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Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Brasil, Vol. XIII, nº26, Jan-Jun 2013, p. 587-614
Artigo recebido em dezembro de 2012 e aprovado para publicação em janeiro de 2013
Resumo
Os estudos acerca das comunidades afrodescendentes no Caribe,
na América do Sul e no Brasil têm revelado, nas últimas décadas,
um constante processo de ressemantização dos termos quilombo
e palenques, dado a imensa variedade de suas categorias
organizacionais, sua relação com a sociedade envolvente, com
o território, seus processos de etnogênse e sua composição
interétnica. Assim, tomando por base pesquisas recentes
realizadas nos estados do Maranhão e do Piauí, entre comunidades
afrodescendentes rurais, este estudo questiona alguns marcos
metodológicos e tipológicos que amparam os relatórios e laudos
antropológicos de reconhecimento e delimitação de território
quilombola, sobretudo no Brasil onde, devido a natureza
propositalmente móvel dos parâmetros defi nidores, produz
diagnósticos ora muito extensivos, ora restritivos.
Palavras-chave: quilombo, territorialidade, identidade étnica
Processos de etnogênese na
formação de identidades de
comunidades afro descendentes
Alexandre Martins de Araújo
(Faculdade de História. Universidade
Federal de Goiás, FH-UFG)
Elias Nazareno
(Faculdade de História. Universidade
Federal de Goiás, FH-UFG)
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
Resumen
Los estudios acerca de las comunidades afrodescendentes
em el Caribe, América del Sur e Brasil han revelado, em las
últimas décadas, un constante proceso de re-signifi cación de
los términos quilombo y palenque, dada la inmensa variedad
de sus categorías organizacionales, su relación con la sociedad
envolvente, con el territorio, sus procesos de etnogénesis e su
composición interétnica. Así, tomando por base investigaciones
recientes realizadas em los estados de Marañón y de Piauí, entre
comunidades afrodescendentes rurales, este estudo cuestiona
algunos marcos metodológicos y tipológicos que amparan
los relatorios y laudos antropológicos de reconocimiento y
delimitación de territorio palenque, sobre todo en Brasil donde,
debido a la naturaleza intencionalmente móvil de los parámetros
defi nidores, produce diagnósticos ora muito extensos, ora
restrictos.
Palavras claves: palenques, territorialidad, identidad étnica
Abstract:
In recent decades studies on communities of African descent
in the Caribbean, South America and Brazil have revealed a
constant process of resemantization of the terms maroon and
palenques, given the immense variety of its organizational
categories, their relationship with the surrounding society and
with the territory, their processes of ethnogenesis and interethnic
composition. Thus, based on recent researches between rural
communities of African descent in the states of Maranhão and
Piauí, this study questions some methodological and typological
frameworks which support anthropological reports of recognition
and delimitation of maroon’s territory, especially in Brazil where
due to the purposely mobile nature of the defi ning parameters,
diagnoses are produced which are sometimes very extensive,
sometimes restrictive.
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Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
Keywords: Maroons, territoriality, ethnic identity
As defi nições acerca do que pode ou não caracterizar um
quilombo são marcadas contemporaneamente pelo adensamento e
alargamento dos marcos de reconhecimento político, notadamente
ampliados em razão das lutas dos movimentos sociais e suas
reivindicações plasmadas em parte nas chamadas constituições
multiculturais. Como não poderia deixar de ser, tais defi nições
são historicamente delimitadas, ora por imposições, ora por
resistência e apropriação e, atualmente por reivindicações em
termos afi rmativos que partem das populações afrodescendentes
e que são legitimadas, por exemplo, no Brasil por meio do aval
técnico-científi co de relatórios/laudos antropológicos. Estes
como serão vistos mais à frente, em alguns casos podem assumir
características por demais extensivas e em outros, restritivas.
Se as demandas de reconhecimento de quilombos ocorrem
no Caribe, na América do Norte ou na América do Sul, palenques,
cimarrones, maroons, quilombos ou terras de preto guardam entre
si, por mais que consideremos suas especifi cidades, semelhanças
que tornam peculiar sua organização social e espacial, de acordo
com Florentino e Amantino (2012, p. 237),
.a produção escravista pressupunha a constituição de relações
pretéritas e desiguais de poder, antes de ser propriedade o
escravo era um cativo de outro homem. Senhores e escravos
estavam unidos, antes de uma relação de produção, por uma
relação de poder fundada numa ordem privada e culturalmente
legitimada. Por isso, e não apenas por representarem um ataque
frontal ao direito de propriedade, é que as fugas e os quilombos
encarnavam a típica atitude de resistência à escravidão, um
ato extremo no campo da política, cuja simples possibilidade
apontava para os limites do domínio privado do senhor e garantia
ao escravo algum espaço para a negociação de demandas.
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
De qualquer forma os autores citados acima questionam
a classifi cação de qualquer iniciativa de fuga por parte dos
escravos como sendo já passível de caracterização como sendo
um quilombo, pois a despeito destes havia outras formas de
resistência ao cativeiro. As chamadas petit marronages ou fugas-
reivindicativas ou mesmo escapadelas, ausências temporárias
de escravos eram muito mais frequentes do que se supõe e não
devem ser simplesmente confundidas com as fugas-rompimento.
Aquelas podiam ocorrer em razão “do impacto do desembarque
do africano nas Américas, do humor do cativo, ou da natureza do
trabalho que lhe era exigido, quando não da vontade explícita de
mudar de senhor” (Florentino e Amantino, 2012, p. 239).
Documentos ofi ciais e eclesiásticos confi rmam, desde o século
XVI, na América espanhola e no Brasil, a existência de uma
espécie de população fl utuante entre os escravos, indivíduos
que escapavam das plantations e das minas para se unirem
aos cimarrones das montanhas próximas, mas que logo
regressavam, seja para visitarem parentes ou simplesmente
para pressionarem os seus senhores a autorizá-los a, por
exemplo, casarem com escravas de outros proprietários.
Deste modo, “Homogenizar y generalizar las formas
de vida de los cimarrones tratando de encontrar un patrón de
comportamiento, es una equivocación. Por lo demás, la historia
de cada palenque está llena de complejidades y no es lineal,
maneja relaciones y confl ictos que le son propios” (Navarrete,
2008, p. 8).
Diversos fatores determinam a diversidade em relação
à organização dos quilombos, mesmo que em regiões muito
próximas, eles podem guardar profundas diferenças, sobretudo
quando pensamos na diversidade das fi liações étnicas dos
africanos dentro de um mesmo quilombo, isto sem pensarmos,
como em alguns casos, na presença em sua composição de
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Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
brancos, mulatos e indígenas.
É a partir desta diversidade em relação às possibilidades
ou impossibilidades de classifi cação e conceituação, que
abordaremos na primeira parte deste trabalho, as defi nições
em relação ao que se caracteriza como palenques na América
espanhola e no Caribe, e quilombo no Brasil. Na segunda parte,
algumas importantes questões metodológicas, atinentes aos
processos de identifi cação de comunidades negras remanescentes
de quilombos no Brasil, serão analisadas a luz de algumas
experiências de campo junto a comunidades afro-descendentes
rurais, dos estados do Maranhão e do Piauí.
De acordo com Laviña (2011), a primeira sublevação de
escravos ocorreu na América em 1522 na ilha Espanhola e foi
protagonizada por negros boçais.
Los prejuicios de los españoles respecto a los ladinos, a los que
se les prohibió el paso a las Indias por miedo a las sublevaciones
y los problemas que causaban, no se confi rmaron. Fueron
los bozales, teóricamente sumisos y obedientes, los que se
levantaron en armas contra los españoles. Los wolof, conocidos
en la época como jelofes, que trabajaban en el ingenio de Diego
Colón se unieron, mataron a varios españoles y se dirigieron
hacia Azua. Cuando las noticias del levantamiento llegaron a
la capital, Santo Domingo, se organizó una tropa de españoles
para atajar la sublevación, las informaciones que llegaban
de los ingenios y hatos parecían indicar que se preparaba un
levantamiento de esclavos en toda la isla (Laviña, 2011, p.
181).
Aqui rapidamente foi organizada uma forca de
repressão aos escravos insurretos ocorrendo a morte de muitos
deles e os que restaram se dispersaram pelas montanhas. Esta
estratégia foi prontamente percebida pelos espanhóis como algo
a ser frontalmente combatido. O medo ao enorme potencial de
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destruição da incipiente organização fez com que expedições
periódicas para a captura dos fugitivos e consequentemente a
destruição dos palenques que encontravam pela frente fossem
prontamente organizadas.
Com o agravamento da incidência dos palenques
surgiram legislações específi cas que procuravam dar conta deles
como o Código Negro de Santo Domingo de 1768 que previa
entre 50 e 200 chibatadas nos fugitivos até o seu desterro, em
caso de reincidência. Em 1724 o Code Noir da Louisiania,
previa desde o corte de uma orelha, passando pela amputação
de um braço ou perna até a execução sumária (Florentino e
Amantino, 2012, p. 246). Em 1796 foi publicado o Reglamento
de Cimarrones de Cuba, “La real orden defi nió desde los tipos
de cimarrones en función del tiempo de la huida a los castigos, y
el cobro que percibían los rancheadores por la batida, al margen
del éxito o fracaso de la misión, el precio que cobraban por cada
negro capturado estaba en función del número de negros que
compusieran el palenque” (Laviña, 1995, p. 98).
Às medidas preventivas e punitivas, emrelação ao
surgimento dos palenques e quilombos, correspondem um
interminável surgimento deles ao longo dos séculos XVIII e
XIX. Obviamente a grande incidência de palenques e quilombos
a partir do século XVIII estava intimamente relacionada à
intensifi cação do capitalismo como sistema mundial o que levou
a intensifi cação do tráfi co de escravos e do processo de sobre-
exploração da mão de obra escrava.
Florentino e Amantino (2012, p.242) corroboram tal
afi rmação,
É (sic) portanto plausível que, ao concentrar 2/3 de todas
as viagens negreiras, o século XVIII tenha representado a
época áurea das fugas de escravos no continente. O mesmo
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Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
raciocínio sugere que embora se registrem fugas em todas
as Américas, as evasões podem ter sido mais frequentes no
Brasil e no Caribe do que na América espanhola continental
e, sobretudo, do que no sul dos Estados Unidos, onde mesmo
os quilombos congregavam menores contingentes e obtinham
menores êxitos do que naquelas regiões.
Como ocorreu na história do contato entre indígenas e
brancos, que retrata quase sempre as impressões e depoimentos
dos brancos invasores, a história acerca do funcionamento dos
palenques refl ete a perspectiva daqueles que os combatiam e
tentavam destruí-los. Por esta razão “as fontes para a reconstituição
da história dos palenques são em geral fragmentárias e repletas de
etnocentrismo, sobretudo quando descrevem a dinâmica interna
dos assentamentos.”(Florentino e Amantino, 2012, p. 247).
Assim, de acordo com Laviña (1995, p. 100),“En los palenques de
fi nales del siglo XVIII y siglo XIX aparecen relatadas estructuras
sociales jerarquizadas, en las que un líder se encargaba de la
organización de la defensa del palenque”.
O mesmo autor afi rma que a proximidade dos palenques
da parte Oriental da Ilha de Cuba com a Jamaica, converteu os
bosques e montes em uma cimarroneria internacional. Gerava
igualmente enormes preocupações a proximidade com o Haiti,
que havia conquistado sua independência e os rumores de um
levante dos cimarrones em Cuba com o apoio dos haitianos era
uma suspeita que poderia facilmente se converter em realidade.
Outras manifestações de revolta ocorrem na Jamaica,
que de acordo com Florentino e Amantino citando a Schuler,
(2012, p. 241), “Em 1690, na paróquia de Clarendon, cerca de
400 escravos atearam fogo à plantation de Sutton e logo fugiram
para os bosques do centro-sul da Jamaica, onde por algum tempo
passaram a viver de roubos às propriedades vizinhas.”.
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Vários aspectos revelam a enorme heterogeneidade e
complexidade das organizações dos palenques em diferentes
partes da América: “El signifi cado del cimarronaje fue distinto
de acuerdo con las posiciones sociales, el lugar de nacimiento,
el tiempo de permanencia en el Nuevo Mundo, las tareas y
actividades desempeñadas durante la vida en esclavitud y el trato
recibido de sus amos” (Navarrete, 2008, p.8).
Na análise que faz do palenque de Matudere na Colômbia
Navarrete afi rma que,
La experiencia del palenque de Matudere no corresponde
al modelo tradicional argumentado por algunos de total
aislamiento de la sociedad esclavista. Sus miembros
incursionaban en las haciendas vecinas, secuestraban esclavos,
especialmente mujeres, y robaban productos. Al mismo
tiempo, comerciaban con los pueblos de indios y las haciendas
como una forma de integración a la sociedad colonial (2008,
p.16).
Esta é outra faceta pouco explorada nos estudos
relacionados a estas comunidades, pois os contatos com o
entorno eram muito mais frequentes do que se pensava e o nível
de agressividade poderia, de acordo com as circunstâncias,
aumentar signifi cativamente. O número muito maior de homens
vivendo nos palenques os levava a constantes incursões a outros
tipos de comunidades, sobretudo indígenas que comumente
tinham como desfecho o rapto de mulheres ou que na melhor
das hipóteses procuravam se mesclar às comunidades indígenas
numa clara estratégia de invisibilizacão. Segundo Florentino e
Amantino (2012, p. 252) citando a Thorton: “Durante o século
XVI, a cooperação entre fugitivos e aborígenes foi igualmente
detectada na região Zapoteca da Nueva España (1523), em Cuba
(1529), na Nicarágua (1540), na zona venezuelana de Santa
Marta (1550) e no Panamá (1546-1550)”.
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En cuanto a los sexos, dominaban los varones. Se pudieron
contabilizar ochenta y dos frente a cuarenta y cuatro mujeres,
sin contar las once indias. Esto quería decir que había
casi el doble de hombres que de mujeres. En Matudere, la
desproporción entre los sexos los llevó a recurrir al robo de
mujeres en estancias, extramuros de ciudades y villas y pueblos
de naturales. En términos generales, la composición de género
en los palenques era desigual.(Navarrete, P., 2008, p.23).
O nível de organização interna, em muitos casos, estava
sujeito a um estado de constante instabilidade, pois os riscos dos
constantes ataques determinavam a procura por lugares de difícil
acesso o que garantia em parte uma relativa segurança, mas ao
mesmo tempo os colocava diante de outras ameaças como a
fragilização de sua saúde em função da inanição e de doenças
como a malária, sarampo, varíola e disenterias.
No Brasil os estudos acerca das comunidades quilombolas
passam a receber uma atenção considerável, sobretudo a partir
da década de 1980, à exceção dos trabalhos como os de Edson
Carneiro em O quilombo dos Palmares, em 1958, Clóvis Moura
com Rebeliões da Senzala de 1959 e Décio Freitas sobre Palmares
com A guerra dos escravos de 1973. A questão quilombola, em
que pese o movimento iniciado com a Frente Negra Brasileira
(1930/40), bem como a questão indígena, passa a fazer parte
da agenda política dos movimentos sociais nos anos de 1970 e
1980, exerce forte infl uência nos novos marcos constitucionais
plasmados na Constituição promulgada em 1988 que passa a
reconhecer o caráter pluriétnico e plurilinguístico na formação
da sociedade brasileira.
Deste modo e como desdobramento dos direitos
alcançados com a Constituição, o artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias – ADCT, da Constituição Federal,
confere às Comunidades Remanescentes de Quilombos o direito
ao Título de Domínio de posse das terras que ocupam.
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Para Almeida (2002) os primeiros estudos acerca da
defi nição dos quilombos levaram em conta a caracterização feita
ainda no período colonial,
Quase todos os autores consultados, do presente ou do passado
desde o clássico de Perdigão Malheiro, A escravidão no
Brasil: ensaio histórico, jurídico, social, que é de 1866, até os
recentes trabalhos de Clóvis Moura, de 1996, trabalhavam com
o mesmo conceito jurídico-formal de quilombo, um conceito
que fi cou, por assim dizer, frigorifi cado. Esse conceito,
composto de elementos descritivos, foi formulado como uma
resposta ao rei de Portugal em virtude de consulta feita ao
Conselho Ultramarino, em 1740. Quilombo foi formalmente
defi nido como toda habitação de negros fugidos, que passem
de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados e nem se achem pilões nele (Almeida, 202, p. 47).
Observa-se que ocorre historicamente no Brasil algo
muito semelhante ao que acontece no restante da América, ou seja,
há uma tendência bastante clara de classifi car e homogeneizar
o que seriam os quilombos. Segundo Almeida (2012) esta
tendência pouco se altera ao longo dos diferentes períodos da
história brasileira. Assim, no Império as legislações dos governos
provinciais somente reduzem a quantidade mínima de fugitivos
quilombolas de cinco para dois ou três. No período republicano,
sequer aparecem mais referências na legislação, pois se supunha
que com a abolição os quilombos “naturalmente” deixariam de
existir. “E quando é mencionado na Constituição de 1988, 100
anos depois, o quilombo já surge como sobrevivência, como
remanescente” (Almeida, 2002, p. 53).
Neste sentido, os quilombos são ignorados ou quando
muito são tratados como comunidades de camponeses, que a
exemplo dos demais camponeses estão embrenhados no interior
do Brasil em busca de sua sobrevivência.
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Uma questão importante para a sua caracterização, seria
entender como estas populações criam e recriam estratégias que
ora buscam a sua dispersão em meio aos demais camponeses, por
forca das circunstâncias com a decadência das grandes plantações
ou por iniciativas do próprio Estado brasileiro, ora buscam por
meio de estratégias de etnogênese uma aproximação às possíveis
“vantagens” de se auto-reconhecerem como quilombolas em
função das políticas afi rmativas, sobretudo aquelas voltadas para
a obtenção de terras, “deixando de representar estigmas, para
assumir um sentido de solidariedade e identifi cação” (Arruti,
1997, p. 25).
Onde situar essas comunidades? Ainda uma questão de
método.
Os textos e as imagens que se seguem, intentam oferecer
ao leitor um panorama, tanto descritivo quanto analítico acerca
da problemática da identifi cação de comunidades quilombolas
no Brasil.
Sabemos, entretanto, que tal pretensão obriga-nos
alertar, ou, se preferir, recordar, dos riscos que corremos, pois,
ao lançarmos nossas redes de captura sobre as realidades as
quais queremos alcançar, por mais fortes que sejam os seus fi os
teórico-metodológicos, ocorrerá sempre perdas e vazamentos
provocados pelos diversos tipos de variáveis que, atravessam
um processo de construção de fatos sociais, antropológicos e
históricos.
Contudo, se por um lado somos acompanhados por uma
persistente, embora aceitável, sensação de impotência sempre que
nos deparamos com imprevistos em nossas pesquisas, por outro,
isso reforça a nossa crença de que é exatamente por conta desses
imprevistos que conseguimos ampliar nossas possibilidades
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metodológicas.
Numa perspectiva histórica, pelo menos no caso do
Brasil, ainda é muito recente o processo de consolidação do papel
de antropólogos e outros cientistas sociais na produção de laudos
e perícias envolvendo povos indígenas, comunidades rurais,
grupos quilombolas, impactos socioambientais e de projetos
de desenvolvimento. No dizer da antropóloga Ilka Boaventura
Leite (2005), “a perícia antropológica consolidou-se no cenário
da antropologia brasileira nas duas últimas décadas e já constitui
uma realidade profi ssional”.
Mas é oportuno lembrar aqui que tal conquista profi ssional
é caudatária de um amplo movimento de reavaliação e reforma
cultural, realizado em escala global, desde o início dos anos
70, e que envolveu não somente o campo da Antropologia, mas
igualmente muitas outras áreas do conhecimento, pois, na medida
em que a sociedade mundial era confrontada a questões, cada vez
mais complexas, a academia esforçava-se para dar respostas mais
sofi sticadas a elas. Em conseqüência, surgiram novos campos
investigativos e outros se tornaram mais permeáveis, como foi
o caso do desenvolvimento da História ambiental, interessada na
compreensão das relações entre sociedade e meio ambiente por
uma via antidualista e intercultural.
Não obstante a tais movimentos revisionistas e zelo
interdisciplinar, a Antropologia seguiu assumindo a dianteira na
corrida rumo a consolidação de uma certa autoridade técnica.
Na introdução do livro Quilombos, identidade étnica
e territorialidade, a antropóloga Eliane Cantarino O.’Dwyer,
no intuito de fazer jus a frase que inaugura sua introdução, Os
quilombos e a prática profi ssional dos antropólogos assevera que
Pode parecer paradoxal que os antropólogos, que marcaram
suas distâncias e rupturas com a historiografi a (ao defi nir
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Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
seu campo de estudos por um corte sincrônico no “presente
etnográfi co.”), tenham sido colocados no centro dos debates
sobre a conceituação de quilombo e sobre a identifi cação
daqueles qualifi cados como remanescentes de quilombos, para
fi ns de aplicação do preceito constitucional (O’ Dwyer, 2002,
p. 14).
Para nós, o que autorizou a autora descartar a História dos
processos de reconhecimento quilombola foi tão somente o fato
de o texto constitucional evocar, para alem de uma “identidade
histórica” também uma identidade do tipo situacional, pois,
“segundo o texto, é preciso, sobretudo, que esses sujeitos históricos
presumíveis existam no presente” (O’ Dwyer, 2002, p. 14).
Em linhas gerais a autora nos dá a entender que a História,
enquanto disciplina, não possui um ferramental teórico capaz de
perceber os processos de recriação cultural agenciados por essas
comunidades como forma atual de existência, independente
da conjuntura relacional. Para dar ênfase ao aspecto presencial
buscado pela Antropologia, em oposição ao caráter “passadista”
da percepção histórica, a autora recorre a uma frase de Shalins
(1990), para quem “fazer o reconhecimento teórico e encontrar o
lugar conceitual do passado no presente.”
Porém, a autora se esqueceu das outras lições dadas
pelo mesmo autor, diga-se de passagem, tão bem assimiladas
pelos historiadores da cultura, de que o diálogo entre história
e antropologia requer a destituição da proclamada noção de
oposição entre “estrutura” e “história”. Segundo ele, os eventos
são ordenados culturalmente de diferentes modos nas diversas
sociedades, conforme os esquemas de signifi cação das coisas.
O contrário também é verdadeiro, ou seja, as estruturas culturais
são ordenadas historicamente porque, em maior ou menor grau,
os signifi cados são reavaliados quando realizados na prática.
(Shalins, 1990)
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Neste ponto, a autora estabelece uma fronteira
radical entre as duas disciplinas, distribuindo seus papeis e
contribuições, ou seja, cabe à História identifi car as heranças
do passado, e à Antropologia defi nir a tradição no presente.
Não há, por outro lado, como negar os enormes
avanços alcançados pela antropologia no que diz respeito à
ressemantização do termo quilombo, especifi camente após
a revisão Barthiniana que confere ao processo de construção
de identidades étnicas quilombolas o caráter auto-atributivo,
performático, integrativo, autônomo e sempre atual como bem
ressalta (O.’Dwyer, 2002, p. 15):
A partir de Barth (1969 e 2000), a persistência dos limites
entre os grupos deixa de ser colocada em termos dos
conteúdos culturais que encerram e defi nem suas diferenças.
O problema da contrastividade cultural passa a não depender
mais de um observador externo que contabilize as diferenças
ditas objetivas, mas unicamente dos “sinais diacríticos.”, isto
é, as diferenças que os próprios atores sociais consideram
signifi cativas. Por conseguinte, as diferenças podem mudar,
ainda que permaneça a dicotomia entre “eles” e “nós”,
marcada pelos seus critérios de pertença.
Consideramos, todavia, que os desafi os impostos por
esta demanda legal de reconhecimento e delimitação de território
quilombola obrigaram-nos a buscar abordagens capazes de
oferecer tanto um olhar prospectivo quanto retrospectivo. Tal
tarefa, entretanto, traz à baila uma velha discussão: o processo
de vinculação entre aquilo que o antropólogo Clifford Geertz,
em seu livro Nova luz sobre a Antropologia, chamou de “as
duas iniciativas mais multifacetadas das ciências humanas”,
quais sejam, Antropologia e História. Ele aponta não apenas
na direção de um simples diálogo entre essas duas disciplinas,
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antes, busca analisar os caminhos que as conduziram às
inevitáveis conjunções, de cuja principal via de atração e
afi nidade é a preocupação com aquilo que se convencionou a
chamar “O Outro”.
A onda recente de interesse dos antropólogos não apenas
pelo passado (sempre nos interessamos por ele), mas pela
maneira como os historiadores lhe dão um sentido atual, e
do interesse dos historiadores não apenas pela estranheza
cultural (coisa que Heródoto já exibia), mas também pelas
maneiras como os antropólogos a trazem para perto de nós,
não é um simples modismo; sobreviverá ao entusiasmo que
gera, aos medos que desperta e às confusões que cria. Bem
menos claro é a que levará essa onda, ao sobreviver (Geertz,
2000, p. 123).
Com o mesmo impulso pós-Barthniano, o antropólogo
Alfredo Wagner Berno de Almeida, em seu texto Os Quilombos
e as Novas Etnias (2002), produziu uma verdadeira genealogia
dos caminhos legais rumo ao reconhecimento das chamadas
“terras de preto”. Seu principal esforço é o de “desfrigorifi car”
certas categorias, consideradas por ele restritivas e limitantes e
que compunham o texto aprovado em outubro de 1988 do art. 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Segundo
ele, trata-se de um “dispositivo mais voltado para o passado
e para o que idealmente teria “sobrevivido” sob a designação
formal de “remanescentes das comunidades de quilombos.”
Ao tentar exorcizar todo tipo de “emoldurarmento
passadista”, Almeida expulsa a Historia por uma porta – para
ele sinônimo de passado, para em seguida, permitir que ela
entre por outra ao reconhecer, ainda que de forma indireta, a
sua importância como uma ferramenta capaz de compreender
as mudanças que em geral se encarregam da reordenação do
passado no presente.
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
E quando é mencionado na Constituição de 1988, 100 anos
depois, o quilombo já surge como sobrevivência, como
“remanescente.” Reconhece-se o que sobrou, o que é visto
como residual, aquilo que restou, ou seja, aceita-se o que
já foi. Julgo que, ao contrário, se deveria trabalhar com o
conceito de quilombo considerando o que ele é no presente.
Em outras palavras, tem que haver um deslocamento. Não
é discutir o que foi, e sim discutir o que é e como essa
autonomia foi sendo construída historicamente (Almeida,
2002, p. 53).
Bem, não pretendemos ir mais adiante com essa breve
crítica a respeito da confusão que se cria quando os “objetos
da História” são tomados por meras categorias classifi cadoras,
arbitrárias e, no dizer do autor, “frigorizadas”.
Felizmente, para nós, na prática não é bem assim, pois,
quando se examina os conteúdos que dão teor e forma aos
Relatórios Técnicos de Identifi cação e Delimitação – RTDI, vê-
se imediatamente quão presente está a mão da História no que se
refere à necessidade de historicizar todo o processo de ocupação,
como por exemplo, a origem da comunidade, a conquista do
território, a contextualização das situações de confl itos, sejam
elas por motivos de territorialização, desterritorialização, ou de
reterritorialização.
A segunda questão que gostaríamos de dividir com o
leitor é totalmente caudatária desta primeira. Trata-se de saber
se a noção de unidade étnica proposta por Barth e utilizada em
laudos antropológicos para identifi cação de comunidades negras
remanescentes de quilombos consegue açambarcar a totalidade
do fenômeno sem o risco de produzir equívocos classifi catórios
devido, entre outras coisas, a grande plasticidade que o próprio
conceito de quilombo alcançou durante o seu processo de
ressemantização.
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Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
Não estamos com isso, questionando a validade de tal
perspectiva etnográfi ca de defi nição de unidades étnicas. Ao
contrário, julgamos todos esses avanços importantíssimos. A
problemática que ora apresentamos aponta menos na direção do
nível de especialização que o conceito atingiu e mais na natureza
excessivamente extensiva de seus parâmetros defi nidores, uma
vez que não comporta em seu conjunto uma linha de contenção
adequada às suas analises.
Dito de outra forma, se a identidade quilombola é vista
como um constructo no presente, independente, como reforça
O’ Dwyer (2002, p.14), “de qualquer referência necessária
à preservação de diferenças culturais herdadas que sejam
facilmente identifi cáveis por qualquer observador externo”,
já que se fundamenta unicamente em princípios político-
organizativos próprios, orientados para uma subsistência
integrativa e autônoma em um dado território; decorre daí que
uma grande e diversifi cada quantidade de comunidades rurais
brasileiras constituídas por afro descendentes poderiam com
facilidade se encaixar nesta moldura móvel de enquadramento,
bastando apenas reclamar, ou melhor, se auto-atribuir como
comunidade negra remanescente de quilombo.
O que estamos tentando dizer é que a plasticidade
alcançada pelo conceito de quilombo é diametralmente
equivalente a amplitude da atual demanda de reconhecimento
étnico orquestrada por tantas outras populações rurais,
politicamente conscientes dos benefícios advindos do Estado.
Assim, queremos inferir que o trabalho de conceptualização de
quilombo não é algo acabado e as revisões são ainda necessárias,
principalmente porque as próprias comunidades para as quais o
conceito se aplica não são realidades de fácil apreensão.
A título de exemplo, basta-nos lembrar da velha (e
ainda atual), questão sobre o problema da defi nição entre rural
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
e urbano enfrentada pela Antropologia e pela Sociologia.
Um caso que merece ser aqui lembrado, não apenas
por se tratar de um estudo sobre populações rurais no Brasil,
mas, também, por se tratar de um clássico escritor em meados
dos anos setenta cuja preocupação inicial era a de, literalmente,
acomodar um deslizante objeto de pesquisa (o caipira paulista),
dentro de uma abordagem que fosse capaz de compreender o seu
modo de vida no âmbito de um agrupamento. Trata-se da obra
de Antônio Candido intitulada Os parceiros do Rio Bonito.
O leitor verá que aqui se combinam, mais ou menos
livremente, certas orientações do antropólogo a outras mais
próprias do sociólogo. Aquelas, desenvolvidas, sobretudo
para investigar povos primitivos, reunidos na maioria dos
casos em grupos pequenos e relativamente homogêneos;
estas, apropriadas ao estudo das sociedades civilizadas,
diferenciadas ao extremo, ligadas a territórios vastos e grande
população. Esquematizando com certa violência, poderíamos
dizer, talvez, que aquelas recorrem à descrição, atêm-se aos
detalhes e às pessoas, a fi m de integrá-los numa visão que
abranja, em princípio, todos os aspectos da cultura; estas,
eminentemente sintéticas no objetivo, valem-se de amostras
representativas dos grandes números, interessam-se pelas
médias em que os indivíduos se dissolvem, limitando-
se quase sempre a interpretar certos aspectos da cultura.
Como já se escreveu, a Antropologia tende à descrição dos
casos individuais, enquanto a Sociologia tende à estatística
(Candido, 1998, p. 17).
Contudo, essa não era a única tensão metodológica de
sua obra, também fi guravam duas importantes questões de fundo:
primeiro como localizá-las espacialmente em sua condição (ou
não) de isolamento, e por último, como delinear o processo de
incorporação do caipira à vida urbana.
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Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Brasil, Vol. XIII, nº26, Jan-Jun 2013, p. 587-614
Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
(...) Estes ligamentos sempre permitiram a incorporação
lenta, mas perceptível, de traços urbanos às culturas rústicas,
que vão progresivamente (ou regressivamente) redefi nindo ao
longo da gradação. Como assinalam os estudiosos para o caso
da música, da poesia e dos contos, muito do que reputamos
específi co das culturas rústicas é, na verdade, fruto duma lenta
incorporação de padrões eruditos. Processo que se poderia
com justeza chamar de degradação cultural (...) (Ibidem, p.
217).
Vimos que em tal processo de ressemantização do
conceito de quilombo, questões como isolamento geográfi co
e outros tipos de marcos mais ou menos fi xos, usados como
parâmetros de defi nição foram literalmente “deletados” das
análises. Contudo, não devemos nos esquecer de que atualmente
novas e complexas realidades envolvendo o reconhecimento de
território quilombola surgem a todo o momento, como é o caso
dos quilombos que se localizam em espaços urbanos.
Quanto à questão da localização das comunidades afro
descendentes analisadas em um RTDI, devemos dizer que se trata
de um tema que vem sendo reelaborado e assumindo agendas
cada vez mais complexas sob a forma da moderna tensão entre
o local e o global no âmbito do fenômeno de mundialização.
Para dar conta dessa nova realidade dos “lugares” Milton Santos
(2010) explica:
Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como afi rma
Maria Adélia de Souza (1995, p. 65), “todos os lugares
são virtualmente mundiais”. Mas, também, cada lugar,
irrecusavelmente imerso numa comunhão como o mundo,
torna-se exponencialmente diferente dos demais. A uma
maior globalidade, corresponde uma maior individualidade. É
a esse fenômeno que Georges Benko (1990, p. 65) denomina
“glocalidade”, chamando a atenção para as difi culdades de
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
seu tratamento teórico. Para apreender essa nova realidade do
lugar, não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo
se encontra em toda parte. Também devemos evitar o “risco de
nos perder em uma simplifi cação cega”, a partir de uma noção
de particularidade que apenas leve em conta “os fenômenos
gerais dominados pelas forças sociais globais” (Apud Santos,
2008, p.65).
De tudo o que foi dito, ressaltamos a grande necessidade
de lançarmos mão de toda a gama de possibilidades oferecidas
pelas novas (e renovadas) perspectivas interdisciplinares, que ora
(re) estruturam os fazeres das ciências que se ocupam da cultura,
caso desejamos evitar simplifi cações e o risco de nos vermos
diante daqueles “apertos” ou encruzilhadas metodológicas em
face de realidades tão complexas como é o caso dos processos de
reconhecimento aqui em questão.
Numa palavra, tais comunidades que buscamos
“reconhecer” não estão somente aqui, lá ou acolá. Também,
não são unicamente isso ou aquilo. Antes, são culturas híbridas
em contínua mobilidade que requerem um sofi sticado aparato
teórico-metodológico caso ambicionemos compreende-las.
Na tentativa de encontrar um caminho para refl etir o
fenômeno de hibridação cultural em países latino-americanos, o
pensador Néstor Garcia Canclini nos alerta sobre a necessidade
de se produzir ciências sociais nômades.
Assim como não funciona a oposição abrupta entre o
tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não
estão onde estamos habituados a encontrá-los. É necessário
demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em
camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação
pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os
estudam separadamente: a história da arte e a literatura que se
ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados
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Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Brasil, Vol. XIII, nº26, Jan-Jun 2013, p. 587-614
Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
ao popular; os trabalhos sobre a comunicação, especializados
na cultura massiva. Precisamos de ciências sociais nômades,
capazes de circular pelas escalas que ligam esses pavimentos.
(Garcia, 2000).
As fi guras abaixo correspondem a experiências de campo
realizadas junto a comunidades rurais, nos estados do Piauí e do
Maranhão, especifi camente nos municípios de Regeneração, São
José do Maranhão, Matões e Caxias, no ano de 2011, quando
acompanhávamos o processo de produção de diagnósticos sócio-
histórico, antropológico e arqueológico não interventivo, em
áreas destinadas a projetos fl orestais.
Foto 1 – Jovem mãe com seu fi lho, PI Foto 2 – Moradora de uma das
comunidades pesquisadas, MA
Foto 3 – Aspecto interno da cozinha de
uma residência, PI
Foto 4 – SíƟ o histórico contendo material
cerâmico em uma das comunidades, MA
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
As fotos acima nos
mostram apenas alguns as-
pectos da cultura material das
dezenas de comunidades que
estivemos pesquisando, nos
municípios acima menciona-
dos. Tais comunidades vivem,
atualmente, em áreas diretamente impactadas pelos projetos de
refl orestamento, especifi camente, o plantio de eucalipto.
Foto 5 – Morador local manipulando o
feijão de corda colhida em seu quintal, MA
Foto 7 – AnƟ go cemitério em uma fazenda
do sec. XIX, nas proximidades de uma das
comunidades pesquisadas, PI
Foto 9 – Cesto usado para uƟ lidades
domésƟ cas feito em uma das comunidades
pesquisadas, PI
Foto 6 – Criação de cabras, PI
Foto 8 - AnƟ ga sede de uma fazenda do
sec. XIX, nas proximidades de uma das
comunidades pesquisadas, PI
Foto 10 – Cemitério de adultos nas
proximidades de uma comunidade, MA
Foto 11 - Cemitério de “anjinhos” , MA
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Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
Para os fi ns dessa nossa problematização, importa dizer
que nos textos dos EIA RIMA (Estudo de Impacto ambiental/
Relatório de Impactos Ambientais), produzidos para cumprir com
as exigências legais de liberação de licenciamentos ambientais,
essas comunidades foram descritas em detalhes, incluindo os
aspectos materiais e imateriais de suas culturas. Embora esses
relatórios não façam nenhuma alusão à possibilidade dessas
comunidades requererem para si um pertencimento étnico em
termos de uma identidade quilombola, nos espanta a quantidade
de aspectos sociais, históricos e antropológicos que em nada
diferem daqueles aspectos a partir do quais são conferidos
direitos territoriais aos remanescentes de quilombos.
De acordo com os atuais princípios defi nidores de
território quilombola, ou terra de preto, um em especial é de
grande monta, qual seja, o grau de vinculação histórica que uma
comunidade estabelece com o território requerido, ou seja, aquilo
que chamamos de territorialidade.
(...) Falar de território é fazer uma referência implícita à
noção de limite que, mesmo não sendo traçado, como em
geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém
com uma porção do espaço. (...) A territorialidade pode ser
defi nida como um conjunto de relações que se originam num
sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias
de atingir a maior autonomia possível, compatível com os
recursos do sistema. (...) É interessante retomar o que Soja
diz sobre a territorialidade, que segundo ele seria composta
de três elementos: senso de identidade espacial, senso de
exclusividade, compartimentação da interação humana no
espaço. Percebe-se que a identidade, se não pode ser posta em
causa, não apresenta coerência fora da concepção “imaginária”
de um grupo constituído por meio de uma amostragem de
indivíduos (Raffestin, 1993).
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
A esse respeito Almeida (2002, p. 76), salienta que
(...) não é por acaso que, quando se visita essas áreas
designadas terras de preto, se percebe um grau de preservação
da natureza maior do que nas fazendas lindeiras ou nos projetos
agropecuários que desmataram tudo para formar pastagens
artifi ciais. Essa observação impressionista leva à pergunta:
qual a regra de manejo dos recursos? Qual o substrato desse
tipo de preservação? O mesmo pode ser constatado também
nas terras indígenas e em muitas outras situações de uso
comum, inclusive nas chamadas terras de herança, mantidas
sob domínio de unidades camponesas.
Para dar materialidade a nossa comparação, verifi camos
em muitas das comunidades acima citadas a existência de
um complexo sistema de manejo dos recursos orientado
para a preservação do bioma. Em algumas das comunidades
constatamos, por exemplo, que eles fazem um interessante rodízio
de consumo entre duas de suas principais fontes de alimentação,
o porco – normalmente criado à solta dentro do Cerrado, e um
tipo de coqueiro de cujo palmito é uma iguaria muito apreciada.
Pois bem, durante o período de estiagem, os moradores dessas
comunidades interrompem o consumo desses palmitos e deixam
que seus porcos se alimentem de sua casca, que neste período
do ano se encontram maduras, para, só ao fi ndo dessa estação
voltar a consumi-lo. Tal controle ecológico reside no fato de que
enquanto os porcos servem-se da casca do coqueiro, garantindo a
sua procriação, os coqueiros ganham vitalidade devido à poda de
suas cascas, que no período da seca signifi ca uma diminuição de
gasto de energia. Muitas outras práticas semelhantes entre essas
comunidades poderiam ser relacionadas aqui, como por exemplo,
o uso racional da água, a prática da extração de castanhas que
leva em conta a permanência de uma determinada quantidade
de frutos em cada árvore para alimentação de pássaros e outros
animais.
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Processos de etnogenese na formaçao de comunidades afrodescendentes
Para além da noção de territorialidade, chamamos
essas relações e dinâmicas, historicamente construídas entre
essas populações e os espaços onde têm acesso de complexos
ambientais.
Nessa perspectiva, a constituição desses complexos
ambientais (inter-humanos e inter-fi tofi sionomicos), tornou-se a
condição fundamental para a permanência das populações nessas
localidades, pois, mesmo quando essas eram atravessadas por
situações de extrema escassez, seja devido a longos períodos
de estiagem, seja devido a crises em seus setores produtivos,
conseguiam sobreviver devido à produção de complexos
sistemas adaptativos, por meio dos quais aprenderam a produzir
o seu modo de sobrevivência associando algumas atividades
produtivas as quais tomavam parte todos os membros de uma
família nuclear. Tais atividades podem ser assim resumidas:
plantio de pequenas roças de subsistência; criação de pequenos
rebanhos de gado, cabras, galinhas e porcos; pequenas tarefas ou
empreitas oferecidas por fazendeiros locais; coleta de frutos, de
castanhas e a caça a pequenos animais como o jacu, a cutia, o tatu
e o camaleão.
Essas novas imagens da natureza e da sociedade se formam
em um contexto histórico marcado pela sinergia entre
abordagens estruturais e históricas, por uma tentativa de
superação de modelos explicativos monocausais (naturalistas
ou culturalistas) em favor de uma apreensão mais nuançada
das relações entre sociedade e natureza (Castro, 2000 Apud
Pádua, 2010, p. 93).
Por fi m, interessa-nos dizer que, do ponto de vista
metodológico, essas experiências de campo, envolvendo todas
essas comunidades afro descendentes, nos estados do Piauí e
do Maranhão, nos permitiu inferir que o foco na relação com a
natureza é um excelente caminho para acessarmos os sistemas
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Elias Nazareno e Alexandre Martins Araújo
culturais dessas populações e, por conseguinte, suas ancoragens
históricas e sociais. Pois, as diferentes formas de comunicação
que estabelecem com o meio ambiente são reveladoras não
apenas de estratégias práticas voltadas para a subsistência da
comunidade, também de processos de construção de sentidos
responsáveis pela sobrevivência da própria cultura.
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