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O mito da democracia racial: contexto histórico brasileiro e a construção do racismo no Brasil

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Abstract

Neste trabalho, buscamos refletir sobre os conceitos de democracia racial e as influências que esta concepção traz para nosso dia a dia. Vivemos em uma sociedade que prega valores individuais e coletivos; entretanto, os individuais sobrepõem os coletivos quando as necessidades de cada um são apresentados primeiro. Historicamente construímos e ainda estamos em processo [e acredito que deveremos sempre estar] de conhecimento, reflexão, ressignificação e reestruturação do pensamento. Somos humanos, e essa é a beleza. O fato de sermos humanos nos faz frágeis em nossas próprias atitudes; e nessas fragilidades apontamos caminhos para melhorar. Ao longo das linhas convidamos você a remontar historicamente [uma parte] alguns fatos que materializam a tentativa de construir a noção de democracia racial; e ao final, provocamos a leitura da seção sobre a construção do mito.
2019 | Volume 3 | Nº 2 | Pág. 158 a 166 DOI: http://dx.doi.org/10.15536/reducarmais.3.2019.158-166.1467
158
O mito da democracia racial: contexto histórico
brasileiro e a construção do racismo no Brasil
Methodologies for teaching-learning in the Natural Sciences in
youth and adult education: weaving dialogues
João Paulo Santos Neves
1
; Maria Aparecida Monteiro da Silva
2
RESUMO
Neste trabalho, buscamos refletir sobre os conceitos de democracia racial e as influências que esta concepção
traz para nosso dia a dia. Vivemos em uma sociedade que prega valores individuais e coletivos; entretanto, os
individuais sobrepõem os coletivos quando as necessidades de cada um são apresentados primeiro.
Historicamente construímos e ainda estamos em processo [e acredito que deveremos sempre estar] de
conhecimento, reflexão, ressignificação e reestruturação do pensamento. Somos humanos, e essa é a beleza.
O fato de sermos humanos nos faz frágeis em nossas próprias atitudes; e nessas fragilidades apontamos
caminhos para melhorar. Ao longo das linhas convidamos você a remontar historicamente [uma parte] alguns
fatos que materializam a tentativa de construir a noção de democracia racial; e ao final, provocamos a leitura
da seção sobre a construção do mito.
Palavras-chave:
Mito; Democracia racial; Movimentos. Preconceito.
ABSTRACT
In this work, we seek to reflect on the concepts of racial democracy and the influences that this conception
brings to our day to day life. We live in a society that preaches individual and collective values; however, the
individual overlaps the collective when the needs of each are presented first. We have historically built and are
still in the process [and I believe we should always be] of knowledge, reflection, resignification and restructuring
of thought. We are human, and that is the beauty. The fact of being human makes us fragile in our own
attitudes; and in these fragilities we point out ways to improve. Along the lines we invite you to trace back
historically [a part] some facts that materialize the attempt to construct the notion of racial democracy; and in
the end, we provoke the reading of the section on the construction of the myth.
Keywords: Myth. Racial democracy; Movements; Preconception.
1. INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira é caracterizada por uma diversidade cultural que resulta de um processo
histórico marcado pela miscigenação de povos portugueses, indígenas, negros, japoneses, chineses,
libaneses, italianos, entre outros. Diante de tamanha diversidade de raças tem-se como reflexo a
manifestação da discriminação por meio de expressões simbólicas ou por atos de agressão e violência,
1
Mestrando de Ciências da Educação; Professor da SEDUC-MT; Professor no Colégio Mãe da Divina Providência - Primavera
do Leste/MT - Brasil.
2
Universidad Colúmbia del Paraguay - Asunción Paraguai.
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praticados contra grupos sociais ou culturais, mas que se expressa de forma mais contundente contra
os negros.
A escola se revela um ambiente social heterogêneo no que diz respeito à diversidade, pois lida com
alunos de diversas raças, culturas e condições sociais, tornando-se um ambiente controverso, pois
atua na formação do cidadão e ao mesmo tempo é cenário de preconceito e de discriminação.
Entretanto, a escola não reconhece ou reconhece e não sabe lidar com a presença do racismo em seu
interior, tão pouco busca debater o tema para não estimular o assunto (ALLGAYER, 2005). Assim, a
discriminação racial é percebida pelos olhos dos educadores e também da sociedade, que muitas
vezes não sabem como intervir perante essas situações, se tornando, portanto, omissos e perdendo
oportunidades de problematizar com os alunos as visões socialmente construídas em relação aos
negros e afrodescendentes.
O preconceito e a discriminação racial por parte de colegas e professores, além de afetar o
comportamento de suas vítimas, afeta o modo com que a criança se ou se sente diante da
sociedade, gerando um sentimento de inferioridade em relação ao “branco” (BARRETO, 2010). Essas
relações de conflitos existentes no ambiente escolar trazem resultados imensuráveis para suas
vítimas, que podem apresentar comportamentos agressivos e violentos, sentimentos de inferioridade,
inadequação social, potencial comprometido e fracasso escolar.
Neste contexto, este manuscrito se objetiva por compreender as relações, o comportamento e a visão
historicamente construída acerca da discriminação racial, e os dilemas enfrentados por jovens negros
e pardos no cotidiano escolar, problematizando as relações sociais que ocorrem neste ambiente. Para
compreender melhor as relações de preconceito e discriminação racial, propõe-se construir um
remonte histórico acerca de termos como: raça, movimento social, diferenças raciais, currículo,
multiculturalismo e até mesmo o chamada “democracia racial”. Apesar da tentativa das políticas
públicas educacionais em acabar com os diversos tipos de discriminação, o preconceito racial ainda
não foi silenciado, apresentando maior destaque dentre os demais.
Um dos ambientes propícios para a manifestação do racismo desde as fases iniciais é a escola, por
ser um local onde diferentes segmentos da sociedade se encontram e convivem de forma sistemática,
além de ser, muitas vezes, o primeiro contato das crianças com o diverso, o múltiplo. Neste ambiente,
indivíduos negros e pardos são tidos como seres inferiores ao branco (HASENBALG, 1996). Partindo
daí, os preconceitos se revelam por meio de gestos, palavras, brincadeiras e apelidos. Muitos destes
não são considerados como preconceito pelos agressores, que continuam a praticar tais atos. Além
disso, professores apresentam dificuldades em reconhecer as situações de preconceito e a intervirem
pedagogicamente diante dessa situação.
A dificuldade existente entre a maioria da população brasileira quanto à identificação racial é fruto da
construção histórica de negação, do desprezo e do medo do diferente, sobretudo quando se relaciona
diretamente a herança ancestral africana, além do mito da democracia racial, o qual negava, ou
massacrava a existência do racismo na sociedade (GOMES, 2007).
A diversidade no ambiente escolar, ou o ambiente escolar em si, tem sido tratado como algo
democrático, porém a escola tem formado pessoas preconceituosas, racistas e intolerantes às
diferenças sociais, descumprido seu papel de educar. Nesse sentido a escola passa a ser um local de
exclusão e não de formação de cidadãos. Todos esses conflitos confirmam a necessidade de uma
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educação crítica que contemple a diversidade (LESSA, 2006). Para tanto é preciso preparo dos
professores para lidar com questões científicas, étnicas, raciais e culturais.
Buscando compreender melhor sobre os aspectos da discriminação racial na sociedade, bem como no
ambiente escolar, será realizada uma breve discussão acerca do conceito de raça e movimentos sociais
que marcam a nossa sociedade, apresentando como se deu a construção dos discursos sobre as
diferenças raciais no Brasil no final do século XIX e início do século XX, abordando a problemática do
mito da democracia racial. Desta forma poderemos perseguir o horizonte no intuito de compreender
como os conceitos de raça foram construídos e a discriminação racial passou a integrar a sociedade
brasileira.
2. CONCEITO DE RAÇA E O MOVIMENTO SOCIAL
Quando adentramos no estudo aprofundado da aprendizagem com as mais diversas manifestações
muito se tem discutido sobre raça e racismo na atualidade. No entanto, para vários biólogos e
cientistas naturais, raça é um conceito que não faz mais sentido, tendo em vista que todos os homens
e mulheres fazem parte da raça humana. Entretanto, para cientistas humanos (antropólogos,
sociólogos, historiadores) raça é um conceito fundamental para se analisar a discriminação racial na
contemporaneidade. Assim, para compreender essa celeuma, é necessário discorrer sobre os diversos
significados deste termo. Inicialmente ele foi utilizado no século XVIII por Buffon, que definia os
homens da raça negra, isto é, os africanos, como rudes, supersticiosos e preguiçosos (SCHWARCZ,
2012).
O naturalista Lineu classificou os seres humanos em seis variedades: 1) homem selvagem, 2)
americano, 3) europeu, 4) asiático, 5) africano, 6) monstro; as quais eram atribuídas descrições
físicas e características comportamentais (idem). Entretanto, a autora afirma que alguns intelectuais
iluministas consideravam os grupos humanos na sua origem e na sua conformação como iguais,
seguindo a visão monogenista, a partir de um pensamento bíblico que acreditava em uma
humanidade
una,
ou seja, possuidora da mesma origem.
Dessa forma tem-se, por um lado, os
monogenistas,
que consideravam que a humanidade tinha
origem única, e, por outro, a posição
poligenista
que defendia a inferioridade biológica e,
consequentemente, cultural dos grupos não brancos (GOMES, 2012). A disputa entre
monogenistas
e
poligenistas
foi amenizada após a publicação de
A origem das espécies
de Charles Dawin (1859) e,
segundo (SCHWARCZ, 2012, p. 26),
[...] os primeiros ficam satisfeitos com um suposto evolucionismo da humanidade
que ainda concebiam como
una
continuaram a hierarquizar raças e povos, em
função de seus diferentes níveis mentais e morais, estes teóricos irão originar uma
linha da antropologia conhecida como evolucionismo social. Os segundos, ao mesmo
tempo em que passam a admitir ancestrais comuns na origem da evolução humana,
afirmavam que as espécies humanas tinham se separado a tempo suficiente para
configurarem heranças e aptidões diversas (SCHWARCZ, 2012, p. 26).
Assim, de acordo com a autora, o conceito de raça sofre uma modificação em relação àquela
desenvolvida na biologia, pois passam a ser atribuídos à raça, elementos de ordem política e cultural,
colocando negros, indígenas e mestiços em posição de inferioridade.
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A discriminação e o preconceito perduram desde o período da escravidão, que perpetuou no Brasil
até o final do século XIX. Fabiani (2005, p. 6) define a escravidão como
[...] quando o trabalhador escravizado é considerado uma mercadoria; quando seu
proprietário pode decidir onde, como e quando empregar seu trabalho; quando, ao
menos em teoria, a totalidade do produto do trabalho cativo pertence ao amo e,
finalmente, quando o
status
servil é vitalício e hereditário (FABIANI, 2005, p. 6).
Para Mattoso (2003), o período de escravidão se prolonga, com o nome diferenciado, o determinismo
biológico, o qual considerava os negros como pertencentes a uma “raça inferior”. O determinismo
biológico afirma que o comportamento e as diferenças sociais e econômicas que existem entre os
grupos, diferenças de raça, de classe e de sexo, derivam de características herdadas geneticamente.
Nesse sentido, o determinismo biológico é classificado como “um mecanismo de dominação por meio
da inferioridade racial” (MAGGIE, 2006, p. 12).
Na verdade, não é a escravidão que se prolonga, mas algumas concepções científicas do final do
século XIX, como o determinismo biológico e o darwinismo social. Segundo Gomes (et al. 2004), o
determinismo biológico classificava e hierarquizava a humanidade, estabelecendo categorias às
pessoas como “desejáveis” e “indesejáveis”, e a miscigenação era considerava muitas vezes um erro
social, cultural e, principalmente, biológico.
A teoria de seleção natural de Charles Darwin é um conceito criado pelo naturalista, que afirma que
a diversidade das espécies existentes originou-se de um processo evolutivo. Uma tendência bastante
comum no final do século XIX era o movimento de utilizar conceitos, termos e metodologias das
ciências naturais para legitimar as ciências humanas. Partindo daí surge o darwinismo social do século
XIX, definido por Gould (1991, p. 111) como “o uso da teoria evolucionista para apresentar a pobreza
como algo inevitável”. Essas considerações foram muitas vezes utilizadas para classificar e excluir os
negros de nossa sociedade durante o século XIX, sugerindo que negros e pardos eram os menos
aptos à sobrevivência, enquanto que os mais ricos e brancos, que evoluíram economicamente, seriam
os mais aptos a sobreviver, por isso os mais evoluídos. O darwinismo social reforça essa ideia,
aplicando as noções de evolução e sobrevivência às sociedades e nações, e associando-as ao racismo
e ao imperialismo.
A partir destas problemáticas, a pesquisa adotou como categoria de análise o termo raça. Segundo
Munanga (2005), o termo raça é usado para designar descendência, ou um grupo de pessoas com
um ancestral comum contendo características físicas em comum. Neste sentido, os indivíduos de pele
negra ou parda, eram descendentes dos escravos e considerados como pertencentes a uma “raça
inferior” – a raça negra.
Todas as pessoas buscam classificar as coisas que as rodeiam. A ciência classifica os seres vivos em
reino, filo, classe, ordem, gênero e espécie, no qual todos os seres humanos são classificados como
pertencentes a uma única espécie, o
Homo Sapiens.
Entretanto o termo raça foi durante muito tempo,
usado para demarcar as três grandes raças: branca, amarela e negra e as diferenças biológicas que
explicariam, por sua vez, as diferenças culturais e sociais entre elas.
O avanço dos estudos sobre a genética humana provou biológica e cientificamente que as raças não
existem. No entanto, para Munanga (2005),
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[...] a sociedade atribuía uma escala de valores entre as raças, onde os indivíduos da
raça “branca” foram decretados coletivamente superiores aos da raça “negra” e
“amarela” e, estabelecia relações entre o caráter biológico (da raça negra) e as
qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que desemboca na
hierarquização das chamadas raças em superiores e inferiores, nascendo daí o racismo
ligado ao conceito de raça (MUNANGA, 2005, p. 5).
Assim, se biologicamente o conceito de raça não existe, culturalmente e socialmente ele deve ser
considerado, não só para desvendar, enfocar e desconstruir o racismo, mas para legitimar diferentes
culturas, o que muitas vezes é feito através do conceito de etnia.
Apesar do fim da escravidão, os negros e pardos continuam a ser marginalizados e excluídos da
sociedade em consequência do preconceito racial. A luta dos negros contra essa eterna “escravidão”
levou à fundação de inúmeros movimentos de valorização à cultura negra no país.
De acordo com Campos (2005), após a abolição, os negros buscaram sua inserção social, participando
da imprensa dos “homens de cor”, e de um grupo político denominado Frente Negra Brasileira, na
década de 30. A partir daí o movimento negro foi ganhando força na busca por políticas públicas de
valorização da cultura negra e da supressão ao racismo. No final da década de 1960, o movimento
negro, particularmente aquele vinculado às universidades, ressignificou o termo raça, visando coloca-
lo no centro do debate. Segundo Moreira (2008), na década de 1970, o Movimento Negro Unificado
e os teóricos que defendiam a causa, ressignificaram o conceito de raça como uma construção social
forjada nas tensas entre brancos, negros e indígenas.
O movimento negro se manifestou de maneira expressiva dentro do espaço político brasileiro.
Partindo daí, várias políticas públicas de promoção à igualdade racial foram desenvolvidas. Um
exemplo disso foi à criação, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR) que representa a materialização de uma histórica reivindicação do movimento negro
em âmbito nacional e internacional e uma inequívoca demonstração do tratamento que a temática
racial passaria a receber dos órgãos governamentais a partir daquele momento. Outra ação de
destaque foi o projeto de Lei nº 3.627, de 20 de maio de 2004, que “instituiu o Sistema Especial de
Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas
instituições públicas federais de educação superior”. Apesar das críticas, inúmeras universidades
aderiram ao projeto, sendo que, em dezembro de 2008, oitenta e quatro instituições federais e
estaduais públicas de ensino superior já empregavam algum tipo de ação afirmativa de ingresso para
os estudantes (SOUZA, 2000), levando a oportunidade para inúmeros jovens de ingressar na
faculdade e conseguir uma melhor oportunidade de emprego e qualidade de vida.
Para Munanga (2001) as críticas em relação à cota de negros nas universidades públicas na verdade
não são em relação à cota em si, mas sim ao ingresso e permanência do negro nas universidades
públicas. Apesar destas críticas, é importante salientar que a cota é um instrumento, uma medida
emergencial para tentar reverter um histórico de injustiças.
3. A CONTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE AS DIFERENÇAS RACIAIS NO BRASIL NO
FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX
A construção dos discursos sobre as diferenças raciais no Brasil no final do século XIX e início do Nos
anos finais do século XIX, a campanha abolicionista e a proclamação da República marcaram a história
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do Brasil. A primeira lei antiescravista promulgada em 1831, proibiu o tráfico de escravos com a
África, e em 1850 é aprovada a Lei Eusébio de Queiróz, reafirmando a proibição do tráfico
internacional de escravos. Os africanos não eram mais vistos como mercadoria, mas defendidos como
as verdadeiras vítimas do comércio escravista. O mesmo não ocorreu com os negros nascidos no
Brasil, conhecidos como crioulos. Na verdade, a proibição do tráfico internacional significou o aumento
considerável do tráfico inter-regional no Brasil.
Entretanto, segundo Hofbauer (2006), a escravidão existia nas sociedades africanas como parte
da própria dinâmica destas sociedades. Entretanto, ela foi absorvida pelas sociedades ocidentais com
objetivos financeiros específicos.
De acordo com Guimarães (2002), esses escravos eram trazidos para América, onde readaptaram
suas vidas dentro dos novos contextos, expondo suas ideias, seus artefatos culturais e políticos,
transformando as memórias culturais trazidas da África e desenvolvendo uma nova cultura. Dessa
forma, esses africanos passaram a fazer parte de uma nova nação, resultado da miscigenação das
raças branca, negra e indígena.
Quando se fala na história brasileira, é válido ressaltar a importância da contribuição dos índios, dos
negros e dos europeus para a construção da cultura da sociedade brasileira. Para muitos, a sociedade
foi construída a partir de uma mistura de tradições, conceitos e valores que se consolidaram na nação
brasileira, composta de brancos, mestiços, negros e indígenas. No entanto, esse discurso idílico e
harmonioso, relacionado com a construção da identidade nacional, não correspondia à realidade.
4. O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Na segunda metade do século XIX, após a proibição do tráfico interatlântico de escravos, com o
incentivo do governo arquitetou-se no Brasil o ideal do branqueamento, como uma política nacional
de promoção de imigração europeia, que visava suprir a escassez de mão de obra resultante da
abolição e modernizar o país através da atração de mão de obra estrangeira, segundo Skidmore
(1976). De acordo com o autor, o ideal de branqueamento foi incorporado pela população e se
apresenta na atualidade através de uma desvalorização da estética negra e uma valorização da
estética branca, por meio da tentativa de “melhorar” a raça através de casamentos mistos.
Segundo Lewgay (2006), surge no Brasil, na década de 1920, o mito da democracia racial, que se
consolidou no imaginário social baseando-se na ideia de que o racismo havia acabado. A expressão
“democracia racial” surge em diversos discursos intelectuais na década de 1930, no entanto, a crença
na democracia racial, ao menos como ideal de igualdade e de respeito, torna-se consenso nos anos
1950, atingindo o seu auge na década seguinte, propondo a harmonização da relação entre raças.
Logo, a ideia de que o Brasil era uma sociedade sem barreiras legais que impedissem a ascensão
social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza ou prestígio, era uma ideia
bastante difundida no mundo, principalmente nos Estados Unidos e na Europa (GUIMARÃES, 2002).
Logo, o mito da democracia racial fez com que se propagasse no Brasil uma das formas mais
perversas de racismo: o racismo velado mascarado pelo status liberal e democrático (MUNANGA,
2000).
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Estabeleceu-se assim uma competição, ou falsa competição, entre negros e brancos, onde os
primeiros encontravam-se em desvantagem no acesso aos bens públicos e privados, tendo em vista
que o mérito não era o único critério para o indivíduo conseguir certa ascensão social, sendo o
fracasso dos negros e pardos atribuído às suas próprias deficiências (SILVA, 1994).
A assimilação e reconhecimento social do mestiço ocorriam à custa da depreciação dos negros e da
concordância da pessoa negra em negar sua ancestralidade africana, posto que estivesse socialmente
carregada de significado negativo. Para Souza (1997), os casos de ascensão social de pessoas de cor
não enriqueciam o grupo social dos negros e dos mestiços, uma vez que eram encaradas como
“negros de alma branca”. Um exemplo interessante é o caso de Machado de Assis, o qual, todos
sabiam que era mulato, mas não deveriam admiti-lo publicamente evitando situações de
constrangimento em que ele ou outros mulatos pudessem sentir-se envergonhados de sua origem
negra (VERMEULEN, 2000).
Para Guimarães (2002), esta realidade social estruturada pelo ideal de branqueamento e pelo mito
da democracia racial, manteve intacto o padrão de relações raciais brasileiro, não sendo posto em
prática nenhum tipo de política que pudesse corrigir as desigualdades raciais.
Munanga (2004) destaca as desvantagens dos negros e pardos em relação aos brancos em pleno
século XXI, em vários aspectos tais como: infraestrutura urbana e habitação, acesso à educação e
justiça, mercado de trabalho e na distribuição de renda, demonstrando que a democracia racial no
Brasil ainda é um mito.
Para Munanga (2004),
No Brasil o mito de democracia racial bloqueou durante muitos anos o debate nacional
sobre as políticas de “ação afirmativa” e paralelamente o mito do sincretismo cultural
ou da cultura mestiça (nacional) atrasou também o debate nacional sobre a
implantação do multiculturalismo no sistema educacional brasileiro (MUNANGA, 2004,
p. 11).
Guimarães (2002) afirma que o racismo praticado nas sociedades contemporâneas não precisa mais
do conceito de raça ou da variante biológica, se reformulando através dos conceitos de etnia,
diferença cultural ou identidade cultural. No entanto, as vítimas de hoje são as mesmas de ontem e
as raças de ontem são as etnias de hoje. Por este aspecto, “o que mudou, na realidade, são os termos
ou conceitos, mas o esquema ideológico que subtende a dominação e a exclusão ficou intacto”
(MUNANGA, 2005, p. 11).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil é conhecidamente um país multicultural, o que nos dá essa característica peculiar; sofrermos
múltiplas influências. Ainda bem. Temos o que discutir. E foi justamente isto que buscamos recortar
nestas páginas. Em que contexto histórico brasileiro nos inseriu? Que construção racial foi essa? E
mais. Construímos ao longo dos anos uma democracia racial; mas por que ela não se consolida? Por
que ainda precisamos resistir, afirmar e mostrar que existimos? Por isso, chamamos ousadamente
aqui por “mito” da democracia racial.
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Apesar das intensas reflexões, ainda precisamos avançar nas discussões acerca da construção racial
do país. É inegável que avançamos em aspectos com reconhecimento, valorização e inclusão; mas
ainda não é o suficiente. Precisamos afirmar e reafirmar todos os dias. É um exercício diário.
Progredimos sim de onde estivemos muitos anos; cercados de concepções, falas, estigmas e
[pré]conceitos; mas ainda necessitamos discutir, trazer para a mesa as situações cotidianas que
pessoas como eu, você, a dona de casa, as vítimas de preconceitos, pois são nestas pessoas
“invisíveis” para alguns da sociedade que os estereótipos se manifestam. E apesar de em um primeiro
momento não terem tanta força e repercussão [considerando muitos fatores, inclusive o social],
reforçam e mostram que sim. Ainda está presente. O preconceito está presente. A raça está presente.
A pseudodemocracia racial está presente.
Não se trata de discutir de novo a mesma coisa. É mais do que isso. Precisamos de mais.
Necessitamos ser lembrados a todo o momento que o racismo (de todas as formas) existe; ele está
presente no mais simples olhar atravessado para um cabelo diferente. No comportamento de
pessoas que dependendo da situação se colocam superiores às outras. Na fala mesmo que “por
brincadeira” estereotipando uma situação.
Vivemos sim o mito da democracia racial, assim como Platão trouxe anos o mito da caverna,
precisamos sair desta caverna que nós mesmos construímos e nos colocamos dentro. É preciso nos
libertar de nossos próprios conceitos. Vigiar. Vigiar sim, primeiramente nossas ações, pois todos nós
temos resquícios de uma influência branca, eurocêntrica e padronizada, que em suas diferentes
gradações refletem nas atitudes diárias. Podemos não ser sempre; mas em algum momento
precisamos parar e refletir que democracia racial é essa que estou vivendo?
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Multirraciais nos Estados Unidos. Estudos Afro-Asiáticos, nº 37, pp. 7-28, 2000.
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O tema "ações afirmativas" tem dividido a opinião pública e esquentado o debate acadêmico. Enquanto alguns especialistas e militantes negros entendem a introdução de ações afirmativas como uma forma de combate ao racismo, uma vez que, segundo esta interpretação, a discriminação positiva ajudará os historicamente desprivilegiados a criar e fortalecer uma identidade positiva, outros vêem em tais medidas um ataque perigoso contra a "maneira tradicional brasileira" de se relacionar com as "diferenças humanas" e temem que políticas como essas possam instigar conflitos raciais abertos. Embora os defensores e opositores à introdução de projetos de ação afirmativa raramente explicitem o que entendem por racismo e como interpretam este fenômeno social, é possível detectar nesses discursos distintas linhas de argumentação que remetem a orientações teóricas diferentes no que diz respeito à análise de categorias como "raça" e "cor".
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O objetivo desse artigo é discutir alguns aspectos da obra de Gilberto Freyre, procurando diferenciar os aspectos mais datados das reflexões que ainda possuem uma surpreendente atualidade. Para isso, toma como ponto de partida o livro de Anthony Marx Making race and nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil. A escolha desse livro se deve a interessante idéia do autor de vincular a questão racial, nesses três casos clássicos de grandes nações constituídas por brancos e negros, ao tema da formação nacional [nation building].
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Neste artigo, o autor argumenta favoravelmente a adocao das politicas de acao afirmativa no Brasil, haja vista os resultados positivos alcancados em outros paises. Alem disso, rebate os cinco argumentos mais comuns levantados contra a adocao das acoes afirmativas no Brasil, a saber: a) nao se sabe quem sao os negros no Brasil; b) as politicas de acao afirmativa estao sendo abandonadas nos Estados Unidos; c) as cotas nao sao destinadas aos indios; 4) as cotas poderiam prejudicar a imagem profissional dos negros que foram beneficiados; 5) as cotas levariam a uma degradacao da qualidade de ensino. Palavras-chave: Acao Afirmativa; Negros; Desigualdade Racial.
O lugar dos negros pobres na cidade: estudo na área de risco do bairro Dom Bosco
  • A C J Barreto
BARRETO, A. C. J. O lugar dos negros pobres na cidade: estudo na área de risco do bairro Dom Bosco. 2010. 136 p. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) -Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010.
  • Adelmir Fiabani
  • Mato
FIABANI, Adelmir. Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004) / Adelmir Fiabani. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03. Brasília: MEC/Unesco
  • Nilma Gomes
  • Lino
GOMES, Nilma Lino. Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03. Brasília: MEC/Unesco, 2012.
A falsa medida do homem. Tradução de Valter Lellis Siqueira
  • Stephen Gould
  • Jay
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
Do racismo clássico ao neo-racismo politicamento correto: a persistência de um erro
  • Bernardo Lewgoy
LEWGOY, Bernardo. Do racismo clássico ao neo-racismo politicamento correto: a persistência de um erro. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.13, n. 2, 2006.