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Forum Sociológico
Série II
34 | 2019
Habitação nas áreas urbanas de Lisboa e Porto: Da
comunidade aos decisores políticos
Um lugar em produção: o caso da Cova da Moura
A place in the making: the case of Cova da Moura
Sílvia Jorge e Júlia Carolino
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/sociologico/4980
DOI: 10.4000/sociologico.4980
ISSN: 2182-7427
Editora
CICS.NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa
Edição impressa
Paginação: 19-30
ISSN: 0872-8380
Refêrencia eletrónica
Sílvia Jorge e Júlia Carolino, « Um lugar em produção: o caso da Cova da Moura », Forum Sociológico
[Online], 34 | 2019, posto online no dia 19 agosto 2019, consultado o 02 setembro 2019. URL : http://
journals.openedition.org/sociologico/4980 ; DOI : 10.4000/sociologico.4980
© CICS.NOVA
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Sociológico
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UM LUGAR EM PRODUÇÃO: O CASO DA COVA DA MOURA
A PLACE IN THE MAKING: THE CASE OF COVA DA MOURA
Resumo
Resultantes da ocupação e construção sem licença em terrenos públicos e/ou privados, os bair-
ros autoproduzidos, não reconhecidos legalmente pelo poder público, tendem a ser reduzidos às
suas falhas e carências, espelhadas nas designações que lhes são geralmente atribuídas, como
“bairros de barracas” ou “bairros precários”. Por sua vez, este sentido negativo e pejorativo acaba
por inuenciar ou determinar a forma como técnicos e decisores políticos leem estes territórios,
tendendo-se a preconizar a demolição do tecido urbano existente, distante dos parâmetros e da
imagem de cidade hegemónicos. Tomando como caso de estudo o bairro da Cova da Moura, na
Amadora, convocamos os conceitos de “lugar” e de “direito ao lugar” para explorar diferentes
leituras e perceções sobre este território, cruzando duas perspetivas – uma mais antropológica
e outra sócio-urbanística –, num diálogo entre as dinâmicas e aspirações locais e as políticas e
instrumentos de intervenção propostos ao longo do tempo. Face à existência de uma realidade
local plural e negociada, propõe-se um novo olhar sociopolítico sobre a mesma, inscrito na luta
pelo direito ao lugar aqui em destaque.
Palavras-chave: produção do lugar, direito ao lugar, Cova da Moura
Abstract
Following the settlement and construction without permit on public and/or private land, self-
-produced neighbourhoods tend to be portrayed in ways that reduce them to their problems and
are expressed through designations like “slums” or “precarious settlements”. These negative
designations play a role in the way professionals and decision makers make sense of these ter-
ritories, favouring demolitions of the existing urban tissue as solutions for realities that fail to
match the hegemonic image and parameters of the city. Taking bairro da Cova da Moura as a case
study, we draw on the notions of “place” and “the right to place” to explore and relate different
understanding and perceptions of that territory. We resource on anthropological and on socio-urban
perspectives for looking through both the local dynamics and aspirations and the policies and tools
for intervention proposed over the long term. Taking into account the existence of a plural and
negotiated local reality, it is proposed a new socio-political perspective, inscribed on the ght for
the right to place here in highlighted.
Keywords: production of place, right to the place, Cova da Moura
Sílvia Jorge
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, GESTUAL-CIAUD
Júlia Carolino
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, GESTUAL-CIAUD
Introdução
São várias as noções a que se recorre para
designar os territórios de ocupação e construção não
reconhecidos legalmente pelo poder público, como a
Cova da Moura, no município da Amadora, com mais
de 40 anos de existência. Usadas geralmente com
um sentido pejorativo, denominações como “bairros
de barracas”, “informais” ou “precários” têm vindo a
informar grande parte das iniciativas públicas, como
o Programa Especial de Realojamento, que visou “[a]
erradicação das barracas, uma chaga ainda aberta
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no nosso tecido social”
1
. Vários autores, como Souza
(2011) e Raposo (2012), destacam a necessidade
de ampliar as dimensões de análise destes espaços
autoproduzidos, integrando, além das suas faltas ou
carências, os ganhos, as aspirações e as vivências
de quem os habita e lhes dá identidade.
Tomando como caso de estudo o bairro da
Cova da Moura (Figura 1), onde a estigmatização
convive com uma identidade e dinâmica cultural
que o distingue e projeta para além de si (Carolino,
2015), recorremos ao conceito de lugar para explorar
e cruzar diferentes leituras e perceções sobre este
território, ensaiando a sua possível adequação a
uma visão mais complexa e próxima das dinâmicas
que o constituem, no sentido de informar políticas
públicas de intervenção mais participadas e inclusi-
vas. Em face da persistente tensão entre soluções
assentes na destruição do tecido autoproduzido e
aquelas que, por sua vez, saem em defesa da sua
qualicação (Raposo, 2009; Carolino, 2013), poderá
fazer sentido um enfoque no direito ao lugar?
A noção de “lugar”, intimamente ligada à de
“espaço”, convoca dimensões de coerência e identi-
dade, implicando, necessariamente, um sujeito, um
limite (fronteira) e a ideia de continuidade (Tuan,
1977; Hirsch, 1995; Casey, 1996). Numa aceção
mais sociológica, o lugar dene-se como um nexo de
relação, história e identidade (Augé, 1992), descrito
por Gupta e Ferguson como “um processo histórico
partilhado que diferencia o mundo ao conectá-lo”
(1997, p.46). Na linha da produção do espaço
Fonte: Google Earth, 2019. Imagem trabalhada gracamente pelas autoras
Figura 1 Bairro da Cova da Moura e sua envolvente
(Lefebvre, 1991), Massey (2006) propõe a denição
do lugar como um evento espácio-temporal, ou um
nexo aleatório de trajetórias diversas que se cruzam
entre si, perspetiva que converte todo o processo
de constituição do sujeito e das fronteiras do lugar
numa interrogação. É esta a abordagem adotada
neste texto, ao procurar olhar o bairro da Cova da
Moura como “um lugar” resultante da (inter)ação
de um conjunto diversicado de atores e das nar-
rativas em torno das quais se vai negociando a sua
identidade e coerência socioespacial.
À luz deste caso especíco, cruzam-se duas
perspetivas: uma mais antropológica, reconstituindo
a história da produção do lugar na perspetiva dos
seus habitantes e das entidades através das quais se
organizaram para assegurar o direito a permanecer
no território que ocuparam e onde construíram
as suas casas; outra mais sócio-urbanística,
identicando a leitura de lugar subjacente às políticas
e instrumentos de intervenção propostos, tendo em
conta a constituição de uma arena especíca de
intervenção (Raposo et al., 2012; Raposo, 2009).
Num primeiro momento, o texto foca precisamente
a dimensão da produção do lugar, dialogando entre
as iniciativas locais e as do poder público. Num
segundo momento, analisa-se o processo de (re)
armação do direito ao lugar em face da perspetiva
de demolição do tecido autoproduzido. Por m, num
terceiro momento, centra-se o olhar na Nova Geração
de Políticas de Habitação, nomeadamente no 1.º
Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação
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–, questionando até que ponto este representa ou
pode vir a representar uma solução para o caso da
Cova da Moura. Com esta análise cruzada, pretende-
mos contribuir para o conhecimento das relações, e
possíveis sinergias, entre a intervenção pública e os
movimentos e organizações locais comprometidos
com o direito ao lugar.
Os dados aqui apresentados resultam de traba-
lho de campo – apoiado na observação direta e em
entrevistas qualitativas, semiestruturadas – realizado
pelas autoras entre 2011 e 2018, no âmbito do apoio
técnico prestado à Comissão de Bairro da Cova da
Moura pelo Grupo de Estudos Sócio-Territoriais,
Urbanos e de Ação Local, do Centro de Investigação
em Arquitetura, Urbanismo e Design da Faculdade
de Arquitetura da Universidade de Lisboa (GESTUAL/
CIAUD-FAUL), bem como da pesquisa etnográca
realizada por uma das autoras entre 2012 e 2016.
A produção do lugar
Situado nos interstícios da cidade em expansão,
o território onde se localiza o bairro da Cova da Moura
entrou numa fase inédita de transformação quando,
na década de 50, alguns proprietários rurais deram
permissão aos seus trabalhadores para construírem
casas em terras por si designadas. Reza a história
local que a Cova da Moura terá tido a sua origem
na permissão dada a José Moura, assalariado rural
originário de Trás-os-Montes, para construir a sua
casa na zona de uma pedreira entretanto desativada.
Por esta razão, o seu lho, Manuel Moura, comer-
ciante da Rua Principal, é hoje designado como um
dos primeiros habitantes do bairro.
Os relatos que documentam a origem e desen-
volvimento do bairro por cabo-verdianos, portu-
gueses, são-tomenses, angolanos e guineenses,
chegados das ex-colónias ou do interior rural de
Portugal, são reveladores da história e geograa
de um país em profunda transformação, bem como
de um contexto colonial que se prolonga para além
das independências africanas. Por outro lado, a
perceção desta transformação por parte do poder
público, que acompanhou desde cedo a ocupação
deste território – desde o surgimento de hortas e
abrigos construídos em madeira até à construção de
casas de alvenaria –, dá origem a levantamentos e
estudos sobre a Cova da Moura quase tão antigos
quanto o próprio bairro e, em si mesmos, objetos
discursivos constitutivos das narrativas-chave
produtoras do lugar enquanto totalidade coerente.
Em janeiro de 1976, os Serviços de Fiscalização
de Obras da então Câmara Municipal de Oeiras3
davam conta da construção de “cinco casas abar-
racadas em tijolo” e “caboucos para a construção
de outras”. Em 1977, a autarquia avançou com a
realização de um estudo socioeconómico e identicou
a demarcação de 203 lotes destinados a habitação,
dos quais 103 se encontravam ocupados por cons-
truções de madeira, designadas por “barracas”, e
90 por edifícios em alvenaria. Simultaneamente,
propôs tomar posse administrativa dos terrenos e
“recuperar o bairro” através da elaboração de um
Plano de Urbanização, considerando que os seus
habitantes teriam já “criado raízes” no lugar. Embora
as medidas enunciadas não chegassem a ser postas
em prática, acabariam por inviabilizar o pedido de
urbanização feito pelos proprietários (Craveiro et
al., 1983, pp. 18-27).
No terreno, quem construía estava ciente do
risco de demolição da sua casa, desenvolvendo
por isso um conjunto de estratégias que passavam
sobretudo pela rápida progressão e ocupação da nova
construção4. Ainda em 1977, terá sido um episódio
de demolição de dezasseis casas, pela autarquia, que
levou à constituição de uma Comissão de Morado-
res e, consequentemente, a um pedido de reunião
com o então presidente da Câmara Municipal de
Oeiras (Andrade Neves). Deste encontro resultou a
colaboração entre a Câmara Municipal de Oeiras e a
Comissão de Moradores, com vista à melhoria das
condições de vida e habitabilidade do bairro. Com
o apoio da autarquia na cedência de maquinaria e
outros recursos, dão-se então as primeiras ligações
elétricas pela EDP – Energias de Portugal –, inicia-
-se o traçado e a abertura de ruas, acompanhados
pela atribuição da toponímia, bem como a instalação
das redes de água e esgotos e a asfaltagem da Rua
Principal e da Rua do Vale (Raposo & Carolino, no
prelo) (Figura 2).
Neste processo, a Comissão de Moradores
adquiriu localmente especial protagonismo, que
lhe adveio não só da relação estabelecida com o
município, mas também do cultivo de uma rede de
relações interpessoais e alianças político-partidárias
(vide Horta, 2000). Fazendo suas as preocupações
do poder público, a Comissão procurou controlar a
expansão do edicado, denindo e impondo deter-
minados parâmetros construtivos, com destaque
para o alinhamento das casas e a preservação da
largura mínima das vias. Como recorda um antigo
membro da sua equipa, “começámos a trabalhar
[…] já como autoridade”. Neste processo, a relação
com os moradores era tensa, chegando a gerar-se
momentos de aberto conito. Para conseguir inuen-
ciar o decurso da construção, a Comissão insistiu
que quem pretendesse construir deveria contactá-la
previamente. A criação de uma “cha de morador”
por cada casa interessada na ligação à rede pública
de água e saneamento básico foi um dos aspetos
que reforçou o seu papel de interlocutor privilegiado
entre moradores e poder público.
Esta conjuntura começou a alterar-se quando,
em 1979, a recém-constituída Câmara Municipal
da Amadora foi ganha pela Coligação Democrática
Unitária (CDU)5. Em 1981, a nova autarquia rei-
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Fonte: Craveiro et al., 1983, p. 21
Figura 2 Planta de arruamentos, executado pela Comissão de Moradores
terou a posição do anterior executivo, indeferindo
uma vez mais os pedidos de urbanização por parte
dos proprietários do terreno. Um ano mais tarde,
deliberou a expropriação do terreno por utilidade
pública e avançou com uma “avaliação socioeconó-
mica, jurídica e nanceira da recuperação do bairro”,
conducente a propostas concretas de “recuperação”
(Craveiro et al., 1983, pp. 19, 27-28).
Surgiu assim em 1983 o primeiro grande estudo
da Cova da Moura (Craveiro et al., 1983), realizado
por técnicos municipais, no qual se identicou um
total de 836 edifícios, predominantemente em
alvenaria, e uma ocupação em quarteirões muito
mais extensiva do que a registada anteriormente
(Figura 3). Destacava-se, igual-
mente, o risco de densicação
do edicado, por via da vertica-
lização, chamando-se a atenção
para o surgimento de uma “fase
especulativa deveras preocupante
que se vem delineando em torno
desta ocupação”. Os técnicos
instavam a “uma intervenção
decidida da Administração a
todos os seus níveis (Central e
Local), que discipline e regre a
dinâmica construtiva” (Craveiro
et al., 1983, p. 98), defendendo
uma estratégia que valorizasse
as dinâmicas locais e processos
acompanhados de autoconstru-
ção evolutiva. Não obstante a
criação de um gabinete local, as
medidas delineadas pela autar-
quia não chegaram, no entanto,
a concretizar-se.
Na Cova da Moura, man-
teve-se a proximidade entre
a Comissão de Moradores e a
recém-criada Junta de Freguesia
da Buraca, onde um dos elemen-
tos fundadores da Comissão de
Moradores foi eleito pelo Partido
Socialista como membro do poder
executivo. Data deste período o
loteamento realizado na parte
sudeste do bairro, a última a ser
ocupada, liderado pela Comissão
de Moradores e que, embora não
fosse legalmente reconhecido
pelo Estado, contou com a cola-
boração da Junta de Freguesia.
Uma preocupação em atribuir
estes lotes a “portugueses” ree-
tia um novo esforço no sentido
de assegurar a “modernidade”
e “boa reputação” da Cova
da Moura, através da seleção
criteriosa das pessoas que ocupariam uma zona
particularmente visível do bairro a partir “de fora”.
Ironicamente, foi nesta zona que nasceu, em 1984,
uma outra organização de moradores – a Associa-
ção Cultural Moinho da Juventude –, empenhada
no empoderamento dos habitantes em situação de
maior exclusão, promovendo a cultura e identidade
africanas da Cova da Moura6.
Sem recorrer à Comissão de Moradores,
este grupo de vizinhos, dependentes de um chafariz
localizado na zona sudeste do bairro, organizou-se
para, interpelando diretamente a Câmara Municipal,
aceder à rede de água e saneamento básico, tendo
recenseado 900 habitantes com esta necessidade,
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Figura 3 Levantamento das tipologias construtivas (1983): a verde ‘edifícios em alvenaria’, a amarelo ‘casas abarra-
cadas’ e a vermelho ‘barracas’
Fonte: Craveiro et al., 1983, p. 59
dispostos a contribuir para a resolução do problema.
Em paralelo, criou uma biblioteca comunitária, des-
tinada sobretudo às crianças, e, em diálogo com o
Sindicato das Empregadas Domésticas (ocupação
de muitas moradoras do bairro), envolveu-se na
melhoria das suas condições de trabalho. Com a
sua própria rede de relações e, ao longo do tempo,
alguma projeção mediática, a Associação Cultu-
ral Moinho da Juventude veio progressivamente
desaar o protagonismo assumido anteriormente
pela Comissão de Moradores, facto a que não será
também indiferente o crescimento populacional
associado sobretudo à migração laboral cabo-
-verdiana caraterística das décadas de 80 e 90
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(vide Malheiros & Esteves, 2013). Ao apostar na
importância da cultura como fator de integração e
desenvolvimento, o Moinho da Juventude promove,
e projeta na sociedade portuguesa, práticas culturais
de tradição cabo-verdiana, como é o caso do Kola
San Jon (Figura 4) – festa cabo-verdiana de São João
–, obtendo, em 2013, a sua inscrição no Inventário
Nacional do Património Cultural Imaterial7.
Figura 4 Cultura e identidade na Cova da Moura. A
Festa de Kola San Jon, 2012
Fonte: Moinho da Juventude
De um modo geral, pode dizer-se que, ao
longo da década de 80, se foi consolidando e diver-
sicando a vida institucional do bairro. No mesmo
período, pessoas ligadas à Comissão de Moradores
haviam lançado já uma outra organização, que
designaram por Clube Recreativo8. Também nesta
década foi criada a Paróquia da Buraca e, com ela,
o Centro Social e Paroquial. Nos anos seguintes,
estas organizações criaram um conjunto diversi-
cado de serviços destinados aos moradores, ao
nível do apoio à infância, jovens, idosos, forma-
ção e emprego, documentação e outros. Entrou
igualmente em funcionamento a escola pública do
primeiro ciclo do ensino básico da Cova da Moura.
Simultaneamente, a relação dos moradores com o
bairro diversica-se: por um lado, aos primeiros
habitantes, que ali construíram as suas casas,
junta-se a geração já nascida na Cova da Moura;
por outro, o arrendamento expande-se progressi-
vamente, até atingir valores tão expressivos quanto
os dos donos das casas. No entanto, enquanto isso,
a questão da regularização fundiária e urbanística
do bairro permaneceu em aberto.
Com a eleição de Joaquim Raposo, do Partido
Socialista, para presidente da autarquia, em 1993,
depois de 12 anos de governação CDU, cresceram
as esperanças, em especial por parte das associa-
ções politicamente mais próximas – a Comissão
de Moradores e o Clube Recreativo –, de que fosse
retomada a colaboração que marcara as relações
com o congénere de Oeiras, no nal da década de
70. Contudo, os tempos eram outros.
(Re)armação do direito ao lugar
O forte investimento e envolvimento municipal
no período após o 25 de Abril de 1974, começou a
diminuir com o privilegiar, a nível nacional e inter-
nacional, de políticas neoliberais, dirigidas para a
lógica de mercado, assente na propriedade privada
individual (vide Raposo & Jorge, 2017; Hibou, 2011)
e que equaciona as questões da qualicação urba-
nística e habitacional como objetos de intervenção
iminentemente técnica. A partir de nais da década
de 80, com o aumento do mercado imobiliário e o
anúncio da exibição da capital a nível internacio-
nal, através da Lisboa Capital Europeia da Cultura
em 1994 e da Expo”98, registou-se um aumento
da pressão para lidar com a grande visibilidade e
extensão dos então denominados “bairros de barra-
cas”, localizados às portas de Lisboa (vide Cachado,
2013; 2018). Apoiado numa visão estigmatizada e
estereotipada destes territórios, o Programa Espe-
cial de Realojamento (PER), publicado em 1993,
surgiu enquanto resposta a este problema. Dirigido
às áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, este
programa assentou em três objetivos: erradicar as
“barracas”, envolver fortemente os municípios no
processo de erradicação preconizado e potenciar, com
o realojamento, uma mudança no estilo de vida dos
moradores, partindo-se da ideia de que condições de
habitação degradadas favorecem “comportamentos
desviantes” (Cachado, 2013). A Câmara Municipal
da Amadora recenseou, ao abrigo do PER, 6755
agregados familiares a realojar, sendo um dos
municípios com mais famílias a viver nas designadas
“barracas” (Salgueiro, 1985, p. 63). Apenas uma
pequena parte dos habitantes do bairro da Cova da
Moura9 foi considerada neste recenseamento (57
agregados). Tal não reetiria, contudo, uma imagem
ou abordagem de intervenção por parte da autarquia
necessariamente distintas, recaindo sobre a Cova
da Moura uma visão igualmente estigmatizada e
estereotipada, vinculada à noção de bairro “crítico”
e “degradado”. Nestes anos, preparam-se e entram
em vigor instrumentos-chave para uma intervenção
municipal ao nível do ordenamento do território,
como a classicação da Cova da Moura como “área
estratégica de desenvolvimento municipal”, no âmbito
do primeiro Plano Diretor Municipal, raticado em
1994, e a atribuição do estatuto de “área crítica de
recuperação e reconversão urbanística” (ACCRU)
10
.
No diploma, o bairro é descrito como “uma estrutura
habitacional, social e ambiental bastante degradada,
com graves insuciências de infra-estruturas urba-
nísticas, espaços verdes e equipamentos sociais”,
cabendo à Câmara Municipal “promover, em cola-
boração com as demais entidades interessadas, as
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acções e o processo de recuperação e reconversão
urbanística da área”.
A partir de 2000, a Cova da Moura, a par da
Brandoa, foi abrangida pelo programa comunitário
URBAN II, direcionado para a promoção e aplicação
de “estratégias inovadoras de revitalização socioeco-
nómica sustentável dos centros urbanos” ou dos
“subúrbios em crise das grandes cidades” (CCDR,
IFDR, 2010, p. 11). No âmbito do URBAN, o bairro
é descrito como tendo uma “malha confusa”, com
“construções amontadas” e uma acessibilidade
interna difícil devido à forte inclinação e à exis-
tência de passagens estreitas (CCDR, IFDR, 2010,
pp. 19-20). Além das suas características físicas,
aborda-se o problema da toxicodependência e de
“um conjunto de atividades ilícitas” (CCDR, IFDR,
2010, pp. 19-20). Assumiram-se como objetivos
estratégicos: requalicar o ambiente urbano e valo-
rizar o espaço público; integrar a população local;
revitalizar o ambiente social; e valorizar o contexto
socioeducativo da população juvenil (CCDR, IFDR,
2010, p. 22). Destacam-se os melhoramentos rea-
lizados no pavilhão desportivo, no Jardim Central
da Buraca e no Jardim 25 de Abril, nas imediações
do bairro, que acabariam por beneciar de alguma
forma os habitantes do bairro (vide Lages, 2017).
Em 2002, a Câmara Municipal avançou com
a elaboração do primeiro Plano de Pormenor para
o bairro. Desenvolvido por um gabinete privado –
Vasco da Cunha, Estudos e Projetos –, o Plano de
Pormenor apontava para a necessidade de subs-
tituição de grande parte do edicado, de “abrir o
bairro ao exterior” e de promover a construção de
novos equipamentos e espaços verdes. Apoiado na
demolição de cerca de 80% do edicado existente,
propunha o realojamento dos moradores in situ, em
“novos fogos sociais, em tipologia de acordo com o
seu agregado familiar”, mediante o pagamento de
uma renda calculada em função dos rendimentos
auferidos. Apenas para uma parte do bairro (156
edifícios, na zona norte) se previa a qualicação do
tecido existente, recebendo os donos das casas em
questão o estatuto de proprietários, responsáveis
pela compra do terreno ocupado e pelo pagamento
das infraestruturas necessárias, das taxas de lega-
lização e de outras despesas inerentes ao processo
(Câmara Municipal da Amadora, 2002).
Esta proposta suscitou grande contestação
entre moradores e organizações locais, unidos
pela qualicação do bairro, constituindo-se em
2004 a Comissão de Bairro da Cova da Moura, que
conta, desde o início, com o apoio de uma equipa
da Faculdade de Arquitetura da Universidade de
Lisboa (então Universidade Técnica de Lisboa),
nomeadamente ao nível da componente técnica.
Estratégias e propostas alternativas à tabula rasa,
de foro académico, são apresentadas no workshop “A
reabilitação do bairro é possível se a gente quiser”,
no quadro da festa anual Kola San Jon, em 2005. No
mesmo período, a Associação de Moradores (antiga
Comissão de Moradores) liderou um processo coletivo
que levou 60 moradores, a residir na Cova da Moura
há mais de trinta anos, a formalizar uma ação de
usucapião. Estes desenvolvimentos acabariam por
reforçar o posicionamento da Comissão de Bairro,
que representou os moradores e organizações locais
ao longo da maior iniciativa pública de intervenção
que se seguiu: a Iniciativa Bairros Críticos (IBC)11.
Esta iniciativa, desencadeada, entre 2005 e
2012, em três bairros piloto, um deles a Cova da
Moura, pretendia “estimular e testar soluções insti-
tucionais, procedimentais e tecnológicas inovadoras
em termos de concepção, implementação e avaliação
da acção pública em áreas urbanas críticas”. Assente
num envolvimento interministerial, na participação
de parceiros locais e em parcerias público-privadas,
assumia uma mudança de paradigma ao nível da
abordagem e intervenção sócio-territorial integrada
(vide Lages, 2017). Coordenada pelo Instituto de
Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) e, numa
fase inicial, acompanhada de perto pela Secretaria
de Estado do Ordenamento do Território, a Iniciativa
Bairros Críticos deparou-se no terreno com uma
realidade claramente polarizada, que opunha, por
um lado, a Comissão de Bairro, em representação
das organizações locais e dos moradores, e, por
outro, a Câmara Municipal (vide Carolino, 2013).
O diagnóstico participado (Malheiros, Vascon-
celos & Alves, 2006a), validado por um Grupo de
Parceiros Locais12, serviu de base aos eixos estra-
tégicos delineados no Plano de Ação denido para o
Bairro (Malheiros, Vasconcelos & Alves, 2006b), que
visava: a legalização e requalicação urbana, bem
como a promoção de uma nova imagem do território,
através do reforço da segurança, da sustentabilidade
ambiental e da qualicação e diversicação da oferta
cultural (Sousa, 2012, p. 31). Com base neste Plano
de Ação, o IHRU solicitou ao Laboratório Nacional
de Engenharia Civil (LNEC) o estudo das condições
de habitabilidade do edicado e das necessidades
de reabilitação, desenvolvido ao longo de 2008,
com o apoio de mediadores locais (vide Ascensão,
2013; Carolino, 2013). No levantamento e análise
efetuados a Cova da Moura foi caracterizada pela
presença de problemas habitacionais, construtivos
e urbanísticos, denindo-se três tipos de casos: de
“reabilitação ligeira”, de “reabilitação média” e de
“reabilitação profunda” (Coelho et al., 2008).
Foi assim atribuído ao Plano de Pormenor um
papel fundamental, uma vez que determinaria o
edicado a reabilitar e a demolir. Tendo realizado
e deixado disponível (sob a forma de uma base
de dados de acesso restrito) uma caracterização
detalhada (edifício a edifício), a equipa do LNEC
sublinhou a necessidade de “uma articulação por-
menorizada e estratégica” no âmbito dos trabalhos
Sílvia Jorge e Júlia Carolino
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a desenvolver para a elaboração deste instrumento
de ordenamento territorial, a m de “potenciar as
melhores características do espaço urbano e do
edicado preexistentes com as melhores intenções
urbanas e residenciais” (Coelho et al., 2008, p. 39).
Em 2010 iniciaram-se os trabalhos associados
à elaboração do Plano de Pormenor, atribuídos (por
concurso público internacional) ao mesmo gabinete
que realizara a proposta de 2001. Após várias etapas
preparatórias, discutidas com a Câmara Municipal
e, só depois, com a Comissão Executiva da IBC da
Cova da Moura (onde tinha assento a Comissão de
Bairro), o Gabinete apresentou em 2012 os primeiros
cenários de intervenção, para debate, nos quais o
realojamento in situ (dos moradores que declararam
querer permanecer no bairro) foi contemplado, mas
a par da demolição de grande parte do edicado,
ainda que possivelmente dentro de tipologias mais
próximas das existentes. Esta possibilidade não
teve a aprovação da Comissão de Bairro, que con-
trapropôs com um processo participado, à escala do
quarteirão, partindo da premissa da qualicação do
tecido existente, sempre que possível (vide Caro-
lino, 2013). Contudo, o processo foi, entretanto,
interrompido. Em Março de 2012, o IHRU retirou-se,
alegando falta de verbas para continuar, e a IBC foi
formalmente extinta em dezembro do mesmo ano.
Nos anos seguintes, as associações locais, apoiadas
pela Faculdade de Arquitetura, procuraram articular
uma via alternativa, participada, entregando ao
município, em 2013, três propostas de intervenção
assentes na qualicação gradual do espaço público,
discutidas e construídas com as organizações locais
e com grupos de habitantes. Sem qualquer resposta,
as expetativas em torno da regularização e quali-
cação do bairro apenas reemergem recentemente,
na sequência: por um lado, da reaproximação da
família Canas, a maior proprietária dos terrenos onde
se localiza a Cova da Moura, propondo a negociação
de uma compensação ou uma permuta
13
; por outro,
da criação da Secretaria de Estado da Habitação.
Geração do “1.º Direito”
Perante a persistência de problemas estruturais
no setor da habitação, denunciados, quer pelas asso-
ciações, movimentos e coletivos da sociedade civil
que lutam há vários anos pelo direito à habitação,
quer inclusivamente pela relatora das Nações Unidas
para a Habitação Adequada
14
(UN, 2017), o governo
português avançou em meados de 2017 com a criação
de uma Secretaria de Estado da Habitação. Pouco
tempo depois, foi ocialmente lançada uma Nova
Geração de Políticas, que apresenta a habitação e
a reabilitação como “instrumentos-chave para a
melhoria da qualidade de vida das populações” e
assume a missão de “[g]arantir o acesso de todos
a uma habitação adequada” (SEH, 2017, p. 3). Mais
recentemente, em fevereiro de 2019, foi criado
o Ministério das Infraestruturas e da Habitação,
reiterando a importância do tema da habitação no
panorama político atual.
Propõe-se, no quadro da Nova Geração de
Políticas, um novo olhar, mais amplo e transversal,
sobre a problemática habitacional. Segundo se
sublinha no documento orientador, a noção de “habi-
tação” deve ser lida no sentido amplo de “habitat”
e orientada para as pessoas, procurando “[c]riar as
condições para que tanto a reabilitação do edicado
como urbana passem de exceção a regra” (SEH,
2017, p. 3). Pretende-se transitar de uma política
de habitação apoiada na construção de novos alo-
jamentos, como o PER, focada “na casa” e dirigida
para a oferta pública de habitação destinada aos
grupos de menores recursos, para uma política que
privilegie a reabilitação e o arrendamento, dirigida
a todos os que não conseguem aceder atualmente
a uma habitação no mercado (SEH, 2017, pp. 6-8).
A denição e apresentação desta Nova Geração
de Políticas foi acompanhada do primeiro Levanta-
mento Nacional das Necessidades de Realojamento
Habitacional realizado em Portugal, coordenado pelo
IHRU e posto em prática através de um inquérito
dirigido aos municípios. Procurou-se, através deste
levantamento, sinalizar as atuais necessidades habi-
tacionais a nível nacional, conhecer o número de
famílias a viver em condições precárias e sistematizar
as soluções preconizadas pelos municípios para a
resolução destas mesmas carências (IHRU, 2018, p.
1). Os resultados revelaram a efetiva necessidade
de medidas ao nível da habitação, tendo sido iden-
ticadas 25 762 famílias em situação de carência,
correspondentes a 14 748 edifícios e 31 526 fogos.
O estudo revelou também ser a Área Metropolitana
de Lisboa um dos contextos onde mais se coloca o
problema, estando aí concentrados mais de metade
dos casos identicados (IHRU, 2018, pp. 1-2) Os
municípios da Amadora, Loures e Almada sinalizam,
juntos, mais de 1000 famílias em situação de grave
carência habitacional, a viverem sobretudo no que
o inquérito designa de “barracas e construções pre-
cárias” (IHRU, 2018, p. 11). A Amadora destaca-se
no topo da lista, com 2839 famílias identicadas.
Um levantamento municipal, datado de dezembro
de 201715, sinaliza 35 “bairros degradados” no seu
território, grande parte deles dados como “extintos”,
ao abrigo do PER, sendo a Cova da Moura apontada
como um dos oito ainda “existentes”.
No quadro da Nova Geração de Políticas de
Habitação, foi publicado em junho de 2018 o 1.º
Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação
16
–, direcionado especicamente para os casos de
maior precariedade habitacional, podendo aceder a
este programa a pessoa ou o agregado que, cumu-
lativamente, viva em condições indignas e esteja
em situação de carência nanceira (artigo 6.º).
UM LUGAR EM PRODUÇÃO
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Outro critério de elegibilidade é o de ser detentor
de cidadania portuguesa ou título de residência
válido no território nacional, facto que levanta a
questão de até que ponto se salvaguarda, assim,
o acesso a uma habitação condigna enquanto um
direito universal. Contemplando a possibilidade de
uma intervenção mais territorial, dene modalidades
de intervenção para “núcleos precários” e “núcleos
degradados”. Por “núcleos precários”, entendem-se
as “construções não licenciadas, acampamentos ou
outras formas de alojamento precário ou improvi-
sado” – “mantendo entre si contactos subsumíveis
do conceito de relações de proximidade e vizinhança”
(artigo 11.º) –, para os quais se prevê a possibili-
dade de realojamento em novas construções17 ou
a reabilitação do tecido preexistente, inserida num
processo de legalização, se garantidas condições
mínimas de habitabilidade (n.º 3 do artigo 11.º).
Neste caso, além das soluções individuais de rea-
lojamento, contempla-se uma solução habitacional
promovida pelo município, diretamente ou através
de soluções coletivas apresentadas pelos próprios
beneciários, “[a]grupados sob a forma de associa-
ção de moradores ou de cooperativa de habitação
e construção” (n.º 2, alínea c) do artigo 11.º)18.
Os “núcleos degradados”, por sua vez, referem-se
a “áreas urbanas degradadas cujas edicações […]
constituam núcleos habitacionais com uma identidade
própria e diferenciada”, como as chamadas ilhas,
pátios ou vilas (artigo 12.º), para os quais se pre-
coniza a reabilitação, a efetuar pelos proprietários
das edicações ou por entidades gestoras, no caso
de operações de reabilitação urbana sistemáticas
(n.º 4 do artigo 12.º)19. Desde que a situação o
justique, contempla-se ainda a conjugação de
diferentes soluções, como a aquisição de terrenos
e a reabilitação dos edifícios neles existentes (artigo
28.º), apontando assim saídas para casos em que a
questão fundiária seja necessariamente o primeiro
passo a dar.
Ao nível da construção e implementação das
soluções apresentadas, destaca-se a possibilidade
de cooperação e participação de diferentes tipos
de atores, públicos ou privados, na denição e
concretização dos procedimentos que assegurem
as soluções habitacionais encontradas (artigo 3.º).
A par de “beneciários diretos” – as pessoas que
preenchem os requisitos de acesso –, o Programa
dene “entidades beneciárias”, que podem receber
apoio para a promoção de soluções habitacionais
a pessoas e agregados elegíveis na qualidade de
“beneciários diretos”. Podem participar, com este
estatuto, o Estado e as empresas, entidades ou
institutos públicos, bem como as misericórdias e
instituições particulares de solidariedade social (IPSS)
e pessoas coletivas de interesse público, as associa-
ções de moradores, as cooperativas de habitação e
construção e, ainda, os proprietários de frações ou
prédios localizados em núcleos degradados (artigo
26.º). Por último, tendo em conta a sua “proximidade
com os cidadãos e com o território” (preâmbulo), é
atribuído às autarquias um “papel imprescindível e
instrumental”. Cabe ao município, antes de mais,
denir uma estratégia local de habitação e priorizar
as soluções habitacionais que pretender ver desen-
volvidas no seu território, devendo as candidaturas
enquadrar-se nessa mesma estratégia (artigo 30.º).
No âmbito deste novo pacote de políticas, a
Secretaria de Estado da Habitação promoveu um
amplo debate e a divulgação das medidas anun-
ciadas, quer na fase de discussão pública, quer por
ocasião da sua entrada em vigor. Foi neste contexto
que os representantes das associações que integram
a Comissão de Bairro da Cova da Moura tomaram
contacto com as medidas anunciadas e procuraram
recolocar na agenda pública o caso do seu bairro,
ainda pendente de uma intervenção pública diri-
gida à resolução da situação fundiária, urbanística
e habitacional. Em janeiro de 2018 reúnem com a
secretária de Estado, Ana Pinho, e em setembro de
2018 obtêm esclarecimentos adicionais por parte
do corpo técnico do IHRU, passando a depositar
algumas esperanças no 1.º Direito.
Embora seja necessário conhecer, antes de
mais, a estratégia de habitação denida pelo muni-
cípio, este programa levanta algumas questões,
analisadas à luz do caso do Bairro da Cova da Moura.
Ao permitir, enquanto situações especícas, a procura
de soluções coletivas e o envolvimento de atores
locais, como as associações de moradores e outras
formas de organização dos beneciários, o programa
poderá encontrar respostas para casos como o da
Cova da Moura, há muito em aberto, incorporando
as dinâmicas complexas e participadas próprias do
lugar. No entanto, as categorias territoriais pro-
postas, de “núcleo precário” e “núcleo degradado”,
apresentam algumas limitações. Focadas quase
exclusivamente nas características urbanísticas
e nas suas dimensões mais problemáticas, estas
categorias transportam em si uma carga nega-
tiva e pejorativa, que as aproxima das situações
abrangidas pelo congénere PER, não integrando
como recursos para a intervenção a história e a
identidade consolidadas no bairro enquanto lugar. O
potencial enfoque territorial é limitado, igualmente,
ao considerar-se como beneciários diretos do 1.º
Direito exclusivamente as famílias em situação de
carência nanceira, excluindo uma grande parte dos
moradores, entre eles os proprietários das constru-
ções com melhores condições de habitabilidade,
inviabilizando, assim, uma intervenção integrada e
abrangente, à escala de todo o bairro. Da mesma
forma, cam ainda fora do programa os moradores
que não tenham a sua situação regularizada no país,
impedindo, como referido anteriormente, a leitura
do direito à habitação enquanto direito universal.
Sílvia Jorge e Júlia Carolino
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Ao atribuir um papel também aos proprietários,
a categoria “núcleo degradado” aproxima-se mais
da realidade complexa que caracteriza, como vimos,
a composição e as dinâmicas da Cova da Moura,
embora, na sua denição, ambas as categorias
procurem, à sua maneira, dar conta de elementos
que remetem para a dimensão do lugar: no caso
dos “núcleos precários”, contemplam-se as “relações
de proximidade e de vizinhança” (artigo 11.º, ponto
1), enquanto no caso dos “núcleos degradados” se
sublinha a sua suposta “identidade própria e dife-
renciada no espaço urbano” (artigo 12.º, ponto 1).
Conclusões
Apesar do esforço nanceiro na promoção
pública de habitação nas últimas décadas, várias
famílias continuam em Portugal a aguardar o acesso
a uma habitação adequada e a condições de vida
condignas ou, simplesmente, a salvaguarda do
direito ao lugar e à habitação. Com a recém-criada
Secretaria de Estado da Habitação, comprometida em
garantir o acesso de todas e todos a uma habitação
e a passagem da reabilitação de exceção a regra,
que outras possibilidades se levantam ao nível dos
territórios autoproduzidos?
Cruzando uma análise da produção do lugar, à
luz do caso do bairro da Cova da Moura, com a das
perspetivas recentemente abertas pela Nova Geração
de Políticas de Habitação, procurámos averiguar de
que modo, e até que ponto, poderá o programa 1.º
Direito, dirigido para os casos de maior precariedade
habitacional, contribuir para a regularização deste
território autoproduzido. A par de elementos que
surgem como potencialmente favoráveis a este m,
identicámos outros que poderão ser limitadores, ao
reduzir a poucas dimensões, iminentemente técnicas
e jurídicas, uma realidade muito mais complexa,
característica do processo de produção do lugar.
Na análise levada a cabo, vimos que a cons-
tituição do bairro, com a sua história e identidade
especícas, envolveu um longo processo, marcado
por formas de ação e visões de possibilidade diferen-
tes entre si, revelando uma realidade local plural e
negociada, marcada por distintos protagonismos. Por
outro lado, vimos também que a mesma incorporou
desde muito cedo a perceção de que o bairro não se
faria e defenderia apenas com os que ali habitam,
desenvolvendo-se antes em relação com o poder
público, relação essa também ela multifacetada e
mutável ao longo do tempo. Nesta análise, foram-se
revelando as estratégias desenvolvidas pelos atores,
com o intuito de assegurar um direito a permanecer
num espaço da cidade cada vez mais central e, por
isso mesmo, apetecível do ponto de vista imobiliá-
rio, onde foram desenvolvendo formas de relação,
identicação e pertença próprias do lugar. Em face
desta complexidade, precisamos de nos demarcar
de uma visão estritamente técnica dos desaos em
aberto, retomando um olhar sociopolítico que fomos
designando como de luta pelo direito ao lugar.
Notas
1 Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 163/1993, de 7 de maio.
2 Decreto-Lei n.º 37/2018, de 4 de junho.
3 O território em questão era, à data, parte integrante da
autarquia de Oeiras. Apenas em 1979 foi criado o muni-
cípio da Amadora, de que o bairro da Cova da Moura faz
hoje parte.
4
Era comum o esforço de, reunindo familiares, amigos e/
/ou contratando alguém, construir intensivamente durante
um m-de-semana, para modo evitar que a obra fosse
identicada pelas autoridades antes de ter um teto e dar
sinais de ser ocupada para habitação.
5
A CDU é uma coligação formada pelo Partido Comunista
Português e pelo Partido Ecologista “Os Verdes”.
6
Sobre a projeção de uma identidade cabo-verdiana para
o bairro, ver o documentário realizado e produzido por
Rui Simões em 2008, intitulado Ilha da Cova da Moura.
7 Direção-Geral do Património Cultural, Anúncio n.º
323/2013, publicado em Diário da República, 2.ª série,
N.º 200, de 16 de outubro de 2013.
8 “O Clube”, como é conhecido ainda hoje localmente,
alterou mais tarde a designação para “Associação de
Solidariedade Social do Alto da Cova da Moura”.
9
Levantamento disponível em: http://www.cm-amadora.
pt/intervencao-social/habitacao-social.html (acesso
realizado em outubro de 2018).
10 Decreto n.º 53/2003, de 11 de dezembro.
11 Resolução do Conselho de Ministros n.º 143/2005, de 2
de agosto, publicada em Diário da República, I Série – B,
de 7 de setembro de 2005.
12 O Grupo de Parceiros Locais era composto por um total
de 28 instituições.
13 Ver, por exemplo, o artigo intitulado “A Cova da Moura
tem dono e todos lucram à nossa conta”, assinado por
Valentina Marcelino e publicado no Diário de Notícias a
24 de outubro de 2016.
14 Na sequência da sua visita a Portugal, em dezembro de
2016.
15
Disponível em: http://www.cm-amadora.pt/intervencao-
-social/habitacao-social.html (acesso realizado em outubro
de 2018).
16 Decreto-Lei n.º 37/2018, de 4 de junho.
17
Mediante a aquisição de terrenos e a construção ou
aquisição de edifícios habitacionais.
18
Na mesma alínea especica-se, ainda: “para atribuição de
habitações em arrendamento ou propriedade resolúvel”.
19 Caso os proprietários se oponham a esta operação, está
previsto o recurso à tomada de posse administrativa ou a
expropriação por utilidade pública (n.º 4 do artigo 12.º).
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