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Métodos Mistos: Combinando Etnografia e Análise de Redes Sociais
em Estudos de Mídia Social
Raquel Recuero
1
1. Introdução
A Análise de Redes Sociais (ARS) tem despontado em alguns grupos no campo dos
estudos de Cibercultura no Brasil como uma das abordagens úteis para compreender
insights gerados por dados empíricos, relacionais, de grupos e fenômenos sociais online.
Dentre esses trabalhos, sua popularidade tem aumentado principalmente dentro dos estudos
de mídia social (vide Recuero, Bastos & Zago, 2015; Coelho, Ramos & Malini; 2015;
Regattieri et al., 2015). Apesar disso, a ARS ainda é pouco discutida em suas aplicações
gerais, bem como, em seu uso combinado com perspectivas metodológicas variadas e de
modo particular, com perspectivas mais qualitativas (dado o caráter primário mais
quantitativo da ARS). Deste modo, neste artigo, discutimos a combinação da análise de
redes com a etnografia virtual para o estudo de objetos decorrentes da mídia social. Nossa
proposta parte de elementos da abordagem dos métodos mistos e discutirá vantagens,
desvantagens e objetos, bem como as aproximações dos dois focos.
A mídia social, compreendida como aquela que é construída a partir da apropriação
das ferramentas de comunicação mediada por computador e de modo especial, dos
chamados sites de rede social (boyd & Ellison, 2006), é prolífica na geração de dados de
relacionamento, conversação e conexão entre os atores. Ferramentas deste tipo permitiram
a publicização das redes dos atores e suas transformações (como por exemplo, com a
inclusão de diferentes tipos de atores, como empresas e personagens) e também
impactaram com força o tecido social, tornando os modos de comunicação mais complexos.
Estudos novos, focando esses processos começaram a surgir, vários deles abordando
análise de dados e análise de redes sociais. Um dos objetos que surgiu com maior
proeminência neste contexto é o da intersecção entre o papel da mídia social e o ativismo
político (Bastos, Mercea & Charpentier, 2015; Coelho, Ramos & Malini; 2015; Regattieri
et al., 2015; Recuero et. al, 2015; Bastos, Recuero & Zago, 2014 dentre outros),
!
1
Doutora em Comunicação. Professora e pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Letras
da Universidade Católica de Pelotas e do Programa de Pós Graduação em Comunicação e
Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: raquel@raquelrecuero.com
notadamente nos eventos de protestos ao redor do mundo e, principalmente, entre os
pesquisadores do Brasil. Mas estudos em outras áreas também podem ser encontrados, tais
como na visualização de dados (Malini et. al, 2014), nos estudos de jornalismo (Recuero,
Bastos & Zago, 2015) e mesmo no debate metodológico de sua combinação de métodos
diferentes para atingir os objetivos da pesquisa (Lycarlão & Santos, 2016).
O crescimento dos trabalhos que focam a análise de redes para mídia social dá-se,
primeiro, pela proeminência do objeto, cuja adoção e impacto têm crescido nos últimos
anos mas, também, pela facilidade de acesso aos dados. O uso de crawlers (ferramentas de
coletas automatizadas) para as diferentes APIs
2
, também criou um contexto altamente
favorável para este tipo de estudo. Ferramentas como o Facebook e o Twitter, por exemplo,
geraram milhões de trabalhos focados em seus dados a partir de diferentes (vide Adamic
& Adar, 2005; Java et. al, 2007 etc.), justamente por isso. Estes mesmos motivos também
apoiaram o foco qualitativo dos estudos sobre a mídia social, em muito maior número e
seu forte foco empírico nas Ciências Sociais e Humanas.
Ao mesmo tempo, a abordagem da etnografia virtual (Hine, 2000, 2008) já é
tradicional no Brasil entre os estudos de Cibercultura, principalmente por conta da
flexibilidade do método e do seu foco subjetivo, que permitem uma pluralidade de
perspectivas e objetos. No Brasil, a abordagem floresceu justamente nos estudos de grupos
e comunidades nativos do meio digital. Neste sentido, trabalhos
3
de Amaral, Natal &Viana
(2008), Rocha & Montardo (2005), Amaral (2007 e 2010), Sá (2002) entre outros, traçam
algumas premissas sobre esses usos. Assim, etnografia virtual sempre foi caracterizada
pelo seu foco qualitativo e sua abordagem elástica, motivos que a popularizaram entre
áreas diversas.
Mas como essas abordagens poderiam ser combinadas? Como pensar em objetos e
perspectivas que fossem propícios para a análise conjunta dessas abordagens? Para discutir
essa combinação, iniciaremos apresentando brevemente as duas abordagens e suas raízes e
premissas básicas, para depois elaborar desenhos metodológicos a partir da perspectiva dos
Métodos Mistos (Mixed Methods).
!
2
Application programming interface - As interfaces destinadas à programação de aplicativos que
funcionem com essas interfaces.
3
Embora parte da literatura faça referência à perspectiva como "etnografia virtual" e parte, como
"netnografia", utilizaremos os dois termos como sinônimos neste artigo, conforme será explanado
na sessão 3.!
2. Análise de Redes Sociais
A Análise de Redes Sociais é uma perspectiva cujo foco pode ser compreendido
como teórico e metodológico (Wasserman & Faust, 1994). Enquanto a ARS busca estudar
os padrões das interações e laços sociais (Wellman, 2001), ela também busca modos de
medir esses padrões (Degenne & Forsé, 1999) e visualizá-los (Freeman, 2001). Suas raízes,
portanto, estão em disciplinas como a Sociometria, a Análise Estrutural e a Teoria dos
Grafos (Wasseman & Faust, 1994; Degenne & Forsé, 1999). Deste modo, a Análise de
Redes Sociais constitui-se em uma abordagem relacional, cujo foco é construído nas
relações entre os atores, na sua medida e exploração estrutural, a partir de perspectivas
interdisciplinares. A metáfora da rede, assim, funciona para os fenômenos que se deseja
observar de modo relacional, ou cujas relações são o centro da análise. Da teoria dos grafos
vêm os modos de representação das relações entre os diferentes elementos de um
fenômeno e os modos de calculá-los. Deste modo, as redes são representadas por grafos,
originados em matrizes de relações entre os atores.
Ora, dentre as diversas características da mediação do computador sobre as
interações sociais, uma das principais é o registro dessas interações e sua permanência no
tempo (Recuero, 2012; boyd, 2010). Com isso, as redes sociais ficam mais facilmente
mapeáveis e perceptíveis e seu estudo em larga escala foi bastante facilitado. Justamente
por isso, a ARS despontou como uma das abordagens mais usadas para compreender essas
redes, uma vez que seu registro poderia ser, também, coletado e medido em maior escala.
Assim, redes sociais online passaram a ser percebidas também através de grafos e
estruturas que permitiam a visualização das relações entre atores e fenômenos sociais.
O grafo é uma representação das relações e da estrutura da rede, que é construído
através de algoritmos específicos e em cima de dados obtidos em campo. Há, portanto, um
foco matemático de cálculo dessas relações, bem como dos modos de visualização desses
grupos. São usadas, assim, métricas de nó (que servem para "medir" a centralidade de cada
ator na rede), como grau, grau de entrada, grau de saída, centralidade de intermediação, etc.
e métricas de rede (que servem para "medir" a estrutura da rede em geral), como
centralização, densidade e etc. (vide, por exemplo, Wasserman & Faust, 1994; Degenne &
Forsé, 1999; Recuero, Bastos e Zago, 2015). A ilustração dessas estruturas, assim, auxilia a
percepção visual das relações.
Além disso, também se usam métricas de grupabilidade (Wasserman & Faust,
1994; Degenne & Forsé, 1999) para explorar os grupos que aparecem na estrutura. Em
termos de mídia social, essas medidas são baseadas em elementos que o pesquisador
escolhe observar, como por exemplo, uma rede de conversação no Twitter, um
determinado grupo no Facebook e etc. As relações e os nós, como representações, são
também determinados pelo pesquisador (por exemplo, as relações podem ser relações de
"amizade" no Facebook ou mesmo turnos de conversação em uma determinada postagem),
que vai assim, delimitar o seu objeto de análise e o modo de utilizar a análise de redes. Os
modos de representação das redes através dos grafos também são construídos através de
representações computacionais.
Essas características, assim, trazem os quatro elementos que deveriam aparecer
conjuntamente na organização deste paradigma, de acordo com Freeman (2004): (1) traz
intuição estrutural, ou seja, focada nos laços que conectam os atores; (2) constrói-se sobre
dados empíricos coletados de modo sistemático; (3) baseia-se em gráficos e imagens que
representam os dados da pesquisa; (4) utiliza-se de modelos computacionais ou
matemáticos. Vemos, assim, que a ARS tem um foco predominantemente quantitativo,
uma vez que esta abordagem é definida justamente pelo uso de medidas e métricas e
predominantemente empírico.
Apesar disso, a análise de redes sociais também tem sido usada de modo mais
qualitativo. Diversos autores têm trabalhado com essa perspectiva. Edwards (2010)
discutiu a perspectiva de abordar estudos de redes a partir de métodos mistos, explicitando
que a ARS presta-se também para abordagens qualitativas. De acordo com a autora,
abordagens quantitativas mapeiam e medem as redes através da
simplificação das relações sociais em dados numéricos, onde os laços são
ausentes ou presentes. (...) As abordagens qualitativas, por outro lado,
permitem aos analistas considerar elementos relativos à construção,
reprodução, variabilidade e dinâmicas dos laços sociais complexos
4
. (p.
2)
O argumento aqui reside no fato de que boa parte das interações humanas precisa
ser compreendida de um ponto de vista interpretativo, e que a construção dessas conexões
!
4
Tradução da autora para: "Quantitative approaches map and measure networks by simplifying
social relations into numerical data, where ties are either absent or present. (...) Qualitative
approaches, on the other hand, enable analysts to consider issues relating to the construction,
reproduction, variability and dynamics of complex social ties."
!
é bastante qualitativa, no sentido de que é preciso extrair algum sentido desses dados
relacionais. Assim, muitos desses estudos "qualitativos" sejam, na verdade, mistos, ou seja,
misturam as métricas quantitativas, modelos propostos por algoritmos de grafos e métricas
de centralidade, eles também focam na interpretação qualitativa e contextual das mesmas.
As redes sociais (e de modo especial, aquelas online) são objetos dinâmicos, cuja constante
apropriação e reapropriação transformam seu sentido. Por conta disso, uma abordagem
qualitativa pode oferecer insights importantes sobre o quadro que é observado a partir das
métricas originadas pela abordagem quantitativa.
3. Etnografia Virtual
A etnografia virtual
5
(Hine, 2000; 2008), por outro lado, é um método por
excelência qualitativo. Baseia-se na observação e na percepção do pesquisador,
principalmente através da coleta de dados seja por entrevistas com informantes ou pela
observação das práticas de um determinado grupo em campo. A adaptação para o
ciberespaço como locus específico vem especificamente da discussão estabelecida por
Hine (2000; 2008) em diversas obras. A premissa de Hine é a de que a internet é, ao
mesmo tempo, um "artefato cultural" e um espaço onde a cultura é "formada e reformada"
(2008, p.9).
A etnografia tem suas raízes na antropologia e nos métodos de estudo de grupos
sociais utilizados pelos seus pesquisadores (Geertz, 1973). Hine (2000) explica que o
ponto comum da etnografia virtual e da etnografia consistem, justamente, na imersão do
pesquisador em seu campo, ou "setting". Essa imersão é especialmente importante porque
vai dar ao etnógrafo a percepção de um insider, ou seja, de um sujeito que convive com um
determinado grupo, focando as práticas sociais características deste. A etnografia virtual
segue as mesmas premissas (Fragoso, Recuero & Amaral, 2011), mas adapta essa visão
para um novo objeto. Aliás, seu caráter adaptável à mediação do computador é fortemente
defendido por vários autores (Hine, 2000; boyd, 2008; Amaral, 2007) como forma de
extrair do método o que ele tem de melhor a contribuir para a pesquisa.
!
5
Para este trabalho, optamos por nominar a abordagem como "etnografia virtual", mesmo diante de
suas várias denominações, como "netnografia", por compreender que se trata da mesma abordagem.
Mais detalhes sobre essa discussão podem ser observados em Fragoso, Recuero & Amaral (2012).
Como a ARS, a etnografia virtual também foca o estudo de grupos sociais,
notadamente limitados por um determinado local ou espaço geográfico no ciberespaço (por
exemplo, uma comunidade, grupo ou conjunto de atores que encontre-se em um
determinado espaço comum). Embora a percepção dessas fronteiras no espaço digital tenha
sido bastante discutida, é importante observá-las como não estanques (boyd, 2008). Neste
sentido, a autora defende o foco maior nas relações entre os atores do que especificamente
em um único espaço (uma vez que essas relações podem ser mantidas em vários espaços
diferentes no digital). O foco nas relações também é uma das premissas da análise de redes,
justamente como explicitamos na sessão anterior.
A etnografia virtual enquanto método, é adaptável, como dissemos, embora um
conjunto de técnicas sejam frequentemente associadas, como o uso de diário de campo, as
práticas de observação, observação participante, contextualização, entrevistas com
informantes e interpretação sistemática dos dados (Fragoso, Recuero & Amaral, 2012).
Essas estratégias auxiliam na sistematização da coleta de dados, e são bastante qualitativas,
focadas na documentação das práticas que são observadas (boyd, 2008). Quanto a análise
dos dados, o processo interpretativo é a principal estratégia, de modo a extrair sentido dos
dados sistematizados. Portanto, a etnografia virtual é fortemente baseada em dados
empíricos, de forma análoga à Análise de Redes Sociais. Entretanto, a etnografia utiliza-se
principalmente de modos de coleta de dados qualitativos e este é um ponto onde já não há
tanto contato já que a ARS, por outro lado, tem métodos de coleta principalmente
quantitativos (crawling, por exemplo).
4. Métodos Mistos: Conectando Análise de Redes Sociais e Etnografia Virtual
Como, assim, misturar análise de redes e etnografia virtual? Para discutir essa
intersecção, partiremos da abordagem dos Métodos Mistos (Mixed Methods
6
) para
desenhar esses tipo de pesquisa. A ideia é trabalhar com perspectivas metodológicas
distintas, tanto quantitativas quanto qualitativas, combinadas de modo de dar conta de um
determinado problema de pesquisa.
Métodos qualitativos, grosso modo, tendem a focar mais em palavras como
elementos descritivos, enquanto os quantitativos, em números; bem como pesquisas mais
!
6
Embora a idéia por trás da perspectiva trabalhe diretamente com a combinação de vários métodos
diferentes, trabalharemos aqui com a combinação de abordagens diferentes.
qualitativas focam perguntas mais abertas, pesquisas quantitativas focam questões
fechadas; além disso, pesquisas qualitativas tendem a focar na interpretação dos dados
coletados, geralmente no ambiente dos participantes, enquanto as quantitativas tendem a
focar em medidas, variáveis e procedimentos numéricos (Creswell, 2014, p.12). Essas
diferenças são facilmente percebidas em abordagens mais etnográficas (que focam, como
dissemos na sessão anterior, principalmente em métodos de coleta e análise mais
qualitativos), enquanto abordagens de análise de redes focam em métricas (medidas) e
possuem resultados numéricos, conforme também explicitamos na sessão 2.
Apesar disso, poderíamos discutir que dificilmente métodos de coleta e análise
desenhados para um dado problema são estritamente qualitativos ou quantitativos. É
possível, por exemplo, abordar uma determinada questão dentro de uma etnografia virtual
em termos numéricos, assim como é possível também interpretar os grafos gerados pela
análise de redes. Ainda assim, o que define o método de modo mais forte, segundo
Creswell (2014) é a perspectiva abarcada ir mais para um lado ou para o outro.
Os métodos mistos, por outro lado, constituem-se um em "uma abordagem para a
pesquisa envolvendo a coleta de dados qualitativa e quantitativa, integrando as duas formas
de dados e usando desenhos de pesquisa que possam envolver questões filosóficas e
abordagens mais teóricas
7
" (Creswell, 2014, p.4). Embora o conceito da abordagem dos
métodos mistos não seja consenso na literatura (vide Cameron, 2011, por exemplo), a
maior parte dos pesquisadores concorda que se refere à modos de explorar e misturar
perspectivas quantitativas e qualitativas. A ideia é que o desenho do método possa permitir
ao pesquisador utilizar uma perspectiva para validar a outra e complementar os dados de
modo a melhor compreender o fenômeno.
4.1 Objetos
Quais objetos, assim, prestam-se para uma análise que prescinda da combinação
entre ARS e etnografia virtual? Primeiramente, é preciso focar objetos cujas questões de
pesquisa sejam relacionais, ou seja, onde a análise da estrutura das conexões da rede seja
relevante e onde exista um componente cultural a ser analisado diante dessa estrutura. Essa
circunstância permitiria compreender, assim, aquele grupo, naquele momento, naquele
!
7
Tradução da autora para: "an approach to inquiry involving both quantitative and qualitative data,
integrating the two forms of data, and using philosophical assumptions and theoretical
frameworks".
espaço, como produtor de artefatos culturais que serão explicitados pela etnografia e como
grupo, que será também analisado pela ARS. Como dissemos, tanto a etnografia virtual
quanto a análise de redes sociais focam em estruturas sociais e fenômenos sociais. Deste
modo, enquanto a análise de redes se ocuparia com a estrutura do grupo, a etnografia
focaria as práticas culturais emergentes desta estrutura.
A partir dessas premissas, alguns tipos de objetos que seriam relevantes, para esse
tipo de estudo compreendem:
a) Grupos sociais determinados e suas interações online - Como por exemplo, fãs,
ativistas, militantes, grupos determinados por páginas, ferramentas e etc. Seriam grupos
formados em espaços online, que compartilham e constroem experiências em locais
específicos deste espaço. Este seria o objeto mais nítido, uma vez que a análise de redes
poderia, aqui, investigar as características estruturais do grupo (e possivelmente suas
mudanças no tempo), bem como a posição de determinados atores e seus papeis no grupo,
enquanto a etnografia dedicar-se-ia a avaliar o grupo, as práticas e interações, de modo
mais qualitativo. Os dados estruturais e culturais, assim, são complementares para um
estudo de caso ou análise de caso.
b) Grupos sociais constituídos diante de discursos/conversações específicas- Como por
exemplo, grupos reunidos em torno de uma hashtag, ou de algum movimento que permita
que este grupo seja limitado. Neste caso, o objetivo é observar como se dá a construção
dos diferentes discursos a partir da participação das pessoas, não há um local específico,
mas um "momento" específico da presença desses grupos (Recuero, 2012). Neste caso, o
objetivo é observar aquele grupo naquele momento. Novamente, a análise de redes fornece
a base para o estudo de estrutura grupo em si (o que poderia ser comparativa a outro grupo),
enquanto a etnografia pode fornecer elementos referentes à qualidade do grupo e da
conversação.
c) Estudos sobre informação e difusão de práticas culturais - Como por exemplo,
estudos de difusão de comportamentos, linguagem e etc. dentro de determinados grupos
online. Neste caso, o foco está especificamente num tipo de prática cultural que é
difundida pelo grupo. Aqui, por exemplo, a análise de redes pode auxiliar a definir quais
atores são mais centrais para os processos de difusão de práticas culturais, a influência
dessas práticas em pequenos grupos, bem como os caminhos tomados por essas práticas na
rede. A etnografia, por outro lado, pode auxiliar investigando as particularidades desses
atores, as práticas em si e suas características dentro da adoção dos vários grupos, bem
como outros elementos qualitativos relevantes para a compreensão do fenômeno.
Os objetos escolhidos precisam ter dados possíveis de ser capturados para sua
análise como rede, evidentemente, seja de forma manual ou de forma automática, pelo
pesquisador. Por isso, como dissemos, aqueles provenientes de APIs com possibilidade de
crawling seriam talvez mais facilmente compreendidos.
Dentro desses objetos, é claro, as questões de pesquisa precisam ser apropriadas
para atender a objetivos possíveis para a ARS e a etnografia. Assim, estudar as
possibilidades e as dinâmicas da rede para a produção dos artefatos culturais, o impacto
dessas estruturas nessas produções, a cultura emergente nesses grupos e etc. são apenas
alguns possíveis questionamentos que poderão ser feitos aos objetos.
4.2 Desenhos Metodológicos
Uma vez defindos objetos e problemas, é preciso construir o desenho metodológico
do estudo. Há alguns modelos mais comuns de uso de métodos mistos, em termos de
desenho de pesquisa, apresentados por Creswell (2014). Esses modelos poderiam servir de
ponto de partida para o desenho particular de cada trabalho.
a) Métodos mistos convergentes e paralelos - São desenhos de pesquisa onde os dados
são coletados de modo qualitativo e quantitativo geralmente ao mesmo tempo e convergem
ou são misturados na análise. O objetivo é a complementariedade dos dados para a análise
(Creswell & Clark, 2013). Assim, os resultados são apresentados de modo integrado, pois
são analisados também assim. Isso poderia acontecer, por exemplo, numa pesquisa focada
em um determinado evento e sua repercussão em um site de rede social. Imaginemos, por
exemplo, um debate eleitoral transmitido pela televisão e sua repercussão no Twitter.
Neste caso, geralmente há a coleta de dados quantitativos dos tweets (por exemplo, através
de um crawling) e, ao mesmo tempo, a observação qualitativa do que está acontecendo
através do streaming e no debate televisionado de modo a gerar dados contextuais que
possam auxiliar a interpretação dos demais dados depois. Essa coleta conjunta auxiliará a
compreender os resultados do trabalho na análise final.
b) Métodos mistos explanatórios sequenciais - São desenhos de pesquisa onde há
primeiro a condução de uma pesquisa quantitativa, cujos resultados servem de base para
uma pesquisa qualitativa. A ideia aqui é que o trabalho qualitativo permite explorar em
maior profundidade os resultados quantitativos, explicando-os de modo mais global. No
caso, aqui, não há a necessidade de coleta de dados conjunta. Imaginemos, em outro
exemplo, que a partir de dados coletados de um grupo no Facebook (número de interações,
por exemplo) pretende-se compreender a densidade das diferentes redes de participantes e
sua percepção dos grupos da ferramenta. Neste caso, é preciso analisar primeiro esses
números, para eleger sujeitos que possam ser posteriormente entrevistados pelo
pesquisador.
c) Métodos mistos exploratórios e sequenciais - São desenhos de pesquisa que
funcionam de modo contrário ao item anterior. Aqui, a abordagem qualitativa vem
primeiro, e nesta primeira fase, são constituídos elementos que servem de base para a
abordagem quantitativa posterior. Essa abordagem é particularmente útil quando não se
sabe quais serão as variáveis mais importantes a ser analisadas na pesquisa, o que a
abordagem qualitativa inicial pode ajudar a desvelar. Por exemplo, quando se deseja
compreender a atuação dos fãs em um site de rede social, mas não se sabe exatamente em
quais eventos essa atuação se deu. Poderíamos, aqui, optar por uma abordagem qualitativa,
no sentido de compreender como a ferramenta em questão é apropriada e, posteriormente,
analisarmos esses tipos de apropriação de modo quantitativo.
No caso específico da mistura de métodos da etnografia virtual e da análise de
redes, dependendo da questão de pesquisa e do contexto, qualquer uma das três abordagens
poderia ser utilizada. Independentemente do desenho metodológico, a análise de redes
trabalha com métricas da rede em si, enquanto a etnografia vai investigar o contexto e a
qualidade do fenômeno. Assim, portanto, temos uma abordagem que foca a estrutura e
outra que foca a função e a produção desta estrutura, podendo ser usadas de modo
complementar para auxiliar na compreensão dos diferentes fenômenos sociais da
comunicação mediada pelo computador. Além disso, os métodos de coleta podem ser
combinados também entre aqueles quantitativos e qualitativos característicos de cada
abordagem.
5. Apontamentos Finais
O desenho metodológico escolhido, bem como a opção pela combinação das
abordagens precisa ser claramente explicada nos capítulos metodológicos dos trabalhos.
Além disso, o reconhecimento de suas forças e limitações, diante do problema de pesquisa,
também podem ser levantadas e debatidas.
De modo geral, dentre as vantagens de uso dessa perspectiva de desenho de
métodos mistos está primeiramente a complementariedade dos dados e das análises e a
possibilidade de explorar fenômenos mais complexos do que com apenas um dos métodos.
Por conta disso, a análise é enriquecida, uma vez que os dados qualitativos podem ser
utilizados para validar o quantitativos e vice-versa. A validação é um modo interessante de
trabalhar essa combinação, uma vez que os dados quantitativos obtidos pela ARS podem
ser explorados em maior profundidade pela etnografia e vice-versa. Conforme Hine (2000),
o método da etnografia é bastante flexível e por isso, bastante adaptável. Ou seja, onde a
análise de redes pode ser cega, trazendo apenas métricas e medidas da posição dos nós na
estrutura (Degenne & Forsé, 1999), a etnografia pode trazer uma visão mais sistêmica e
dinâmica da composição desses dados (Recuero, 2009). Em termos de mídia social, onde
os dados são bastante distanciados dos grupos sociais, a combinação desses métodos pode
ser extremamente vantajosa, justamente por permitir compreender o fenômeno em sua
abordagem mais ampla.
Apesar das vantagens, entretanto, é preciso um certo cuidado para explorar essa
combinação. A ARS dá à etnografia uma possibilidade de maios abrangência e maior
fundamentação em dados, ao mesmo tempo que lhe rouba parte da subjetividade que lhe é
característica. Já a etnografia, por sua vez, complementa a ARS com uma visão contextual,
mas pode também lhe conferir um caráter subjetivo e interpretativo que podem trazer uma
certa instabilidade ao estudo quantitativo. É preciso, assim, construir esse desenho com
cuidado, apontando de que modo as vantagens sobrepujam as desvantagens.
Cuidados são, portanto, necessários. Um deles é que essas abordagens devem ser
usadas de modo complementar, e devem ser, portanto, combinadas. Assim, os dados de
uma devem servir à outra e devem ser ambos compreendidos em sua totalidade pelo
pesquisador. A perspectiva de métodos mistos é uma combinação do desenho
metodológico, onde o pesquisador precisa compreender ambos e não apenas utilizar um
método como suporte e outro apenas para agregar os dados sem analisá-los. A ideia de
"combinação" das abordagens promove, justamente, um diálogo entre ambas que apenas
será possível dentro dessas condições.
Assim, por exemplo, o grafo, uma das práticas de representação da análise de redes,
assim, pode ser utilizado de modo ilustrativo, mas precisa ser compreendido, em seus
algoritmos de representação e em sua arquitetura pelo pesquisador, de modo a explorá-lo
também na análise qualitativa. Não podemos utilizar apenas um "pedaço" da perspectiva
sem utilizar o restante dela. Se o grafo denota uma representação medida, constituída pela
escolha de dados e pelo algoritmo de visualização, é preciso compreender o que está sendo
mostrado (Recuero, Bastos & Zago, 2015). De modo especial, grafos de mídia social
podem ser especialmente mutantes, dado o contexto dessas redes (Recuero, 2009).
Outro cuidado ainda é aquele de desvelar os métodos de coleta de dados e discutir
suas limitações e vantagens. O uso desses dados precisa ser claramente explicitado e
apontado no trabalho. Interpretações mais qualitativas, assim, podem ser ancoradas por
dados quantitativos que suportem essas afirmações.
Finalmente, é preciso também uma maior preocupação com a questão da ética em
pesquisa
8
. Embora o conteúdo de canais de mídia social seja percebido como público, na
maior parte das vezes é preciso a preocupação sobre a exposição dos atores e dos
participantes da rede social. Anonimização dos dados é um dos passos fundamentais
adotados pelos pesquisadores para reduzir o impacto do trabalho sobre indivíduos
específicos. Embora isso nem sempre possa ser possível, é recomendado que, ao menos, a
discussão de como essa preocupação esteve presente nos processos de coleta e análise de
dados seja realizada.
Neste conjunto de considerações, esperamos ter contribuído com alguns
esclarecimentos e ideias para a utilização dos desenhos metodológicos mistos que
combinem análise de redes sociais (ARS) e etnografias virtuais.
Referências:
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!
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http://attachments.wetpaintserv.us/9b1KPXQQ%24%247r4RcruHRB%2BA%3D%3D492
413
!
8
Algumas orientações podem ser observadas aqui - http://aoir.org/ethics/
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