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CÔAVISÃO 21
COORDENAÇÃO
José Manuel Costa Ribeiro
António N. Sá Coixão
EDIÇÃO
Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa
Praça do Município
5150-642 Vila Nova de Foz Côa
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
Tipograa Lobão, Lda.
Almada
DEPÓSITO LEGAL
121116/98
ISSN
2183-234X
TIRAGEM
750 exemplares
CAPA
O Douro e o Pocinho
Fotograa de José Ribeiro
DATA DE EDIÇÃO
Maio de 2019
PERIODICIDADE
Anual
Os textos apresentados são de inteira responsabilidade de seus autores.
í
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sua funcionalidade ao longo do tempo, assim como
a relação entre as suas fases de ocupação e as da
arte rupestre do Vale.
Depois dos trabalhos de 2017 terem documentado
a presença do Homem de Neandertal e dos primei-
ros Homens Anatomicamente Modernos neste local
(Aubry et al., 2018), os objetivos da campanha de
escavação de 2018 consistiram na caraterização dos
níveis de ocupação do Paleolítico Superior antigo
e do Paleolítico Médio, preservados na unidade es-
tratigráca (UE) 5, e na determinação do potencial
arqueológico e sedimentar do sítio. Esta escavação
foi efetuada no âmbito do PIPA iniciado em 2017: Do
Neandertal ao Homem anatomicamente moderno no
centro da Península Ibérica: simbolismo e redes sociais
no Vale do Côa.
Os trabalhos de campo no sítio da Cardina tinham
como objetivo principal a denição das modalidades
da sua ocupação ao longo da sequência estratigrá-
ca, que é a mais completa conhecida, até à data,
para o Paleolítico Médio e Superior no Vale do Côa
(Aubry et al., 2016, 2018).
Os resultados dos trabalhos de escavação realizados
em 2018 foram apresentados na comunicação inti-
tulada: “Néanderthal et premiers hommes anatomi-
quement modernes dans la vallée du Côa”, durante
a 3ª sessão do Côa Symposium e uma visita ao sítio da
Cardina-Salto do Boi foi organizada no âmbito desta
reunião (Santos e Aubry, 2019).
2. Objetivos especícos dos trabalhos de 2018
Os trabalhos de campo realizados em 2018 tiveram
como objetivos especícos: avaliar a integridade dos
depósitos quaternários preservados no sítio e preci-
sar a sequência da sua ocupação humana em função
dos resultados obtidos no ano anterior, que atesta-
vam, desde logo, a presença no sítio dos primeiros
Homens Anatomicamente Modernos e do Homem
de Neandertal. Tais objetivos foram perseguidos me-
diante a continuação da escavação da unidade estra-
tigráca 5, iniciada em 2017, nos quadrados H’/I’17/19
e A’/Z6/8 (Fig. 1).
Cardina I – Salto do Boi:
cinco metros de arquivo
da ocupação paleolítica
no Vale do Côa
Thierry AUBRY1,2, António Fernando
BARBOSA1, Cristina GAMEIRO2,
Luís LUÍS1,2, André Tomás SANTOS1,2,
Marcelo SILVESTRE1
Resumo
Parafraseando o título de um artigo publicado nesta
revista que dava a conhecer um testemunho sedi-
mentar excecional preservado nas Olgas de Ervamoi-
ra (Aubry et al., 2010), os trabalhos de arqueologia
realizados em 2018 no sítio da Cardina revelaram a
existência de uma sequência sedimentar com cerca
de cinco metros As camadas mais antigas (7, 6 e 5),
de origem aluvial, preservam vestígios da passagem
do homem de Neandertal, desde há mais de 80.000
anos até o seu desaparecimento.
1. Introdução
A Cardina (Salto do Boi) foi o primeiro sítio arqueo-
lógico com ocupação paleolítica identicado em
1995 no Vale do Côa (Zilhão et al, 1995). As inter-
venções arqueológicas realizadas entre 1996 e 2001
vieram atestar uma sequência de ocupação paleo-
lítica, com diferentes fases entre o Gravettense e
o Azilense, bem como identicar um conjunto de
estruturas a elas associadas (Aubry et al, 2009). De
2014 a 2016, o sítio voltou a ser objeto de trabalhos
de escavação no âmbito do Projeto de Investigação
Plurianual de Arqueologia “Cronologia e paleoam-
bientes da ocupação paleolítica do Vale do Côa”,
com o objetivo de precisar a sequência crono-estra-
tigráca da sua ocupação, compreender melhor a
1 Fundação Côa Parque, Rua do Museu, 5050-610 Vila Nova de
Foz Côa
2 UNIARQ, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Ala-
meda da Universidade, 1600-214 Lisboa
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Cardina I – Salto do Boi: cinco metros de arquivo da ocupação paleolítica no Vale do Côa | Thierry Aubry, António Fernando Barbosa, Cristina Gameiro, Luís Luís, André Tomás Santos, Marcelo Silvestre
Os trabalhos realizados em 2018 decorreram inin-
terruptamente entre os dias 23 de abril e 5 de julho
e foram assegurados pela equipa permanente de ar-
queologia da Fundação Côa Parque, constituída por
Thierry Aubry, António Fernando Barbosa, Luís Luís,
André Tomás Santos e Marcelo Silvestre. Para além
desta mesma equipa, participaram nos trabalhos: Ale-
xandre Varanda, Ana Pinto Salgado, Cristina Gameiro,
Henrique Matias, Luís Gomes (UNIARQ, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa), Ana Cristina Araú-
jo, Ana Costa (DGPC - Laboratório de Arqueociências),
Lisa-Elen Meyering (Durham University), Gauthier Tru-
melle, Isabelle Mondou (Université de Toulouse), Xa-
vier Mangado, Mercé Bergada, Hector Martínez Grau,
Oscar Perez Parque (SERP, Universitat de Barcelona)
e Bastien Parrondo (Université de Paris I).
Os sedimentos da unidade estratigráca 5 foram es-
cavados, nos quadrados H’/I’17/19, por quadrantes
de metro quadrado (A [sudeste], B [sudoeste], C
[Nordeste] e D [Noroeste]) e unidades articiais de
5 cm de espessura (UA) (Fig. 2A). Já os sedimentos
da base da unidade estratigráca 4 e da unidade 5
dos quadrados Z/A’6/8 foram escavados por metro
quadrado e unidades articiais de 5 cm de espessura
(Fig. 2B). A integralidade dos depósitos removidos
Fig. 1: Localização das áreas escavadas no sítio de Cardina-
Salto do Boi, durante as campanhas de escavação de 1997
a 2018
Fig. 2: A) Escavação da unidade
5 na área Z/A’6/8; B) Escavação
dos quadrados H’/I’17/19; C)
Crivagem a água
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Ciência
queno módulo. Os sedimentos das unidades 6 e 7 dos
quadrados H’/I’17/19 não foram crivados. Procedeu-se
à documentação sistemática em 3 dimensões da inte-
gralidade dos vestígios líticos encontrados durante a
escavação nestas duas unidades estratigrácas.
Anteriormente à escavação, nos dias 17, 18 e 19 de
abril, foi construída uma área de apoio ao processo
de crivagem dos sedimentos a água. Esta área con-
siste numa plataforma de sustentação dos depósitos
de água e numa área fronteira de circulação cimen-
tada, o que permite uma gestão mais ecaz da água,
nas duas áreas foi crivada a água com uma malha de
2 mm (Fig. 2C). Em simultâneo, procedeu-se à docu-
mentação sistemática (desenho a escala 1:10, Fig. 3)
e localização tridimensional dos elementos pétreos
de mais de 5 cm (e mesmo de menores dimensões
no caso das estruturas bem denidas). Nos quadra-
dos H’/I’17/19, estes elementos pétreos, devidamen-
te orientados por uma seta na face superior, foram
depositados nas reservas do Museu do Côa.
A crivagem com água dos sedimentos do topo da
unidade 6 revelou a ausência dos elementos de pe-
Fig. 3: A) Plantas da unidade estratigráca 5, unidade articial 25 dos quadrados H’/I’17/19; B) unidade estratigráca 5/
unidade articial 15 dos quadrados Z/A’6/8 intervencionados durante a campanha de escavação de 2018
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ra ao nível da textura, da estrutura ou da tonalidade
dos sedimentos, ao longo dos cerca de 2 metros da
sua espessura (Fig. 5).
O corte revela, no entanto, a existência de alguns ní-
veis com uma proporção mais signicativa de pedra. A
matéria-prima sugere que a sua presença resulta de um
transporte antrópico, de elementos pétreos locais.
A unidade 5 e as unidades 6, 7 e 8 apresentam carac-
terísticas distintas, com elementos comuns para as
três últimas, entre os quais se conta uma tonalidade
mais clara, particularmente evidente em corte (Fig.
5). As subdivisões propostas no campo para as uni-
dades mais antigas resultam da proporção mais ou
menos signicativa de pedras em cada uma delas.
Os vestígios líticos apresentam um bom estado de
conservação, com os gumes frescos e concreções de
manganês ou de sílica nas suas faces.
assim como melhorar as condições de trabalho e se-
gurança do processo (Fig. 2C).
3. Resultados
3.1. Área dos quadrados H’/I’17/19
A escavação da unidade 5, nos quadrados H’/I’17/19,
foi retomada a partir da sua unidade articial 21. Os
depósitos existentes entre esta unidade e a 37 apre-
sentam características texturais idênticas.
A escavação evidenciou ainda 3 outras unidades li-
toestratigrácas (6, 7 e 8), que terminam uma se-
quência sedimentar com uma espessura total de cer-
ca de 5 metros de espessura (Fig. 4).
Nem o processo de escavação, nem o exame ma-
croscópico da unidade estratigráca 5 nos quatro
cortes evidenciados, revelou qualquer mudança cla-
Fig. 4: Sequência litoestratigráca observada no corte
oeste da sondagem H’/I’17/19, com a distribuição dos
limites verticais das unidades articiais e a localização
das amostras sedimentológicas, micromorfológicas e
para datação por luminescência
Fig. 5: Fotomontagem do corte de referência entre os
quadrados I e J, da área H’/I’17/19
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Ciência
Relativamente ao conteúdo arqueológico, as obser-
vações efetuadas durante a escavação e a crivagem
dos sedimentos, assim como o estudo sistemático dos
vestígios de pedra lascada, demonstraram a existência
de vestígios ao longo de toda a unidade estratigraa
5, apresentando, no entanto, alguns níveis articiais,
mais densidade de materiais que outros (Fig. 6).
Tecnologicamente, as indústrias líticas recolhidas
entre as unidades articiais 10 e 37 da unidade es-
tratigráca 5 apresentam uma grande homoge-
neidade do ponto de vista da matéria-prima (Fig.
Fig. 6: Distribuição dos vestígios líticos por unidade arti-
cial e estratigráca da sondagem H’I’17/19, em peso
Fig. 7: Distribuição dos vestígios líticos dos quadrados
H’/I’17/19, por matéria-prima lítica, Unidades Estratigrá-
cas e Unidades Articiais
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7), caraterizada pelo domínio do quartzo de lão,
disponível localmente. Constata-se, também, a uti-
lização do cristal de rocha, sobretudo nos níveis
mais recentes, bem como uma fraca proporção de
quartzito, apesar desta matéria-prima estar dispo-
nível nas aluviões do rio Côa. Rera-se a ausência
do sílex de origem extrarregional, o que contrasta
com a presença sistemática, mesmo que em pouca
quantidade, nas unidades articiais escavadas até à
9 da unidade estratigráca 5.
De um ponto de vista tipotecnológico, apesar dos
núcleos e esquírolas estarem sub-representados, os
vestígios líticos das unidades entre a 5/10 e a 5/37 re-
velam a utilização de um esquema de debitagem de
tipo discoide, para a produção de lascas e pontas de
morfologia triangulares (Fig. 8).
Fig. 8: Vestígios líticos da unidade estratigráca 5, unidade articial 10/37 da sondagem H’I’17/19
Nas unidades articiais 24 a 29 da unidade estratigrá-
ca 5, foram descobertos elementos, entre os quais
um núcleo, que sugerem uma produção de peque-
nas lascas e lamelas.
As remontagens entre vestígios líticos de pedra las-
cada e entre termoclastos, revelam a existência de
relações verticais entre elementos provenientes de
unidades articiais distintas, podendo as diferenças
de cota entre eles atingir os 20 cm (Fig. 9).
Os vestígios líticos recolhidos nas unidades 6 e 7
revelam a utilização de um esquema de produção
discoide e Levallois, de tipo recorrente centrípeto
(Fig. 10). Este último modo de debitagem não se
identifica entre o material descoberto na unidade
5. Na unidade estratigráfica 7 foram descobertas
duas lascas com retoque inverso no bordo distal,
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Ciência
Fig. 9: Distribuição tridimensional dos vestígios líticos desenhados e das remontagens entre
vestígios de pedra lascada
Fig. 10: Vestígios líticos de pedra lascada das
unidades estratigrácas 6 e 7 da sondagem
H’I’17/19
perpendicular ao eixo de debitagem (Fig. 10, nº4
e 7).
Não foi exumado qualquer vestígio de pedra lascada
na unidade estratigráca 8.
2. Área Z/A’6/8
Os trabalhos de escavação de 2014 tinham evidencia-
do que, na sondagem A’6/7, a unidade estratigráca
4 apresentava uma espessura mais signicativa que
nas duas outras sondagens realizadas então no sítio
(U’15/16 e I’16/17). Este facto foi interpretado como
resultante de uma melhor preservação nesta área
do sítio dos eventuais níveis de ocupação magda-
lenenses e dos depósitos tardiglaciares coevos, do
que nas outras áreas escavadas em 2014 e 2015 (Au-
bry et al., 2015).
A vericação desta hipótese, em 2017, que passou
pelo alargamento da área escavada em 2014, conr-
mou a preservação de estruturas associadas a vestí-
gios de ocupações do sítio durante o Pré-Boreal, mas
também de uma ocupação do Solutrense médio (evi-
denciada por um fragmento de folha de loureiro des-
coberto na UE4/UA6 do quadrado Z’6) e de uma do
Gravettense nal, diagnosticada pela presença de
lamelas de dorso típicas que apareciam associadas
a uma acumulação de elementos pétreos nas unida-
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te na transição de uma produção de lascas pelos mé-
todos discoide e prismático, essencialmente efetuada
sobre quartzo local, nos níveis mais antigos, para uma
produção lamelar associada à utilização de sílex e ro-
chas lonianas de grão no, nos mais recentes.
Na unidade 5, os vestígios de tipotecnologia atribuí-
veis ao Paleolítico Médio (Fig. 13) foram encontra-
dos a partir da unidade articial 10.
4. Geologia
No âmbito do estudo geomorfológico e dos proces-
sos geológicos de formação do sítio, foram recolhi-
das amostras de sedimentos nas unidades estratigrá-
cas 6, 7 e 8 no corte de referência entre as bandas I’
e J’ da área H’/I’17/19 (Fig. 4). Estes trabalhos foram
supervisionados por Luca Dimuccio.
des articiais 6 e 7. Estes dados mostravam, assim,
que a espessura da UE4 nesta área resultaria de uma
melhor taxa de sedimentação ocorrida durante o m
do Gravettense e não durante o Magdalenense, con-
tradizendo a hipótese inicial.
A continuação em 2018 da escavação da unidade es-
tratigráca 5 não permitiu a identicação de nenhu-
ma estrutura do tipo da estrutura gravettense B, es-
cavada na área H’/I’16/19 em 2017, mas revelou uma
sequência estratigráca semelhante à observada no
topo da unidade 5 (Fig. 11). O estudo dos vestígios
líticos evidenciou a produção e presença de lamelas
retocadas até à unidade articial 5.
A distribuição por matéria-prima lítica e o estudo tec-
nológico dos vestígios ao longo das unidades estrati-
grácas e articiais (Fig. 12) revelam uma rutura clara,
semelhante à observada na área H’/I’17/19, que consis-
Fig. 11: Sequência litoestratigráca observada no corte este da sondagem Z/A’6/8
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Ciência
Estas amostras, bem como as outras recolhidas no
m da campanha de 2017 nas unidades estratigrá-
cas 1, 2, 3, 4, 4B e 5, foram objeto de uma análise
granulométrica e de determinação das argilas. As
primeiras observações no campo, que indicavam
uma possível componente aluvial nos processos de
formação das unidades estratigrácas 5 a 8, foram
conrmadas pelos resultados das análises granulo-
métricas.
Durante a campanha de escavação foram recolhidas
10 amostras micromorfológicas, sob a supervisão de
Mercé Bergada (SERP, Universidade de Barcelona),
nas unidades estratigrácas 4, 4B e 5, no quadrado
J’19 do corte norte da área H’/I’17/19 (Fig. 14).
Estas amostras estão em curso de preparação e de
estudo. Os resultados do estudo de granulometria,
determinação das argilas e de micromorfologia se-
rão integrados na publicação das datas obtidas por
luminescência, em preparação.
5. Datações por luminescência
Como relatado anteriormente nesta revista (Aubry
et al., 2018), em abril 2017, foram recolhidas 10 amos-
tras de sedimentos em tubos (Card06/Card15) para
datação por luminescência (Optical Stimulated Lumi-
nescence), processo que contou com a presença de
Martin Autzen e Eike Rades (DTU NUTECH, Center
for Nuclear Technologies). A amostragem foi feita
no quadrado J’17 do corte norte da área H’/I’17/19
(cf. Fig. 4). A escolha do posicionamento estratigrá-
co destas amostras visou datar, quer os níveis mais
recentes com vestígios de tecnologia atribuível ao
Paleolítico Médio, quer os mais antigos com vestí-
gios atribuíveis ao Paleolítico Superior. A publicação
dos resultados das medições e a descrição das meto-
dologias e materiais selecionados encontram-se em
curso de preparação, assim como a discussão da sua
pertinência para a problemática da persistência dos
Neandertais na Península Ibérica e para a problemá-
tica correlacionada da datação e atribuição cultural
dos vestígios dos primeiros Homens Modernos nes-
ta mesma área geográca.
Desde já os vestígios líticos encontrados nas cama-
das 6 e 7 conrmam: a ocupação do sítio pelo Ho-
Fig. 12: Distribuição por matéria-prima dos vestígios de
pedra lascada da área Z/A’6/8
Fig. 13: Indústria lítica da unidade 5. 1) UE5/UA15, 2) UE5/
UA13, 3) UE5/UA11, 4) UE5/UA9
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Cardina I – Salto do Boi: cinco metros de arquivo da ocupação paleolítica no Vale do Côa | Thierry Aubry, António Fernando Barbosa, Cristina Gameiro, Luís Luís, André Tomás Santos, Marcelo Silvestre
veis ao Homem de Neandertal. As datas obtidas pelo
método da luminescência em amostras da unidade
estratigráca 5 indicam que as ocupações atribuídas
pela tipotecnologia ao Paleolítico Médio do sítio se
compreendem entre, pelo menos 80.000 e 37.000
anos. As remontagens conseguidas entre vestígios
dos diferentes níveis evidenciados conrmam uma
boa preservação da organização espacial da distri-
buição espacial dos vestígios, provavelmente devi-
da a um ambiente de sedimentação aluvial de fraca
energia. Os estudos geológicos indicam que estes
depósitos de textura na foram depositados no limi-
te máximo das cheias de um braço secundário do rio
Côa, numa fase durante a qual o curso principal do
rio devia encontrar-se mais alto e próximo do sítio,
do que atualmente.
mem de Neandertal numa cronologia anterior à data
de 80.000 anos, obtida para a amostra A1 (cf. Fig.
4), a persistência do Paleolítico Médio até cerca de
37.000 anos, a nossa interpretação dos vestígios de
pedra lascada (Aubry et al., 2018) e existência de evi-
dências do Homem Anatomicamente Moderno no
Vale do Côa há cerca de 34.000 anos.
6. Balanço dos trabalhos de 2018 e perspetivas para
2019
Os trabalhos de escavação da campanha de 2018
permitiram evidenciar uma sequência sedimentar de
cerca de 5 metros de espessura na área H'/I'17/19. As
unidades estratigrácas 5, 6 e 7 preservam vestígios
líticos de ocupações do Paleolítico Médio, atribuí-
Fig. 14: A) Preparação das amostras; B) Localização das amostras de micromorfologia recolhidas no corte de referência
I’/J’16/19
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Ciência
posição topográca e geomorfológica, de forma a
podermos denir mais racionalmente a abertura de
novas áreas de escavação.
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Os vestígios líticos evidenciados na outra área inter-
vencionada (Z/A’6/8) e as características granulomé-
tricas dos seus sedimentos indicam que esta área se
localizava mais próxima do curso de água durante os
períodos de cheias. Este posicionamento terá sido
potencialmente mais favorável para a alimentação
em sedimentos, mas menos propício para a preser-
vação de estruturas.
A raridade e importância da sequência estratigráca
colocada a descoberto, assim como das estruturas
que estão a aparecer, obrigam à adopção de espe-
ciais medidas de protecção e conservação destes
testemunhos no sítio.
De facto, esta sequência de 5 metros, ao longo da
qual se documenta o Paleolítico Médio recente, a
transição para o Paleolítico Superior e as primeiras
evidências de comunidades de Homens Anatomica-
mente Modernos, é um caso único no país e extre-
mamente raro na Europa. Mas a relevância cientíca
e patrimonial do sítio não se ca por aqui, encon-
trando-se também na área colocada a descoberto
duas estruturas de provável carácter habitacional.
Estes exemplos são únicos na Península Ibérica e
muito raros em toda a Europa, tendo sido apenas
identicados no Centro e Leste do continente. Se a
estes aspetos, que já por si tornam este sítio singu-
lar, juntarmos o facto de estarmos perante vestígios
de uma ocupação que se relacionará de forma muito
estreita com as manifestações rupestres ao ar livre
que se encontram no vale e foram justamente classi-
cadas como Património Mundial, a necessidade de
tornar este sítio acessível ao público torna-se mani-
festa e imperiosa.
O primeiro passo para a prossecução deste objetivo
deve ser a preservação in situ dos vestígios que es-
tão a ser colocados a céu aberto. Isso exige a con-
cepção e construção de uma estrutura que não só
permita essa conservação, como também a possibili-
dade de alargamento da área escavada e a mediação
pública do sítio.
Os trabalhos terão continuidade em 2019, em duas
das áreas intervencionadas em 2017. Procurar-se-á
estabelecer a sequência completa dos depósitos
aluviais preservados na plataforma e compreender
melhor as razões da sua variabilidade em função da
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Cardina I – Salto do Boi: cinco metros de arquivo da ocupação paleolítica no Vale do Côa | Thierry Aubry, António Fernando Barbosa, Cristina Gameiro, Luís Luís, André Tomás Santos, Marcelo Silvestre
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