Available via license: CC BY
Content may be subject to copyright.
Recebido: 28 nov. 2018 | Revisto pelo autor: 07 mar. 2019 | Aprovado: 06 abr. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752019000200003
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n. 68, p. 413-441, mai/ago 2019
This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
Mobilidade dos textos
e diversidade das línguas
Traduzir nos séculos XVI e XVII
Mobility of Texts and Diversity of Languages
Translating in the Sixteenth and Seventeenth Centuries
R CHARTIER https://orcid.org/0000-0002-6008-9241
École des Hautes Études en Sciences Sociales
54 boulevard Raspail, 75.006, Paris, France
roger.chartier@ehess.fr
Resumo O tema da tradução é hoje compartilhado pela história li-
terária, pela crítica textual, pela sociologia cultural e história global.
Este artigo pretende, primeiramente, re etir sobre as razões dessa con-
vergência. A primeira é histórica e considera a tradução como uma
primeira forma de “pro ssionalização” da escrita. A segunda é metodo-
lógica e possui os estudos da tradução como um elemento essencial da
“geogra a literária” proposta por Franco Moretti, e da perspectiva das
“histórias conectadas” de nida por Sanjay Subrahmanyam. A terceira
razão é linguística e estética e coloca ênfase na intraduzibilidade (ou
nos textos e autores considerados como intraduzíveis). Em seguida, o
artigo propõe três estudos de caso que permitem identi car três séries
de pesquisas sobre as traduções e três modalidades da transformação
dos textos quando eles migram de uma língua para outra. A mobilida-
de do signi cado pode ser produzida pela di culdade da tradução de
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
certas palavras (por exemplo “aetazione” ou “sprezzatura” no Libro del
Cortegiano de Castiglione), ou pelo contexto da recepção da obra tal
como sinalizam elementos paratextuais (no caso da Brevíssima relación
de la destrucción de las Indias de Las Casas), ou ainda pela mutação do
próprio sentido do texto (como o mostra o “Oráculo manual y arte
de prudência” de Gracián, transformado em L’Homme de cour por seu
tradutor francês, mesmo que a palavra “corte” nunca tenha aparecido
no livro de Gracián).
Palavras-chave a tradução, o intraduzível, geograa literária, mo-
bilidade de signicado, histórias conectadas
Abstract e theme of translation is a concern shared today by lit-
erary history, textual criticism, cultural sociology, and global history.
Initially the article will reect on the reasons for this convergence. e
rst is historic and considers translation as the rst form of the ‘pro-
fessionalization’ of writing. e second is methodological and locates
translation studies as an essential element of the ‘literary geography’
proposed by Franco Moretti and the perspective of ‘connected histo-
ries’ dened by Sanjay Subrahmanyam. Finally, the third is linguistic-
aesthetic and emphasizes the untranslatable (or texts and authors con-
sidered as such). Aerwards three case studies are looked at which can
identify three scales of research on translation and three modalities of
textual transformations when they migrate from one language to an-
other. e mobility of meaning can relate to the diculty of translating
the same words (for example aetazione or sprezzatura in Castiglione’s
Libro del Cortegiano), or in the context of the reception of the work how
to express the paratexts (as in the case of Las Casas’ Brevísima relación
de la destrucción de las Indias), or also mutation in the entire meaning
of the text (as shown by l’Oráculo manual y arte de prudencia by Gracián
transformed into L’Homme de cour by its French translator when the
word court (cour) never appeared in Gracián’s work).
Keywords translation, untranslatable, literary geography, mobility of
meaning, connected histories
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
O estudo das traduções é hoje um tema compartilhado pela história lite-
rária, pela crítica textual e pela história ou sociologia cultural. Existem,
acredito, três razões essenciais para este interesse comum.
A
A primeira razão é histórica. Com efeito, é com as traduções que se
evidencia, nos séculos XVI e XVII, uma primeira prossionalização da
escrita. Quando, na Segunda Parte da história, no capítulo LXII, Dom
Quixote visita uma gráca de Barcelona, é apresentado, por um dos
tipógrafos, a um homem “que traduziu um livro toscano para a nossa
língua castelhana”. 1 O diálogo que ele inicia com o “autor” que traduziu
o livro intitulado Le bagatele [A ninharia] diz respeito a duas realidades
aparentemente contraditórias. De um lado, Dom Quixote declara seu
menosprezo pela tradução, que ele identica a uma simples cópia: “ [...]
me parece que o traduzir de uma língua em outra, caso não seja das
rainhas das línguas, grega e latina, é como olhar as tapeçarias amengas
pelo avesso, que por mais que se vejam as guras, são cheias de os que
as obscurecem e não se veem com a lisura e lustre da face; e o traduzir
de línguas fáceis não argui [mostra] engenho nem elocução, como não o
argui [mostra] quem traslada ou copia um papel de outro papel”.2 Dom
Quixote utiliza aqui o verbo trasladar, que possui um duplo sentido no
Tesoro de la lengua castellana, o española, publicado por Covarrubias
em 1611: “Trasladar. Às vezes signica interpretar alguma peça escrita
de uma língua para outra; outras vezes signica copiar”. 3 A tradução de
uma língua vernácula para outra seria, desse ponto de vista, um exercí-
cio puramente mecânico e inútil. Raras seriam as exceções que elevam
a tradução à dignidade do original. Dom Quixote menciona somente
duas: a tradução da tragicomédia de Battista Guarini, Il Pastor Fido, por
1 CERVANTES, Miguel de. O Engenhoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha. Tradução de Sérgio
Molina. São Paulo: Editora 34, 2012. Segundo Livro, Capítulo LXII, p.734.
2 CERVANTES, Miguel de. O Engenhoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha, op. cit., p.736.
3 OROZCO, Sebastián de Covarrubias. Tesoro de la lingua castellana, o española. Madrid, 1611.
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
Cristóbal Suárez de Figueroa, publicada em 1602 e revisada em 1609, e
a do poema de Torquato Tasso, La Aminta, por Juan de Jáuregui, poeta
e pintor, lançada em 1607.
Desprezada por Dom Quixote, a tradução é, no entanto, uma forma
da prossionalização da atividade de escrita capaz de assegurar sólidos
rendimentos aos “autores”. Pelo menos é o que espera o tradutor de Le
bagatele. Quando Dom Quixote lhe pergunta: “Mas vossa mercê me
diga: este livro é impresso por sua conta ou já vendeu o privilégio a algum
livreiro?”, ele responde com soberba: “Por minha conta o imprimo [...] e
penso ganhar mil ducados, pelo menos, com esta primeira impressão, que
há de ser de dois mil exemplares, e num abrir de olhos se hão de despachar
a seis reais cada um”. 4
O tradutor encontrado em Barcelona está convencido de seu sucesso,
uma vez que a tiragem de dois mil exemplares é maior do que todas as
tiragens enumeradas por Alonso Víctor de Paredes em seu Institución
y Arte de la Imprenta, livro composto por volta de 1680.5 Cervantes
sublinha, assim, a enorme presunção do tradutor, mas também o gosto
do público pelas traduções, superior àquele demonstrado pela obras
originais. O tradutor de Le Bagatele mantém para si o privilégio de
impressão do livro e sua intenção está bem clara, ao mandar imprimir
por sua conta os dois mil exemplares e ao controlar sua venda, da qual
obterá os lucros: “[...] Eu não imprimo meus livros para conseguir fama
no mundo, pois nele já sou conhecido pelas minhas obras: é proveito o que
quero, pois sem ele a boa fama não vale um quatrim [tostão]”.6
Os contratos celebrados entre os livreiros parisienses e os traduto-
res dos romances de cavalaria castelhanos em meados do século XVI
4 CERVANTES, Miguel. O Engenhoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha, op. cit., p. 736.
5 PAREDES, Alonso Víctor. Institución y origen del arte de la imprenta. Edición y prólogo de
Jaime Moll. Madrid; Calambur: Nueva noticia editorial de Víctor Infantes, 2002. É preciso
lembrar que, segundo Francisco Rico, a tiragem da segunda edição madrilenha da Primeira
Parte de Dom Quixote, em 1605, foi sem dúvida de 1850 exemplares, o que era seguramente
uma tiragem mais elevada que a da primeira edição, que teve 1500 ou 1750 exemplares no
nal de 1604 (Rico, 2005).
6 CERVANTES, Miguel. O Engenhoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha, op. cit., p. 736.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
mostram que, pelo menos na França, as traduções podiam assegurar
tais lucros. Em 19 de novembro de 1540, Nicolas de Herberay cede aos
livreiros Jean Longis e Vincent Sertenas o privilégio obtido por ele para
a tradução do segundo, do terceiro e do quarto livros de Amadis de
Gaule, entrega a eles partes do segundo livro que ele já traduziu e lhes
promete traduzir “o mais cedo possível” o restante do segundo livro,
assim como os dois seguintes. Os livreiros lhe concedem, por sua vez, e
de acordo com o costume, doze exemplares não encadernados de cada
livro, a m que ele possa apresenta-los ao rei e oferecê-los em dedica-
tória, mas também vinte e cinco écus de ouro quando da assinatura do
contrato, vinte e cinco na entrega do terceiro livro e trinta quando da
entrega do quarto (Parent, 1974, p.300-301). Em uma época em que os
autores geralmente recebem somente exemplares de suas obras como
pagamento, os tradutores são os primeiros a serem pagos em dinheiro.
À remuneração indireta do patronato, reconhecido pelas dedicatórias
ou obtido graças a elas, se juntam aquelas que provêm diretamente
do mercado do livro. Em 2 de março de 1542, o contrato realizado
entre o mesmo Nicolas de Herberay e os dois livreiros aos quais se une
Denis Janot, inclui cláusulas similares para a tradução do quinto e do
sexto livros de Amadís. O tradutor se compromete a entregar o texto
traduzido no prazo de um ano e os livreiros, além de lhe prometerem
doze exemplares de cada um dos dois livros, dez “em blanc” (isto é,
sem encadernação) e dois “Reliés et dorés” [encadernados e dourados],
lhe pagam imediatamente, “manualmente e em moeda” sessenta e dois
écus de ouro, além de perdoarem uma dívida de vinte e dois écus por
um cavalo que lhe havia vendido Denis Janot (Parent, 1974, p.301-302).
O gosto pelas traduções dos romances de cavalaria espanhóis levou
a notáveis inovações nas relações entre os livreiros e os “autores” (neste
caso, os tradutores). É o caso dos adiantamentos concedidos por um
manuscrito ainda a ser feito. Em 19 de abril de 1543, em um contrato
realizado entre Nicolas de Herberay e os três livreiros Longis, Janot e
Setenas para a tradução de Palmerin, estes últimos concedem ao tradu-
tor um adiantamento de quarenta libras pela entrega, no dia de São João
Batista, dos vinte primeiros cadernos do primeiro livro “para começar a
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
imprimir o dito livro por eles”, e depois, em agosto, da totalidade do pri-
meiro livro (Paret, 1974, p.303-304). Para contentar um público impa-
ciente, os livreiros parisienses decidem então imprimir os romances de
cavalaria caderno por caderno, sem esperar pela conclusão da tradução
da obra inteira. Assim as traduções, desde o século XVI, transformaram
as práticas de seus editores e a condição de seus tradutores.
G
À razão histórica para a atenção dada às traduções, se acrescentam hoje
outras, desta vez historiográcas.
Seguir a cronologia e a cartograa das traduções de uma mesma obra
constituiu uma das abordagens iniciais da geograa literária tal como a
deniu Franco Moretti. Como mostram três mapas em seu Atlante del
romanzo europeo, três ondas de traduções asseguraram a mundialização
de Dom Quixote (Moretti, 2000, g.84).7 O primeiro mapa apresenta a
história das traduções de Dom Quixote no “centro” da Europa ocidental
com suas traduções em inglês (1612 e 1620, para a Segunda Parte do
livro), em francês (1614 e 1620), em italiano (1622), em alemão (1648,
mas para uma edição de somente vinte dois primeiros capítulos da Pri-
meira Parte) e em holandês (1657). Uma segunda onda de traduções,
entre 1769 e 1802, diz respeito a uma Europa periférica e “ilustrada”,
com o surgimento das traduções em russo, dinamarquês, polonês, por-
tuguês et sueco. Enm, no século XIX, as traduções se multiplicam nas
línguas dos impérios austríaco, russo e otomano e naquelas do Oriente:
chinês, persa, hindi, japonês. Esta abordagem espacial é absolutamente
essencial, mas permanece, sem dúvida, insuciente.
Com efeito, a geograa das traduções não pode ser a cartograa di-
nâmica de uma entidade textual estável. É preciso levar em conta várias
mutações que transformam a obra. É o caso das novas traduções em uma
mesma língua, justicadas seja por um maior cuidado com a delidade,
7 Edição brasileira: MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu. 1800-1900. Tradução: Sandra
Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 183.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
por meio de um retorno ao texto original ou à edição mais exata disponí-
vel, seja pela evolução da língua da tradução. Para Dom Quixote, a série
das novas traduções inglesas, concorrentes daquela de Shelton de 1612 e
1620, começa em 1687 com a tradução de John Phillips, anunciada como
“New Made English according the Humour of our Modern Language”.
A ela se seguem cinco outras traduções que se apresentam como revisa-
das e corrigidas: a de Motteux, em 1700, apresentada como “Translated
from the Original by Several Hands”; a de Stevens, no mesmo ano, que é
apresentada como a tradução de Shelton “now Revised, Corrected, and
partly new Translated from the Original”; a de Ozell, em 1719, “Carefully
Revised, and Compared with the Best Edition of the Original Printed in
Madrid”; e a de Jarvis, em 1742, e de Smollett, em 1755, que se dizem, am-
bas, “Translated from the Original Spanish of Miguel de Cervantes”. Com
essas traduções sucessivas, Dom Quixote se tornou o romance inglês mais
popular do século dezoito e uma obra que transformou o horizonte de
expectativa dos leitores. Essas traduções múltiplas tornaram possíveis
os romances de Fielding, o próprio Smollett, ou Sterne. Não sucedeu o
mesmo na França, onde as novas traduções — a do jansenista Filleau de
Saint-Martin, em 1677, e a de Florian, publicada postumamente em 1799
— não tiveram o mesmo efeito, sem dúvida devido às grandes liberdades
tomadas com o texto original, abreviado ou continuado.
Uma outra modalidade das “traduções” é a das adaptações, quando
a obra muda, ao mesmo tempo, de língua e de gênero. Assim ocorre
quando Dom Quixote se torna o material de uma peça de teatro.
A Primeira Parte do romance forneceu as intrigas à peça desaparecida de
Fletcher e Shakespeare, History of Cardenio, representada na corte inglesa
no começo de 1613, à tragicomédia de Pichou, Les Folies de Cardenio, en-
cenada em Paris em 1628, ou aos dois Don Quichotte de Guérin de Bous-
cal em 1639 e 1640. Sua peça Le Gouvernment de Sanche, representada
em 1640, dá início à série de obras adaptadas das cenas europeias dos
episódios da Segunda Parte do romance, sob a forma de espetáculos de
feira (por exemplo, em Paris, as feiras Saint-Germain et Saint-Laurent),
de comédias (em Paris por Dufrény, em 1694, e em Dancourt em 1712),
óperas (por exemplo, as duas óperas compostas por Antonio Caldara
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
para a corte de Viena, Don Chisciotte in corte et Sancio Panza governa-
tore dell’Isola Barattaria) ou peças para o teatro de marionetes (como
a Vida do grande Don Quixote de la Mancha, escrita por Antônio José
da Silva para o teatro do Bairro Alto em Lisboa) (Chartier, p.161-181).
Novas traduções e adaptações teatrais produzem novos textos da obra,
tal como fazem essas outras “traduções” que são as apropriações festivas
das personagens ou as ilustrações introduzidas nas edições.
Assim, traduções e geograa literária; mas também traduções e his-
tórias conectadas. O estudo das traduções e das intermediações é uma
maneira de abordar isso em suas diferentes dimensões. Primeiramente, a
dimensão dos primeiros encontros, dando atenção à presença, nos relatos
de viagens, de palavras autóctones, de léxicos bilingues ou, como no caso
do Capítulo XX da Histoire d’un Voyage fait em la terre du Brésil de Jean
de Léry, de um diálogo “na língua selvagem [a língua tupi] e francesa”
[“en langage sauvage [la langue tupi] er François”]. As histórias conecta-
das são, assim, as dos tradutores, não somente de línguas mais também
de culturas, entre mundos em tudo separados. Seguir os destinos daque-
les e daquelas que, como Leo Africanus (Davis, 2006), atravessaram os
espaços e as línguas, compreender a violência inexível que os juízes e os
administradores exercem sobre as palavras dos conquistados e acusados
subtraídos de suas próprias línguas, traçar as viagens dos livros entre
os duas margens do Atlântico são várias faces de uma história global,
situada nos espaços das relações tensas entre territórios e civilizações ou
nos domínios imperiais. O estudo das traduções propõe a menor escala
dessas histórias textuais conectadas, indo ao encontro dos signicados
múltiplos de um mesmo texto. Os exemplos de Castiglione, Las Casas e
Gracián tentarão mostrar a pertinência desse estudo.
T
Uma outra razão para o interesse pelas traduções está ligada aos debates
sobre o intraduzível. A questão não é nova. No século dezessete, Gracián
tinha a reputação de ser impossível de traduzir. Em 1684, em sua tra-
dução francesa de Oráculo manual y Arte de prudência, Amelot de la
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
Houssaie reconhece: “Não é de espantar se Gracián passa por um Autor
abstrato, ininteligível e, por conseguinte, intraduzível, já que é assim que
falam dele a maioria daqueles que o leram: eu mesmo sei de um sábio, a
quem um de meus amigos dizia que nós o traduzíamos, ter respondido
que aquele ali (Gracián) era bem temerário, quem ousasse se meter em
traduzir as Obras, que os próprios Espanhóis não compreendiam”.8 Con-
tra essa ideia preconcebida, Amelot, animado por uma ousadia exces-
siva, deseja demonstrar que Gracián é inteligível em francês, mesmo se
“nossa Língua não é tão rica em palavras, nem tão amiga da metáfora e
da hipérbole, quanto a Língua espanhola”.9 Para Amelot, “[...] o perpétuo
laconismo de Gracián está longe de ser reprovado como um defeito: ao
contrário, ele deve ser apreciado por isso, desde que seja feita uma lei de
não dizer nada de supéruo, e de falar somente às pessoas inteligentes,
a quem se deve dizer mais do que palavras”.10 E acrescenta: “A Gracián
foi feita a imputação de ser obscuro por não se popularizar, ou antes,
por agradar aos Grandes, como havia feito Aristóteles, que escreveu
de forma obscura para contentar Alexandre, seu discípulo, incapaz de
supor que alguém pudesse saber tanto quanto ele. Assim, embora as
obras de Gracián sejam impressas, elas não são mais comuns, pois ao
8 No original: “Il ne faut pas s’étonner, si Gracian passe pour un Auteur abstrait, inintelligible,
et, par conséquent,intraduisible, car c’est ainsi qu’en parlent la plupart de ceux, qui l’ont lu: et
je sais même, qu’um Savant, à qui quelqu’un de mes amis disait, qu’on le traduisait, répondit,
que celui-là était bien téméraire, qui osait se mêler de traduire des OEuvres, que les Espagnols
mêmes n’entendaient pas”. GARCIAN, Baltasar. L’Homme de Cour, 1647. Traduction d’Amelot
de la Houssaie. Edition de Sylvia Roubaud, Paris, Gallimard, 2011, Préface, p.269-270.
9 No original: “[...] notre langue n’est pas si riche en mots, ni si amie de la métaphore et de
l’hyperbole, que la Langue espagnole”. “Il ne faut pas s’étonner, si Gracian passe pour un
Auteur abstrait, inintelligible, et, par conséquent,intraduisible, car c’est ainsi qu’en parlent la
plupart de ceux, qui l’ont lu: et je sais même, qu’um Savant, à qui quelqu’un de mes amis disait,
qu’on le traduisait, répondit, que celui-là était bien téméraire, qui osait se mêler de traduire
des OEuvres, que les Espagnols mêmes n’entendaient pas”. GARCIAN, Baltasar. L’Homme de
Cour, 1647. Traduction d’Amelot de la Houssaie. Edition de Sylvia Roubaud, Paris, Gallimard,
2011, Préface, p.269-270.
10 No original: “[...] tant s’en faut, que son laconisme perpétuel lui puisse être reproché comme
un défaut : au contraire, il en doit être plus estimé, attendu qu’il s’est fait une loi de ne rien dire
de superu, et de ne parler qu’aux bons esprits, à qui il faut dire plus de choses, que de paroles”.
GARCIAN, Baltasar. L’Homme de Cour, 1647. Traduction d’Amelot de la Houssaie, op. cit., p.270.
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
compra-las não compramos o meio de entende-las”.11 Assim, o estilo de
Gracián é considerado como uma proteção contra as incompreensões
de leitores ignorantes, incapazes de perceber o signicado de seu texto.
Amelot dá um exemplo desse intraduzível, — e, contudo, traduzido.
Em sua “Epístola ao Rei”, dirigida a Louis XIV, ele arma: “este livro é
uma coletânea das melhores, e das mais delicadas máximas da Vida
Civil e da Vida de Corte. Existem mesmo algumas, onde ela se verá
representada em essência. O Despejo, palavra para a qual a língua Fran-
cesa não pode ainda encontrar um nome sucientemente expressivo,
tamanho seu enigma, não o será para Vós [...]”.12 Declarada intraduzível
(e não traduzido na Epístola), a palavra “despejo” é, contudo, traduzida
no título da máxima CXXVII como “O O-Não-Sei-Que” que designa
não uma perfeição particular, mas o ornamento de todas as perfeições, o
exercício fácil de todas as virtudes e de todas as qualidades: “O Não-Sei-
-Que. É a vida das grandes qualidades, o sopro das palavras, a alma das
ações, o lustre de todas as belezas. As outras perfeições são o ornamento
da natureza, O-Não-Sei-Que é o ornamento das perfeições. Ele se faz
notar até em sua maneira de raciocinar”.13
11 No original: “Gracian a aecté d’être obscur pour ne pas se populariser, ou plutôt, pour
faire plaisir aux Grands, comme Aristote, qui écrivit obscurément, pour contenter Alexandre
son disciple, qui ne pouvait sourir, que personne en sût autant que lui. Ainsi, quoique les
OEuvres de Gracián soient imprimées, elles n’en sont pas plus communes, car en les achetant
l’on n’achète pas le moyen de les entendre”. GARCIAN, Baltasar. L’Homme de Cour, 1647.
Traduction d’Amelot de la Houssaie, op. cit., p.271-272.
12 No original: “[...] ce Livre, qui est un recueil des meilleures, et des plus délicates maximes de
la Vie Civile et de la Vie de Cour. Il y en a même quelques-unes, où elle se verra représentée
au vif. Le Despejo, auquel la langue Française n’a pu encore trouver de nom assez expressif,
tout énigme qu’il est, n’en sera point une pour Vous, qui y reconnaîtrez d’abord, que Gracian a
fait votre dénition, en voulant faire celle d’un homme parfait.” GARCIAN, Baltasar. L’Homm e
de Cour, 1647. Traduction d’Amelot de la Houssaie, op. cit., Epître au roi, p.267-268.
13 No original: “Le JE-NE-SAIS-QUOI” qui désigne, non pas une perfection particulière, mais
l’ornement de toutes les perfections, l’exercice aisé de toutes les vertus et de toutes les qualités:
“Le Je-ne-saisquoi. C’est la vie des grandes qualités, le soue des paroles, l’âme des actions,
le lustre de toutes les beautés. Les autres perfections sont l’ornement de la nature, le JE-NE-
-SAIS-QUOI est celui des perfections. Il se fait marquer jusque dans la manière de raisonner”.
GARCIAN, Baltasar. L’Homme de Cour, 1647. Traduction d’Amelot de la Houssaie, op. cit.,
Maxime CXXVII, p.403-406. A seguir, duas traduções para o português da máxima CXXVII:
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
A mesma tensão a propósito do intraduzível se encontra nos autores
contemporâneos. É o que podemos perceber em uma conversa entre
o escritor angolano José Eduardo Agualusa e o tradutor inglês de seu
romance Nação Crioula, narrada em um artigo publicado no jornal
brasileiro O Globo em 15 de junho de 2015.14 Agualusa relata que o seu
tradutor, Daniel Hahn, havia considerado um erro o fato de não haver
traduzido a palavra portuguesa “saudade”, remetendo-a a uma nota de
pé de página: “Manter uma palavra na língua original, presa a uma nota
de rodapé, é para um tradutor uma conssão de derrota. Hoje eu tra-
duziria a palavra saudade, conforme a situação, por nostalgia, longing,
homesickness, etc...”.15 Agualusa, por sua vez, argumenta em um sentido
oposto ao do seu tradutor: “[...] durante muitos anos acreditei que a su-
posta intraduzibilidade da palavra saudade não fosse outra coisa senão
um mito poético, criado por portugueses, brasileiros, cabo-verdianos,
angolanos, que diria mais sobre a forma como nos vemos, ou como
gostaríamos que os outros nos vissem, do que sobre a palavra em si”.
O escritor havia mudado de opinião, tendo agora a palavra “saudade”
por intraduzível: “‘Tenho saudades suas’ não é o mesmo que ‘I miss you’,
‘sinto sua falta’. É isso, mas é mais do que isso. Na dúvida, convém sem-
pre ir à etimologia. Saudade vem do latim como signicado de solidão.
Saudade, pois, é esse achar-se sozinho, longe de algo ou de alguém, e,
todavia, perto através da lembrança e do coração. Não há palavra em
inglês que resuma todas estas camadas de sentimentos”.16
Baltasar Gracián, A Arte da Prudência. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p.87-88: “Despejo* em tudo. E a vida dos dotes, alento do falar, alma
do fazer, distinção das distinções. As demais perfeições são ornamentos da natureza, mas o
despejo é o ornato das perfeições” et Note 24, p.171: *Despejo: desenvoltura, desembaraço,
ousadia, intrepidez”; et Baltasar Gracián, Oráculo de bolso e Arte da Prudência. Tradução de
Adriana Junqueiras Arantes, São Paulo, Martin Claret, 2014, p.69: “Desenvoltura. E a vida do
talento, alento do dizer, alma do fazer, realce do realce. As demais perfeições são ornamento
da natureza, mas a desenvoltura o é das perfeições: até na inteligência se celebra”.
14 Cf. José Eduardo Agualusa. “Sobre o intraduzível” https://oglobo.globo.com/cultura/
sobre-intraduzivel-16445527
15 Ibid.
16 Ibid.
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
“P ”.
T C
Com base em três de minhas recentes pesquisas, gostaria de pro-
por a análise de três efeitos da tradução sobre o signicado do texto.
O primeiro, como no caso de “saudade”, diz respeito às próprias palavras
e à diculdade de traduzi-las, e pode ser ilustrado pelas traduções do
Libro del Cortegiano de Baldassare Castiglione, publicado em Veneza,
1528.17 Como sabemos, para designar as formas de agir e dizer que deve
produzir a graça naqueles que não nasceram com ela, Castiglione em-
prega uma palavra nova, “per dir forse una nova parola”: “sprezzatura”:
Mas, tendo eu várias vezes pensado de onde vem essa graça, deixando de
lado aqueles que nos astros encontraram uma regra universal, a qual me
parece valer, quanto a isso, em todas as coisas humanas que se façam ou
digam mais que qualquer outra, a saber evitar ao máximo, e como um
áspero e perigoso escolho, a afetação; e, talvez para dizer uma palavra
nova, usar em cada coisa uma certa sprezzatura [displicência] que oculte
a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem
pensar. [tradução do autor]18
A “sprezzatura” deve fazer parecer natural o que é, de fato, o resul-
tado de um trabalho, de uma arte que é necessário dissimular como
tal. Se o esforço é visível e a facilidade ausente, o resultado é contrário
ao objetivo buscado, produzindo, não a graça, mas a desgraça, e não a
admiração dos outros, mas a sua pouca estima.
17 CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão, 1528. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada,
Revisão de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
18 CASTIGLIONE, Baldassare. Il Libro del Cortegiano, Introduction d’Amedeo Quondam, Mi-
lano, Garzanti, 1981, p.59-60. “Ma avendo io già più volte pensato onde nasca questa grazia,
lasciando quelli che dalle stelle l’hanno, trovo uma regola universalissima, laqual mi par valer
circa questo in tutte le cosa umana che sifacciano o dicano più che alcuna altra, e ciò é fuggir
quanto più si po, e come un asperissimo e pericoloso scoglio, la aettazione, e, per dir forse
una nova parola, usar in ogni cosa una certa sprezzatura, che nasconda l’arte e dimostri ciò
che si fa e dice venir fatto senza fatica e quasi senza pensarvi.”
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
Para nomear essa qualidade que produz a graça, Castiglione escolheu
uma palavra que designa o fato de não se dar valor ou importância ao
que é feito ou dito “sem esforço e quase sem pensar”. Em 1612, o Voca-
bolario degli Accademici de la Crusca não conhece “sprezzatura”, mas
indica que “sprezzare” ou “disprezzare” é o contrário de “prezzare”, que
signica “apprezzare”, apreciar, dar valor. Um equivalente de “sprezzare”
é “vilipendere”, “non far estima, no tener conto”, não possuir estima, não
levar em consideração.19
Escondendo a arte para fazer parecer algo natural, la “sprezzatura” é
o instrumento fundamental do “fazer crer” cortesão. Mas ela está sem-
pre ameaçada de se transformar no seu contrário: a afetação. É o que
nota o conde Lodovico a propósito de outro dançarino, dom Roberto:
“Não vos dais conta que isso, que em dom Roberto chamamos de spre-
zzatura [displicência] não passa de afetação? Porque, se vê claramente,
ele faz esforços para mostrar não pensar nisso, e isso já é pensar demais,
e, como supera certos limites medianos, tal sprezzatura [displicência]
é afetada e cai mal, e é uma coisa que alcança justamente o resultado
contrário do pretendido, que era esconder a técnica”.20 “Aettazione”
não está denida no Vocabolario dele Crusca mas aparece nas várias
entradas do dicionário como sinônimo de artifício (“Aettamente”),
de atenção excessiva (“Compilare”) ou de cuidado afeminado (“Lezia”).
Como os tradutores de Castiglione trataram essa oposição essencial
entre “aetazione” e “sprezzatura”? O primeiro foi o poeta Juan Boscán
em 1534. Quando ele chega à passagem que opõe “aettazione” e “sprez-
zatura”, a diculdade para Boscán não está onde se poderia esperar:
Creio haver uma regra muitíssimo geral, que mais do que qualquer
outra é útil, nesse sentido, a todas as coisas humanas que se fazem ou se
dizem, que é fugir, o quanto for possível, do vício que os latinos chamam
afetação; nós, embora não tenhamos um vocábulo apropriado para isso,
19 Vocabolario degli Accademici della Crusca, 1612, www.accademiadellacrusca.it/it/
scaali-digitali/vocabolario-1612.
20 CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão, p. 43.
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
poderíamos chamá-la de curiosidade ou diligência excessiva e desejo
de parecer melhor do que todos. Este defeito é muitas vezes odioso
para todos, e dele devemos nos resguardar com todas as nossas forças,
usando em tudo de um certo desprezo ou descuido, de modo que, com
isso, se esconda a arte e se mostre que tudo o que se faz e se diz acontece
naturalmente, sem esforço e quase sem que tenha sido pensado.21
Assim, Boscán traduz claramente “sprezzatura” por “un cierto despre-
cio, o descuido” [“um certo desprezo, ou descuido”]. A operação semân-
tica é a mesma que em italiano: a saber, atribuir um valor positivo, o de
facilidade, desapego, a uma palavra que possui geralmente um sentido
negativo. No Tesoro de la lengua castellana o española de Covarrubias de
1611, despreciar é o contrário de preciar, estimar, e signica dar pouca
importância, desprezar, e descuido se opõe a cuidar, dar atenção, e indica
a desatenção, a negligência, a falta de cuidado. O Vocabulario de las dos
lenguas Toscana y Castellana de Cristobal de las Casas registra, em 1570,
a equivalência proposta por Boscán (mas sem aceitar “sprezzatura”):
sprezzare é traduzida por despreciar, sprezzamento por desprecio, sprez-
zato por despreciado. 22
A palavra problemática, para Boscán não é, assim, sprezzatura, mas
aettazione. Para ele, afetación é uma palavra latina e o castelhano não
possui uma palavra apropriada para designar este defeito. Dessa forma, é
preciso encontrar equivalentes para ela: “podremos llamarle curiosidad,
a demasiada diligencia y codicia de parecer mejor que todos”. Assim, três
21 No original: “Hallo una regla geralísima, la cual pienso que más que otra ninguna aprovecha
acerca desto en todas las cosas humanas que se hagan o se digan; y es huir cuanto sea posible
el vicio que de los latinos es llamado afetación; nosotros, aunque en esto no tenemos vocable
proprio, podremos llamarle curiosidad o demasiada diligencia y codicia de parecer mejor
que todos. Esta tacha es aquella que suele ser odiosa a todo el mundo, de la cual nos hemos
de guardar con todas nuestras fuerzas, usando en toda cosa un cierto desprecio o descuido,
con el cual se encubra el arte y se muestre que todo lo que se hace y se dice, se viene hecho de
suyo sin fatiga y casi sin habello pensado.” CASTIGLIONE, Baldassare. El Cortesano, 1534.
Tradução de Juan Boscán. Madrid: Alianza Editorial, 2008, p.97-98.
22 LAS CASAS, Cristobal de. Vocabulario de las dos lenguas toscana y castellana. Sevilla: Fran-
cisco de Aguilar, 1570.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
palavras ou expressões. Curiosidad, como atesta Covarrubias, é um termo
ambivalente, que designa, ao mesmo tempo, a vontade legítima de conhe-
cimento, a atenção particular dada a alguma coisa, e o desejo presunçoso
e excessivo, insistente e pesado, de penetrar nos segredos escondidos aos
homens. Boscán retém o sentido negativo da palavra, assim como ele faz
com a palavra “diligencia”, que signica cuidado e prontidão, mas cujo
sentido é invertido por seu excesso, “demasiada diligencia”. A mesma au-
sência de medida se encontra em “codicia”, que é o equivalente do latim
“cupiditas”, entendida como um desejo sem freio, obstinado, mas, como
observa o Tesoro, a palavra pode algumas vezes ser interpretada positi-
vamente: “Às vezes se toma codicia positivamente, como se diz da mulher
trabalhadora e laboriosa”. Com a tradução de “aettazione”, Boscán faz a
operação inversa daquela efetuada com “sprezzatura”: ele dá um sentido
negativo às palavras que são ou positivas (“diligencia”), ou ambivalentes
(“curiosidade”, “ codicia”). Em 1611, Covarrubias fará entrar “afectación”
no léxico castelhano, com o sentido “castiglionien” de “cuidado extraordi-
nário e diligência excessiva que se tem nas palavras, nos adornos ou em qual-
quer outra coisa”. O “afectado” é “aquele que tem este vício, especialmente
no falar e no pronunciar o que é dito”. As estratégias lexicais de Castiglione
(com “sprezzatura”) e, mais ainda, de Boscán (com os equivalentes de “af-
fetazione”), introduzem empregos surpreendentes, inesperados, que dão
às palavras um sentido contrário ao seu uso comum. Aí se encontra, pos-
sivelmente, o primeiro dos sinais que exprimem a distinção do cortesão.
Os tradutores franceses de Castiglione não se detêm em “aetazione”,
facilmente traduzida por “aectation”. Para Jacques Colin, em 1537, e
depois por Gabriel Chapuis em 1580, a diculdade vem de “sprezzatura”.
Colin escolheu “nonchallance”: “& pour dire peust etre une parolle neuve
user en toutes choses dugne certaine nonchallance qui cache lartice”.
“Nonchalance” deriva do verbo “nonchaloir”, que signica desprezar
[mépriser], negligenciar [négliger], e que era geralmente utilizado na
forma do particípio presente adjetivado: “nonchalant” [casual]. A palavra
é geralmente associada à preguiça, à ignorância, ao esquecimento. No
résor de la langue française de Jean Nicot, publicado em 1606, ela é
sinônimo de descuido, de negligência. Em Montaigne, trata-se de um
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
defeito oposto ao cuidado e à solicitude, um vício contrário à curiosi-
dade legítima, mas pode designar também a liberdade dos movimentos
e das ações. Jacques Colin assume a ambiguidade do termo ao dar um
valor positivo à negligência, transformada em uência e liberdade.
Em 1580, “nonchalance” parece insuciente a Gabriel Chapuis para
traduzir “sprezzatura”. Ele mantém a palavra mas lhe associa uma outra:
“&, pour dire, peut estre, un mot nouveau, user em toutes choses d’un
certain mespris et nonchalance, qui cache l’articiel”.23 “Mépris” [des-
prezo] permite chegar mais perto do italiano e do castelhano já que o
termo signica não dar valor, não dar nenhuma atenção ou estima ao
que se faz. A edição de Chapuis naliza com uma “Table des principales
matières et sentences contenues en ce livre” [Índice das principais maté-
rias e sentenças contidas neste livro], classicadas em ordem alfabética
sobre o modelo da edição veneziana de 1547. “Mespris” não aparece
no Índice, mas “nonchalance” gura ali, não somente como oposta
à “aectation”, mas como a própria afetação, quando ela é excessiva:
“Nonchalance: afetação” [“uma afetação grande demais”]. “Aectation”
aparece em várias sentenças: “Aectation: doit être fuie pour avoir grâce”
[“Afetação: deve ser evitada para se ter graça”] ou “Courtisan: doit estre
principalement sans aectation” [“Cortesão: deve ser sobretudo sem afe-
tação”]. O livro de Castiglione é assim transformado em uma coletânea
de lugares comuns, admiráveis porque universais.
omas Hoby, que traduz o livro para o inglês em 1561, encontra a
mesma diculdade de Boscán. Ele enuncia, assim, a regra geral que pro-
duz a graça: “to eschew Aectation or curiosity & (to speak a new word)
to use in every thyng a certain Reckelesness”.24 Assim como Boscán,
23 CASTILLONOIS. Comte Balthasar. Le Parfait Courtisan. Traduction de Gabriel Chapuis,
Lyon, 1580. Réédition Paris, 1585, p.65. Tradução para o português: “e, para dizer, talvez,
uma palavra nova, lançar mão em todas as coisas de um certo desprezo e nonchalance, que
esconde o articial”.
24 CASTIGLIONE, Count Baldassar. e Courtyer, London, William Seres, 1561, fol. E3, r°.
Tradução para o português: “escapar à afetação e à curiosidade, e (para empregar uma palavra
nova) usa rem todas as coisas de uma certa despreocupação, para esconder a arte e fazer com
que pareça que tudo o que foi feito e dito o é de modo imediato e (aparentemente) impensado”.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
Hoby hesita na tradução de “Aettazione”, propondo duas palavras como
equivalentes: “Aectation ou curiositie”. “ Aectation” é impressa em ca-
ractere romano, como se se tratasse de uma palavra latina, e o sinô-
nimo que lhe é dado, “curiositie” é impressa em “black letter”. Segundo os
exemplos do Oxford English Dictionary, o primeiro termo, “aectation”,
é recente no sentido de comportamento articial, estudado, construído.
Em um texto de 1548 aparece a equivalência com “curiosité”: “to pronou-
nce the consonantes for aectacion, or curiouselye” [“pronunciar as con-
sonantes com afetação ou curiosamente”]. Nos exemplos de emprego do
século dezesseis, “curiosity” é habitada pela ambivalência encontrada em
castelhano. De um lado, a palavra designa o cuidado, a atenção, a exati-
dão, a preocupação legítima em saber; de outro, seu excesso produz uma
atenção inapropriada, fastigiosa, insistente, e o desejo de conhecer coisas
inúteis ou escondidas por Deus. Retendo somente este segundo sentido,
totalmente negativo, Hoby repete o caminho seguido por Boscán.
Para traduzir “sprezzatura”, Hoby escolheu “recklesness”, uma palavra
antiga, sempre utilizada com o sentido de negligência, de imprudência,
de descuido, despreocupação culposa/irresponsável. O Oxford English
Dictionary dá dois exemplos dela: com um extrato dos Registros do Par-
lamento em 1439, em que “Capitães e marinheiros, por negligência [‘by
rekelesnesse’] e descontrole de alguns de seus barcos atingiram e danica-
ram outros barcos”; com um texto de controvérsia teológica de 1581, so-
bre o desdém oposto à misericórdia de Deus (“Uma tal negligência [‘such
retchlesnes’] não pode, de maneira alguma, estar de acordo com a graciosa
misericórdia de Deus”]. Hoby inverte, assim, o signicado comum da
palavra e transforma um defeito do vulgo em qualidade do cortesão.
A edição revista da tradução de omas Hoby, lançada em 1588,
dez anos após sua morte, modica a tradução. “Aectation”, mesmo em
caractere romano, desaparece e “curiosity” é substituída por “too much
curiousnesse”, como se a adição de “too much” permitisse anular os sig-
nicados positivos da palavra, assim como o faz o adjetivo “pernicious”
na tradução de 1555 das Décadas de Pierre Martyr d’Anghiera (“uma
perniciosa curiosidade”) ou o adjetivo “tedious”, em um texto de 1628:
“Adornam seus corpos com fastidiosa [“tedious”] curiosidade”. Mais ainda
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
do que “curiosity”, “ curiousness” sublinha os perigos da curiosidade,
que transforma o cuidado diligente em atenção fastigiosa e conduz o
homem ao desejo de penetrar os mistérios proibidos a ele, como mostra
omas Norton em sua tradução de l’Institution de la religion chrétienne
de Calvino em 1561: “A curiosidade dos homens [‘the curiousnesse of
men’] não pode ser impedida, por qualquer constrangimento que seja, de
se aventurar além dos limites proibidos”.
“Recklessness” desaparece igualmente como tradução de “sprezzatura”,
substituída por “a certaine disgracing”, “uma certa desgraça”. O paradoxo
aqui é extremo já que a graça é produzida por aquilo que a suprime.
Todos os exemplos de emprego do verbo “to disgrace” entre 1549 e 1577
dados pelo English Oxford Dictionnary remetem à destruição: os ventos
e as tempestades desgraçam os rios, um discurso rude e ignorante des-
graça sua matéria, o nariz decepado desgraça o rosto de uma mulher,
uma barriga proeminente desgraça o indivíduo. As outras acepções de
“to disgrace” são igualmente negativas: desacreditar, desonrar, desgraçar
no sentido de destituir. Como se pode explicar esta escolha do editor de
1588? Sem dúvida, por um retorno à operação semântica do italiano e
do espanhol. Se “sprezzare” é não dar valor, se “descuido” é não cuidar,
“disgracing” é não se preocupar com “a graça”. Nesses três casos, estamos
falando de uma desenvoltura indiferente que isoladamente pode produ-
zi-la. A tradução pretende assim mostrar que a verdadeira graça se dá
nas aparências de seu contrário: não na sua exibição ou sua ostentação,
identicada à afetação, mas o que justamente parece destruí-la. É assim
que “a certaine disgracing”, forma suprema e distintiva da graça, evitará
àqueles e àquelas que de são capazes, as amarguras da desgraça.
O primeiro desao que os tradutores do Libro del Cortegiano deviam
enfrentar era o do léxico necessário para captar e transmitir os parado-
xos da língua de Castiglione (Chartier, 2018). Para certos tradutores, a
principal diculdade não estava ali onde se poderia esperar — “aetta-
zione” colocando mais problemas do que “sprezzatura”, o que os levou a
utilizar em um sentido depreciativo termos ou positivos, ou ambivalen-
tes para estigmatizar a afetação. Foi assim com “curiosité” em castelhano
ou em inglês, cujo emprego, nesse contexto, devia afastar o sentido de
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
desejo legítimo de conhecer as coisas como elas são para retornar à
condenação bíblica e patrística de uma concupiscência fastigiosa, in-
sistente e inapropriada. Para todos os tradutores, “sprezzatura” era um
desao compartilhado já que a palavra convidava a dar um sentido
positivo, distintivo, curial, a termos geralmente utilizados de maneira
negativa. Daí, o uso paradoxal de “desprecio”, “ mépris” ou “disgracing”
que, diferentemente de “nonchalance” ou “recklesness”, se esforçavam
em traduzir não somente a “nova parola” de Castiglione, mas também
a operação lexical que invertia o sentido esperado de uma palavra a m
de que ela possa designar a graça que faz reconhecer o perfeito cortesão.
F .
T L C
No meu segundo exemplo a mobilidade do sentido deriva menos das es-
colhas de tradução do que dos contextos de publicação. A Brevissima re-
lación de la destruyción de las Indias, escrita pelo Dominicano Bartolomé
de las Casas e impresso juntamente com sete outros “tratados” em Sevi-
lha em 1552, é sem dúvida um dos textos mais traduzidos na Europa da
primeira modernidade.25 As folhas de rosto de suas diferentes edições
indicam as mutações de seu signicado. A primeira, a de 1552, apresenta
um forte contraste entre, de um lado, a presença das armas do Impera-
dor Charles Quint 26 e a referência à sua divisa com as duas letras “P V”,
Plus Ultra”, utilizado a partir de 1515 como divisa cavalheiresca antes de
designar a soberania do Imperador sobre os territórios situados além das
Colunas de Hércules, e, de outro lado, a ausência de qualquer menção a
uma permissão ou a um privilégio dado ao texto pelo soberano. A obra
25 LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima relación de la destruición de las Indias. Edición de
André Saint-Lu, Madrid: Cátedra, 2005. Tradução portuguesa: LAS CASAS, Frei Bartolomé
de. Brevíssima Relação da Destruição das Índias. O Paraíso destruído. A sangrenta história da
conquista da América espanhola. Tradução de Heraldo Barbuy, Porto Alegre: L&PM, 2001.
26 Charles Quint (1500-1558) torna-se rei da Espanha em 1516 e imperador dos Romanos em
1519. Seu lho é Felipe II da Espanha (1527-1598), soberano dos Países Baixos em 1555, rei
da Espanha em 1556 e rei da Sicília e Nápoles em 1556.
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
não apresenta, aliás, nenhuma dessas aprovações de censores, necessá-
rias para todo o livro do Século de Ouro. Porque essas ausências? Uma
primeira razão deve-se possivelmente à vontade de Las Casas de evitar
os mecanismos regulares da censura sevilhana que, desde 1502, era de-
legada ao arcebispo da cidade. Daí, na folha de rosto, a lembrança de
sua qualidade de bispo antes daquela de Dominicano: “por el Obispo dõ
fray Bartolome de las Casas / o Casaus de la orden de Sãcto Domingo”
(enquanto que, de fato, Las Casas nomeado Bispo de Chiapas em 1543
havia renunciado ao seu cargo em 1550). Uma outra hipótese é que Las
Casas teria recebido uma autorização tácita do Príncipe Felipe, então a
cargo das Índias como regente dos reinos da Espanha, uma vez que este
o havia recebido favoravelmente quando do seu retorno à Espanha em
1547. É ao Príncipe Felipe que a Brevíssima Relación é dedicada.
No título, Brevissima relacion de la destruycion de las Indias: colegida
por el Obispo dõ fray Bartolome de Las Casas, cada palavra conta e deve
assegurar a verdade do texto. Uma “relación” é um texto investido de au-
toridade porque é fundado sobre o testemunho e a observação direta dos
fatos relatados. A relação apresentada por Las Casas é “brevíssima”, muito
curta, de forma que a “brevitas” da narrativa dê ao Príncipe um assustador
resumo da interminável história de crueldades, que são também pecados
mortais. Essa relação é também “colegida”, reunindo diversas narrativas
ou documentos, o que pode parecer paradoxal para um testemunho cuja
credibilidade depende da observação pessoal daquele que relata. Mas
como indica a denição do verbo “colegir” no Tesoro de la lengua cas-
tellana de Covarrubias, não há diferença de natureza entre as coisas vistas
e os textos lidos se estes possuem um lastro de verdade. “Colegir” é, com
efeito, “reunir numerosas e diferentes coisas ouvidas, vistas ou lidas”. A
credibilidade do texto é atestada tanto pela lembrança da qualidade de
Bispo do Dominicano quanto pela menção de seu pertencimento (discu-
tível) à família nobre de Casaus, útil em um tempo em que o testemunho
aristocrático, tido como desinteressado, é garantia da autenticidade do
que ele atesta. O nome do impressor não aparece na página de título, onde
somente gura a data da impressão, 1552, mas o colofão indica que o livro
foi impresso em Sevilha, “En casa de Sebastian Trujillo”.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
Quando o texto de Las Casas é traduzido para o francês pelo pro-
testante Jacques de Miggrode e publicado em Antuérpia em 1579, seu
título torna-se “Tyrannies et Crautez des Espagnols, perpetrees es Indes
Occidentales, qu’on dit Le Nouveau Monde; Brievement descrites en
langue Castillane par l’Evesque Don Frere Bartelemy de Las Casas ou
Casaus, Espagnol, de l’ordre de S. Dominique; delement traduictes par
Jacques de Miggrode: Pour servir d’exemple & advertissement aux XVII
Provinces du pais bas”. Desde a folha de rosto, a intenção da tradução
é claramente anunciada tanto pela indicação “Pour servir d’exemple &
advertissement aux XVII provinces du Pays-Bas” quanto pelo dístico
“Heureux celuy qui devient sage / En voyant d’autruy le dommage”. Re-
cordar os crimes cometidos pelos Espanhóis na América é uma forma
de alertar todos aqueles que pudessem se sentir tentados a concordar
com eles. A destruição das Índias, que pregurava para Las Casas a
da própria Espanha, desenha, sob a pluma de Jacques de Miggrode, a
possível destruição dos Países Baixos.
Essa intenção justica as palavras do novo título dado a um texto
cuja credibilidade é assegurada pelo fato de que é um “Espanhol” que
denuncia, “em língua castelhana”, as atrocidades de seus compatriotas.
Duas palavras fortes substituem “destruction”. “ Cruautés” [crueldades] é
oposta à moral cristã, que prega o amor ao próximo, e à lei natural, que
exalta a busca do bem comum. “Tyrannies” [tiranias] (um termo muito
frequente em Las Casas) pertence ao léxico político do século dezesseis
e designa a disposição arbitrária dos bens e dos corpos dos súditos pe-
los príncipes despóticos (para condená-la). Nas Índias, a conquista de
territórios sem respeito pelos direitos de seus senhores naturais, junta-
mente com as violências cometidas contra os Indígenas, massacrados
sem razão ou esgotados pelo trabalho forçado, são os exemplos terríveis
das “tyrannies” que violam as leis divina e natural. Melhor do que os
panetos anti-espanhóis, o texto de Las Casas, “elmente traduzido”,
sem as liberdades por vezes tomadas pelos tradutores, é a mais ver-
dadeira e grave acusação contra as vis intenções dos reis e dos povos
daquela nação. Esse texto poderá assim servir de “exemplo”, assim como
os “exempla” mobilizados pelos predicadores nos seus sermões, e de
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
alerta para todos aqueles que, tomando conhecimento do que ocorreu
na história, poderão e deverão agir para que ela não se repita, e que os
Países Baixos não se tornem as novas Índias.
Quando a tradução de Miggrode é traduzida em inglês, em 1583, o
título insiste sobre a identidade espanhola do autor, garantia da verdade
de seus dizeres: “Briefe Chronicle of the Acts and gestes of the Spaniardes
in the West Indies, called the newe World, for the space of xl. yeeres: written
in Castilian tongue by the reuerend Bishop Bartholomew de las Casas or
Casaus, a Friar of the order of S. Dominicke”. Mas as primeiras palavras,
que são novas — “e Spanish Colonie”, situam a denúncia das violências
cometidas na América no contexto das rivalidades entre as duas monar-
quias, inglesa e espanhola. É assim reforçada uma escolha de tradução
de Jacques de Miggrode. Em seu texto, Las Casas utiliza frequentemente
a palavra “cristianos” para designar os Cristãos que não o são, pois, ao
massacrarem os Índios sem ter levado até eles o evangelho, tais cristãos os
condenam a penas eternas, condenando ao mesmo tempo a si próprios.
Em Miggrode, como em seu tradutor inglês, os “cristianos” de Las Casas se
tornam os os “Espagnols” ou os “Spaniards”, inimigos impiedosos e ímpios.
Com a segunda tradução inglesa do texto de Las Casas, de John
Phillips, um sobrinho de Milton, publicada em 1656 e dedicada a
Cromwell — novo Davi vingador e redentor dos perseguidos, o título
muda novamente e se torna “e Tears of the Indians Being An Historical
and true Account of the cruel Massacres and Slaughters of above Twenty
Millions of innocent People”. Possivelmente inspirado por um paneto
lançado em 1642, e Teares of Ireland, que denunciava os massacres
cometidos pela “Popish Faction” contra os Protestantes irlandeses, as lá-
grimas dos Índios são lágrimas bíblicas, as do profeta Jeremias (Livro IX,
primeiro versículo).27 O texto é apresentado como uma “narrativa histó-
rica e verdadeira dos cruéis massacres e carnicinas de mais de vinte mi-
lhões de inocentes, cometidos pelos Espanhóis”. O fato de que a narrativa
27 “Ah, se a minha cabeça fosse uma fonte de água e os meus olhos um manancial de lá-
grimas! Eu choraria noite e dia pelos mortos do meu povo”. Cf. http://biblia.com.br/
novaversaointernacional/jeremias/jr-capitulo-9/
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
tenha sido escrita por um Espanhol que foi testemunha ocular (“Writ ten
in Spanish by Casaus, an Eye-witnes of those things”) das crueldades asse-
gura a realidade dos crimes — mesmo se Las Casas tenha perdido aqui
suas qualidades de bispo e de Dominicano. A enumeração dos lugares dos
massacres (São Domingos, Cuba, Jamaica, México, Peru) inclui no título
a cronologia da conquista espanhola que dá ordem ao tratado de Las Ca-
sas, e o número de “mais de Vinte Milhões” (“above Twenty Millions”) de
vítimas (primeira menção em um título do número de vítimas) é aquele
armado por Las Casas em sua controvérsia com Sepúlveda.
Eu encerraria aqui o estudo da mobilidade dos títulos dados ao tra-
tado de Las Casas, com uma exceção, que mostra bem como, sem mudar
o texto, mas somente sua língua, o horizonte de expectativa de sua tra-
dução modica o seu sentido. A “relação” de Las Casas só foi traduzida
para o português em 1944, por Heraldo Barbuy, que lhe deu um título
em tudo semelhante ao espanhol: Brevíssima Relação da Destruição
das Índias occidentais. Quando esta tradução foi reeditada, em 1984,
um subtítulo foi adicionado por Eduardo Bueno: “O Paraíso destruído.
A sangrenta história da conquista da América espanhola”. Se é fato que
Las Casas denuncia o Inferno que os conquistadores trouxeram para
a América e se ele abre seu tratado com uma descrição da “bondade
natural” (la “bondad”) dos Índios, gente simples, pacíca e virtuosa, ele
não institui o “Paraíso na América”. Se o editor de 1984 o faz, é sem dú-
vida porque o tema do Paraíso foi introduzido com força no horizonte
intelectual brasileiro por um grande clássico: o livro publicado em 1958
por Sérgio Buarque de Holanda, sob o título Visão do Paraíso. Os moti-
vos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil (Holanda, 1958).
O subtítulo de 1984 sublinha a identidade propriamente “espanhola” dos
massacres que acompanharam a conquista (e traduz sistematicamente
“cristianos” por “espanhóis”) e, utilizando a expressão “sangrenta his-
tória”, ele estabelece implicitamente uma continuidade nas repressões
sangrentas que o prefácio designa como “o genocídio de ontem e hoje”. 28
28 BUENO, Eduardo. “Apresentação”. In: LAS CASAS, Frei Bartolomeu de. Brevíssima Relação
da Destruição das Índias, op. cit., p.9.
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
A . T G
Um último exemplo permite compreender como a tradução pode trans-
formar não somente as ressonâncias lexicais ou as expectativas e recepções
das obras, mas seu próprio signicado. Este exemplo nos leva novamente
a Gracián. Em seu grande livro consagrado ao processo civilizatório, pu-
blicado em 1939, Norbert Elias cita o Oráculo manual y Arte de prudência
na tradução francesa de Amelot de La Houssaie, publicada em 1684. Ele
caracteriza o livro como sendo, “em certo sentido, o primeiro manual
sobre a psicologia de corte, da mesma maneira que o livro de Maquiavel
sobre o príncipe foi o primeiro manual clássico sobre a política de corte”. E
acrescenta: “encontramos em Gracián e, depois dele, em La Rochefoucauld
e La Bruyère, sob a forma de máximas gerais, todos os modos de conduta
com que deparamos, por exemplo, em Saint-Simon, na prática da vida de
corte”. 29 A leitura feita por Elias assegura, assim, que Gracián escreveu um
livro sobre as condutas necessárias na sociedade de corte. Entretanto, a
palavra “corte” não aparece nem em seu título, nem em seu texto.
As quatro palavras do título do original publicado em Huesca em
1647 (e apresentado como uma antologia de aforismos extraídos das
obras do irmão de Gracián, Lorenzo), propõem um signicado e uma
destinação do texto que nada possuem de curiais. “Oráculo” era uma
palavra polissêmica, designando a um só tempo as respostas equívocas
dos falsos deuses dos Pagãos e as pessoas tocadas por seu saber e dou-
trina. Em um livro anterior, El Político, lançado em 1646, Gracián quali-
cava, por exemplo, Fernando de Aragão de “oráculo mayor de la razón
de Estado”. Ambivalente, o termo fazia referência aos segredos reserva-
dos àqueles que sabem decifrar suas verdades. De onde o paradoxo, até
mesmo o oximoro, introduzido pela palavra “manual”, que tem um duplo
sentido, material e textual. Ela designa, primeiramente, tudo o que pode
29 ELIAS, Norbert. Uber den Prozess der Zivilisation. Soziogenetische und psychogenetische
Untersuchungen. Frakfurt: Suhrkamp, 1997. nota 134, p.479. Tradução brasileira: ELIAS,
Norbert. O Processo civilizatório, vol. 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro:
Zahar, 1994. p.290-292.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
ser facilmente carregado consigo (o que é o caso do livro de Gracian pu-
blicado no formato in-24, muito pequeno), mas dene também o gênero
das antologias e dos “compendia”, livros nos quais se encontra resumida
uma ampla matéria (o que é o caso da obra que declara reunir trezentos
aforismos supostamente extraídos de obras anteriores do autor).
A palavra “Arte” é mais esperada, designando a um só tempo os pre-
ceitos necessários para fazer corretamente as coisas e o livro que contém
estes preceitos. Mas “Arte” pode também possuir um sentido mais hermé-
tico e secreto quando designa a “Ars magna”, a árvore de todas as ciências
e seu conhecimento”. Assim como “oráculo”, a palavra pode ter sido esco-
lhida por Gracián devido a essa ambivalência que a situa entre a ordem
do que é prometido a todos e um saber reservado somente àqueles que
sabem decifrá-lo. Esses preceitos bem ordenados e concatenados são os
da “prudencia”. O título de Gracián faz assim referência à prudência como
uma das virtudes cardiais, como o sinal da presença da luz divina no ho-
mem, segundo a perspectiva tomista. Resta ao leitor descobrir como, no
corpo do livro, Gracián transforma esta virtude em regras das condutas
práticas destinadas a evitar as armadilhas em um mundo corrompido e
pecador. O texto de Gracián não é, assim, de modo algum, um manual
de corte destinado a inculcar ou expor os comportamentos necessários
em um mundo social particular. Suas lições são universais, mesmo que
se direcionem somente àqueles que serão capazes de entendê-las. É assim
que o livro foi compreendido em sua primeira tradução italiana, publi-
cada em Parma em 1670 e reeditada em Veneza em 1678, com um título
totalmente el ao original, Orácolo manuale e arte de prudenza.
É somente com a tradução francesa de 1684 que o livro adquire o
signicado que lhe atribui Norbert Elias. Seu tradutor, Amelot de la
Houssaie, lhe dá como título L’Homme de Cour, endereçando-o assim
a um destinatário jamais mencionado por Gracián. Ele explica isso
no Prefácio:
Seu título exprime não somente tudo o que ele trata, mas ainda a
qual uso, e a quem ele é apropriado. Ele não é assim apropriado a
todo mundo, dirão vocês? Com certeza não; ele é apropriado a quem
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
pertence à boa sociedade, e às pessoas que conhecem o mundo. Um
Homme de Cour, que não possui disposição para se familiarizar com o
Vulgo, só se agrada com seus iguais. E, como comumente ele só fala por
meias palavras, ele não saberia se sujeitar a conversar, nem com o povo
pequeno, nem com os espíritos pequenos, que só entendem o que lhes
é dito com muitas palavras. 30
Amelot é bem consciente da distância existente entre o título que ele
dá à sua tradução e aquele que Gracián havia dado ao seu livro, mas ele
o justica claramente no seu Prefácio: “Vós notareis, a propósito, que
o título de Homme de Cour encontra-se muito de acordo com aquele
da Arte de Prudência, pois a prudência é mais necessária na Corte do
que em qualquer outro lugar” 31. Ele acrescenta uma segunda razão à
transformação do título; a saber, tornar mais explícito o signicado do
livro: “Existem quase tantos preceitos e mistérios quanto de linhas; e é
seguramente por isso que o compilador o intitulou Oracle Manuel: título
que mudei para Homme de Cour, que além de ser menos suntuoso e me-
nos hiperbólico, explica melhor a qualidade do livro, que é uma espécie
de Rudimento (noções elementares), e de Código Político”.32 Trata-se de
designar o livro a partir de um duplo signicado, curial e absolutista.
30 No original: “Son titre exprime non seulement tout ce qu’il traite, mais encore à quel usage,
et à quelles gens il est propre. Il n’est donc pas propre à tout le monde, me direz-vous? Non
certes; il ne l’est qu’au grand monde, et aux personnes, qui savent le monde. C’est un Homme
de Cour, qui n’est pas d’humeur à se familiariser avec le Vulgaire, il ne se plaît qu’avec ses
égaux. Et comme d’ordinaire il ne parle qu’à demi-mot, il ne saurait s’assujettir à converser,
ni avec les petites gens, ni avec les petits esprits, qui n’entendent ce qu’on leur dit qu’à force
de paroles”. GARCIAN, Baltasar. L’Homme de Cour, op. cit., Préface, p.276.
31 No original: “Vous remarquerez em passant, que le titre d’Homme de Cour s’accorde très
bien avec celui d’Arte de Prudencia, la prudence n’étant nulle part si nécessaire qu’à la Cour”.
GARCIAN, Baltasar. L’Homme de Cour, op. cit., Préface, p.276.
32 No original: “Il y a presque autant de préceptes et de mystères, que de lignes ; et c’est assuré-
ment pour cela, que le compilateur l’a intitulé Oracle Manuel : Titre, que j’ai changé en celui
d’Homme de Cour, qui, outre qu’il est moins fastueux et moins hyperbolique, explique mieux
la qualité du livre, qui est un espèce de Rudiment de Cour, et de Code Politique.” GARCIAN,
Baltasar. L’Homme de Cour, op. cit., Préface, p.276.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
É com o texto francês de Amelot que o Oráculo manual irá circular
em toda a Europa. Com a exceção da primeira tradução italiana, todas
as outras (inglesa, em 1685, alemã em 1686, holandesa em 1696, uma
segunda tradução italiana em 1698, latina em 1731) traduzem o texto
francês do qual elas aceitam a “curialização”. As traduções alemã e ho-
landesa conservam o título francês, L’Homme de Cour, como primeiras
palavras de seu próprio título; a tradução inglesa tenta uma aliança entre
o original e o francês com a fórmula e Courtier’s Manual Oracle, or,
e Art of Prudence, e a italiana de 1698 traduz diretamente o título e
se apresenta como L’Huomo di Corte.
As traduções retomam o conteúdo do livro de Amelot e suas adi-
ções ao texto espanhol: a saber, as “Notas (na verdade, extratos de dois
outros livros de Gracián, El Héroe, de 1637, e El Discreto, de 1646), a
numeração das trezentas máximas, os títulos destacados em itálicos
(frequentemente a primeira frase do aforismo ou algumas palavras dele)
e um conjunto de instrumentos bibliográcos destinados a facilitar a
utilização da obra. Nas oito edições francesas do livro lançadas entre
1684 e 1702 são acrescidas assim um “Índice de máximas”, os “Chapitres
du Héros et du Discret de Gracian Mis en extrait et en notes, ou tout
entiers, à la n de quelques-unes de ces Maximes” [“Capítulos de O
Heroi e do O Discreto de Gracián resumidos e em notas, ou completos,
no nal de algumas dessas máximas”], e ao m do livro, uma “Récapitu-
lation des Préceptes contenus dans les trois cent Maximes de l’Homme
de Cour” [“Recapitulação dos Preceitos contidos nas trezentas máximas
de Homme de Cour”]. Está assim estabelecido em toda a Europa o novo
signicado do livro. Seu sentido e sua forma são mantidos somente
nas reedições em espanhol (por exemplo em 1653, 1657, ou 1659), que
permanecem éis à primeira edição, sem numeração dos aforismos,
sem dar títulos a estes, sem notas ou índices, e, sobretudo, sem refe-
rência à corte. A metamorfose do Oráculo manual em Homme de Cour
é sem dúvida um dos casos mais espetaculares de uma tradução que,
por seu novo título e suas preliminares, atribuiu a Gracián um “manual
da psicologia de corte” que ele nunca escreveu. A mutação é persis-
tente. A mais recente edição francesa, realizada por Sylvia Roubaud e
Roger CHARTIER
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 35, n.68
(longamente) prefaciada por Marc Fumaroli, anuncia em sua folha de
rosto “Gracian, L’Homme de cour”.
Nesta reexão, conduzida a partir de estudos de caso dos efeitos,
razões, diculdades da tradução, esta foi pensada como uma prática
que deve tornar a alteridade compreensível e fazer do outro um seme-
lhante. Seria necessário saber quando a “tradução” pretende produzir
uma operação inversa e transformar uma aparente similitude em uma
estranheza. É o caso das “traduções” de certas obras para a sua própria
língua, quando sua distância em relação à língua da maior parte dos
seus leitores as torna dicilmente inteligíveis. Um exemplo espetacular
se deu em 2015, com a tradução em espanhol do Quixote apresentada
por Andrés Trapillo sob o título Don Quijote de la Mancha Puesto en
castellano actual.33 As traduções dos autores franceses para o francês
mostram como essa distância, ou sua percepção, se modica com o
tempo e distanciam certos autores que pareciam próximos. Desde 1974,
uma “translation” das Obras de Rabelais acompanhava sua edição na
coleção “L’Intégrale” das Edições du Seuil.34 Mais recentemente, são os
Essais de Montaigne que foram assim traduzidos, primeiro, por Guy de
Pernon em 2008 em uma edição apresentada como uma “Tradução em
francês moderno”35 e, no ano seguinte, em 2009, por André Lanly, que
reeditava, na coleção “Quarto” de Gallimard, num volume anunciado
como uma “Tradução integral em francês moderno”, sua “tradução” lan-
çada em 2005.36 Estão acessíveis dessa forma em edição eletrônica e
Complete Works of William Shakespeare in Plain and Simple English.37
33 CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha, Puesto en castellano actual integra y
elmente por Andrés Trapiello. Madrid: Destino, 2015.
34 RABELAIS. OEuvres complètes. Texte intégral et translation en français moderne par Guy
Demerson. Paris: Seuil. L’Intégrale, 1974.
35 MONTAIGNE. Les Essais. Traduction en français moderne du texte de l’édition de 1595 par
Guy de Penon. Paris: Guy de Pernon éditions, 2014.
36 MONTAIGNE. Les Essais en français moderne, Traduction en Français moderne par André
Lanly. Paris: Honoré Champion, 2005, et Paris: Gallimard, Quarto, 2009.
37 SHAKESPEARE, William. e Complete Works in Plain and Simple English, BookCaps Study
Guide, 2013, on-line.
Mobilidade dos textos e diversidade das línguas
p. 413-441, mai/ago 2019
Seria interessante analisar, para cada língua, as razões que justicam
tais “traduções”, o alargamento do corpus dos autores dos quais se apro-
priam e os leitores a que elas são destinadas. Traduzir o mesmo é um
tema promissor para futuras pesquisas.
Tradução da língua francesa para a língua portuguesa:
Vera Chacham
vchacham@gmail.com
R
CHARTIER, Roger. O Dom Quixote de Antônio José da Silva, as marionetes
do Bairro Alto e as prisões da Inquisição. História & Antropologia, vol. 2,
n. 3, p.161-181, 2012.
CHARTIER, Roger. ‘Per dir forse una nova parola’. Traduzir Castiglione no
século XVI. In: DAHER, Andrea (org.). Oral por escrito. A oralidade na
ordem da escrita, da retórica à literatura. Chapecó; Florianópolis: Argos.
Editora UFSC, 2018. p.21-59.
DAVIS, Natalie Zemon. Trickster Travels: A Sixteeth-Century Muslim
between Worlds. New York: Hill and Wang, 2006.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos
no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Editora José
Olympio, 1958.
MORETTI, Franco. Atlas du roman européen (1800-1900). Paris: Seuil,
2000.
PARENT, Annie. Les Métiers du livre à paris au XVIe siècle (1535-1560).
Genève: Librairie Droz,1974.
RICO, Francisco. Don Quijote, Madrid, 1604, en prensa. In: El Quijote.
Biograa de un libro 1605-2005. Madrid: Biblioteca Nacional, 2005.
p.49-75.