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Anais do XX Fórum Paranaense de Musicoterapia e IV Seminário Paranaense de Pesquisa em
Musicoterapia n° 20 / 2019
MUSICOTERAPIA NA APRAXIA DA FALA INFANTIL
Mauricio Doff Sotta
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Noemi Nascimento Ansay
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Introdução
Já há mais de cem anos, pesquisas demonstram que pacientes com
dificuldades linguísticas em razão de lesões nos mecanismos cerebrais da fala
(muitas vezes decorrentes de acidente vascular encefálico - AVE) preservam a
capacidade de cantar músicas familiares (PALAZZI; FONTOURA, 2016). Esses
achados fomentaram estudos no campo das neurociências, no sentido de
demonstrar as conexões neuronais entre fala e música, o desenvolvimento de
protocolos de fonoaudiologia para o tratamento dos distúrbios da fala, que adotam
alguns elementos musicais, como ritmo e entonação melódica (BITAN et al, 2018;
BAKER; TAMPLIN, 2011; DRAPPER, 2011) e, também, protocolos com enfoque
propriamente musicoterapêutico (PALLAZZI, 2015). Todavia, ainda são poucos os
estudos relativos à utilização da musicoterapia (MT) no tratamento desses distúrbios
(PALAZZI, 2015; DE BRUIJN; HURKMANS; ZIELMAN, 2011) e, mais raros ainda,
os que tratam da apraxia da fala infantil (AFI). O objetivo deste trabalho é, pois,
trazer uma breve revisão da literatura sobre a AFI e do emprego da MT no seu
tratamento.
Apraxia Da Fala (AF) a Apraxia Da Fala Infantil (AFI)
A apraxia da fala (AF) é um distúrbio neurológico que causa prejuízo na
capacidade de planejar ou programar os comandos conscientes da fala, gerando
dificuldade, ou incapacidade de coordenar os movimentos da língua, lábios e cordas
vocais para produzir os sons desejados (DRAPPER, 2011). Os sintomas da AF são
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Mestre em Direito pela UFPR (1993), Bacharel em Música pela UnB (2017), Bacharelando em
Musicoterapia pela UNESPAR (em andamento). Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5532697544079662. E-mail p/contato: mds.musica@gmail.com
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Doutora em Educação pela UFPR, (2016), Mestre em Educação pela UFPR (2009), Bacharel em
Musicoterapia pela FAP (1992); Professora Adjunta, Nível II, do Curso de Musicoterapia da
UNESPAR. http://lattes.cnpq.br/2522951277654216.
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Musicoterapia n° 20 / 2019
classificados em três categorias: (a) falta de acurácia/precisão (distorções fonéticas;
parafasias fonêmicas); (b) inconsistência (variabilidade dos erros; produções
imprecisas com diferentes qualidades do mesmo fonema); e (c) deficiências
prosódicas (distúrbios no fluxo e melodia da fala; pausas e tentativas repetidas de
iniciar a produção da fala) (HURKMANS et al, 2015). A AF é um dos principais
distúrbios da fala, decorrente ou não de AVE, ao lado da afasia e da disartria
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, mas,
diferentemente dos demais, ocorre na completa ausência de distúrbios
neuromusculares (BAKER; TAMPLIN, 2011).
Há um tipo especial de AF, que se apresenta na infância, a apraxia da fala
infantil (AFI), e que pode resultar de doença intrauterina, infecções e traumas, mas,
também, não estar relacionada a qualquer etiologia conhecida (apraxia idiopática)
(SOUZA; PAYÃO; COSTA, 2009).
Normalmente caracterizadas como “bebês quietos”, as crianças com AFI, ao
contrário dos adultos, não chegam a desenvolver um processo estável de fala, ou
seja, a praxia da fala: “capacidade neurofuncional aprendida que o falante tem de
programar os gestos fonoarticulatórios envolvidos na produção motora da fala”
(NAVARRO; SILVA; BORDIN, 2018, p.476). Em consequência, demonstram
“dificuldade na produção de fala e acurácia fonética, caracterizadas por lentidão,
intermitência e variabilidade”, com “restrita variação de acentuação no nível da
palavra e na sentença”, ou “acentuação inapropriada em frases e palavras” e “perda
de contraste prosódico”, além de atraso no desenvolvimento da linguagem escrita,
sintomas que podem persistir na idade adulta (SOUZA; PAYÃO; COSTA, 2009,
p.77).
A musicoterapeuta Loewy (1995, p.49; tradução livre) advoga que a
linguagem se desenvolve musicalmente em três “Estágios Musicais da Fala”, nos
quais a aquisição e produção de sons é vista em “fases consecutivas dentro de um
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Afasia: decorre de lesões nos mecanismos da fala do hemisfério esquerdo do cérebro; nos casos
de AVE, a afasia de Broca ou de expressão é o tipo mais comum e caracteriza-se por deficiência na
formulação e produção da linguagem. Disartria: desordem do movimento de produção da fala em
razão de fraqueza dos músculos responsáveis pelo controle oral, laríngeo e respiratório, podendo
afetar, também, a mastigação e a deglutição; pode, ou não ser decorrente de trauma encefálico
(NAVARRO; SILVA; BORDIN, 2018; DRAPPER, 2011).
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contexto de desenvolvimento e apresentadas como indicadores do
desenvolvimento mental, físico e emocional” da criança, fornecendo um “meio de
entender o nível de atividade vocal que ocorre no contexto pré-verbal”.
O Estágio I - Choro/Sons de conforto começa com o primeiro choro do recém-
nascido e expressa atividades motoras reflexas, por meio das quais a laringe é
exercitada, favorecendo a exploração do ar e dos tons; no Estágio II - Balbucio,
lamentos e inflexões vocais, os mecanismos vocais e motores de produção do som
são utilizados como processos exploratórios para estimular a expressão vocal do
som; e, no Estágio III - Enunciado de palavras singulares e em duplas, a criança
começa a utilizar os fonemas aprendidos na fase anterior para a formação das suas
primeiras palavras (LOEWY, 1995). A autora propõe que a linguagem deve ser
entendida em um domínio musical, antes que em contexto cognitivo (LOEWY,
1995), na medida em que a música da fala dos outros influencia o bebê – que,
mesmo antes de ser capaz de falar, consegue imitar o ritmo e o contorno melódico
da fala – e sua progressão de um para outro estágio (LOEWY, 2004). Além disso,
no período pré-verbal são aprendidos os aspectos essenciais da prosódia, ou seja,
a capacidade de selecionar, de forma consciente ou não, os elementos musicais da
fala (dinâmica, ritmo, timbre) para formular respostas e expressar ideias e desejos
(LOEWY, 2004). Portanto, problemas nesse período podem levar à AFI.
Em linha com esse entendimento, as fonoaudiólogas Navarro, Silva e Bordin
(2018, p.487) afirmam que a AFI é “a consequência de um processo proprioceptivo
neurofisiológico envolvendo sons/balbucio, prosódia, articulação, processamento e
discriminação sonora” que ocorre no corpo da criança, em especial no primeiro e
segundo anos de vida, em sua interação com os outros, parecendo “incidir no
processo neurofisiológico de memória dos movimentos de fala envolvidos”.
Abordagem Fonoaudiológica e Musicoterápica da AFI
O tratamento da AFI é, usualmente, abordado pela Fonoaudiologia, ciência
que tem por escopo, justamente, a comunicação humana. Aliás, desde já se deve
enunciar que qualquer tratamento musicoterápico de distúrbios da fala deve ser
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concomitante ao fonoaudiológico e, sempre que possível, em regime de
interdisciplinaridade, quiçá de transdiciplinaridade.
São, portanto, da Fonoaudiologia os primeiros métodos, técnicas e
protocolos – aqui designados “protocolos” – utilizados para o tratamento da AFI,
sendo que alguns deles utilizam elementos musicais. O primeiro dos protocolos que
utilizou elementos musicais – e um dos mais difundidos – foi a Melodic Intonation
Therapy (MIT), ou Terapia de Entonação Melódica (TEM). Desenvolvida na década
de 1970, para o tratamento da afasia em adultos que sofreram AVE e,
posteriormente, utilizada para o tratamento da AF, a TEM baseia-se na entonação
de sons, palavras ou sentenças cotidianas (em inumeráveis repetições, com caráter
intensivo), em dois tons (normalmente em terças), acompanhadas de
batidas/toques da/na mão esquerda do paciente, e seu objetivo é a estimulação do
hemisfério direito do cérebro, para que assuma as funções da fala que jaziam no
hemisfério esquerdo danificado (PALAZZI, 2015). Apesar do uso da entonação
melódica, a TEM original não é um protocolo musicoterápico, mas fonoaudiológico
(HURKMANS et al, 2015).
Da TEM originaram-se outras abordagens e adaptações, como a Modified
Melodic Intonation Therapy (MMIT) e a Thérapie Mélodique et Rythmée (TMR) –
esta voltada para os falantes de língua francesa e adaptada para outras línguas –,
versões paliativas da TEM, que objetivam dar, ao menos, ferramentas mínimas de
comunicação aos pacientes com graves distúrbios da fala, e a brasileira Terapia de
Entonação Melódica Adaptada (TEM Adaptada) (PALAZZI, 2015). Mas surgiram,
também, protocolos com enfoque propriamente musicoterápico
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para
tratamento da afasia, como o protocolo Kim & Tomaino, o SIPARI - Singen
Intonation Prosodie Atmung [Respiração] Rhythmusübungen Improvisationen e a
SMTA - Speech-Music Therapy for Aphasia (PALAZZI, 2015). Todos esses
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Loewy (1995) sugere técnicas musicoterápicas para o tratamento de distúrbios da fala aplicáveis
tanto a crianças no período pré-verbal quanto a adultos com desenvolvimento da fala comprometido.
Em outro trabalho, a musicoterapeuta trata do uso da MT em diferentes fases e condições da vida,
integrando música, linguagem e voz (LOEWY, 2004). Essas abordagens podem ser úteis no
tratamento da AFI e da AF, mas os limites deste trabalho não permitem sejam exploradas aqui.
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protocolos também são regularmente utilizados no tratamento da AF/AFI e deles
destaca-se a SMTA, descrito em detalhes por De Bruijn, Hurkmans e Zielman
(2011), por ser verdadeiramente interdisciplinar, com a participação simultânea de
fonoaudiólogo e musicoterapeuta em todas as suas fases, e exigindo muitas
habilidades musicais do profissional de MT (dentre as quais, composição e
transposição musicais).
Conclusões
Conforme salientam Souza, Payão e Costa (2009), a terapia para a AFI é
“uma das mais difíceis dentro dos distúrbios da fala”, pois é de árdua reabilitação e
geralmente os processos terapêuticos são longos e de grande intensidade, exigindo
incontáveis repetições de sons, palavras e frases. A MT pode ser um importante
aliado nesses processos, especialmente se aplicada em regime interdisciplinar com
a fonoaudiologia. Seja por meio dos protocolos existentes, seja por meio de outros,
a MT pode atuar estimulando os mecanismos musicais do cérebro e colaborar
eficazmente com o desenvolvimento, ou aquisição, nas crianças com AFI, dos
elementos musicais da linguagem, de modo a reduzir a falta de precisão e as
inconsistências da fala e, em especial, as deficiências prosódicas, que tendem a
persistir na idade adulta.
REFERÊNCIAS
BAKER, F.; TAMPLIN, J. Coordinating Respiration, Vocalization, and Articulation
Rehabilitating Apraxic and Dysarthric Voices of People with Neurological Damage.
In: BAKER, F.; UHLIG, S. (Eds.). Voicework in Music Therapy: Research and
Practice. Philadelphia, PA: Jessica Kingsley Publishers, 2011.
BITAN, T. et al. Changes in Resting-State Connectivity following Melody-Based
Therapy in a Patient with Aphasia. Neural Plasticity, v. 2018, p. 1–13, 2018.
DE BRUIJN, M.; HURKMANS, J.; ZIELMAN, T. Speech-Music Therapy for Aphasia
(SMTA) An Interdisciplinary Treatment of Speech-Language Therapy and Music
Therapy for Clients with Aphasia and/or Apraxia of Speech. In: BAKER, F.; UHLIG,
S. (Eds.). Voicework in Music Therapy: Research and Practice. Philadelphia, PA:
Jessica Kingsley Publishers, 2011.
DRAPER, K. Music and Stroke Rehabilitation: A Narrative Synthesis of the Music-
Based Treatments used to Rehabilitate Disorders of Speech and Language following
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Anais do XX Fórum Paranaense de Musicoterapia e IV Seminário Paranaense de Pesquisa em
Musicoterapia n° 20 / 2019
Left-Hemispheric Stroke. Voices: A World Forum for Music Therapy, v. 16, n. 1,
2016.
HURKMANS, J. et al. The effectiveness of Speech–Music Therapy for Aphasia
(SMTA) in five speakers with Apraxia of Speech and aphasia. Aphasiology, v. 29,
n. 8, p. 939–964, 2015.
LOEWY, J. V. The Musical Stages of Speech: A Developmental Model of Pre-Verbal
Sound Making. Music Therapy, v. 13, n. 1, p. 47–73, 2014.
_____. Integrating Music, Language and the Voice in Music Therapy. Voices: A
World Forum for Music Therapy, v. 4, n. 1, 2014.
NAVARRO, P. R.; SILVA, P. M. V. A.; BORDIN, S. M. S. Apraxia de fala na infância:
para além das questões fonéticas e fonológicas. Distúrbios da Comunicação, v.
30, n. 3, p. 475, 2018.
PALAZZI, A. Musicoterapia na afasia de expressão: um estudo de caso. 2015.
Monografia (Especialização em Psicologia - Ênfase em Neuropsicologia) - UFRS,
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SOUZA, T. N. U.; PAYÃO, L. M. da C.; COSTA, R. C. C. Apraxia da fala na infância
em foco: perspectivas teóricas e tendências atuais. Pró-Fono Revista de
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