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A Constituição cidadã e os legados da ditadura

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A Constituição de 1988 no contexto da longa transição da ditadura à democracia. A ditadura e suas tentativas de institucionalização: a Constituição de 1967. As lutas por uma Constituinte soberana. A convocação da Constituinte em 1985: alcance e limites. As eleições de 1986. A trajetória da Constituinte: organização interna, participação dos lobbies e mobilização popular. A Constituição de 1988: inovações democráticas e legados da ditadura. Cidadania social e democrática X centralização do poder e tutela militar. O caráter híbrido da nova Constituição e sua correspondência com o processo de transição “transicional e transacional”. A incidência da cultura política nacional-estatista. O retalhamento da nova Constituição e seu precoce envelhecimento. A atual crise política e a necessidade de uma nova Constituição.
A Constituição cida
e os legados da ditadura
e Citizen Constitution and the Legacies of the Dictatorship
Daniel Aarão Reis*
Resumo
A Constituição de 1988 no contexto da longa transição da ditadura
à democracia. A ditadura e suas tentativas de institucionalização:
a Constituição de 1967. As lutas por uma Constituinte soberana.
A convocação da Constituinte em 1985: alcance e limites. As
eleições de 1986. A trajetória da Constituinte: organização interna,
participação dos lobbies e mobilização popular. A Constituição de
1988: inovações democráticas e legados da ditadura. Cidadania
social e democrática X centralização do poder e tutela militar. O
caráter híbrido da nova Constituição e sua correspondência com
o processo de transição “transicional e transacional”. A incidência
da cultura política nacional-estatista. O retalhamento da nova
Constituição e seu precoce envelhecimento. A atual crise política
e a necessidade de uma nova Constituição.
Palavras-chave:
Constituição. Transição. Ditadura & Democracia. Inovações
democráticas & Legados ditatoriais.
Abstract
e 1988 Constitution in the context of the long transition from
dictatorship to democracy. e dictatorship and its attempts at
institutionalization: the 1967 Constitution. e struggles for a
sovereign Constituent Assembly. e convening of the Constituent
Assembly in 1985: scope and limits. e elections of 1986. e
trajectory of the Constituent Assembly: internal organization,
participation of the lobbies and popular mobilization. e
1988 Constitution: democratic innovations and legacies of the
dictatorship. Social and democratic citizenship X centralization of
power and military guardianship. e hybrid character of the new
Constitution and its correspondence with the “transitional and
transactional” transition process. e incidence of the national-
statist political culture. e shredding of the new Constitution and
its precocious aging. e current political crisis and the need for a
new constitution.
* Professor Titular de H istória Contemporânea da Universidade Federal Flumi nense/UFF.
Locus:
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v. 24, n. 2,
p. 277-297,
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Keywords:
Constitution. Transition. Dictatorship & Democracy. Democratic
innovations & dictatorial legacies
A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, apesar
de seus limites, contradições e ambivalências, que serão discutidos no
presente artigo, encerra uma fase – a da transição da ditadura ao estado
de direito democrático.
O estado de exceção, ou seja, a ditadura, desaparecera desde o
início de 1979, quando deixaram de ter vigência os Atos Institucionais.
É certo que o último general-presidente, João Figueiredo, fora eleito sob
os parâmetros da ditadura. Entretanto, desde o início do ano em que
ocorreu sua posse, em março de 1979, não mais existiam os instrumentos
de exceção típicos de um regime ditatorial. Ainda não se estabelecera
a democracia, mas não havia a ditadura, sendo esta uma das mais
interessantes particularidades da transição brasileira da ditadura para a
democracia, cuja segunda e última fase perdurou por quase dez anos.1
A Constituição de 1988, sétima na história do país,2 foi produto
de uma longa e contraditória luta, plena de zigzagues e só pode ser
compreendida, desde sua convocação até o encerramento dos trabalhos,
em sua forma e seu conteúdo, no contexto da complexa transição da
ditadura para a democracia.
A demanda por uma Constituinte, a rigor, gurava em plataformas
de diversas oposições desde a segunda metade dos anos 1960. O
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) cedo defenderam esta proposta. Mais tarde, em
meados dos anos 1970, ela seria também incorporada por organizações
de esquerda, até mesmo por algumas das mais radicais, sendo assumida
igualmente pelos partidos legais de oposição que se rezeram depois de
1979, como o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido do
Trabalhadores (PT), entre outros.3
Em ns de 1966 e inícios de 1967, o ditador Castello Branco
pretendeu atender a estas demandas. Nomeou uma comissão de notáveis,
supervisionada por ele próprio, e incumbiu o Congresso eleito em 1962,
mutilado por dezenas de cassações, sem nenhuma representatividade, a
1 A primeira fase teve início com a abertura “lenta, segura e gradual”, deagrada após a
posse do general Geisel, em março de 1974. Cf. Daniel Aarão Reis, 2013 e 2014.
2 No império, o país conheceu a Constituição outorgada de 1824. No período republicano,
houve mais cinco Constituições: as de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967. Cf. Cedi, 1992, J.A.
de O. Lima et alii, 2013; A. Pilatti, 2008.
3 Para as estr uturas político-partidárias brasileira s, cf. R. Meneguel lo, 1998; J. Nicolau, 2012.
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aprovar, a toque de clarins, uma nova Constituição para a discussão e
votação da qual não fora mandatado.
Assim nasceu, no contexto de uma farsa, sem nenhuma
legitimidade, a sexta Constituição brasileira.
A empreitada tinha um duplo objetivo: contribuir para a
institucionalização da ditadura (seja o que isto pudesse signicar) e
amarrar o próximo ditador – já “eleito” por um Congresso obediente e
encolhido – num quadro legal alheio à sua vontade.4 Entre não poucos
criou-se a ilusão de que a ditadura fora superada, cedendo lugar a um
Estado de Direito autoritário.
O engano evidenciou-se em menos de dois anos. Em 13 de
dezembro de 1968, a edição do Ato Institucional nº 5 radicalizou
novamente a ditadura, reinstaurando o estado de exceção. Vieram depois
várias emendas constitucionais, algumas aprovadas pelo Congresso,
outras impostas pela ditadura, desgurando o texto de 1967.
Quando os atos institucionais deixaram de vigorar, em janeiro
de 1979, como já referido, o ordenamento jurídico existente parecia
uma colcha de retalhos muito mal retalhada – as oposições passaram a
designá-lo, com razão, como um “entulho autoritário”.
Cresceu então o movimento por uma nova Constituinte,
autêntica, eleita pelo povo, explicitamente mandatada para construir
um novo Estado de Direito democrático. Forças políticas mais radicais
– e consequentes – propunham como condições prévias, entre outras, o
desmantelamento dos aparelhos repressivos (DOI-CODI), a liberdade
irrestrita de organização partidária e sindical, o direito de greve.
Havia também controvérsias quanto ao modo de escolha dos
constituintes – u ma assembleia unicamesra l, na boa trad ição democrática?
Um congresso “normal”, mas eleito com poderes constituintes?
O general-presidente e as lideranças políticas que haviam apoiado
a ditadura hesitavam. Uma Constituinte poderia “desestabilizar” a
transição, conveniente seria esperar por tempos melhores, argumentavam.
Enquanto nada se decidia, novas emendas constitucionais iam-
se acumulando, adensando o “entulho autoritário”,5 confundindo a
ordem jurídica.
4 E. Gaspari, para se referir ao período ditatorial regido por Castello Branco, cunhou a
expressão “ditadura envergonhada”. Outros, sem usar a expressão, tendem a amenizar
o mesmo período. Trata-se de uma avaliação questionável, pois a ditadura de Castello
Branco foi duríssima, dissolvendo partidos políticos, fechando, por um breve tempo, o
próprio congresso nacional, cassando direitos políticos e acobertando a tortura. Cf. Elio
Gaspari, 2002.
5 Entre 1979 e 1985, aprovaram-se mais 14 emendas constitucionais, somando às 11 já
existentes, elevando seu número para 25. Este alto patamar, em parte, devia-se ao fato de
que, numa da s emendas impost as pela ditadur a (Governo Gei sel), em 1977 (pacote de abril),
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Os políticos reunidos na chamada “Aliança Democrática”,
liderados por Tancredo Neves e José Sarney, comprometeram-se, então, a
convocar, uma vez eleitos, uma Assembleia Constituinte.6
Apesar da inesperada morte de Tancredo Neves, em 21 de abril
de 1985, José Sarney, já investido como presidente da República desde 15
de março, honrou a promessa, enviando ao Congresso Nacional, em 28
de junho, proposta de emenda constitucional, atribuindo ao Congresso a
ser eleito no ano seguinte, em novembro de 1986, poderes constituintes.
Houve protestos. O que se propunha, alegava-se, não tinha foros de
uma assembleia autêntica, democrática, unicameral. Em vão. O governo,
apoiado pelos setores conservadores,7 citava os precedentes de 1891 e
1945, quando congressos eleitos haviam incorporado simultaneamente
o trabalho de elaborar uma nova Constituição e as tarefas legislativas
rotineiras. De mais a mais, esta metodologia estaria mais de acordo com
a abertura “lenta, gradual e segura”, e negociada, que se desenrolava
desde o início do governo Geisel.8
Depois de intensa discussão no congresso nacional e na sociedade,
a proposta do governo, com modicações, foi aprovada e promulgada
como Emenda Constitucional nº 26, em 27 de novembro de 1985.9
Ainda neste mesmo ano, e cumprindo outra promessa eleitoral,
o presidente José Sarney instituiu a chamada Comissão Provisória de
Estudos Constitucionais, também conhecida pelo nome de seu líder,
Afonso Arinos, com a função de construir um projeto que serviria de
base, ou de inspiração, para os trabalhos dos constituintes.10
As eleições de novembro de 1986, mobilizando 69 milhões
de eleitores registrados, resultaram em vitória ampla e arrasadora do
o quorum para a aprovação deste tipo de emenda fora rebaixado para maioria absoluta dos
membros do Congresso Nacional. Cf. Cedi, 1992 e J.A.O. Lima et alii, op. cit.
6 A chapa formada por Tancredo Neves e José Sarney foi eleita indiretamente, pelo
Congresso Nacional, em 15 de janeiro de 1985.
7 A ditadura, então, mesmo desgastada, dispunha ainda de bases amplas na sociedade
brasileira, questão já aprofundada por vários trabalhos acadêmicos, cf., entre outros, G.
A.A. Ferreira, 2015; J.M. Cordeiro, 2015; L. Grinberg, 2009; R.P.S. Motta, 2014, 2014a;
D. Rollemberg, 2008 e 2010; D. Rollemberg e S.V. Quadrat, 2010.
8 Para a compreensão do governo Geisel, cf. M.C.S. D’Araújo, 1995 e 2002. Para o
processo de abertura, do ponto de vista militar, cf. M.C.S. D’Araújo, C. Castro e G.A.D.
Soare s, 1995.
9 No corpo da Emenda Constitucional n° 26, enxertaram-se dispositivos que modicaram
– ampliando seu escopo – a Lei de Anistia, de agosto de 1979. Observe-se ainda que,
pouco antes, em 10 de maio de 1985, haviam sido legalizados o Partido Comunista do
Brasil e o Partido Comunista Brasileiro.
10 Decreto n° 91.450, de 18 de julho de 1985. A Comissão foi duramente criticada pela Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) e por outros setores progressistas pela suposta intenção de
interferir indevidamente na, e questionar a, soberania da Assembleia Constituinte.
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Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).11 Beneciado
pelo chamado Plano Cruzado, editado pelo Governo,12 cujos resultados
imediatos haviam jugulado a inação e promovido uma importante
redistribuição de renda, o PMDB elegeu todos os governadores de estado,
à exceção de Sergipe, que cou a cargo do PFL.13
As eleições para deputados e senadores conrmariam a força do
PMDB e a hegemonia da Aliança Democrática (PMDB + PFL). De um
total de 489 cadeiras, os dois partidos elegeram 378 deputados (PMDB
260 e PFL 118), ou seja, 77,29% dos escolhidos. Ao lado deles, surgiram
4 partidos de força mediana: PDS (33 deputados); PDT (24); PTB (17)
e PT (16). E ainda 5 partidos nanicos: PL (6); PDC (5); PCdoB(4);
PSB(3) e PCB(3).
Adicionaram-se ainda, para compor o Congresso Constituinte, 72
senadores: 49 eleitos em 1986 e mais 23, eleitos em 1982,14 quase todos
do PMDB ou do PFL.
Aparentemente, o jogo estava jogado. A maioria moderada dos
constituintes aprovaria uma Constituição à imagem e à semelhança dos
interesses das forças conservadoras.
Mas aquela maioria estava permeada de contradições internas, e
a história da Constituinte evidenciaria maior complexidade do que estes
números brutos pareciam indicar.
Instalado o Congresso constituinte, em 1º de fevereiro de 1987
e aprovado seu regimento provisório, no dia seguinte, abriu-se uma
primeira batalha – a referente à discussão e à aprovação do Regimente
Interno dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, aprovado
apenas em 25 de março. Foi já aí possível vericar que a maioria
confortável formada pelo PMDB e pelo PFL não tinha a presumível
consistência e homogeneidade políticas.
11 A emenda constitucional que liquidou o bipartidarismo no país, em 1979, determinou
que todas as agrupações políticas deveriam autodenominarem-se “partido”. Desde então,
o MDB adquiriu o nome de PMDB. Para as eleições de 1986: Câmara dos Deputados;
CEDI, 1992; M.D. Kinzo, 1990; L.M. Rodrigues, 1987; Senado Federal.
12 Decreto-Lei n° 2.283, de 27 de fevereiro de 1986.
13 PFL – Partido da Frente Libera l, constituído em 1984 por setores import antes que haviam
apoiado a ARENA, partido da ditadura enquanto durou a experiência bipartidária,
inaugurada em 1965. Com a reforma constitucional de 1979, abolindo o bipartidarismo,
o grosso dos partidários da ARENA fundou o PDS – Partido da Democracia Social. Foi
dali que saíram as lideranças que formariam o PFL, em 1984. PFL e PMDB constituíram
a Aliança Democrática, que elegeu indiretamente Tancredo Neves e José Sarney em 15 de
janeiro de 1985.
14 Era mais uma das incongruências deste Congresso constituinte – senadores eleitos
em 1982, sem nenhum mandato para elaborar a Constituição, participariam, em pé
de igualdade, com os congressistas eleitos para elaborar a nova Constituição. Cf. L.M.
Rodrigues, op. cit., 1987.
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A arquitetura concebida e aprovada para o trabalho dos
constituintes previa uma teia complexa de oito Comissões Temáticas
(CTs), correspondentes aos grandes títulos da futura Constituição,
e de subcomissões (três para cada Comissão Temática). O trabalho
destas comissões e subcomissões convergiria para uma Comissão de
Sistematização (CS) que prepararia um primeiro projeto, a ser submetido
à discussão plenária em dois turnos.
O quadro delineou-se da seguinte forma:
Quadro 1
Comissões Temáticas Subcomissões
I. Comissão da Soberania dos Direitos e
Garantias do Homem e da Mulher
I-A – Subcomissão da Nacionalidade, da
Soberania e das Relações Internacionais
I-B – Subcomissão dos Direitos Políticos,
dos Direitos Coletivos e das Garantias
I-C – Subcomissão dos Direitos e
Garantias Individuais
II. Comissão da Organização do Estado
II-A – Subcomissão da União, Distrito
Federal e Territórios
II-B – Subcomissão dos Estados
II-C – Subcomissão dos Municípios e
Regiões
III. Comissão da Organização dos Poderes
e Sistema de Governo
III-A – Subcomissão do Poder Legislativo
III-B – Subcomissão do Poder Executivo
III-C – Subcomissão do Poder Judiciário e
do Ministério Público
IV. Comissão da Organização Eleitoral,
Partidária e Garantia das Instituições
IV-A – Subcomissão do Sistema Eleitoral e
Partidos Políticos
IV-B – Subcomissão de Defesa do Estado,
da Sociedade e de sua Segurança
IV-C – Subcomissão de Garantia da
Constituição, Reformas e Emendas
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V. Comissão do Sistema Tributário,
Orçamento e Finanças
V-A – Subcomissão de Tributos,
Participação e Distribuição de Receitas
V-B – Subcomissão de Orçamento e
Fiscalização Financeira
V-C – Subcomissão do Sistema Financeiro
VI. Comissão de Ordem Econômica
VI-A – Subcomissão de Princípios
Gerais, Intervenção do Estado, Regime
de Propriedade do Subsolo e da Atividade
Econômica
VI-B – Subcomissão da Questão Urbana e
Tra nsp ort e
VI-C – Subcomissão da Política Agrícola e
Fundiária e da Reforma Agrária
VII – Comissão da Ordem Social
VII-A – Subcomissão dos Direitos dos
Trabalhadores e Servidores Públicos
VII-B – Subcomissão de Saúde, Seguridade
e do Meio Ambiente
VII-C – Subcomissão dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Decientes
e Minorias1
VIII – Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, da Ciência e
Tecnologia e da Comunicação
VIII-A – Subcomissão da Educação,
Cultura e Esportes
VIII-B – Subcomissão da Ciência e
Tecnologia e da Comunicação
VIII-C – Subcomissão da Família, do
Menor e do Idoso
Fonte: Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).15
O Regimento Interno xava prazos determinados para o início e
m dos trabalhos de cada subcomissão. Os relatórios auiriam para as
Comissões Temáticas e, integrados, avaliados e votados por estas, seriam
encaminhados para a Comissão de Sistematização e daí, conformados
em um Projeto, para os debates plenários.
As Comissões Temáticas instalaram-se em 1º de abril de 1987.
As subcomissões temáticas começaram seus trabalhos em 7 de abril. Já a
Comissão de Sistematização, com 93 titulares, instalou-se em 9 de abril.
15 Publicado no Diário da Assembleia Nacional Constituinte/DANC, de 25 de março
de 1987, p. 874-875, apud J.A. de O.LIMA et alii, 2013, 2 vols. Para os trabalhos da
Constituinte, cf. J.A. de O. Lima et alii, op. cit.; J. Nicolau, 1997; A.L. Backes et alii,
2009; e A. Pilatti, 2008.
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As subcomissões receberiam sugestões até 6 de maio. Foram
formuladas, no total, 9.653 sugestões. Depois de alguns adiamentos,
encerraram seus trabalhos no dia 22 de maio, quando entregaram seus
relatórios às Comissões Temáticas, que deram início às suas atividades.16
Conforme previsto pelo Regimento Interno, as Comissões
Temáticas, depois de analisarem mais de 14mil emendas, entregaram
suas conclusões ao relator da Comissão de Sistematização, Deputado
Bernardo Cabral, em 17 de junho.17 Ele teria 10 dias para apresentar seu
Relatório, um anteprojeto de Constituição, o que foi, de fato, realizado,
em 26 de junho.
O projeto continha 501 artigos e suscitou uma comoção nos meios
conservadores, particularmente em suas alas liberal-privatistas, também
denominadas de “neoliberais”, que o criticariam duramente, na forma e,
principalmente, no conteúdo.
Na forma, por ser extenso demais e prolixo, incluindo no texto
constitucional temas e assuntos que seriam, na voz dos críticos, muito
melhor tratados em leis ordin árias. Mas os problemas principai s derivavam
do conteúdo, considerado demasiadamente “populista”, corporativista e
estatista, quando não, socializante. O projeto era acusado pelos liberal-
privatistas de anacronismo, de ignorar o “ar do tempo”, marcado pelas
reformas liberalizantes em todo o mundo, principalmente na Inglaterra
e nos EUA, mas também nas sociedades europeias adeptas da social-
democracia e da regulação dos mercados. Até mesmo na União Soviética,
pátria e referência histórica do socialismo estatista, o reformismo liderado
por M. Gorbatchev, desde 1985, fazia acenos à liberdade econômica
e críticas à exagerada intervenção do Estado. O mesmo acontecera na
China comunista, desde 1978, que abria sua economia aos investimentos
internacionais. Tudo isso parecia não ser considerado pelo projeto do
deputado Bernardo Cabral que acionava, ao contrário, fantasmas do
passado avaliados como enterrados.
Desencadeou-se uma autêntica ofensiva política. Havia uma
certa ironia naquele ímpeto, pois muitos grupos de interesse, críticos
ao “estatismo”, tinham sido os principais beneciários do gigantismo
estatal construído pelo regime ditatorial, em particular nos governos dos
generais Médici e Geisel. Mas é fato que, desde 1974, assustados com
este mesmo gigantismo, muitos empresários passaram, progressivamente,
a apoiar a abertura liderada por Geisel e outros caminhos no sentido da
democratização do país e do enfraquecimento do intervencionismo do
Estado na economia e na sociedade em geral.
16 Para a cronologia e fatos dos trabalhos constituintes, cf. J.A. de O. Lima, op. cit., 2013.
17 Cf. B. Cabral, 2009.
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Tais críticas, contudo, apesar de sua virulência, não obtiveram
resultado imediato, mas assediariam, até o m, o trabalho dos
constituintes.
O projeto de Bernardo Cabral recebeu um pouco mais de 5.600
emendas, das quais o Relator se permitiu apreciar apenas 977. Em
9 de julho o Relator entregou, anal, seu projeto para a consideração
da Comissão de Sistematização (CS). Aprovado, com 496 artigos, foi
entregue à Presidência da Assembleia que determinou o início dos
debates, em primeiro turno (prazo de 40 dias), pelo Plenário do Congresso
Constituinte, em 15 de julho de 1987.
A esta altura caberiam algumas observações.
A forma de organização prevista pelo Regimento Interno,
em Comissões Temáticas e Subcomissões, parecia engenhosa e
descentralizante – e democratizante. No entanto, a denição –
fundamental – dos grandes títulos da futura Constituição, que embasou
a formação do colar de comissões e subcomissões, tinha sido obra de um
pequeno grupo de líderes, entre os quais se destacava a gura de Mario
Covas, líder do PMDB. Estudiosos viram ali a marca das Constituições
portuguesa e espanhola, recentemente aprovadas, e que tinham também
sido fruto de processos de transição pacícos e negociados. Não era muito
evidente a transparência deste processo, mas não houve como questioná-
lo ou revertê-lo.
Por outro lado, e em contraste com uma dinâmica aparentemente
democrática, cresceu a percepção de que tudo o que fosse substantivo
seria resolvido pela Comissão de Sistematização, que alguns começaram
a identicar como uma espécie de funil, onde os grandes temas seriam,
de fato, decididos. Indagavam-se os mais críticos se uma verdadeira
“miniconstituinte” estaria ali tomando corpo.
Em sentido inverso (e contrariando pesquisas de opinião,
publicadas imediatamente antes do início dos trabalhos do Congresso
constituinte, segundo as quais haveria um grande desinteresse ou mesmo
ignorância em relação à discussão da nova Constituição), o fato é que
as pautas e os temas debatidos na Constituinte suscitavam interesse e
mobilizavam a opinião pública e as principais mídias.
Multiplicavam-se grupos de pressão com presença ativa nos
corredores do Congresso, fazendo lobby, defendendo seus interesses,
cabalando opiniões e votos, além de manifestações públicas que se
realizavam nos gramados em volta do Congresso, sem contar milhares de
cartas endereçadas aos constituintes. Era grande também a mobilização
em torno das chamadas “emendas populares”, facultadas desde que
obtivessem 30mil assinaturas e fossem encaminhadas por, pelo menos,
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3 entidades da sociedade civil. No total, seriam apresentadas 122 destas
emendas, subscritas por cerca de 12 milhões de assinaturas.
Finalmente, mas não menos importante, importaria mais uma vez
assinalar, como acima referido, a insatisfação dos meios conservadores
liberal-privatistas. Eles se mobilizaram fortemente e, como se verá, esta
mobilização teria certo impacto na elaboração da nova Constituição.
Nos debates plenários, iniciados, como se disse, em 15 de julho, e
até 13 de agosto, quando vencia o prazo para a apresentação de emendas,
foram apresentadas 20.790 sugestões. Havia ainda a considerar 5.237
emendas transferidas da fase anterior e mais 122 emendas populares. Um
trabalho de Hércules. A ser desbastado pelo Relator, que apresentaria um
novo projeto à Comissão de Sistematização (CS).
Intensicaram-se, neste período, os lobbies e as pressões de toda
a sorte sobre os constituintes. Estimava-se que cerca de 10mil pessoas
transitavam diariamente pelo Congresso apresentando propostas e
defendendo interesses de grupos particulares e de corporações privadas
e públicas.
Em 26 de agosto, Bernardo Cabral apresentou à CS seu novo
parecer (um substitutivo, no jargão parlamentar) ao primeiro projeto.
Vinha mais enxuto mas, ainda assim, continha 374 artigos (305
disposições permanentes e 69 disposições transitórias). Abriu-se, então,
uma nova rodada de debates na CS, com o recebimento de mais 14.320
emendas18 e mais a discussão das emendas populares.
Tentando incorporar, ao menos em parte, as novas propostas
e sugestões, o Relator apresentou, em 19 de setembro, um novo
Substitutivo, com 336 artigos (264 disposições permanentes e 72
disposições transitórias). Abriu-se aí um novo prazo para os constituintes
apresentarem requerimentos de “destaques”, ou seja, trechos do texto a
serem avaliados e votados em separado. Nada menos que 8.377 destaques
foram propostos.
Os debates na CS, cujo término estava previsto pelo Regimento
Interno para 8 de outubro, prolongaram-se, no entanto, até 18 de
novembro, encerrando-se aí a apreciação dos destaques, num total de
535 votações.
Poucos dias depois, em 24 de novembro, o Projeto de
Constituição, chamado Projeto A, foi entregue ao Presidente da
Assembleia Constituinte. Continha ele 335 artigos (271 disposições
permanentes e 64 disposições transitórias).
O Projeto suscitou críticas de distintos horizontes.
Alguns setores conservadores continuavam a mirar na extensão
do texto constitucional, considerado exagerado. A questão merecia
18 A esta altura, somavam-se, desde o início do processo, 35.111 emendas.
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um tratamento “técnico”, mas, a rigor, não se tratava de um problema
apenas formal. Muitos interesses – e as grandes corporações privadas e
públicas em particular –, queriam garantir suas posições, plasmando-as
constitucionalmente, o que faria com que fosse difícil, depois, alterá-las,
salvo com maiorias qualicadas de 2/3, problemáticas de alcançar.19
No exercício da crítica contundente, continuavam muito ativas,
como já referido, as alas favoráveis ao liberalismo-privatista. O que mais
incomodava a estes setores era o gigantismo estatal e sua inclinação
nacionalista e corporativista, aspectos que seriam mantidos e consolidados
no Projeto A, o que conrmava a força da tradição nacional-estatista
brasileira, estruturada na base do corporativismo estatal, fundada numa
outra ditadura, a do Estado Novo (1937-1945).20
A crítica a esta tradição, embora bem posicionada nas grandes
mídias de então (imprensa, rádio e TV), não conseguia, porém,
arregimentar num bloco uníssono as elites econômico-nanceiras. Com
efeito, o nacional-estatismo articulava um conjunto heterogêneo de forças
políticas e de classes sociais, congregando um amplo arco que integrava
parlamentares de centro, de esquerda e de direita, incluindo-se aí radicais
de distintos bordos.
O Estado hipertroado foi consagrado nos Títulos III (Da
organização do Estado), IV (Da organização dos poderes) e VI (Da
tributação e do Orçamento). Em seus numerosos artigos, estabelecia-se a
preeminência da União sobre os estados (particularmente enfraquecidos)
e os municípios e a preponderância do Poder Executivo sobre o Legislativo
e o Judiciário.
Numa outra dimensão, mereceu críticas acerbas de alguns (não
muitos) políticos de esquerda, o Título V (Da defesa do Estado e das
instituições democráticas): consagraram-se ali o estatuto particular das
Forças Armadas (um Estado dentro do Estado?) e a sua condição de
tutoras da Lei e da Ordem (Capítulo II do Título V). Curiosamente,
estes dispositivos não provocaram reservas dos que clamavam contra o
“gigantismo” do Estado.
Os dispositivos a respeito da Ordem Econômica e Financeira
(Título VII) foram amplamente favoráveis aos conservadores,
especialmente no Capítulo III (Da política agrícola e fundiária e da
Reforma Agrária), onde se vericaram, segundo críticas fundadas das
esquerdas, retrocessos até mesmo em relação a legislações aprovadas
19 Para que uma Constituição adquirisse um mínimo de estabilidade, tornou-se uma
tradição prever que alterações no futuro só sejam admitidas no texto aprovado com
maiorias qualicadas de 2/3 dos representantes eleitos.
20 Cf. Angela Castro Gomes, 2005 e L.M. Rodrigues, op. cit., 1980.
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Daniel Aarã o Reis
288
na época da ditadura (Estatuto da Terra).21 Entretanto, a manutenção
dos monopólios estatais (art. 177) não agradou aos defensores do
liberalismo privatista.
Do ponto de vista dos valores democráticos, o Projeto apresentava
ambivalências.
O Título II (Dos direitos e garantias individuais), em seus
capítulos I (Dos direitos e deveres individuais e coletivo) e II (Dos
direitos sociais) contemplava os interesses gerais e, em particular, os das
classes populares com o reconhecimento – expresso – dos direitos sociais
(Título I, capítulo II). Pela sua amplitude, uma notável inovação na
tradição constitucional brasileira.
Também contribuía para uma visão mais ampla da democracia a
instauração do Ministério Público (Título IV, capítulo IV), e os direitos
consagrados no Título VIII (Da ordem social), como o conceito de
Seguridade Social (Capítulo II).
Entretanto, os dispositivos, já aludidos, referentes ao Poder
Político e à sua organização e também às Forças Armadas, reforçavam
a centralização do Estado. O mesmo se poderia dizer dos dispositivos
relativos à ordem econômica e nanceira e aos meios de comunicação
(Título VIII, capítulo 5), cujo nível de monopolização, demencial, não
foi sequer arranhado. O mesmo caracterizava o nacionalismo triunfante,
através dos monopólios estatais – nenhuma instituição de controle social
foi imaginada ou proposta.
É curioso observar igualmente que a questão do impeachment
(Título IV, capítulo II), que tantas controvérsias iria, mais tarde,
provocar, não atraiu maior atenção nem mereceu debate qualicado.
O Plebiscito revogatório nem chegou a ser votado, embora se tratasse
de dispositivo conhecido e que permitia apear do poder através do voto
popular um representante eleito. Parlamentares de todos os bordos não
atentaram, ou ngiram não atentar, para uma questão que se tornaria
crucial, como se evidenciou no futuro. Mais tarde, como se sabe, o
recurso ao impeachment, um instrumento visceralmente antidemocrático,
seria amplamente invocado, por diferenciadas correntes políticas, o que
não impediria, sempre, que os deslocados do Poder por este dispositivo
constitucional (des)qualicassem seus adversários e o próprio dispositivo
como “golpistas”.22
21 Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964.
22 Embora a Constituição de 1988 tenha previsto o impedimento/impeachment (arts. 85 e
86), a Lei que o regula é de 1950 (Lei n° 1079, de 10 de abril de 1950), o que mostra a
pouca atenção merecida pelo dispositivo.
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A Constituição cidadã
e os legados da ditadura
289
Assim, criticado à direita e à esquerda, o Projeto A, apresentado
por Bernardo Cabral, enfrentava um ambiente tumultuoso, um mar de
tempestades em ns de 1987.
Em função de suas fortes tradições nacional-estatistas, e apesar
de um conjunto de críticas, as esquerdas, até porque eram muito
minoritárias, mas também nacionalistas, estatistas e corporativistas,
tendiam a considerar aceitável o Projeto, embora alguns, sobretudo no
PT, o criticassem.
No campo conservador, havia muitas reservas. Mesmo
considerando sua heterogeneidade, a verdade é que sua ampla maioria não
se concretizara num projeto à imagem e à semelhança de seus interesses.
Suas alas liberal-privatistas, em particular, como assinalado, estavam em
pé de guerra e exigiam mudanças de fundo no Projeto.
Correspondendo a estas demandas, formou-se, então, uma
frente suprapartidária, autodenominada Centro Democrático, o
“Centrão”. Constituído por 290 deputados do PMDB (quase metade dos
representantes deste partido), do PFL, PDS, PTB, PL e PDC.23
A criação do “Centrão” correspondeu a uma crise interna no
PMDB de grandes proporções, que acabaria resultando na renúncia
do líder, Mario Covas e, mais tarde, agrupando os descontentes com
as inclinações siológicas do PMDB, na criação do Partido da Social
Democracia Brasileira, o PSDB, em junho de 1988.24
Depois do recesso dos t rabalhos constitui ntes, entre 18 de de zembro
de 1987 e 03 de janeiro de 1988, as atividades foram retomadas, já aí
aparecendo, devidamente articuladas, as forças do Centrão. Impuseram
a maioria que tinham e, após longos debates, conseguiram aprovar uma
reforma regimental, viabilizando a apresentação de novas emendas, e
mesmo de Substitutivos, ao Projeto A, de autoria de Bernardo Cabral.
De acordo com estas novas disposições regimentais, abriu-se,
a partir de 7 de janeiro de 1988, por uma semana, outro prazo para
apresentação de sugestões (emendas ou substitutivos até de títulos
inteiros, se fosse o caso). Receberam-se 2.045 emendas.
Em 20 de janeiro, o Relator apresentou seu parecer, congurando-
se, na prática, um novo projeto, mas não qualitativamente diverso do
anterior. Iniciaram-se os debates mas com uma restrição de peso: nas
propostas não acatadas pelo Relator, novos destaques só seriam votados se
fossem subscritos por, no mínimo, 187 constituintes. Foram apresentadas
2.227 solicitações de destaque, tendo início os debates e as votações das
23 As principais lideranças eram José Bonifácio de Andrada (PDS); Expedito Machado e
Roberto Cardoso Alves (PMDB); Ricardo Fiúza (PFL) e Gastone Righi (PTB).
24 Um incidente que contribuiu, em parte, para este desdobramento foi o afastamento, em
agosto de 1987, para uma cirurgia cardíaca, de Mario Covas.
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disposições permanentes em Plenário (1º turno), encerradas em 1º de
junho de 1987.
Os debates e as votações das disposições transitórias ainda durariam
até o dia 30 deste mês, produzindo-se um Projeto com 322 artigos (245
disposições permanentes e 77 disposições transitórias). É de se sublinhar
que a maioria formada no Centrão não se concretizou num “rolo
compressor”, como se supôs em determinado momento. O conglomerado
também era atravessado por contradições insanáveis que impediram um
comportamento unívoco, em bloco, em boa parte das votações.
Em 5 de julho este Projeto – denominado Projeto B – foi entregue
à Presidência da Constituinte. Dois dias depois, iniciaram-se os debates
em 2° turno, admitindo-se novas emendas. Tais discussões encerraram-se
em 1º de setembro, remetendo-se o Projeto aprovado para uma Comissão
de Redação, constituída desde 20 de abril passado, incumbida de depurar
aspectos literários e jurídicos do texto.
Ao produto do trabalho desta Comissão de Redação, atribuiu-
se o nome de Projeto C e ele seria discutido e votado entre 14 e 22 de
setembro, transformando-se no Projeto denitivo, o chamado Projeto
D, aprovado por 474 votos, contra apenas 15, com 6 abstenções25. O
texto nal conteria 315 artigos (245 disposições permanentes e 70
disposições transitórias).
Em 5 de outubro de 1988, em sessão solene, seria, anal, promul-
gada, publicada e entraria imediatamente em vigor a nova Constituição.26
Como já se desenhara desde a apresentação do primeiro Projeto
do Relator Bernado Cabral, em junho de 1987 (o mesmo que, após
algumas revisões, converteu-se no Projeto A), em novembro do mesmo
ano, a Constituição de 1988 foi um texto profundamente marcado pelas
tradições nacional-estatistas, centralistas e verticais. Ao mesmo tempo,
integrou compromissos importantes favoráveis às liberdades democráticas
e aos direitos sociais, manifestando também, em suas declarações
doutrinárias, um viés popular (primado do trabalho, do bem estar social
e da justiça social), embora nem sempre concretizado em disposições de
aplicação clara e imediata. Finalmente, mas não menos importante, do
ponto de vista da ordem econômica e nanceira, caracterizou-se por um
notável conservadorismo.
25 Depois de 1.021 votações, que consumiram 20 meses de trabalho.
26 A Constituição foi publicada no Diário Ocial da União (DOU) no próprio dia 5 de
outubro de 1988.
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Um híbrido, uma expressão acabada do processo de transição
transicional e transacional – por que o país atravessara desde 1974,
quando teve início a “abertura lenta, gradual e segura”.27
As tradições nacionalistas e estatistas estariam denidas – e
consolidadas – nos Títulos referentes à Organização do Estado, à
Organização dos Poderes, à Defesa do Estado e das Instituições
Democráticas e da Tributação e Orçamento (Títulos III, IV, V e VI,
respectivamente).
Um Estado avantajado, preeminente, regulador, intervencionista,
sob mal disfarçada tutela militar.28 Características elaboradas desde
o Estado Novo e reforçadas ao longo dos últimos governos da mais
recente ditadura. Um Poder Executivo preponderante, num viés
centralista,29 dispondo de margens consideráveis, mas não absoluto,
como nas ditaduras, porque teria de se haver com um Legislativo e
um Judiciário que resguardavam também margens importantes de
autonomia, sublinhando-se aí a latitude atribuída ao Ministério Público,
também com grande autonomia, e que viria, no futuro, a desempenhar
importante papel de scalização e “contrapeso” no processo político
(Título IV, Capítulo IV).
Os compromissos democráticos, ampliados substancialmente com
a noção dos direitos sociais, ganhariam contornos mais denidos – e mais
nítidos – na consagração dos Princípios Fundamentais e Dos Direitos e
Garantias Fundamentais (Títulos I e II). Reforçados, e aprofundados,
por parte importante dos dispositivos referentes à Ordem Social (Título
VIII), sobretudo no que se refere às suas elaborações doutrinárias (Cap.
1, art. 193)30 e ao conceito de seguridade social (Cap. 2, arts. 194 e
seguintes), complementados, ainda que de forma bem mais genérica
pelos dispositivos concernentes à Educação, Cultura e Desporto, ao Meio
Ambiente e aos Índios (Caps. 3, 6 e 8, respectivamente).
27 Transicional porque estabelecido em longa transição. Transacional porque baseado na
negociação. Cf. D. Aarão Reis, 2014.
28 A propósito do papel que a Constituição atribuiria às Forças Armadas, diria o jornalista
Jânio de Freitas: “Os militares obtiveram da Constituinte […] tudo o que dela cobraram.
E que, no essencial, reproduz a presença gigantesca que a Constituição da ditadura [alude
a de 1967], pela primeira vez, lhe deu como direito constitucional […]”. In Folha de São
Paulo, 6 de outubro de 1988, p. 13-A.
29 É notável o número de Medidas Provisórias/MPs, um outro legado da ditadura, editadas
pelos vários presidentes da República depois da promulgação da Constituição de 1988:
1219. Itamar Franco (uma MP a cada 5,7 dias) e Lula (uma MP a cada 6,8 dias) são os
campeões. Não foram computadas as MPs editadas por José Sarney e Michel Temer. Cf.
J.A.de O. Lima et alii, 2013.
30 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-
estar e a justiça sociais. Cf. Constituição da República Federativa do Brasil, op. cit.
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Alargavam também os direitos democráticos, entre outros
dispositivos, a extensão, embora facultativa, do voto aos analfabetos31 e
aos maiores de 16 anos; o direito ampliado à informação em relação aos
órgãos do Estado (habeas data) e; o mandado de injunção, conferindo
aos cidadãos o direito de recorrer à Justiça para que dispositivos
constitucionais fossem apoiados em leis que os garantissem de fato.
Em contrapartida, embora ligeiramente ampliados, foram
mantidos os critérios concernentes à representação política que tinham
sido impostos em abril de 1977 pelo general-presidente Ernesto Geisel,
enfatizando-se a força dos pequenos estados e dos chamados “grotões”
(Título IV, arts. 44 e seguintes)32 em relação aos estados mais populosos
e às grandes cidades e suas regiões metropolitanas.
Ressalvada a relevância atribuída aos direitos sociais, é de se
sublinhar, porém, que não foram aprovados dispositivos essenciais
no sentido de atualizá-los ou concretizá-los. Em algumas ocasiões,
pelo contrário, foram derrotadas propostas que visavam, justamente,
concretizá-los, como se evidenciou, por exemplo, na derrota da proposta
da jornada de trabalho semanal de 40 horas, reivindicação velha de
mais de um século (aprovou-se a semana de 44 horas); a da extinção
das horas extras, ou de seu pagamento em dobro (o recurso às horas
extras foi mantido, com pagamento de graticação de 50% em relação
à remuneração estabelecida); a da estabilidade no emprego, garantida
depois de 10 anos consecutivos no emprego, conforme consagrado na
Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943. Sem falar nas propostas
de reforma agrária (Título VII, Capítulo 3), cujos dispositivos, como já
referido, caram aquém de legislações aprovadas pela própria ditadura
instaurada em 1964.
Por outro lado, mantiveram-se, do ponto de vista da organização
sindical – dos patrões e dos assalariados, e também dos prossionais
liberais – as tradições corporativistas, denidas em 1943, no período do
Estado Novo, pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), embora
neutralizando-se o intervencionismo do Ministério do Trabalho (Título
II, Capítulo 2, art. 8º).33
31 Estimava-se, na época, uma proporção de 25% de analfabetos na população adulta.
32 O teto de representantes, por estado, foi ampliado de 60 para 70 deputados, mantendo-
se, porém, o mínimo de 8 por unidade federativa. A Câmara dos Deputados passou,
assim, a contar com 513 deputados, a que se adicionavam os senadores (3 por estado,
independentemente do tamanho do eleitorado). Cf. J. Nicolau, 1997.
33 Também foi mantido o imposto sindical, tendo sido criada ainda a chamada
“contribuição sindical” (depois revogada pelo Supremo Tribunal Federal), bases seguras
para a reprodução de burocracias sindicais. Só recentemente, como se sabe, revogou-se
o imposto sindical, mas é bem possível que ele seja restaurado, ou substituído por algo
análogo nos próximos anos, tal a oposição suscitada.
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Vale recordar ainda que par te importante dos dispositivos referentes
à Ordem Social e aos Direitos Sociais dependia de leis complementares
para ganhar substância prática, mas é inegável que o fato de gurarem
numa Carta Constitucional representava um novo – e estimulante –
patamar do ponto de vista dos valores da Justiça social e das lutas para
torná-la uma referência viva na vida quotidiana da sociedade.
Na mesma linha conservadora, “juntos e misturados” com os
dispositivos favoráveis aos direitos dos trabalhadores, os referentes à
Ordem Econômica e Financeira (Título VII) e à Comunicação Social
(Título VIII, Capítulo 5), destacavam-se pelo imobilismo, mantendo
e reforçando legados essenciais da ditadura civil-militar, consagrando,
em grande medida, um modelo econômico incompatível com os valores
democráticos e os critérios de justiça social.
Ulysses Guimarães, no discurso de apresentação da Constituição,
em 5 de outubro de 1988, a denominou de “Constituição cidadã”,
armando que, através de seus dispositivos, a sociedade passara a
prevalecer sobre o Estado. Licenças poéticas? Emocionado, asseverou:
“O Brasil mudou”.
Tinha e não tinha razão.
A Constituição de fato encerrou a longa transição à democracia e
instaurou um novo Es tado de Direito. Um conjunto de dispositivos, algu ns
notavelmente inovadores, de defesa e garantia de direitos democráticos,
políticos e sociais, estavam nela inscritos, embora muitos deles ainda
dependendo, para sua efetivação, da aprovação de leis complementares.
À vista destes resultados, o país, de fato, mudara.
Entretanto, como já se constatou, um conjunto não menos
importante de tradições manteve-se – e se reforçou. O Estado
hipertroado, a força, em particular, do poder executivo, a tutela das
Forças Armadas, a carência de controle social sobre as instituições, os
aparelhos sindicais corporativistas estatais e, em particular, o modelo
econômico desigual e perverso, tudo permaneceu incólume, conferindo
à Constituição um sentido inegável de reprodução do passado, reiterando
a força dos legados do período ditatorial.
Em todos estes aspectos, decisivos, o país não mudara, ou pouco
mudara.
Em suma, o país mudou e não mudou.
E é esta ambivalência a marca registrada da Constituição de 1988.
As ambiguidades nela contidas são uma expressão autêntica – para o mal e
para o bem – do processo de transição da ditadura à democracia no Brasil.
Passados trinta anos, um período inédito na história republicana
sob vigência de um regime democrático, a Constituição, ainda uma
jovem senhora, apresenta sinais de uma precoce senilidade.
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Seu corpo foi talhado e retalhado por emendas em profusão –
nada menos que 99 emendas constitucionais foram aprovadas entre 1992
e 2017, sem contar as seis aprovadas em 1994, chamadas “de revisão”,
previstas como possíveis pela própria Constituição de 1988.34 Estas
emendas, o mais das vezes, ao invés de diminuir, acentuaram tradições
conservadoras, enfraquecendo, neutralizando, quando não suprimindo,
dispositivos de defesa das liberdades democráticas e dos direitos sociais.
Em 1992, numa curta introdução à obra do Centro de
Documentação e Informação (CEDI) sobre a Constituição,35 Ulysses
Guimarães, citando Aristóteles, e se referindo ao trabalho do legislador,
supostamente destinado a “transformar seus concidadãos em homens
melhores”, concluiria que “o sucesso ou o fracasso nessa empresa é que
determinam […] a diferença entre a boa e a má constituição”.
As brasi leiras e os brasileiros seria m “mel hores” hoje do que há trinta
anos? Difícil responder. Contudo, na perspectiva do aperfeiçoamento
democrático, seria mais fácil dizer que o país está precisando de uma
nova Constituição.
Julho, 2018.
Cronologia: Da convocação da Assembleia Constituinte à aprovação da
nova Carta Constitucional
1985
Junho
28. O Presidente José Sarney envia ao Congresso proposta de Emenda
Constitucional prevendo a convocação de uma Assembleia Constituinte
Novembro
27. Aprovação da Emenda à Constituição nº 26, determinando que o
Congresso eleito em novembro de 1986 assumirá poderes constituintes
34 Previu-se na Constituição que, após 5 anos, seria possível rever a mesma, por maioria
absoluta de votos e não pela maioria qualicada de 2/3.
35 Cf. Cedi, op. cit. 1992.
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1986
Novembro
15. Eleições para o Congresso Nacional (com poderes constituintes)
1987
Fevereiro
01. Instalação do Congresso Nacional
Março
25. Aprovação do Regimento Interno dos trabalhos da Assembleia
Constituinte (AC)
Abril
01. Instalação das Comissões Temáticas
07. Instalação das SubComissões Temáticas
09. Instalação da Comissão de Sistematização (CS)
Junho
14. As Comissões Temáticas enviam seus relatórios à CS
26. Relator da CS encaminha um primeiro projeto para discussão e
emendas na CS
Julho
14. O projeto, emendado e discutido na CS, é encaminhado à presidência
da Assembleia
15. Tem início a discussão do projeto e a apresentação de emendas em
Plenário (prazo de 40 dias)
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Agosto
23. Encerra-se o prazo de discussão e de apresentação de emendas em
Plenário
26. Considerando as emendas e a discussão, o Relator apresenta à
discussão da CS um primeiro substitutivo
Setembro
19. Considerando os debates na CS e as emendas populares, o Relator
apresenta um segundo substitutivo
Novembro
18. Encerra-se na CS a discussão do segundo substitutivo
24. Entrega do Projeto de Constituição ao presidente da Constituinte –
Projeto A
Dezembro
18. Início do recesso dos trabalho da AC
1988
Janeiro
03. Reiniciam-se os trabalhos da AC
05. Aprovada uma reforma do Regimento Interno proposta por um grupo
suprapartidário (Centrão). Permite a eventual aprovação de Substitutivos
ao Projeto da CS
07-13. Novo prazo para emendas ao Projeto A
20. Considerando as novas emendas, o Relator apresenta seu parecer
27. Início das votações em Plenário (1º turno)
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Abril
20. Instalada a Comissão de Redação para elaborar um texto nal
Junho
01. Encerramento das votações dos dispositivos permanentes da
Constituição (1º Turno). Iniciam-se os debates sobre as disposições
transitórias
30. Encerrramento das votações sobre disposições transitórias.
Julho
05. Considerando as votações realizadas, é entregue ao Presidente da AC
um novo projeto – Projeto B
25. Início dos debates sobre o Projeto B (2º turno)
Setembro
02. Na madrugada deste dia, encerra-se a votação do 2º turno do Projeto B
14. Apresentação da proposta da Comissão de Redação – Projeto C
22. Votada e aprovada em Plenário a redação nal – Projeto D
Outubro
05. Promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil
Recebido em: 22 de julho de 2018.
Aceito em: 05 de agosto de 2018.
... Trabalhos mais recentes sobre o tema Sandes, 2017;Cooper, 2023) nos levam a compreender que a nova ordem constitucional construída em 1988, embora contenha avanços importantes, reinstauram instrumentos autoritários ao incluir elementos que remontam à ditadura ou não alterar pontos cruciais, como a estrutura da segurança pública (Reis, 2018;Edson Teles, 2018;Pedretti, 2024). Cabe a nós discutir até que ponto isso pode ser considerado uma continuidade, um elemento com o qual era necessário compor na época, mas que tenderia a ser superado à medida que o regime democrático se consolidasse, ou uma refundação da democracia brasileira em bases também autoritárias. ...
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The article discusses the trends in the historiography of the military dictatorship in the last decade along two axes: the update of the debates in the face of the rise of the extreme right and the developments of the work of the Truth Commission regarding the adoption of different geographical scales and the inclusion of new categories of people affected by state violence. These two axes distinguish the 60th anniversary from the other round anniversaries of the 1964 coup d’état. KEYWORDS: 1964 coup d’état; military dictatorship; historiography; state violence
... A transição da ditadura para o regime democrático no Brasil foi controlada e autorizada pelos militares (Fico, 2017;Reis, 2018), em um contexto de continuidade da cultura política autoritária (Motta, 2018). O debate público sobre a instalação da CNV gerou "guerras de memórias" baseadas em dois processos contraditórios. ...
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Este artigo analisa o debate parlamentar no Congresso Nacional brasileiro sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV), desde a apresentação do projeto de sua criação, em 2011, até a finalização de suas atividades, em 2014. O corpus é formado por 512 pronunciamentos, sendo que 416 são de deputados e 96, de senadores. O referencial teórico é focado em estudos de políticas da memória e justiça de transição. No debate prevaleceu a voz dos partidos de esquerda, favorável à CNV, enquanto a direita usou a estratégia do silêncio. Apenas dois parlamentares vinculados ao Exército se manifestaram contra a CNV. Apesar de reconhecerem a importância do relatório final da comissão, a maioria dos parlamentares (da esquerda) considerou o trabalho insuficiente porque a comissão se pautou na busca da verdade e da memória, mas não pôde fazer justiça, punindo os torturadores.
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Entre as décadas de 1960 e 1970, os países do Cone Sul enfrentaram regimes ditatoriais marcados por repressão e violência, mas também por resistência das esquerdas. No Brasil, o golpe civil-militar de 1964 levou à ascensão de um regime autoritário que durou 21 anos, durante os quais a luta armada se tornou uma das principais estratégias da esquerda contra a Ditadura Militar. No entanto, o artigo argumenta que a posterior sobrevalorização da luta armada acabou ofuscando outras formas repertórios de ação coletiva, como as mobilizações políticas de caráter pacífico que, embora não plenamente bem-sucedidas, contribuíram para a consolidação de uma democracia menos restritiva e para o combate ao Neoliberalismo. O texto propõe uma análise dessas diferentes formas de mobilização, sem hierarquizá-las, destacando o papel do Movimento Estudantil no pós-Ditadura Militar, utilizando-se do conceito formulado de repertórios de ação coletiva de Charles Tilly (1978).
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O presente artigo adota uma perspectiva histórica de mais longa duração para refletir sobre as esquerdas brasileiras no pós-ditadura, período ainda pouco analisado pela historiografia. Sugere-se a hipótese segundo a qual, a despeito da experiência da derrota após o golpe de 1964 e a ditadura instaurada no país, os partidos políticos e os movimentos sociais progressistas tiveram papel relevante nas lutas pela redemocratização e na construção da democracia brasileira no tempo presente. Para sustentar o argumento proposto, em diálogo com a bibliografia especializada, procura-se analisar a trajetória das esquerdas no Brasil em diferentes momentos históricos pós-ditadura, destacando os processos de fragmentação partidária e de pluralização dos movimentos sociais. Além disso, busca-se propor que, apesar de derrotas importantes, as forças progressistas contribuíram, do ponto de vista institucional, para a formulação de políticas públicas inovadoras e inclusivas e, do ponto de vista social, para a renovação do repertório da política e da esfera pública brasileira, com novos sujeitos, temas e agendas.
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Numa análise retrospectiva verifica-se desde tempos remotos ter havido acentuado desrespeito à condição humana. Paulatinamente foram sendo reconhecidos direitos inerentes à pessoa como consectário da sua dignidade. Notadamente após as atrocidades cometidas nas Grandes Guerras, firmou-se entre os países a necessidade da proteção universal à pessoa, levando à constituição da Organização das Nações Unidas e, por conseguinte, à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Neste sentido, o presente trabalho centra-se na discussão dos direitos humanos e a internalização desses direitos no plano interno dos Estados. A metodologia empregada é da pesquisa bibliográfica. Considerou-se que a afirmação dos direitos humanos segue um curso evolutivo no âmbito internacional e interno de cada país como fator fundamental para assegurar a proteção da pessoa exclusivamente por sua condição de ser humano. Dessa forma, cada vez mais deve-se tutelar a dignidade da pessoa através da efetivação dos direitos já reconhecidos e, paralelamente, ampliar o leque desses direitos correspondentemente às novas demandas por direitos advinda da evolução social e tecnológica.
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Promulgado em dezembro de 1968, o Ato Institucional número 5 (AI-5) vigorou até dezembro de 1978, tendo endurecido a repressão e legitimado ações truculentas, perseguições políticas, censura, entre outras práticas arbitrárias por parte dos agentes da ditadura militar brasileira. Com a queda do AI-5, em janeiro de 1979, novas perspectivas e possibilidades sobre o futuro do Brasil passaram a ser avistadas no horizonte político do país. Já no ano de 1988, no estado do Paraná, diferentes jornais publicaram reportagens que diziam respeito ao vigésimo aniversário de implantação do AI-5 no Brasil. Tendo como base tais colocações, objetivamos refletir sobre as narrativas elaboradas pela imprensa escrita paranaense em referência ao AI-5 em dois momentos distintos: 1979 e 1988. Analisamos algumas reportagens publicadas pelos jornais Correio de Notícias e Diário do Paraná no início de 1979, bem como um dossiê produzido por agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI), que aponta para publicações dos jornais Folha de Londrina e O Estado do Paraná a respeito dos vinte anos do AI-5. Terminada a vigência do AI-5, nota-se um misto de entusiasmo pela democracia que se aguardava e receio de um possível retrocesso militar.
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This article examines popular participation in the making of Brazil's 1988 post-authoritarian “Citizen Constitution.” In 1987, Brazilians submitted 122 popular amendments ( emendas populares ) supported by over 12 million signatures to the National Constituent Assembly (1987–88). As this article contends, this extraordinary experiment in popular constitution-making problematizes notions of Brazil's transition from authoritarian to democratic rule as the most conservative of those that swept Latin America at the end of the Cold War. The popular amendments emerged amid a nationwide campaign for popular participation that saw millions of Brazilians participate in letter-writing campaigns, protests, and debates over the constitution that carried over into the halls of the Constituent Assembly itself. I argue that the popular amendments countered the arbitrary authoritarianism of the Brazilian civil-military dictatorship (1964–85) with a constitutionalism in which everyday Brazilians would safeguard democracy through popular participation in government. While only partially consolidated, this vision offered diverse marginalized groups an opportunity to claim full citizenship in Brazil's nascent democracy, especially in ways that more overtly addressed issues of race, ethnicity, gender, and disability. This article thus shows that far from being the exclusive province of political elites, everyday people meaningfully shaped the constitutional restorations in late twentieth-century Latin America.
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Esta dissertação tem como objetivo analisar os efeitos do conflito distributivo para a atuação política das classes médias durante os governos do Partido dos Trabalhadores, particularmente na conjuntura política em torno das manifestações pelo impedimento de Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016. Propomo-nos discutir essa relação: conflito distributivo e atuação política das classes médias, ressaltando o impacto e as implicações das políticas sociais e afirmativas de governo implementadas desde 2003, mas também as que se originaram da Constituição Federal de 1988, para a reprodução social e o modo de vida das classes médias. A atuação política das classes médias caracterizou-se pela luta contra a corrupção, iniciada em 2007, após os escândalos relacionados ao “mensalão”, intensificando-se em 2013, durante as revoltas de junho, com maior impacto e relevância em 2015 e 2016, nas manifestações pelo afastamento de Rousseff, que resultou no golpe parlamentar de 2016. Propomo-nos discutir esse contexto, enfatizando a centralidade do conflito distributivo apoiados nos estudos que se voltaram à análise dos dados relacionados ao Imposto de Renda. As análises da distribuição da riqueza social neste período, medidas pelo IR, demonstraram que as desigualdades sociais no Brasil não teriam caído como teria sido demonstrado pelas pesquisas que se basearam nos dados do Índice de Gini e Pnads, por exemplo. Antes, o que revelaram consiste em uma forte concentração da riqueza no topo, uma maior participação das classes populares e um processo de estagnação e encolhimento das classes médias. Ao mesmo tempo, o estudo do IR revela que desde 1970 o conflito distributivo na sociedade brasileira tem ocorrido principalmente entre as classes médias e as classes populares, com os mais ricos conseguindo manter sua quota na riqueza social de maneira estável. Nesse sentido, os acontecimentos que incidem sobre o processo do impedimento de Rousseff estariam relacionados aos processos de apropriação e distribuição da riqueza social no Brasil recente. O conflito distributivo, portanto, ganha centralidade em nossa análise por entendermos que este estaria correlacionado aos processos sociais e políticos que impulsionaram a atuação política das classes médias no contexto em questão. Nesse caso, a atuação política das classes médias teria como base a vontade política no sentido de frear a ascensão social das classes populares de modo a subordiná-las às necessidades de sua reprodução social e manutenção do seu modo de vida.
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This article aims to reflect on the struggles that occurred in Brazil in the context of drafting the Constitution of 1988. Its purpose is to analyze the political disputes at the moment of the country’s redemocratization, highlighting especially two elements : firstly, the internal struggles within the Constituent Assembly ; secondly, the pressure of civil society around some political and social agendas. We seek to demonstrate how the actors that operated in these two spaces – the National Congress and the streets – did influence the making of the Brazilian Constitution of 1988, which, despite some strong conservative elements, was a document with a predominantly progressive orientation, aimed at deepening the political and social democratization of the country. This article is part of the special theme section on Failed Constitutional Projects in Portugal and Brazil, 20th Century, guest-edited by Paula Borges Santos and Ivo Veiga.
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