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Abstract

Résumé: Cette ébauche a pour but de rechercher combien le rapport entre phíloi (“amis”), ou la philótes, designe dans l‟Iliade bien plus l‟engagement d‟appartenance à un groupe – dans ce cas-là, celui des compagnons d‟armes (l‟armée, ou le laós) –, exprimé par des actes qui supposent la réciprocité et ont une implication éthique communautaire, qu‟un simple rapport affectif personnel d‟“amitié”. L‟exemple principal à être commenté (mais dans une conjonction avec celui d‟Achille) – par son importance pour l‟intrigue centrale du poème – est celui de Patrocle, caractérisé comme phílos (par sa sollicitude) et “serviteur” (therápon) d‟Achille, et dont la mort comme “substitut rituel” d‟Achille (en revêtant son armement et sa fureur guerrière) accomplira la reprise de la philótes d‟Achille pour ses compagnons de guerre (avec son retour au combat pour venger la mort de son meilleur ami), interrompue par sa funeste “colère” (mênis) contre Agamemnon et nécéssaire à la victoire finale des Achéens, même si cela implique aussi sa mort à Troie.
1
A philótes de Aquiles e Pátroclo na Ilíada
(um esboço)
Teodoro Rennó Assunção (FALE-UFMG)
Resumo: Este esboço tem como objetivo investigar o quanto a relação entre
phíloi (“amigos”), ou a philótes, designa na Ilíada bem mais o compromisso de
pertencimento a um grupo no caso, o dos companheiros em armas (o exército, ou
laós) , expresso em atos que supõem reciprocidade e têm uma implicação ética
comunitária, do que uma mera relação afetiva pessoal de “amizade”. O exemplo
principal a ser comentado (mas em conjunção com o de Aquiles) por sua importância
para a intriga central do poema é o de Pátroclo, caracterizado como phílos (por sua
solicitude) e “servidor” (therápon) de Aquiles, e cuja morte, como “substituto ritual” de
Aquiles (ao vestir sua armadura e fúria guerreira), efetuará a retomada da philótes de
Aquiles por seus companheiros de guerra (com seu retorno ao combate para vingar a
morte do maior amigo), interrompida por sua funesta “cólera” (mênis) contra
Agamêmnon e necessária para a vitória final dos Aqueus, mesmo que implique também
a sua própria morte em Troia.
Palavras-chave: philótes; Pátroclo; Aquiles; Ilíada; esboço.
Por suspeitar que o sentido moderno corrente do termo “amizade” assim como
o de “amigo” (pressupondo uma livre escolha afetiva, não regida por liames familiares,
de dois ou mais indivíduos autônomos) traduzem um pouco mal o substantivo philótes
e não philía (não atestado em Homero) e o adjetivo phílos na Ilíada e na Odisseia,
irei propor primeiramente uma definição linguística mais precisa destes termos a partir
do verbete philos em Le vocabulaire des institutions indo-européennes vol. 1 de Émile
Benveniste (Benveniste, 1969, p. 335-353).
Benveniste observa, após lembrar do (assim mal compreendido) uso de phílos
como possessivo ou melhor: da extensão do termo a órgãos anímicos, partes do corpo
e objetos humanos , que,
(...) em Homero, todo o vocabulário dos termos morais está
fortemente impregnado de valores não individuais, mas relacionais. O
que consideramos como uma terminologia psicológica, afetiva ou moral,
indica na realidade as relações do indivíduo com os membros de seu
grupo (...).
1
(Benveniste, 1969, p. 340).
2
1
Todas as traduções das passagens citadas de estudos em língua estrangeira (francês e inglês) no texto
principal deste ensaio são de minha autoria. As notas de pé-de-página, como ficará claro a partir da
próxima, serão também parte importante da demonstração.
2
Para chegar aos sentidos iniciais de phílos, Benveniste propõe considerar em
Homero a relação estreita entre alguns destes termos morais como, por exemplo
primeiro, aidós e philótes (ou ainda aidoîos e phílos), onde aidós, mesmo traduzido
tradicionalmente por “„respeito, reverência‟ em relação à própria consciência e face aos
membros de uma mesma família, testemunha, associado à phílos, que as duas noções
eram igualmente institucionais e indicavam sentimentos próprios aos membros de um
agrupamento estreito.” (Benveniste, 1969, p. 340). O único e típico exemplo dado por
Benveniste é o de um guerreiro que exorta seus companheiros abatidos gritando: aidós!
e chamando-os assim “ao sentimento desta consciência coletiva, deste respeito de si
mesmo que deve estreitar a solidariedade entre eles.” (Benveniste, 1969, p. 340).
Mas, quando quer tentar definir melhor o que caracteriza propriamente o phílos
(ou a relação de philótes), Benveniste cita uma outra relação estreita entre dois termos
também tradicional na fraseologia homérica, isto é: a ligação entre phílos e xénos, ou
ainda entre phileîn e xenízein, onde phílos “enuncia o comportamento obrigatório de um
membro da comunidade em relação ao xénos, ao „hóspede‟ estrangeiro” (Benveniste,
1969, p. 341), representado como privado então de qualquer direito, proteção ou meio
de existência senão na acolhida e pouso que lhe o anfitrião com quem ele esteja em
uma relação de philótes. Mas uma tal relação de hospitalidade não era totalmente
gratuita ou generosa, pois ela implicava para o hóspede a obrigação contraída de bem
receber (na sequência) o seu já uma vez anfitrião quando fosse ele, por sua vez, o
2
Seria útil aqui, a partir do mesmo Benveniste, esboçar um quadro básico do provável termo indo-
europeu *keiwo-s (de que derivariam o sânscrito seva, “amigável”, o gótico heiwafrauja, “chefe de
família” e, sobretudo, o latino civis, “cidadão” ou “concidadão”), por seu valor social ou institucional
forte, que o aproxima semanticamente do grego phílos, com o qual não tem conexão morfológica: “Le
sens authentique de civis n‟est pas „citoyen‟, (...) mais „concitoyen‟. Nombre d‟emplois anciens montrent
la valeur de réciprocité qui est inhérente à civis, et qui seule rend compte de civitas comme notion
collective. (...) C‟est en latin que le *keiwo-s indo-européen (devenu *keiwis) a acquis sa plus forte valeur
d‟institution. De l‟ancienne relation d‟„amitié‟ qui marque véd. seva-, à celle, mieux affirmée, de „groupe
d‟alliance matrimoniale‟ qui apparaît dans le germanique heiwa- et enfin au concept de „copartageant des
droits politiques‟ que le latin civis énonce, il y a comme une progression en trois étapes du groupe étroit à
la cité.” (Benveniste, 1969, p. 337). Ver também o artigo de Martin Schwartz “The indo-european
vocabulary of exchange, hospitality and intimacy” (Schwartz, 1982) que, diferentemente da sóbria reserva
de Benveniste (Benveniste, 1969, p. 353) ou ainda de um Chantraine (Chantraine, 1984, p. 1206) quanto a
uma etimologia de phílos a partir de conexões indo-europeias, irá propor: “The etymology of phílos,
hitherto unknown, may now be given in completion of the parallelisms with privá- [Ilr. p/friya and its
cognates (which include Eng. friend) have been derived from a „preposition‟ *prei- (preai?) „close by‟].
The formal analysis necessary a priori, *bhi-lo-, allows its identification as an adj. in -lo- from PIE bhi
„close, at hand‟, cf. Goth. bi, OHGerm. bi „by, at‟, originally a post-position, and the Myc. comitative
case-ending -phi, productive in Hom. in sig. and pl. with nouns of various shapes. The opposite of phílos
(philéo) is ekhthrós „hated, inimical‟ (ekhthaíro „to hate‟, etc.) from PIE *Eeghs-tro- „external,
extraneous, estranged, alien‟, adj. to *Eeghs, Gr. éks „out(side).” (Schwartz, 1982, p. 194).
3
estrangeiro/hóspede, efetivando então uma retribuição e uma reciprocidade entre os
dois.
3
E se Benveniste abre o seu leque de exemplos homéricos de philótes para incluir
pactos orais selados formalmente por juramentos (e sacrifícios) ou trocas de presentes
mesmo entre inimigos (o que dificilmente se enquadraria no sentido banal do
sentimento de “amizade”), tais como na Ilíada o entre Agamêmnon e Príamo no canto
III ou o entre Ájax e Heitor no canto VII, ele retoma em uma definição mais abrangente
do phileîn homérico não apenas a importância axial da reciprocidade (situável como
dinâmica de todo o modelo de troca no sistema do dom e do contra-dom), mas também
o que poderíamos chamar, nos passos de Moses Finley,
4
de concretude e materialidade
deste tipo de relação: “O comportamento indicado por phileîn tem sempre um caráter
obrigatório e implica sempre reciprocidade; é a realização dos atos positivos que o pacto
de hospitalidade mútua implica.” (Benveniste, 1969, p. 344).
5
Mas, como não trataremos aqui da Odisseia (onde a hospitalidade é mais
frequente e estruturante para a intriga) e sim da Ilíada, o nosso exemplo de philótes
que estará mais próximo da conexão com o aidós como chamado à luta por e para
companheiros em armas na guerra será o da relação entre Aquiles e Pátroclo, decisiva
para a intriga central do poema, e que implica justamente uma referência ao sentido
político de comunidade, no caso o exército aqueu em Troia, em um momento crítico de
derrota para os troianos.
Para começar, então, no meio da história da mênis (“cólera”)
6
de Aquiles
contra Agamêmnon causada pelo desrespeito deste pelo signo de reconhecimento
3
A generosidade (ou civilidade) maior desta esperável reciprocidade estando apenas em não se definir
com precisão nem se, nem quando no futuro, ela será ou seria de fato concretizada.
4
“What tends to confuse us is the fact that the heroic world was unable to visualize any achievement or
relationship except in concrete terms. (…) Every quality or state had to be translated into some specific
symbol, honour into a trophy, friendship into treasure, marriage into gifts of cattle.” (Finley, 1979, p.
123).
5
O outro e oposto tipo possível de relação entre noi, aquele negativo que visa a uma reciprocidade de
danos e se dá a partir da ruptura do pacto de hospitalidade, é a guerra, como bem exemplifica o episódio
de Páris acolhido primeiro por Menelau em Esparta e levando depois Helena e os tesouros do seu
anfitrião para Tróia, causando assim a guerra entre Aqueus e Troianos.
6
Talvez pudéssemos definir muito grosseira e resumidamente o sentido de mênis (“cólera” ou “ira”;
enquanto substantivo, termo especial só utilizado para os deuses e Aquiles), no contexto da poesia
homérica (mas com possíveis conexões hesiódicas), como uma sanção cósmica (com consequências
devastadoras) contra um comportamento que agride e violenta as regras mais elementares da sociedade
humana, especialmente a da reciprocidade nas trocas, tendo, portanto, uma função de restabelecimento
das regras sociais. Seria preciso, assim, considerar que a mênis de Aquiles é não apenas um sentimento
extremado, se traduzindo pela inação e o afastamento da comunidade guerreira, mas também uma reação
muito justificada a uma quebra muito grave de um pacto (implícito e explícito) de reconhecimento social
(timé) do desempenho efetivo da excelência guerreira (areté), pacto que subjaz a toda a lógica da
moralidade guerreira e que, quando quebrado, retira o sentido básico de uma vida devotada à guerra. Para
4
social (timé) à excelência guerreira(areté) de Aquiles que é a cativa Briseida (o seu
géras, ou “prêmio especial”), tomada por Agamêmnon após a briga entre os dois na
assembleia convocada por aquele devido à peste enviada ao acampamento aqueu por
Apolo (por sua vez, devido ao desrespeito de Agamêmnon por Crises, sacerdote de
Apolo),
7
o que leva Aquiles a se retirar do combate para que os Aqueus, sendo
derrotados, reconheçam o drástico erro de Agamêmnon , irei dar um primeiro exemplo
textual nítido (que desdobrarei depois) de como na intriga central da Ilíada a philótes
pode ser pensada estruturalmente em oposição à mênis (o seu primeiríssimo tema).
8
O verso 282 do canto XVI, que constitui o núcleo deste exemplo, está em uma
fala do narrador descrevendo a reação dos Troianos que, ao se encontrarem pela
primeira vez com Pátroclo trajando o armamento de Aquiles e conduzindo os
Mirmidões, confundem ironicamente as identidades destes dois guerreiros maiores (o
uma reconstrução cuidadosa e detalhada do sentido do termo na Ilíada, ver o livro fundamental The anger
of Achilles de Leonard Muellner (Muellner, 1996) e o artigo célebre de Calvert Watkins “À propos de
mênis (Watkins, 1977), que o considera como termo tabu.
7
Agamêmnon, como chefe maior do exército aqueu, comete dois erros graves e sucessivos que
desencadeiam a trama iliádica da “cólera (mênis) de Aquiles”: o primeiro, no plano religioso, ao não
reconhecer as prerrogativas de Crises, sacerdote de Apolo, que oferece um resgate para sua filha cativa
Criseida (aceito, em princípio, pelo exército, mas negado por Agamêmnon que o insulta), causando a
“cólera” de Apolo, que se vinga com uma “peste” que começa a dizimar o exército aqueu; o segundo, no
plano humano (ou heroico), quando confrontado com a necessidade (revelada por Calcas) de devolver
Criseida ao pai Crises para aplacar a “cólera” de Apolo que está destruindo o exército Agamêmnon
exige uma reposição do seu géras (Criseida), quando o espólio já foi dividido, e ameaça tomar o géras de
Aquiles (Briseida), signo da sua timé (“prestígio”), não reconhecendo a sua excelência guerreira como “o
melhor dos Aqueus” e causando, assim, a “cólera” de Aquiles (e sua retirada da guerra), que com o
assentimento de Zeus (a um pedido de Tétis) terá também consequências desastrosas para o exército
aqueu. A primeira intervenção de Aquiles na Ilíada, convocando a assembleia dos Aqueus para tentar
(por meio da revelação de Calcas) debelar a dizimação do exército pela “peste”, que pode frustrar toda
esta expedição guerreira, é em contraposição ao primeiro erro de Agamêmnon movido por um
sentimento forte de solidariedade com a sua comunidade. Para um comentário mais circunstanciado e
preciso do canto I da Ilíada ver o capítulo 4 “The mênis of Achilles and the first book of the Iliad” de The
anger of Achilles (Muellner, 1996, p. 94-132). Para as razões do assentimento de Zeus (que envolvem
hesiódico-teogonicamente sua soberania cósmica) ao pedido de Tétis de honrar seu filho com uma vitória
dos Troianos, ver o livro esclarecedor de Laura Slatkin The power of Thetis (Slatkin, 1992).
8
Se a mênis (“cólera”) de Aquiles o leva a se separar do exército aqueu e à inação (que será dolorosa
tanto para ele quanto para este exército), o seu desdobramento ao longo da trama da Ilíada a encaminha
aos poucos e antiteticamente para a sua própria supressão ou o seu reverso, a philótes (“amizade”), que
será um comprometimento gradual com a sua comunidade guerreira maior, primeiro por sua desistência
de retornar à Ftia, depois por conceder que Pátroclo (revestindo suas armas) conduza os Mirmidões ao
combate, e, enfim, apenas depois da morte fatídica de Pátroclo, o seu retorno decisivo ao combate, para
vingar a morte do amigo escudeiro. Mas, em um segundo e conclusivo momento, após matar Heitor e
tentar obsessivamente ultrajar o seu cadáver (embora o termo mênis não ocorra para designar o que o
moveu a isso), a philótes de Aquiles se abre (novamente a partir de um pedido de Tétis) para alcançar até
mesmo o inimigo, o rei troiano Príamo, pai de Heitor, cujo cadáver ele consente em devolver (assim
como ele concede também um tempo de trégua para o cumprimento dos ritos fúnebres), e a quem ele
recebe hospitaleiramente, compartilhando a comida e reconhecendo o que há de comum e mortal (a
possibilidade da perda de um filho na guerra) no sofrimento de Príamo e no de seu pai Peleu. Para um
comentário mais detalhado e preciso deste movimento antitético (e estruturador da intriga principal do
poema) da mênis para a philótes na Ilíada, ver o último capítulo (“The mênis of Achilles and its iliadic
teleology”) de The anger of Achilles (Muellner, 1996, p. 133-175).
5
que tinha sido justamente o efeito desejado por Nestor ao propor a Pátroclo este plano
alternativo para aliviar os Aqueus derrotados e acuados junto às suas naus, já que a
“cólera” ou mênis de Aquiles persistia e guerreiros importantes como Diomedes e
Odisseu estavam feridos e fora de ação):
Mas quando os Troianos viram o valente filho de Menécio,
quando o viram a ele e ao escudeiro, refulgindo com as armas,
agitou-se o coração de todos e moveram-se as falanges,
convencidos de que junto das naus o veloz Pelida
abandonara a cólera para optar, em vez dela, pela amizade.
9
(menithmòn mèn aporrîpsai, philóteta d’helésthai)
(Ilíada XVI, 278-282)
Antes, porém, de comentar o papel auto-sacrificial que Pátroclo desempenhará
como um duplo de Aquiles, eu gostaria de lembrar o quanto a philótes (“amizade” ou,
melhor, “comprometimento com a causa coletiva”) se colocava em oposição à mênis
(ainda que não nomeada) de Aquiles, na fala de Ájax que se dirige a princípio e
distanciadamente a Odisseu, mas depois volta-se súbita e diretamente para Aquiles
como último embaixador de Agamêmnon no canto IX (pouco após a fala de Fênix, que
relata como exemplo a história de Meleagro, que também se retira do combate, devido a
uma “ira” (khólos) contra sua mãe, e se recusa a ajudar os Etólios acuados pelos Curetes
e necessitados de sua excelência guerreira para salvar a cidade):
10
(...). Mas Aquiles
colocou no peito um coração magnânimo e selvagem
homem duro!, que nada liga à amizade dos companheiros,
amizade com que o honramos nas naus acima dos outros.‟
9
Adotei aqui, por mera comodidade semântica, a tradução da Ilíada para o português de Frederico
Lourenço (Homero, 2013) com eventuais e ligeiras modificações minhas (os eventuais negritos para
destaque sendo também meus). O texto grego usado é o estabelecido por T. W. Allen e D. E. Monro para
a edição da coleção de Oxford (Allen e Monro, 1989).
10
Seria útil aqui lembrar que, ao longo do episódio da “embaixada” no canto IX da Ilíada, Aquiles de
algum modo abranda a sua mênis em direção à possibilidade de uma philótes básica com o exército
aqueu, ao mudar de posição quanto à sua decisão primeira (após a fala de Odisseu) de partir no dia
seguinte para a sua pátria (cf. Ilíada IX, 428), primeiro (após a fala de Fênix) deixando para a aurora
seguinte a decisão, juntamente com Fênix, de regressar para a sua terra ou ficar em Troia (cf. Ilíada IX,
618-619), e depois e conclusivamente (após a fala de Ájax) declarando que só retornará à guerra quando
Heitor começar a queimar as naus dos Aqueus e chegar às naus e tendas dos Mirmidões (cf. Ilíada IX,
650-653), o que significa que ele permanecerá em Troia e, em último e crítico caso, voltará a combater.
Sua última decisão parece, portanto, estar ironicamente adotando o modelo negativo (a ser evitado e não
seguido) do exemplo de Meleagro. Para todo este crucial e complexo ponto da narrativa (o canto IX) ver
o subcapítulo Mênis versus philótes: incurring friendship” do último capítulo de The anger of Achilles
(Muellner, 1996, p. 143-155).
6
(Ilíada IX, 628-631, negritos meus)
Mas Aquiles diferentemente de Meleagro, que perde apenas os presentes
prometidos pelos anciãos dos Etólios por só conceder voltar finalmente ao combate
após a súplica de sua mulher Cleópatra (cujo nome composto inverte a posição dos
mesmos termos que compõem o nome de Pátroclo)
11
renunciará à sua “cólera”
(mênis) e salvará definitivamente o exército aqueu (dando-lhe a vitória ao matar Heitor
e vingar a morte de Pátroclo), após a morte de seu escudeiro, evidenciando assim que é
apenas este (ou a morte deste) o que faz Aquiles reconhecer tardiamente a sua inevitável
conexão com o exército aqueu,
12
assim como o inútil desperdício de sua excelência
guerreira, nesta fala para sua mãe Tétis:
Mas agora já não regressarei à amada terra pátria,
nem serei luz para Pátroclo nem para os outros companheiros,
que numerosos foram subjugados pelo divino Heitor,
mas jazo aqui junto às naus, fardo inútil sobre a terra,
eu que não tenho igual entre os Aqueus vestidos de bronze
na guerra, embora na assembleia outros sejam melhores.‟
(Ilíada XVIII, 101-106, negritos meus)
No entanto, a morte de Pátroclo (em que é decisivo o primeiro e desnorteante
golpe de Apolo, após um aviso do deus sugerindo o recuo do guerreiro aqueu que
matara Pirecmes, Arílico, Testor, Erimante, Anfótero, Epaltes, Tlepólemo, Équio, Píris,
11
Poderíamos lembrar aqui que, segundo propôs J. Th. Kakridis em Homeric researches (Kakridis, 1949,
p. 11-42), as súplicas a Meleagro se dão na forma de uma (ou da) “escala ascensional de afeição” (“the
ascending scale of affection”) que vai dos anciãos e sacerdotes, passando pela família: o pai, irmãs e mãe,
para chegar aos mais caros companheiros e, enfim, à companheira (Cleópatra, em função que prenuncia a
de Pátroclo, após a ineficácia da súplica dos companheiros Odisseu, Fênix e Ájax), que é quem o demove
da inatividade, descrevendo as dores que acometem uma comunidade que é vencida na guerra. Tanto no
caso de Meleagro quanto depois no de Aquiles, existe um deslocamento da prioridade dos laços de sangue
para a dos de amizade. Vejamos, por sua analogia final com o caso de Aquiles e Pátroclo, a descrição
resumida desta “escala ascensional” por L. Muellner: “So the sequence of pleaders passes from relatively
remote persons in authority who command social respect to family members, and from there to best
friends and thence to the one friend whom the hero most prizes and who can convincingly portray to him
the need for action on behalf of the whole social group.(Muellner, 1996, p. 147-148).
12
Também no caso de Aquiles seria possível dizer que é a morte de um outro (e, mais precisamente, de
seu melhor “companheiro” ou “amigo”) o evento decisivo que muda radicalmente sua perspectiva quanto
à comunidade guerreira de que ele faz parte, tornando também mais aguda a sua percepção da própria
mortalidade e apressando a sua decisão de morrer em breve (mas dando a vitória ao exército aqueu) nesta
guerra em Troia. Lembrarei aqui de uma proposição de Georges Bataille em Le pas au-delà (citada por
Maurice Blanchot em La communauté négative, num contexto de questionamento do conceito
heideggeriano do “ser para a morte”): « Si la communauté est révélée par la mort d‟autrui, c‟est que la
mort est elle-même la véritable communauté des êtres mortels : leur communion impossible. La
communauté occupe donc cette place singulière : elle assume l‟impossibilité de sa propre immanence,
l‟impossibilité d‟un être communautaire comme sujet. (...) Une communauté est la présentation à ses
„membres‟ de leur verité mortelle (...). Elle est la présentation de la finitude et de l‟excès sans retour qui
fonde l‟être fini... » (Blanchot, 1983, p. 23-24).
7
Ifeu, Evipo, Polimelo e o grande guerreiro lício Sarpédon, e ainda matará vinte e sete
troianos não nomeados) é devida justamente ao fato de ele não estar vestindo a
armadura de Aquiles, mas também incorporar perigosamente a sua fúria guerreira,
tornando-se literalmente um duplo seu (perdendo sua característica brandura e o papel
de mero “servidor”), e, assim, não dar mais atenção ao conselho prudente de Aquiles
para ele, logo que aquele aceita o plano de Nestor transmitido em lágrimas por ele:
E arrebatado de exultação na guerra e na refrega,
chacinando os Troianos, não queiras chegar a Ílion,
não vá um dos deuses que são para sempre descer
do Olimpo: pois muito os ama Apolo que age de longe.
Não, volta para trás assim que tiveres trazido a luz
para o meio das naus; deixa que os outros combatam na planície.‟
(Ilíada XVI, 91-96)
Ora, esta fatal substituição de Aquiles por Pátroclo, o seu therápon (ou mais
próximo “servidor”), foi interpretada ritualisticamente por Dale Sinos (na iluminadora
monografia Achilles, Patroklos and the meaning of philos [Sinos, 1980], que nos serviu
de referência primeira aqui) como algo sugerido pela própria etimologia do termo grego
therápon, a partir de um artigo de Nadia van Brock (cuja plausibilidade é, aliás,
admitida pelo Dictionnaire étymologique de P. Chantraine [Chantraine, 1983, p. 431]):
Ela (Nadia Van Brock) mostrou convincentemente que a palavra hitita
tarpassa-/tarpa(an)alli- „substituto ritual‟ reflete uma palavra anatólica
que foi tomada de empréstimo pelo grego da Idade do Bronze e que
sobreviveu como o clássico théraps/therápon. Esta derivação nos permite
um vislumbre da relação ritualística entre Aquiles e seu therápon
Pátroclo em termos de rei e substituto ritual, de um ponto de vista indo-
europeu: „O tarpalli- é um outro si mesmo, uma projeção do indivíduo
sobre a qual são transferidas pela magia do verbo todas as máculas de
que se quer se ver livre.‟ (Sinos, 1980, p. 30).
Seria útil, no entanto, para precisar melhor o efeito hermenêutico desta hipótese
etimológica (de therápon) sobre a leitura da intriga central da Ilíada, trazer aqui a
formulação final da própria Nadia van Brock no artigo “Substitution rituelle” (Van
Brock, 1959):
(...) é no domínio grego e no plano religioso que poder-se-ia
talvez apreender o correspondente do tarpalli- luvita. tarpanalli- permite
8
colocar, ao lado de tarpalli- e do tema em -s- de tarpassa-, um tema em -
n-, tarpan-. Pensamos em therápon; não, certamente, no therápon
homérico tal como a Ilíada o representa nos diversos aspectos do serviço
feudal que ele deve a seu ánax, mas no therápon tal como um episódio
particular da Ilíada permite entrever. M. Mireaux esclareceu bem o que
de estranho apresentam as circunstâncias da morte de Pátroclo, o
therápon por excelência: Pátroclo morre, revestido das armas de Aquiles
e após ter querido se fazer passar por ele; e é preciso da morte de
Pátroclo para que Aquiles, parado algum tempo à distância, reapareça
com um novo brilho. Não parece duvidoso que haja aí a lembrança de um
Pátroclo „substituto‟ de Aquiles, e é tentador ver na origem do therápon
homérico o *tarpan- anatólico. Não seria o único exemplo de uma
sobrevivência de um passado estranho e selvagem, edulcorada e
poetizada por gerações que não o compreendem mais. (Van Brock, 1959,
p. 125-126).
13
A dimensão, mais “selvagem”, de sacrifício humano de um “substituto ritual”
(therápon, em seu sentido etimológico) seria, no caso da morte de Pátroclo na Ilíada
(num momento em que ele já não atua como “servidor” ou “cocheiro”), confirmada por
outros elementos sacrificiais conexos que tais como reunidos e apresentados por Steve
Löwestam em The death of Patroklos (Löwestam, 1981) também a configuram.
Precisaremos para tanto apresentar pelo menos três detalhes desta morte ainda não
citados ou bem explicitados. O primeiro elemento, que caracteriza este tipo de morte (de
13
Seria preciso aqui lembrar também (o que ainda não faz Nadia van Brock, mas o faz Dale Sinos
[Sinos, 1980, p. 58]) uma outra (e reconhecida por muitos) conexão possível da Ilíada com a antiga
Mesopotâmia, qual seja: com a bem anterior história épica de Gilgámesh e seu amigo Enkídu, que como
Pátroclo irá morrer antes do grande herói, filho de uma deusa e de um mortal, que como Aquiles
ficará arrasado e inconsolável, reconhecendo então com nitidez e perplexidade a própria mortalidade.
Sem entrar aqui em maiores detalhes desta comparação genérica (onde também seria preciso levar em
conta sensíveis diferenças) algo que escaparia ao escopo de uma mera nota indicativa , remeto aqui,
como uma primeira abordagem de conjunto, ao subcapítulo “Achilles and Gilgamesh” de The East Face
of Helicon de Martin L. West (West, 1997, p. 336-347), onde podemos ler o seguinte e útil resumo: The
mise en scène is quite different in the two epics. Gilgamesh is based in his own city of Uruk, from where
he makes a couple of long excursions to remote lands, whereas Achilles is taking part in a war on foreign
soil. But upon these different backdrops is projected a remarkably similar personal drama: a man of
abnormally emotional temperament, with a solicitous goddess for a mother and a comrade to whom he is
devoted, is devastated by the latter‟s death and plunges into a new course of action in an unbalanced state
of mind, eventually to recover his equilibrium. Similar too is the overall ethos, the sense of heroic man
brought face to face with issues of life and death, railing against mortality but coming to understand and
accept it.” (West, 1997, p. 338). Ver também a recente e muito bem cuidada tradução do acádio para o
português, (com introdução e comentários informativos e esclarecedores) por Jacyntho Lins Brandão, de
Ele que o abismo viu Epopeia de Gilgámesh (Sin-léqi-unnínni, 2017).
9
um therápon), é o gesto (negativamente premonitório, segundo S. Löwestam) de bater
nas coxas com as mãos espalmadas, o que faz Pátroclo, quando no canto XV ante a
pressão dos Troianos, decide deixar Eurípilo para tentar convencer Aquiles da proposta
de Nestor (e prestar um serviço à causa coletiva dos Aqueus):
gemeu e bateu nas coxas com as mãos espalmadas
e, lamentando-se, proferiu estas palavras:
„Eurípilo, não posso ficar aqui por mais tempo contigo,
ainda que precises de mim: é que surgiu um conflito tremendo.‟
(Ilíada XV, 397-400, trad. F. Lourenço modificada por mim)
S. Löwestam sugere, a partir de um gesto grego contemporâneo em que a mão
aberta sobre o pescoço de um antagonista simbolizaria uma lâmina que cortaria a sua
cabeça (“Cortarei a tua cabeça”), o seguinte:
Se o grego fosse dirigir suas mãos para suas próprias coxas e bater nelas
com um movimento lateral, ele iria parecer estar batendo em suas coxas
com suas palmas (kataprenéssi) e estar sugerindo a ideia de cortar fora
suas coxas. Na Grécia Antiga este gesto teria indicado que ele estava
sacrificando a si mesmo. (Löwestam, 1981, p. 164).
-se aqui (na cena iliádica do bater nas coxas por Pátroclo) também o
particípio olophyrómenos (“lamentando-se” ou “em grande lamentação”, na tradução de
Frederico Lourenço), formado a partir do mesmo radical de ololygé, o grito ritual no
sacrifício após a vítima animal ser golpeada (Löwestam, 1981, p. 168).
Mas é o próprio golpe sub-reptício no pescoço da vítima animal (como se
enganada), que será sucedido pelo cortar a sua garganta (ou degolá-la),
14
tal como se vê
no núcleo da mais elaborada cena homérica de sacrifício (a de uma vitela a Atena pelo
pio Nestor, mas tendo como oficiantes destes dois atos mortíferos sucessivos os seus
filhos Trasimedes e Pisístrato, em Odisseia III, 439-455), o que parece estar
configurado analogicamente pelo desnorteante golpe de Apolo não percebido por
Pátroclo, quando se aproxima , com a mão espalmada, sobre os ombros de sua vítima
humana:
14
Neste modelo sacrificial do matar a vítima em dois momentos consecutivos, o segundo momento (o da
degolação) seria, no caso da morte de Pátroclo, representado de um modo bem mais genérico pelo
ferimento (ou o atravessar) do seu corpo pelas lanças de Euforbo e Heitor: “First of all, the sacrificial
victim is stunned before it suffers the fatal blow. In the sacrifice at Pylos, Thrasimedes strikes the bull‟s
neck with an axe before Peisistratos cuts its throat. Just so, Apollo stuns Patroklos before Euphorbos and
Hektor pierce him with theirs spears.” (Löwestam, 1981, p. 165). Para o conjunto mais detalhado dos
elementos sacrificiais presentes na morte de Pátroclo, ver o subcapítulo IV. 3 “Sacrificial Elements of the
Thigh-Slapping Sequence” de The death of Patroklos (Löwestam, 1981, p. 159-169).
10
(...) E Pátroclo não o percebeu caminhando entre a multidão,
pois veio ao seu encontro encoberto por denso nevoeiro.
Atrás dele se postou Apolo e bateu-lhe nas costas e nos ombros largos
com a mão espalmada, e os dois olhos dele reviraram.
(Ilíada XVI, 789-792, trad. F. Lourenço modificada por mim)
O terceiro elemento sacrificial da morte de Pátroclo (e típico da sequência de
quem bate com as mãos espalmadas nas próprias coxas) é o fato de a vítima humana ser
em algum momento chamada de népios (“estulto” ou, literalmente, “infantil”), adjetivo
que neste contexto S. Löwestam prefere traduzir por “enganado”: “Este sentido seria
apropriado ao sacrifício e ao seu aspecto sub-reptício. A vítima sacrificial não está
consciente da razão para sua presença no altar.” (Löwestam, 1981, p. 168). No caso da
morte de Pátroclo, ele é assim chamado, depois de inúmeras mortes de Troianos e
aliados (inclusive o lício Sarpédon), quando Zeus decide proteger (por meio de Apolo)
o cadáver de Sarpédon, e Pátroclo continua a perseguição e matança dos inimigos:
Ora Pátroclo chamou por seus cavalos e por Automedonte
e seguiu atrás de Troianos e Lícios, grandemente desvairado,
o estulto! (népios). Pois se tivesse acatado a palavra do Pelida,
teria escapado ao fado malévolo da negra morte.
(Ilíada XVI, 684-687, negritos meus)
Enfim, uma interpretação de conjunto da Ilíada a partir de uma leitura
etimológica do nome Akhilleús, segundo a hipótese de Leonard R. Palmer (Palmer,
1963, p. 79), como derivado de *Akhí-lawos significando “a dor (ákhos) para o laós (o
exército)”, em conjunto com outra análoga para o nome Akhaioí (“Aqueus”), como
também derivado de ákhos, proposta por Dale Sinos em sua monografia (Sinos, 1980, p.
66-68) e desenvolvida por Gregory Nagy nos capítulos 5 e 6 de The best of the
Achaeans (Nagy, 1979, p. 69-117), permitiria uma leitura da intriga central do poema
como uma transferência do ákhos (“dor”) de Akhilleús (Aquiles) por sua mênis
(“cólera”) para os Akhaioí (“Aqueus”), até que a morte de Pátroclo faça cessar a mênis
(“cólera”) de Aquiles que volta enfim ao combate, transferindo o ákhos (“dor”), causado
pela morte de Heitor, para os troianos (com a consequente vitória dos Aqueus). Neste
esquema sintético, Pátroclo (cujo nome em grego, Patroklês, significa “a glória dos
ancestrais”) seria com sua morte ritual como substituto de Aquiles o elemento
decisivo para a transferência final da dor desta guerra para os Troianos, assim como o
11
meio para que Aquiles, voltando ao combate para matar Heitor e dar a vitória aos
Aqueus, adquira “a glória dos ancestrais” em uma tradição que é basicamente guerreira.
Mas, deixando de me centrar nesta hipótese etimológica de therápon assumida
por Dale Sinos, G. Nagy e Steve Löwestam, eu gostaria agora de me voltar para o
comportamento deste therápon (“servidor”, no sentido homérico usual) de Aquiles que
é Pátroclo, tal como apresentado diretamente pelo texto da Ilíada, que o coloca, por sua
solicitude e atenção aos “amigos” (phíloi), como uma espécie de oposto complementar
do irascível Aquiles. Como foi de algum modo indicado, Pátroclo enquanto um
duplo e “substituto ritual” de Aquiles no canto XVI (liderando os Mirmidões e tendo o
seu próprio cocheiro, Automedonte) jamais será o seu therápon (“escudeiro” ou
“cocheiro”) no campo de batalha em Troia.
15
O que não impede que ele exerça bem esta
função, marcada pela solicitude, em cenas (descritas ou rememoradas) dentro do
acampamento aqueu, ainda que curiosamente ele jamais seja chamado de therápon,
fato que parece reforçar a hipótese etimológica de Van Brock (como bem notou Victoria
Tarenzi).
16
Ou que, em conjunção com a solicitude e um senso comunitário, ele seja
caracterizado como um possível conselheiro de Aquiles (devido à sua maior experiência
ou idade), em função análoga à de Fênix, tal como lhe lembra Nestor, a partir das
palavras de Menécio (pai de Pátroclo):
A ti recomendou o seguinte Menécio, filho de Actor:
„meu filho, pelo nascimento é Aquiles superior a ti,
mas tu és mais velho, embora pela força ele seja muito melhor.
Bem diga e aconselha-lhe uma palavra sábia
e encaminha-o, e ele será convencido para o bem.‟”
(Ilíada XI, 785-790, trad. F. Lourenço modificada por mim)
15
Poderíamos pensar também em uma unidade mínima de combate, formada pela estreita conjunção (ou
“amizade”) de um guerreiro e seu escudeiro ou cocheiro (therápon), com duas funções diferenciadas (mas
não necessariamente em oposição) e um objetivo comum, como núcleo de uma relação fundada sobre um
compromisso guerreiro comum, que ultrapassa a “amizade” em sentido apenas afetivo e se abre para uma
dimensão política, tal como sugere Tilman Krischer na conclusão de seu artigo “Patroklos, der
Wagenlenker Achills” (Krischer, 1992, p. 103). Seria, por outro lado, também pensável que é a presença
(ou existência) de um inimigo o que cria, no interior de um exército, uma forte unidade comum, a partir
de uma ligação que é como a de um contrato social. Dale Sinos, por sinal, propõe uma etimologia de
Áres, o deus grego da guerra (mas também de juramentos), não a partir de aré (“calamidade”), como
propõem Kretschmer e Chantraine, mas a partir do radical ar-, como em ar-ar-ísko (“ajustar junto,
ligar”), o que explicaria a muito usada expressão para designar a comunidade de guerreiros, ligada como
que por um contrato, como therápontes Áreos, “servidores de Ares”. (Sinos, 1980, p. 33-34).
16
“Infatti l‟epiteto therápon figura solamente appena prima del combattimento, quando Patroclo si è
vestito con le armi di Achille e subito dopo, insistentemente, qualificandolo ormai da morto. Quando
invece Patroclo, ad esempio nel libro IX, accoglie gli ospiti venuti per l‟ambasceria ad Achille, prepara il
banchetto e serve il cibo, non è mai chiamato therápon anche se assolve tutti i compiti precipui di uno
scudiero. Questo perché il termine, solo per Patroclo, ha un‟altra valenza.(Tarenzi, 2005, p. 31).
12
O próprio Aquiles, recusando-se a comer em seu luto pelo companheiro mais
próximo, lembra-se, no canto XIX, de como Pátroclo preparava a sua comida (algo que,
assim como a preparação do leito para Fênix, o canto IX discretamente confirma):
Outrora, ó vítima do destino e mais amado (phíltate) dos companheiros!,
também preparavas tu próprio uma refeição na tenda,
de modo rápido e despachado, quando os Aqueus se apressavam
a levar a guerra lacrimosa contra os Troianos domadores de cavalos.
Mas agora aqui jazes golpeado e o meu coração recusa
a comida e a bebida (embora estes amigos aqui estejam)
por saudade de ti. (...)‟
(Ilíada XIX, 315-321)
Um pouco antes, a cativa Briseida, enfim devolvida por Agamêmnon, ao
encontrar Pátroclo morto, lembra-se do como foi “deixada” pelo marido e os três irmãos
mortos por Aquiles, no dia em que se tornou sua cativa:
Mas tu não me deixaste, quando Aquiles veloz matou
o meu marido e saqueou a cidade do divino Mines,
não me deixaste chorar, mas prometeste que me farias
a esposa legítima do divino Aquiles e que ele me levaria
nas naus para a Ftia, para a festa nupcial dos Mirmidões.
Morto te choro sem cessar, tu que foste sempre brando (meílikhon).‟
(Ilíada XIX, 295-300)
Mas a cena que talvez melhor evidencie a solicitude de Pátroclo para com seus
companheiros (em oposição ao caráter irascível de Aquiles, cuja inútil excelência, dada
a sua retirada do combate motivada pela mênis, também é frontalmente questionada por
Pátroclo, como já o fora por Nestor ao propor o seu plano alternativo, cf. o artigo “Timé
and areté in Homer” de Margalit Finkelberg [Finkelberg, 1998]) é aquela em que ele
justifica o seu forte e comovente pranto, logo após a irônica mas tocante questão de
Aquiles (formulada por um símile em que ele parece se colocar na posição daquele que
é forte, ou seja: a mãe):
Por que razão choras, ó Pátroclo, como uma garotinha,
uma menina, que corre para a mãe a pedir colo
e, puxando-lhe pelo vestido, impede-a de andar,
fitando-a chorosa até que a mãe a pegue no colo?
Igual a ela, ó Pátroclo, choras tu lágrimas fartas.‟
13
(Ilíada XVI, 7-11)
Eis, então, a razoável, ainda que emocionada, resposta de Pátroclo:
Ó Aquiles, filho de Peleu, de longe o mais valente dos Aqueus,
não te encolerizes! Pois tal foi a dor que se abateu sobre os Aqueus.
17
É que na verdade todos os que eram antes os melhores guerreiros
jazem no meio das naus, com feridas infligidas por setas e lanças.
[...]
Em torno destes se afadigam os médicos com seus muitos fármacos,
procurando curá-los. Mas tu nasceste intratável, ó Aquiles.
Que a mim jamais tome ira (khólos), como a que tu acalentas.
Terrível é o valor de que és dotado! Que homem futuro tirará
proveito de ti, se te recusas a evitar a morte vergonhosa dos Aqueus?‟
(Ilíada XVI, 21-24; 26-32)
Se, no entanto, nos reportamos à cena inicial (no canto XI) da auto-sacrificial
história de Pátroclo na Ilíada, talvez seja mais sensível o quanto ela coloca em
evidência a fragilidade dos heróis mortais, pois é justamente por não reconhecer direito
Mácaon, um guerreiro e também médico ferido e recolhido por Nestor, que Aquiles
pede a seu companheiro(hetaîron heón) que averigue a identidade daquele. E quando
Aquiles chama Pátroclo, este é qualificado de um modo que parece prenunciar a sua
fatídica aristeía no canto XVI: “Ele ouviu e saiu da tenda/ igual a Ares (îsos Areï) o
que para ele foi o início da desgraça.” (Ilíada XI, 603-604); sendo que à pergunta
aparentemente simples e direta de Pátroclo: “Por que me chamas, ó Aquiles? Por que
precisas de mim?” (Ilíada XI, 606), a resposta sinistra mas verdadeira seria: “Para
morrer.”
É então que Nestor narra para Pátroclo a situação crítica do exército aqueu, com
vários de seus grandes guerreiros feridos e, após contar uma história exemplar sua,
quando jovem, a serviço de seu povo e questionar a inútil excelência guerreira de
Aquiles [“Mas Aquiles/ quer ser o único a ter proveito da sua valentia (tês aretês).”
(Ilíada XI, 762-763)], ele irá propor o seu plano alternativo, que Pátroclo, como amigo
mais velho de Aquiles, terá talvez alguma chance de persuadi-lo a aceitar. Mas Pátroclo,
apesar de preocupado em transmitir o quanto antes a notícia a Aquiles, irá encontrar na
17
Esta segunda frase em grego é transliterável assim: toîon gàr ákhos bebíeken Akhaioús. Lembrar a
citada hipótese de Dale Sinos sobre a relação morfo-semântica entre ákhos (“dor”) e Akhaioús
(“Aqueus”), da qual esta frase seria um ótimo exemplo ou prova (Sinos, 1980, p. 67).
14
volta o guerreiro Eurípilo ferido por uma flecha de Páris. Eis, então, a sua comovida
reação e pergunta a este:
Ao vê-lo se compadeceu o valente filho de Menécio
e chorando lhe dirigiu palavras aladas:
[...]
„Mas diz-me agora tu, ó herói Eurípilo, criado por Zeus,
se os Aqueus retêm ainda o possante Heitor,
ou se morrem subjugados pela sua lança?‟
(Ilíada XI, 814-815; 819-821)
À resposta de Eurípilo, que lhe pede ajuda e o justifica dizendo que um dos
médicos, Macáon, também está ferido, e o outro médico, Podalírio, está combatendo e
resistindo ao ataque dos Troianos, Pátroclo, após perguntar meio perplexo: “Que
faremos (rhéksomen), ó herói Eurípilo?” (Ilíada XI, 838) e lhe assegurar, apesar de
sua pressa: “Mas não te negligenciarei, assim aflito como estás.” (Ilíada XI, 841), irá
desempenhar com solicitude e eficácia a então oportuna e necessária função de médico
(ou curador):
(...) Então com um facão lhe cortou Pátroclo
da coxa a afiada seta penetrante; e da ferida lavou o negro sangue
com água morna e sobre ela aplicou uma raiz amarga,
esfregando-a com as mãos: raiz anuladora da dor, que reteve
todas as dores. A ferida secou e o sangue estancou.
(Ilíada XI, 844-848, trad. F. Lourenço modificada por mim)
Aqui, porém, como bem notou S. Löwestam, a partir de um comentário sobre o
conjunto da cena (que inclui também outros elementos associáveis ao sacrifício, como
os “altares dos deuses”, onde Eurípilo é encontrado, ou o nome de seu pai, Euaímon
“Evémon”, segundo F. Lourenço, literalmente “Bom-sangue”, ou ainda “o sangue
negro” [que] “escorria da sua ferida dolorosa”, Ilíada XI, 812-813), encontramos um
vocabulário ou dicção que remete a um contexto de sacrifício animal, como o termo
mákhaira, “facão” (ou “faca”, segundo F. Lourenço), jamais usado em Homero para
designar uma arma ofensiva, mas sempre em contextos sacrificiais, ou ainda o sintagma
ek meroû támne (“cortou da coxa”), muito próximo de meroús eksétamon (“cortavam
fora as coxas”, Ilíada I, 460; II, 423) que descreve uma operação sacrificial, mas
vocabulário ou dicção que, jogando com o outro sentido possível de rhéksomen, “o
15
que sacrificaremos?” (Ilíada, XI, 838), anteciparia ironicamente como resposta o auto-
sacrifício de Pátroclo no canto XVI.
18
Seria preciso, no entanto, para concluir, precisar melhor o quanto a afeição e
identificação de Aquiles com Pátroclo (sobretudo antes de sua morte) poderia
paradoxalmente não religá-lo à comunidade guerreira dos Aqueus, mas isolá-lo dela de
um modo transgressivo e perigoso à sua básica sobrevivência. É o final de sua fala a
Pátroclo, no canto XVI, concedendo que este vista sua armadura e conduza os
Mirmidões de volta ao combate (mas também o aconselhando a retornar, uma vez que
este tenha aliviado a pressão maior dos Troianos, impedindo a continuação do incêndio
das naus) o que já desde há muito surpreendeu os intérpretes:
19
Quem me dera ó Zeus pai!, ó Atena!, ó Apolo!
que nenhum dos Troianos escapasse à morte, nenhum deles!,
nem nenhum dos Argivos! Mas que nós dois sobrevivêssemos,
para que sozinhos desatássemos o sacro diadema de Troia!‟
(Ilíada XVI, 97-100, trad. F. Lourenço modificada por mim)
Quando Tétis, no canto XVIII, pergunta a Aquiles por que ele está chorando,
que Zeus cumpriu a sua súplica de que os Aqueus fossem derrotados e reconhecessem a
necessidade dele, Aquiles responde com uma definição de Pátroclo que tende à
identificação dos dois e parece antecipar uma paradoxal definição aristotélica de phílos
comotoioûtos hoîos héteros eînai egó: “Tal como poderia ser um outro eu. (Magna
Moralia 1213a11-13):
20
18
“It is clear that Patroklos sees himself as the one to provide the desired aid, and his first act of
assistance is presented on one level in terms of human sacrifice. These two themes are joined together for
the first time in the Iliad: the need for help and the use of sacrifice. The final aid Patroklos can provide,
however, and the ultimate answer to his question tí rhéksomen is the sacrifice of himself, which occurs in
Book 16.” (Löwestam, 1981, p. 148-149). É também curiosa, do ponto de vista do sacrifício, a história
sobre Eurípilo contada por Pausânias (7, 19) e lembrada por S. Löwestam: When Eurypylos arrived in
the Peloponnesus in his wandering after the war, in obedience to the Delphic Oracle he ended the Ionian
rite of human sacrifice which was practiced in Patrae.(Löwestam, 1981, p. 149).
19
Richard Janko resume o seguinte da recepção antiga destes quatro versos: “Recalling their explicit
portrayal as lovers in Aeschylus‟ Myrmidons and later, Zenodotus and Aristarchus (in T) athetized 97-100
as the work of an interpolator with this view of their relationship. Plutarch too objected (Mor. 25E). T cite
other criticisms the wish is childish, the Myrmidons had done nothing to merit it, and sacking a city
with no defenders is no great feat.” (Janko, 1992, p. 328-329). Mas R. Janko lembra também com justeza
que um voto aberto com este verso 97 é em Homero tipicamente marcado pela impossibilidade (cf. Ilíada
II, 371, IV, 288; Odisseia VII, 311), de que o enunciador estaria consciente, e que um voto análogo é
proferido por Diomedes, em relação a seu servidor Estênelo (cf. Ilíada IX, 466 e ss.). (Janko, 1992, p.
328). A imagem final, porém, compara o diadema (das muralhas) de Troia com “os véus” (krédemna) que
cobrem a cabeça de uma mulher, sinalizando sua pureza, e que, ao serem desatados, remetem à sua
violação. (Scully, 1990, p. 33).
20
L. Muellner, após citar esta definição, faz o seguinte comentário: “Aristotle‟s answer is ungrammatical,
since an adjective that can only apply to third persons, „other‟, qualifies the first person pronoun; therein
16
Minha mãe, na verdade essas coisas cumpriu para mim o Olímpio.
Mas que satisfação tenho eu nisso, se morreu o companheiro amado (phílos),
Pátroclo, a quem eu honrava acima de todos os outros,
como a mim próprio (îson emêi kephalêi)?‟
(Ilíada XVIII, 79-82)
Mas seria preciso lembrar também que a forte reação de luto ritual de Aquiles,
como se mimetizando o morto [“Levantando com ambas as mãos a poeira enegrecida,/
atirou-a por cima da cabeça e lacerou seu belo rosto./ (...) E ele próprio (...) jazia/
estatelado na poeira e com ambas as mãos arrancava o cabelo.” (Ilíada XVIII, 23-24;
26-27)], traduz uma plena identificação com ele,
21
que é confirmada por um gesto
protetor de Antíloco que teme o suicídio de Aquiles (como se sugerindo um desejo de
morrer deste, dada a sua grande dor), curiosamente figurado como um corte da
garganta com o ferro”, que poderia também descrever a morte sacrificial de um animal
[“Por seu lado Antíloco lamentava-se e chorava (...),/ segurando nas mãos de Aquiles,
que gemia (...);/ é que receava que com o ferro ele cortasse a própria garganta.” (Ilíada
XVIII, 32-34)].
22
E, no canto XIX, na continuação de uma fala de Aquiles já citada (em que ele se
lembra de Pátroclo vivo preparando uma refeição e, estando aquele morto agora,
justifica o seu jejum ritual pelo luto), Aquiles coloca a dor pela morte do companheiro
lies the fundamental notion behind Achilles‟ substitution. Patroklos is a third person whom Achilles
identifies with himself, a „he‟ who is an „I‟.” (Muellner, 1996, p. 136). Numa nota de de página, L.
Muellner registra uma reformulação desta definição aristotélica de phílos por Zenão (na biografia de
Zenão por Diógenes Laércio, 7.23) como um állos egó, um “outro eu”, lembrando que ela (por intermédio
de Erwin Rohde e Nietzsche) estaria na base do termo freudiano alter ego (Muellner, 1996, p. 136, nota
5).
21
“In the opening of Book 18 Achilles learns of Patroklos‟ death. He immediately responds as if the
report brought by Antilochos had killed him and he were dead.” (Löwestam, 1996, p. 175).
22
“Suicide itself is extremely rare in this period, but it is even more difficult to find a parallel for this
means of suicide. (…) The mention of Achilles cutting his own throat is meant to evoke the image of self-
sacrifice.” (Löwestam, 1981, p. 175). Na sequência, é como se Tétis, mãe de Aquiles (e depois as
Nereidas, que perfariam um coro fúnebre), por sua reação lutuosa, tivesse sabido da morte do próprio
filho, ao ouvir o terrível lamento (não discursivo) de Aquiles e antes de saber a sua razão de ser: “Logo
lançou um grito ululante. E as deusas vieram rodeá-la,/ (...). Todas juntas/ bateram no peito e foi Tétis que
deu o início ao lamento: (...).” (Ilíada XVIII, 37, 50-51). E segundo notou com argúcia J. Th. Kakridis
em “III. A. The scene of the Nereids in Iliad XVIII” (Kakridis, 1949, p. 65-75) como é típico, no ritual
(ou gestual) fúnebre homérico, que a mãe (e/ou a mulher) segure a cabeça do filho morto, lamentando-se
(ver, por exemplo, Ilíada XXIV, 710-712 e 723-724), assim também aqui Tétis sem que saibamos como
precisamente (pois Aquiles jaz estendido no chão) segura a cabeça do filho, lamentando-se (e gritando
agudamente de tristeza), como se ele mesmo já tivesse morrido: “E agudo gritando, ela pegou a cabeça de
seu filho/ e lamentando-se proferiu palavras aladas:/ (...).” (Ilíada XVIII, 71-72, tradução de F. Lourenço
modificada por mim).
17
acima mesmo da pela morte eventual de seu pai (Peleu) ou de seu filho (Neoptólemo),
23
numa formulação que parece também colocar em causa o sentido último desta guerra:
(...) Nada de pior poderia eu sofrer,
nem que me viessem dizer que morreu o meu pai,
que está agora na Ftia chorando fartas lágrimas por precisar
deste filho, ao passo que estou entre um povo estrangeiro
e combato os Troianos por causa de Helena arrebatada
nem que fosse meu filho amado que em Esquiro é criado,
se é que ainda vive o divino Neoptólemo.‟
(Ilíada XIX, 321-327)
E, uma vez Pátroclo morto e Heitor vingado, pois também morto pelas mãos
de Aquiles, quando este pode enfim cremar o corpo de Pátroclo (após o sacrifício de
quatro cavalos, dois cães e doze jovens Troianos, em um rito fúnebre monumental),
Aquiles irá dar uma ordem de recolhimento provisório dos ossos, assim como de
elevação de um túmulo provisório, como se à espera de que seus ossos fossem juntados
definitivamente aos de Pátroclo e enterrados sob um túmulo comum maior:
Primeiro apagai toda a pira com vinho frisante,
onde chegou a força do fogo. Em seguida
recolhamos os ossos de Pátroclo, filho de Menécio,
separando-os bem dos outros: são fáceis de reconhecer.
[...]
Coloquemos os ossos numa urna dourada com dupla camada
de gordura, até que eu próprio me veja escondido no Hades.
Não vos digo para vos esforçardes com um túmulo enorme:
apenas o que for decente. Mas depois fazei, ó Aqueus,
23
A suposição, a partir de sua reação extremada de luto pela morte de Pátroclo, de um amor homossexual
entre Aquiles e Pátroclo não tem nenhuma confirmação textual explícita, devendo, por exemplo, ser
lembrado que, no fim do canto XIX, na ausência de Briseida, Aquiles irá dormir com Diomeda, uma
cativa que ele trouxe de Lesbos, enquanto Pátroclo, deitado do lado oposto, irá dormir com Ífis, uma
cativa que Aquiles lhe como despojo do saque de Esquiro (cf. Ilíada IX, 663-668; conferir também,
para uma outra posição, o artigo “Achilles and Patroclus in love” de W. M. Clarke [Clarke, 1978]). No
entanto, na Antiguidade, foram muitos os autores tais como Ésquilo (TrGF 3, 135-6 Radt), Platão
(Symp. 179e-180b), Ésquines (1.141-2), e outros mais tardios como Teócrito, Marcial e Pseudo-Luciano,
a exceção sendo Xenofonte (Symp. 8.31) que pensaram a relação entre os dois como a de um amor
homossexual. Para mais detalhes sobre esta posição (com suas diferenciações), incluindo também o
romance Calírroe de Cáriton de Afrodísia, ver o breve artigo (ou nota) de M. S. Morales e G. L. Mariscal
The relationship between Achilles and Patroclus according to Chariton of Aphrodisias” (Morales e
Mariscal, 2003).
18
um túmulo amplo e elevado, vós que depois de mim
ficareis no meio das naus de muitos remos.‟
(Ilíada XXIII, 237-240; 243-248)
Seria preciso aqui abrir um parêntese essencial para retomando a cena da
problemática cremação de Pátroclo sugerir, com S. Löwestam, uma dimensão
sacrificial no curioso detalhe de “ossos (...) com dupla camada de gordura”, já que neste
caso único em Homero a hipótese de uma função preservativa dos ossos pela gordura é
inverossímil, e, no sacrifício de uma vítima animal, são as coxas que são envolvidas em
gordura (e queimadas aos deuses), sendo que nesta mesma cena maior o próprio corpo
de Pátroclo o será também (cf. Ilíada XXIII, 167-169), mas para facilitar a combustão,
segundo uma antiga prática indo-europeia.
24
E, após Aquiles fazê-lo e colocar contra o esquife “jarros de asa dupla de mel e
azeite” (cf. Ilíada XXIII, 170-171), ele sacrifica quatro cavalos e dois cães de Pátroclo
(cf. Ilíada XXIII, 171-174) em um ato já grandioso que intensifica a dimensão
sacrificial e, ainda mais inaudito porque absolutamente único em Homero (ou seja:
um sacrifício humano), ele sacrifica doze jovens troianos, em uma carnificina (onde
muito sangue deve ter corrido): “E doze nobres filhos dos magnânimos Troianos/ matou
com o bronze, pois no senso pensava obras malignas.” (Ilíada XXIII, 175-176, trad. F.
Lourenço modificada por mim).
No entanto, a pira não acende, obrigando Íris (que curiosamente não é aqui
mensageira de nenhum deus, pois todos eles estão entre os Etíopes para serem honrados
com hecatombes) a chamar, segundo a súplica de Aquiles, os ventos Bóreas e Zéfiro
para impelir a combustão (cf. Ilíada XXIII, 192-216). Ora, como sugere com acuidade
S. Löwestam, dentro de um contexto sacrificial, tanto a não combustão da pira quanto o
fato de os deuses estarem ausentes entre os Etíopes (precisamente para serem honrados
com hecatombes) podem ser interpretados como signo de que os deuses não estão
aceitando este sacrifício por Aquiles do corpo de Pátroclo (envolto em gordura), assim
como das outras vítimas animais e humanas, e, consequente e negativamente (ainda que
de modo não explicitado), que o sacrifício demandado não é outro senão o do próprio
Aquiles,
25
justificando enfim o ato (anunciador do seu auto-sacrifício) de Aquiles
24
Ver, para uma análise detalhada da dimensão sacrificial em vários elementos dos funerais de Pátroclo,
o subcapítulo “IV. 2.2. Patroklos‟ Funeral” do já citado livro The death of Patroklos (Löwestam, 1981, p.
150-159).
25
Eis um recorte substancial dos dois últimos e conclusivos parágrafos do bem citado livro de S.
Löwestam: “In the subsequent funeral scene, which operates in sacrificial terms on one level, there are
19
também bater nas suas duas próprias coxas, quando Heitor coloca fogo no primeiro
navio e ele chama Pátroclo (cf. Ilíada XVI, 124-125).
Mas fechado agora este grande parêntese e voltando à questão do destino
último dos ossos de Pátroclo como a morte de Aquiles (já predita por Tétis e
confirmada por ele mesmo, cf. Ilíada XVIII, 95-98, e bem anunciada por Heitor ao
morrer: os matadores havendo de ser Páris e Apolo, cf. Ilíada XXII, 359-360) e os ritos
fúnebres do maior herói aqueu escapam ao télos narrativo da Ilíada, que termina com a
devolução (por Aquiles) do cadáver de Heitor e a realização (numa trégua concedida
por Aquiles) dos ritos fúnebres do maior herói troiano,
26
será apenas no canto final da
Odisseia que teremos a confirmação de que este último desejo de Aquiles de ter os
seus ossos misturados com os de Pátroclo numa urna foi inteiramente cumprido
(incluindo a elevação de um grande e bem visível túmulo comum). Eis o núcleo do
relato da psykhé de Agamêmnon para a psykhé de Aquiles no Hades:
Mas depois que te consumiu a chama de Hefesto,
reunimos ao nascer do dia os teus ossos brancos,
ó Aquiles, e depusemo-los em vinho e unguentos.
Dera-nos a tua mãe uma urna dourada, de asa dupla
[..._____________]. Aí estão os teus ossos, ó Aquiles,
misturados com os do falecido Pátroclo, filho de Meneceu;‟
two (...) indications that the sacrifice of Patroklos has not been accepted. First, the pyre will not burn; and
secondly, when Iris suggests that the gods have gone to Aithiopia, she reveals the fact that there will be
nobody to accept Achilles‟ sacrifice. Hence, by the end of the funeral, when Patroklos‟ white bones are
placed in a double layer of fat, it has become clear that the sacrifice has failed. By this point, too, the two
sacrificial motifs have converged with regard to function. On the one hand, after Book 18, in which
Antilochos fears that Achilles will cut his throat on the spot, Achilles never deviates from his resolution
to sacrifice himself. On the other hand, Patroklos has acted as Achilles‟ substitute; and when his sacrifice
is rejected by the gods, Achilles is doomed to be sacrificed himself. Both sacrificial motifs ultimately
anticipate Achilles‟ death.” (Löwestam, 1981, 177).
26
Seria preciso, portanto, lembrar aqui que o movimento final da Ilíada é o de uma ampliação da philótes
de Aquiles (primeiramente por Pátroclo e por meio da morte deste pelos Aqueus) em direção também
ao inimigo (abrindo-se para o apenas humano e mortal) que é o pai (Príamo) do matador de Pátroclo
(Heitor), cujo destino com uma cota de sofrimento pela perda de um filho amado na guerra é
considerado semelhante ao de seu próprio pai (Peleu), e que será recebido hospitaleiramente por Aquiles,
com um convite para comer e depois dormir, em um ato que marca também o fim do seu trabalho de luto
(por Pátroclo, assim como o por Heitor da parte de Príamo), com a satisfação de necessidades naturais
que indicam uma reintegração à economia da vida. Significativa mas discretamente, o último ato de
Aquiles na Ilíada após a devolução do cadáver de Heitor, uma refeição com Príamo e o arranjo de um
leito para este será ir dormir com Briseida (cf. Ilíada XXIV, 675-676). Para uma análise mais detalhada
deste ponto (que foge um pouco do escopo primeiro deste artigo) ver a parte final (“The teleology of
mênis in the Iliad”) do último capítulo de The anger of Achilles (Muellner, 1996, p. 168-175) e também o
meu artigo “Luto e comida no ultimo canto da Ilíada” (Assunção, 2004-2005).
20
(Odisseia XXIV, 71-74; 76-77)
27
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HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin/Companhia
das Letras, 2011.
27
Também por comodidade semântica e para manter um padrão basicamente análogo ao da tradução da
Ilíada, adotei a tradução da Odisseia para o português de Frederico Lourenço (Homero, 2011), mesmo
que hoje prefira a de Christian Werner. O texto grego usado é o estabelecido por T. W. Allen para a
edição da coleção de Oxford (Allen, 1987).
21
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22
« La philótes d‟Achille et Patrocle dans l‟Iliade »
Résumé: Cette ébauche a pour but de rechercher combien le rapport entre phíloi
(“amis”), ou la philótes, designe dans l‟Iliade bien plus l‟engagement d‟appartenance à
un groupe dans ce cas-là, celui des compagnons d‟armes (l‟armée, ou le laós) ,
exprimé par des actes qui supposent la réciprocité et ont une implication éthique
communautaire, qu‟un simple rapport affectif personnel d‟“amitié. L‟exemple
principal à être commenté (mais dans une conjonction avec celui d‟Achille) par son
importance pour l‟intrigue centrale du poème est celui de Patrocle, caractérisé comme
phílos (par sa sollicitude) et “serviteur” (therápon) d‟Achille, et dont la mort comme
substitut rituel d‟Achille (en revêtant son armement et sa fureur guerrière) accomplira
la reprise de la philótes d‟Achille pour ses compagnons de guerre (avec son retour au
combat pour venger la mort de son meilleur ami), interrompue par sa funeste “colère”
(mênis) contre Agamemnon et nécéssaire à la victoire finale des Achéens, même si cela
implique aussi sa mort à Troie.
Mots-clés: philótes; Patrocle; Achille; Iliade; ébauche.
Article
O artigo apresenta uma interpretação do discurso de Fedro presente no Banquete de Platão. Essa interpretação tenta mostrar, primeiro, como Fedro elogia o Eros por tornar a vida bela. Em certo sentido, pode-se dizer que, para Fedro, o homem tornar-se-ia perfeito por meio do Amor, uma vez que se tornaria corajoso e a coragem seria a virtude completa. Depois, o artigo mostra como Fedro entende o Eros como certo pudor sublimado ou emulação recíproca, pois cada amante buscaria ser honrado pelo outro em espécie de rivalidade sadia por meio da qual se aperfeiçoaria continuamente. O artigo acaba explorando a ideia de morrer-pelo-outro, central no discurso de Fedro, e sugere que o texto estaria remetendo a uma forma de morte ritual, a qual o artigo relaciona tanto, de um lado, com a verdade quanto, de outro, com a ideia de justiça que, o artigo defende, estaria presente na República como descida à Caverna, ou seja, ao Hades.
Article
Full-text available
a2 Universidad de Córdoba glaguna@uco.es
Article
Este breve artigo tenta investigar - a partir dos exemplos de Aquiles e de Príamo no canto de conclusão da Ilíada - a relação negativa entre o luto (como comportamento que mimetiza o morto) e a comida que, assim como o sono e o sexo, satisfaz temporariamente uma necessidade orgânica elementar e sinaliza, desta maneira, a reintegração (pelo modo socializante do banquete) do enlutado à esfera dos vivos e a uma economia da vida humana mortal. Como exemplos desta relação entre luto e comida são comentados também o mito dos jarros de Zeus e o mito de Níobe, contados por Aquiles, para consolar e tentar reintegrar o enlutado Príamo à imediata continuação da vida.
  • Émile Philos
BENVENISTE, Émile. Philos. In : ___________________. Le vocabulaire des institutions indo-européennes, vol. 1. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p. 335-353.
  • Margalit Finkelberg
  • Timé
  • Homer
FINKELBERG, Margalit. Timé and areté in Homer. Classical Quarterly, v. 48, n. 1, p. 14-28, 1998.
Tradução de Frederico Lourenço
  • Homero
  • Odisseia
HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2011.
The best of the Achaeans
  • Gregory Nagy
NAGY, Gregory. The best of the Achaeans. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1979.
The indo-european vocabulary of exchange, hospitality and intimacy
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SCHWARTZ, Martin. The indo-european vocabulary of exchange, hospitality and intimacy. Proceedings of the Berkeley Linguistics Society, v. 8, p. 188-204, 1982.