seu conhecimento
especializado, na sua credibilidade ou na sua integridade pessoal.”
iii) Aquele que remete ao testemunho, o que também valida as proposições a
serem defendidas. Por exemplo, “Eu vi o acidente da sacada do meu apartamento, eu vi
o que aconteceu.” Ou então a publicidade testemunhal que ocorre, para Fiorin (2015, p.
177), quando “alguém que goza de credibilidade assegura que usa determinado produto.”
O exemplo dado pelo linguista é a famosa (e polêmica) publicidade da Friboi, em que
Roberto Carlos aparece comendo um pedaço de carne.
Dessa forma, podemos sintetizar o funcionamento do argumento de autoridade na
seguinte fórmula:
1. O autor A afirma a proposição B.
2. Há algo de positivo em relação ao autor A.
3. Portanto, a proposição B é verdadeira.
O argumentum ad verecundiam, conhecido popularmente como “argumento de
autoridade”, serve a certas intencionalidades e finalidades comunicativas, como todo tipo
de argumento. Por isso, seu emprego não escapou à polêmica e à controvérsia no campo
da retórica e da argumentação:
Certos pensadores positivistas atacaram esse argumento - cuja enorme
importância reconhecem na prática - tratando-o de fraudulento. É o caso
de Pareto, para quem esse argumento deveria ser considerado “um meio
de dar um verniz lógico às ações não-lógicas e aos sentimentos dos
quais elas se originam.” Seria, portanto, um pseudo-argumento
destinado a camuflar a irracionalidade de nossas crenças, fazendo com
que sejam sustentadas pela autoridade de pessoas eminentes, pelo
consentimento de todos ou do maior número. (Perelman; Tyteca, 2014,
p. 348).
Não sem razão, esse tipo de argumento é categorizado no conjunto dos
“argumentos baseados na estrutura do real”, conforme defendem os autores do Tratado
da argumentação (2014, p. 297):
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Enquanto os argumentos quase-lógicos têm pretensão a certa validade
em virtude de seu aspecto racional, derivado da relação mais ou menos
estreita existente entre eles e certas fórmulas lógicas ou matemáticas,
os argumentos fundamentados na estrutura do real valem-se dela para
estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se
procura promover.
Por ser muito importante e produtivo, esse tipo de argumento frequenta diversos
tipos de discurso em vários contextos. Para o que nos interessa aqui, cabe destacar que
ele é ensinado insistentemente em aulas de redação escolar, quase como um
“procedimento fixo” das etapas de escrita de todo texto dissertativo-argumentativo. Para
os professores e professoras brasileiros - principalmente durante os anos de Ensino
Médio, em que há uma maior preocupação com os exames vestibulares, para os quais a
redação tem grande peso e importância - não se pode finalizar um texto dessa natureza
sem a presença do ilustre argumentum ad verecundiam.
Em primeiro lugar, resgatando a origem latina do termo, trata-se de um
“argumento de modéstia”, que coloca o aluno na posição de quem reconhece que outros
autores escreveram sobre esse tema antes dele e que, por isso, merecem respeito e
reverência.
Em segundo lugar, o emprego desse tipo de argumento remete às condições do
repertório do estudante, uma vez que os especialistas “citados” podem ser avaliados por
hierarquias. Por exemplo, o aluno que cita a “Novela das 8” como argumento de
autoridade pode ser avaliado de forma distinta daquele que cita “Michel Foucault” na
defesa de determinada tese. Da mesma forma, o estudante que cita a Wikipédia como
fonte de dados pode ser avaliado de forma distinta daquele que cita um periódico
científico conceituado. Esse tipo de argumento atravessa, por isso, os saberes
considerados de maior ou menor prestígio social. Para Perelman e Tyteca (2014, p. 350)
“de todo modo, quem invoca uma autoridade se compromete: não há argumento de
autoridade que não repercuta em quem o emprega.”
Em terceiro lugar, por fim, o argumento de autoridade contribui para a
objetividade em um texto, uma vez que o aluno é responsável por trazer diferentes vozes
acerca de um tema com a finalidade de expor diversos pontos de vista sobre uma questão
controversa. Para isso, as autoridades invocadas são de diferentes naturezas, conforme
relatam Perelman e Tyteca (2014, p. 350): “ora será o ‘parecer unânime’ ou a ‘opinião
comum’, ora certas categorias de homens, ‘os cientistas’, ‘os filósofos’, os ‘Padres da
Igreja’, ‘os profetas’; por vezes a autoridade será impessoal: ‘a física’, ‘a doutrina’, ‘a
religião’, ‘a Bíblia; por vezes se tratará de autoridades designadas pelo nome.”
A seguir, estudaremos uma forma de emprego de argumentos de autoridade na
escrita digital para - a partir dessas configurações e do que discutimos sobre letramentos
digitais - demonstrarmos algumas reconfigurações que esse argumento sofre em sua
materialidade digital.
4 Novas configurações de argumentação pela autoridade no meio digital
No dia 8 de abril de 2019, em seu perfil no Twitter, Jair Bolsonaro publica uma
mensagem anunciando a indicação de Abraham Weintraub para o ministério da
Educação. Essa mensagem subentende a demissão do então ministro Ricardo Vélez
Rodríguez:
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Figura 1 - Print do tuite do presidente Jair Bolsonaro2
A declaração de exoneração de um cargo do ministério gera, obviamente, muita
polêmica e dá origem a opiniões de diversas naturezas nas redes sociais. Para nossas
análises, elegemos o primeiro parágrafo de um post publicado por um usuário da rede
social Facebook, também de 8 de abril de 2019, que comenta a exoneração.
Preservaremos a identidade do autor do post, chamando-o de “Usuário”3.
Usuário
8 de abril às 14:23
Considerem este texto um desabafo. Vélez Rodrigues vinha sendo um
ministro da Educação nem ruim, nem péssimo: desastroso. Nunca vi
pior. Não foi por outro motivo que, em três meses, ele teve que recuar
em tanta besteira, de ordenar a filmagem de crianças cantando o hino e
ouvindo o slogan de campanha do presidente (https://bit.ly/2BUswgj),
a indicar para uma posição estratégica no MEC uma carola, defensora
de educação baseada na Bíblia (https://glo.bo/2HmqE4f). Isso, para não
mencionar a humilhação a que foi submetido pela deputada Tabata
Amaral (https://bit.ly/2FzM5eW); a nota oficial que soltou intimidando
Ancelmo Góis, a quem acusou de ter sido "treinado em marxismo", logo
após o jornalista ter denunciado uma censura realizada pelo MEC
(https://bit.ly/2G4XoMy); seu desejo de que os livros didáticos neguem
o golpe de 1964 e a ditadura no Brasil (https://bit.ly/2UdspaO); sua
nobre declaração de que as universidades não devem ser para todos,
mas para a "elite intelectual" (https://bit.ly/2HzGpG3).
O texto acima revela a opinião desse usuário sobre a demissão de Vélez. A tese
apresentada é a de que Vélez Rodrigues vinha sendo um ministro da Educação péssimo,
em função de várias decisões questionáveis que tomou durante os três meses em que
esteve no cargo. Para sustentar essa tese e sua opinião, o autor lançou mão de sete
argumentos:
2 Disponível em:
https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1115261421321883648
Acesso em: 16.04.19.
3 Esta pesquisa exigiu uma etapa de coleta de alguns posts - da rede social Facebook - que fossem
representativos do uso de hipertexto em suas argumentações. Após nos depararmos com o post desse
usuário, que faz parte da rede social do pesquisador, checou-se se o texto foi publicado sob a chancela da
opção “Público”, o que foi confirmado. Quando alguém posta algo nessa rede social, é possível escolher
entre cinco opções de compartilhamento: a) “Público”, qualquer pessoa dentro ou fora do Facebook pode
ter acesso a essa informação; b) “Amigos”, seus amigos, todas as pessoas marcadas e os amigos delas
podem ter acesso à informação; c) “Amigos, exceto X”, não mostra a alguns amigos; d) “Amigos
específicos”, mostra somente para alguns amigos; e e) “Somente eu”, visível somente para o autor do post
e para os amigos marcados. Além disso, o pesquisador informou o usuário sobre a pesquisa, de que este
artigo é parte.
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Tese: Vélez Rodrigues vinha sendo um ministro da Educação desastroso;
Argumento 1: Vélez ordenou a filmagem de crianças cantando o hino e ouvindo
o slogan de campanha do presidente (https://bit.ly/2BUswgj);
Argumento 2: Vélez indicou para uma posição estratégica no MEC uma carola,
defensora de educação baseada na Bíblia (https://glo.bo/2HmqE4f);
Argumento 3: Vélez sofreu humilhação da deputada Tabata Amaral
(https://bit.ly/2FzM5eW);
Argumento 4: Vélez soltou uma nota oficial intimidando Ancelmo Góis, a quem
acusou de ter sido "treinado em marxismo" (https://bit.ly/2G4XoMy);
Argumento 5: Ancelmo Góis, pouco antes disso, tinha denunciado uma censura
realizada pelo MEC (https://bit.ly/2G4XoMy);
Argumento 6: Vélez expressou o desejo de que os livros didáticos negassem o
golpe de 1964 e a Ditadura no Brasil (https://bit.ly/2UdspaO);
Argumento 7: Vélez declarou que as universidades não devem ser para todos, mas
para a "elite intelectual” (https://bit.ly/2HzGpG3).
Do ponto de vista retórico e argumentativo, o interessante a se notar aqui é que
esses argumentos são respaldados em links de fontes de notícia “confiáveis”, o que
caracterizaria o funcionamento de um argumento de autoridade - isto é, tem-se a ideia de
que “os fatos aconteceram e foram noticiados pelas fontes mencionadas”. Vejamos a
seguir a lista das fontes mencionadas pelo autor do post, respeitando a ordem da listagem
acima:
1. Fonte: Estadão (Blog de Renata Cafardo)
Manchete: “MEC manda email para escolas pedindo que cantem o hino e leiam
slogan da campanha”. Data: 25/02/2019.
2. Fonte: Época
Manchete: “Quem é Iolene Lima, uma evangélica entre olavetes e militares no
Mec”. Data: 15/03/19.
3. Fonte: El País
Manchete: “A jovem deputada que jogou contra as cordas o ministro da Educação
e sua ‘lista de desejos’ ”. Data: 29/03/19.
4. Fonte: Folha de S. Paulo
Manchete: “Ministério cita KGB e diz que jornalista foi treinado pelo Partido
Comunista Soviético”. Data: 31/01/19.
5. Fonte: Folha de S. Paulo (idem)
Manchete: “Ministério cita KGB e diz que jornalista foi treinado pelo Partido
Comunista Soviético”. Data: 31/01/19.
6. Fonte: Folha de S. Paulo
Manchete: “Ministro diz que não houve golpe em 1964 e que livros didáticos vão
mudar”. Data: 03/04/19.
7. Fonte: Valor Econômico
Manchete: “ ‘Ideia de universidade para todos não existe’, diz ministro da
Educação.” Data: 28/01/19.
O autor do post se utiliza de diversos veículos de mídia conhecidos no Brasil para
remeter o leitor às notícias originais através dos links. Ele cita Estadão, Época, El País,
Folha de S. Paulo e Valor Econômico. Como consequência, seu texto torna-se digno de
credibilidade, uma vez que o leitor é redirecionado às informações mais detalhadas, caso
queira buscá-las. A seleção dessas fontes (e não outras) contribuem para a sustentação de
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sua tese inicial, respaldada por sua opinião com relação a Vélez: “desastroso”, e “nunca
ter visto pior”.
Do ponto de vista formal, esses argumentos de autoridade não são apresentados
em sua expressão canônica, como em “Segundo o Estadão, Mec manda email para escolas
pedindo que cantem e leiam slogan da campanha, e Vélez teve de recuar nessa besteira”
(Argumento 1). Os links encontram-se em sua expressão reduzida após os argumentos
principais, entre parênteses, em formatos sintéticos como glo.bo e bit.ly, que não
comprometem o estilo do texto e a fluência de leitura. Caso contrário, as várias linhas de
links extensos poderiam deixar pesada a leitura e mesmo torná-la desinteressante. A
expressão formal assumida aqui é a seguinte:
Tese
Argumento 1 [link de credibilidade]
Argumento 2 [link de credibilidade]
Argumento 3 [link de credibilidade]
Argumento 4 [link de credibilidade]
Argumento 5 [link de credibilidade]
Argumento 6 [link de credibilidade]
Argumento 7 [link de credibilidade]
-------------------------------------------
Argumentos de autoridade
O mecanismo hipertextual, nesse caso, atua na configuração de um argumento de
autoridade, pelo fato de os links não atuarem somente na dimensão da “informatividade”,
mas também na dimensão da “argumentatividade” do texto analisado.
As fontes selecionadas revelam a imagem do auditório construída pelo autor do
post, uma vez que foram escolhidas fontes que, acreditamos, a maioria dos leitores das
redes sociais consideram como “dignas de credibilidade”. Foram evitadas fontes
desconhecidas de notícia e que não possuíam um ethos de confiabilidade previamente
construído e instaurado na doxa social no que se refere a veículos de comunicação mais
prestigiados. Dessa forma, ao escolher esses veículos e não outros, o autor foi mais efetivo
na persuasão de um auditório de redes sociais, de leitores que checam as fontes de
informação em função das facilidades proporcionadas pelas TICs.
5 Conclusões
Neste trabalho, mobilizamos as discussões sobre os letramentos digitais para
remapearmos nossa relação com a escrita digital por meio das Tecnologias de Informação
e Comunicação - TICs - nas condições de conectividade atuais e observarmos as
estratégias mobilizadas em um texto das redes sociais.
Ao realizarmos um percurso pelas definições e funcionamentos do argumento de
autoridade na teoria retórica e argumentativa, demonstramos as potencialidades de seu
emprego na efetivação da persuasão.
Partindo das definições de letramento digital em hipertexto, demonstramos porque
“Retoricamente, os links exercem uma persuasão sutil, destacando os pontos mais
importantes de um documento, reforçando seus argumentos principais e oferecendo um
instantâneo de sua abertura e credibilidade”, conforme ressaltaram os pesquisadores
Dudeney et al. (2016, p. 26-27).
Com relação ao letramento digital em informação, entendemos as configurações
atuais de escrita e leitura na rede, uma vez que, ainda segundo os pesquisadores (2016, p.
40) “a responsabilidade de checar, depois de ocorrido o fato, todos os documentos e
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CINTED-UFRGS Novas Tecnologias na Educação
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artefatos – e não apenas as notícias – cabe atualmente aos usuários.” Esse processo, como
vimos, é explorado na escrita digital em posts do Facebook para que as teses sejam melhor
sustentadas e a persuasão seja mais efetiva.
Por um lado, a escrita mediada pelas novas tecnologias permite com facilidade a
inserção de links e hipertextos para fundamentar uma tese. Por outro lado, ao analisar o
emprego desse recurso em um post publicado em rede social, notamos que seu
funcionamento é, em alguma medida, distinto da forma canônica de manifestação da
estratégia argumentativa de autoridade. Todos esses fatores contribuem para a
reconfiguração de um novo fazer ad verecundiam em textos digitais, e essas novas
reconfigurações podem ser exploradas em contextos de ensino que se relacionem com as
disciplinas de produção textual hoje.
Na sala de aula, durante uma atividade de escrita online, é possível trabalhar com
os alunos tanto as funcionalidades do argumento de autoridade quanto a qualidade das
informações e das fontes mobilizadas, fornecendo ao aluno as bases para a crítica. O
desenvolvimento do pensamento crítico é um dos objetivos a serem alcançados ao
término da educação básica, segundo a lei 9.394/96 (Brasil, 1996, grifo nosso): “O ensino
médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como
finalidades (...) o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”.
No contexto de ensino atual, o pensamento crítico é desenvolvido, em grande
parte, nas aulas de produção textual (ou de redação). Nessas disciplinas, tem-se a
materialização das ideias dos educandos sob a forma de textos, que podem ser avaliados
pelos professores com relação à criticidade ali presente.
Com o recurso à autoridade a partir de fontes midiáticas legitimadas, que têm o
costume de checar as fontes de que se utilizam para produzir a notícia jornalística, abre-
se uma possibilidade de barrar a proliferação das Fake News - notícias falsas reproduzidas
indefinidamente sem a checagem dos dados e fatos ali presentes. Dessa forma, o trabalho
com o letramento em hipertexto e o letramento em informação no contexto da Educação
básica brasileira seria um caminho para a construção de uma consciência mais que crítica:
cidadã.
6 Referências bibliográficas
BRASIL, L. D. B. Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 22
abr. 2019.
DUDENEY, G.; HOCKLY, N.; PEGRUM, M. Letramentos digitais. Trad. Marcos
Marcionilo. 1a ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2016.
FIORIN, J. L. Argumentação. 1a ed. São Paulo: Contexto, 2015.
LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 3a ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
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