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Philia: A Intermediação para a Kosmía

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Abstract

Phília, in Plato’s Gorgias, contains aspects that justify dissonant discursive modalities. Callicles uses the enunciation of friendship to Socrates as a way of imposing censorship and the judgment of a psychic diagnosis: Socrates would have perverted the nature of the soul in a childish form. Unlike Gorgias and Polos, who declared friendship with Socrates in the same way, Callicles uses the licentious speech and makes it seem like frankness for the violent admonition. The enunciated friendship configures the necessary conditions for the investigation into the nature of the soul: the epistēmē, eunoia and parrēsía. Both the nature of the discourse and the nature of friendship go back to the good or bad ordering of the soul. From allusions to ancient sages and to an ancient mythical tradition, Socrates extends the semantic field of Philosophy in order to elevate it to the status of the unifying cosmic principle in whose domain the order rules nature. This study postulates the notion of kosmía as a foreshadowing of the connection between psykhē and the causality established in the Phaedo. Keywords: philía, kosmía, psykhē.
Philía a intermediação para a Kosmía
Rubens Nunes Sobrinho, UFU
Resumo: A philía, no Górgias de Platão, comporta nuanças que justificam modalidades
discursivas dissonantes. Cálicles se vale da enunciação de amizade a Sócrates como
meio de impingir a censura e o juízo de um diagnóstico psíquico: Sócrates teria
pervertido a natureza da alma em uma forma infantil (485e). Diferentemente de Górgias
e Polos, que igualmente declaravam amizade a Sócrates, Cálicles emprega o discurso
licencioso com a aparência de franqueza para a admoestação violenta. A amizade
enunciada configura as condições necessárias para a investigação acerca da natureza da
alma: a epistēmē, a eúnoia e a parrēsía (486d). Tanto a natureza do discurso como a
natureza da amizade remontam à boa ou ordenação da alma. A partir de alusões a
antigos sábios e a uma antiga tradição mítica, Sócrates amplia o campo semântico da
philía de modo a alça-la ao estatuto de princípio cósmico unificador em cujo domínio a
ordem regra a natureza. Este estudo, postula a noção de kosmía como prenúncio da
conexão entre psykhē e causalidade estabelecida no Fédon.
Palavras chave: philía, kosmía, psykhē.
Abstract: Phília, in Plato’s Gorgias, contains aspects that justify dissonant discursive
modalities. Callicles uses the enunciation of friendship to Socrates as a way of imposing
censorship and the judgment of a psychic diagnosis: Socrates would have perverted the
nature of the soul in a childish form. Unlike Gorgias and Polos, who declared friendship
with Socrates in the same way, Callicles uses the licentious speech and makes it seem
like frankness for the violent admonition. The enunciated friendship configures the
necessary conditions for the investigation into the nature of the soul: the epistēmē,
eunoia and parrēsía. Both the nature of the discourse and the nature of friendship go
back to the good or bad ordering of the soul. From allusions to ancient sages and to an
ancient mythical tradition, Socrates extends the semantic field of Philosophy in order to
elevate it to the status of the unifying cosmic principle in whose domain the order rules
nature. This study postulates the notion of kosmía as a foreshadowing of the connection
between psykhē and the causality established in the Phaedo.
Keywords: philía, kosmía, psykhē.
Este trabalho enfoca a concepção de philía e sua conexão com a kosmía a partir
do contexto do Górgias 506d-509a. Estabelecendo referências cruzadas com esse passo,
procuro (1) propor a philía como princípio unificador necessário para a kosmía, tanto no
plano da Natureza como no âmbito da psykhé; (2) enfatizar a reconfiguração da noção
de philía promovida por Platão em relação à tradição e (3) postular a philía como
mediação para a kosmía da psykhē filosófica no contexto do Fédon.
1. Philía e ordenação no Górgias.
A philía, no Górgias, comporta nuanças que justificam modalidades discursivas
dissonantes. Cálicles se vale da enunciação da amizade a Sócrates como meio de
impingir a censura e justificar retoricamente o juízo de um diagnóstico psíquico.
Segundo Cálicles, Sócrates teria pervertido a boa natureza de sua alma de uma maneira
infantil (γενναίαν µειρακιώδει τινὶ διατρέπεις µορφώµατι 486a1), o que o tornava
incapaz de proferir um lógos reto, persuasivo e razoável (εἰκὸς ἂν καὶ πιθανὸν 486a2).
Alegando benevolência e amizade, Cálicles modela o discurso mediante a
mentalidade secularmente cristalizada segundo a qual o maior princípio de ação para
um homem bem reputado, eudókimon, não é o medo de um deus, mas a reverência à
opinião pública.
Tanto a atitude moral de Polos como a de Cálicles expressam a crença
compartilhada de que a boa reputação é um fim nobre a ser atingido e que a vergonha é
consequência do fracasso e da má reputação, ambas exploradas pela habilidade retórica.
Nada é mais insuportável para valores coletivos fortemente impregnados pela
“vergonha” do que a exposição ao desprezo e ao ridículo.
Gregory Nagy (p. 63, 2, 47) afirma que o substantivo philos significa “amigo”,
ao passo que o adjetivo philos significaria “near and dear”, “próximo e caro”. O adjetivo
expressa uma escala ascendente de afetos na seguinte sequência: velhos, sacerdotes, pai,
irmãs, mãe, companheiros e, finalmente, a esposa. “Os sofistas desvincularam a philía
da suggeneia, valorizando a relação convencional, a escolha útil, calculada e deliberada
em detrimento do parentesco natural” (DIXSAUT, 2001, p. 146). Daí o termo passou a
designar mais as relações sociais e jurídicas do que a afetividade.
Diferentemente de Górgias e Polos, que igualmente declaravam amizade a
Sócrates, Cálicles emprega o discurso licencioso, com a aparência de franqueza, para
lançar a admoestação violenta. A amizade e benevolência enunciadas por Cálicles
configuram as condições necessárias para a investigação acerca da natureza da alma: a
epistēmē, a eúnoia e a parrēsía (486d).
Para provar (basanieîn) suficientemente se uma alma vive retamente ou não são
necessárias três qualidades: o saber (epistéme), a benevolência (eunóia), e a franqueza
(parrhēsía). Tais condições são determinações da alma e se contrapõem,
discursivamente, à divisão excludente, postulada por Cálicles, entre phýsis e nómos.
Sócrates, evoca a alma como a instância na qual os efeitos do discurso se
manifestam. A psykhé é a origem e o fim do lógos. Este, por sua vez, é um meio pelo
qual os movimentos psíquicos interatuam e influenciam-se mutuamente, engendrando
inteligência ou ilusão, afetos múltiplos, sentidos diversos, ou a perplexidade. Se a alma
fosse de ouro (khrýsen), Cálicles seria o líthos, a pedra de toque abrasiva que prova a
preciosidade. Assim como a pedra de toque prova o ouro, à alma prova o dialégesthai.
O que torna possível um diálogo entre Sócrates e Cálicles, cujas prescrições e
orientações são mutuamente incompatíveis? O que suscita o dialégesthai que abarca
érga e lógoi excludentes, entre gêneros de vida que se opõem sob a máscara da philía?
Tanto as ações, como os discursos e a própria apreensão dos fatos não podem moldar
uma base epistêmica comum entre sujeitos inconciliáveis. Se tanto o diálogo como o
discurso epidítico exigem o acordo preliminar, esse acordo não pode se basear em
lugares, ou éndoxa, mas exige alguma comunhão afetiva. Sócrates e Cálicles podem
se falar com algum sentido porque são ambos amantes (Górgias 481d)1.
Como bem interpreta Dixsaut (2001, p. 128, 130), “se cada um só diz o que diz
porque deseja o que deseja, avalia como avalia, se todo discurso toma, a partir do
desejo, a sua fonte, cada enunciado se encontrará duplamente relativizado”. O conteúdo
de toda enunciação remete para a natureza afetiva de quem o profere e as hipóteses
ontológicas que norteiam o discurso dependem, em última instância, dos desejos. A
diferença entre os gêneros de desejos, como princípios, os gêneros de discurso e os
diferentes gêneros de vida implicam a complexidade e diversidade psíquica, a
plurivocidade semântica e as múltiplas escolhas que determinam o gênero de vida.
Para se determinar qual é o melhor gênero de vida, é preciso antes discriminar se
o melhor homem é aquele que livre vazão aos apetites e prazeres, ou se é o que
comanda a si mesmo, sendo comedido e dominando a si mesmo e aos apetites
(σώφρονα ὄντα καὶ ἐγκρατῆ αὐτὸν ἑαυτοῦ, τῶν ἡδονῶν καὶ ἐπιθυµιῶν ἄρχοντα τῶν ἐν
ἑαυτῷ, 491.e.1). No Górgias, a epistemologia é serva da psicologia.
Encarnando o caráter típico do aristocrata, Cálicles defende desavergonhada-
mente que a luxúria, a licenciosidade e a liberdade irrefreável fazem a virtude e a
1 λέγω δ' ἐννοήσας ὅτι ἐγώ τε καὶ σὺ νῦν τυγχάνοµεν ταὐτόν τι πεπονθότες, ἐρῶντε δύο ντε δυον
κάτερος.
felicidade (τρυφὴ καὶ ἀκολασία καὶ ἐλευθερία, ἐὰν ἐπικουρίαν ἔχῃ, τοῦτ' ἐστὶν ἀρετή τε
καὶ εὐδαιµονία, 492c).
Em contrapartida, Sócrates menciona uma cadeia de tradições que remontam aos
mistérios e ao pitagorismo para defender o postulado de que há, na alma, um lugar
originário dos apetites contraposto ao autodomínio e à temperança.
Existem prazeres úteis que concorrem para o bem e prazeres prejudiciais (500a).
O discernimento entre uns e outros pressupõe o conhecimento das causas do bem e do
mal. O agradável e o bem não são necessariamente concomitantes. É preciso fazer o
agradável tendo o bem como fim e não fazer o bem tendo o prazer como finalidade. Por
isso, os prazeres só são concomitantes ao bem se tornarem a alma melhor (506c-d).
O agradável e o bom são uma e a mesma coisa? Não, eles não são uma
mesma coisa. Cálicles e eu estamos de acordo com isso. É preciso
fazer o agradável por causa do bem ou o bem por causa do agradável?
O agradável por causa do bem. Mas o agradável é aquilo cuja presença
se torna prazer e o bem aquilo cuja presença nos torna bons. (...) Além
disso, não é verdade que nós, assim como tudo o que é bom, somos
bons porque uma certa excelência se encontra presente em nós? (...)
Além disso, a excelência de cada ser e que lhe torna o que é seja um
artefato, o corpo, a alma também, ou de todo animal não se encontra
presente nele sem propósito, mas resulta de uma regra, de uma retidão,
de uma técnica, adaptadas a cada um dos seres? O bem próprio
presente em cada um dos seres é um Kósmos que surge em cada um.2
Toda atividade prática e toda demiurgia implicam a visada da finalidade (503e),
cuja consecução requer que cada uma das partes do érgon sejam associadas e
harmonizadas umas com as outras até que o conjunto da obra componha um kósmos,
uma boa ordenação3. Por analogia, as potências da alma requerem um regramento e
kosmía, cujo nome é nómos e ajustamento à lei (504d).
A excelência própria de cada ser que o torna aquilo que é, seja um artefato, seja
o corpo, a alma ou qualquer ser vivo, reside nele por causa de uma regra, de ordem e
2 506.c.9-e.4 Ἆρα τὸ ἡδὺ κα τ γαθν τ ατό ἐστιν; {} Οὐ ταὐτόν, ὡς ἐγ καὶ Καλλικλῆς
µολογήσαµεν. {} Πότερον δὲ τὸ ἡδὺ ἕνεκα τοῦ ἀγαθοῦ πρακτέον, τὸ ἀγαθὸν ἕνεκα τοῦ ἡδέος; {–}
Τὸ ἡδὺ ἕνεκα τοῦ ἀγαθοῦ. {} Ἡδὺ δέ ἐστιν τοῦτο οὗ παραγενοµένου ἡδόµεθα, ἀγαθὸν δὲ οὗ παρόντος
ἀγαθοί ἐσµεν; Ἀλλὰ µὴν ἀγαθοί γέ ἐσµεν καὶ µεῖς καὶ τἆλλα πάντα ὅσ' ἀγαθά ἐστιν, ἀρετῆς τινος
παραγενοµένης; Ἀλλὰ µὲν δὴ γε ἀρετὴ ἑκάστου, καὶ σκεύους καὶ σώµατος καὶ ψυχῆς αὖ καὶ ζῴου
παντός, οὐ τῷ εἰκῇ κάλλιστα παραγίγνεται, ἀλλὰ τάξει καὶ ὀρθότητι καὶ τέχνῃ, ἥτις ἑκάστῳ ἀποδέδοται
αὐτῶν· ἆρα ἔστιν ταῦτα; …{} Τάξει ἆρα τεταγµένον καὶ κεκοσµηµένον ἐστὶν ἀρετὴ ἑκάστου;
Κόσµος τις ἄρα ἐγγενόµενος ἐν ἑκάστῳ ἑκάστου οἰκεῖος ἀγαθὸν παρέχει ἕκαστον τῶν ὄντων;
3 503.e.5 ὡς εἰς τάξιν τινὰ ἕκαστος ἕκαστον τίθησιν ἂν τιθῇ, καὶ προσαναγκάζει τὸ ἕτερον τῷ ἑτέρῳ
πρέπον τε εἶναι καὶ ἁρµόττειν, ἕως ἂν τὸ 504.a.1ἅπαν συστήσηται τεταγµένον τε καὶ κεκοσµηµένον
πρᾶγµα.
técnica. Por conseguinte, a excelência própria de cada ser consiste em regramento e
ajustamento compondo um kósmos, um todo bem ordenado (506d-e).
A alma bem ordenada é racional e suas potências são conjugadas segundo um
bom regramento em cujas partes há harmonia, ao passo que apetites desregrados e
ilimitados implicam a irracionalidade caótica e a infelicidade (507d-e). As diferenças na
natureza do amor implicam as diferenças na ordenação ou no desregramento entre as
almas. Enquanto o desejo próprio à inteligência é um princípio unificador que confere
kosmía à alma, a multiplicidade randômica dos apetites dispersa a alma na pluralidade
indeterminada dos seus objetos de desejo.
Por causa disso, se depreende que a verdadeira philía tem sede na alma
ordenada que conhece as causas do bem e do mal, na alma que sempre visa o bem e não
na alma apetitiva que se vale da aparência de amizade com o desejo não confesso de
censurar e punir. É terrível a vida empenhada na obtenção da repleção e saciedade de
um vazio interminável. A diferença entre apetite intermitente e Eros implica
significados opostos ao viver. Para Cálicles, homens que não necessitam de nada são
comparáveis a pedras e cadáveres em função da ausência de prazer. Para Sócrates, o
desejo unificador pela inteligência e boa ordenação cósmica, a inteligibilidade da philía
que cinge todos os seres numa totalidade regrada, configura a plenitude do bem viver.
Daí a pertinência da inversão poética de Eurípedes (492e): quem sabe se viver não é
morrer e morrer não é viver?
2. A reconfiguração platônica da philía no Górgias.
No esgrimir dos discursos, Sócrates passa em revista e coloca em questão todos
os valores, toda tradição e técnicas vigentes e empreende uma cosmologia unificada na
qual a filosofia aparece como o gênero de amor mais elevado e que enseja, ao mesmo
tempo, a melhor vida e o conhecimento da verdade dos seres.
Pois um homem que vivesse assim não poderia ser amado nem por
outro nem por deus; uma vez que ele não pode ter qualquer comunhão
e onde não há comunhão (κοινωνία), não pode haver amizade (φιλία).
E os homens sábios (οἱ σοφοί) nos dizem, Cálicles, que o céu, a terra,
os deuses e homens são mantidos juntos por comunhão e amizade,
pela ordenação, temperança e justiça (κοινωνίαν συνέχειν κα φιλίαν
κα κοσµιότητα κα σωφροσύνην κα δικαιότητα); e esta é a razão,
companheiro, deles chamarem o todo do mundo pelo nome de kósmos
(κόσµον) e não desordem (κοσµίαν) ou desregramento (κολασίαν).
Mas tu, sendo sábio (σοφός), me pareces não dar a inteligência
apropriada a isso e não observaste o grande poder da igualdade
geométrica ( σότης γεωµετρικ) tanto entre deuses como entre
homens e tu supões que a pleonexía (πλεονεξίαν) é o que é preciso
praticar, porque negligencias (µελεῖς) a geometria. Muito bem, ou
nós devemos refutar esta afirmação, que é pela posse da justiça e
moderação que os felizes são felizes e pelo vício que os infelizes são
infelizes; ou se isso for verdade, nós devemos investigar as
consequências4 (Gorgias, 507e2-508b2).
A igualdade geométrica de grande poder έγα δύναται) entre deuses e entre
homens é uma lei que regula, ao mesmo tempo, todas as esferas do Cosmo juntamente
com o plano ético-político. Há um princípio unificador que abarca todo o kósmos,
divino e humano, segundo uma ordenação matemática. Embora muitos intérpretes
correlacionem o passo a Empédocles, Jâmblico (16.69.5-74) consigna a concepção de
parentesco e amizade cósmica a Pitágoras e a vincula à purificação filosófica platônica:
Com relação à amizade de todas as coisas em relação à totalidade (φιλίας δὲ
πάντων πρὸς ἅπαντας), seja dos deuses em relação aos homens, através da
piedade e da terapia da ciência, seja dos dogmas direcionados a cada um, ou
da universalidade da alma em relação ao corpo e da parte racional em relação
à irracional pela filosofia e às teorias que lhe pertencem; ou seja a amizade
dos homens em relação aos outros, ou de cidadãos que observam leis sãs ou
de outras raças através da reta fisiologia; seja a do marido em relação à
mulher, ou dos irmãos e parentes, através de comunhões não pervertidas, ou
seja, em suma, a amizade de todas as coisas em relação a tudo e até mesmo a
certos animais irracionais através da justiça e uma conexão física e
associação; seja a pacificação e conciliação do corpo, o qual por si mesmo é
mortal, e de seus poderes contrários, através da saúde e uma dieta e
temperança em conformidade a isso, em imitação à plenitude dos elementos
cósmicos (σωφροσύνης κατὰ µίµησιν τῆς ἐν τοῖς κοσµικοῖς στοιχείοις
εὐετηρίας). Em todos estes, entretanto, Pitágoras é reconhecido como tendo
sido o inventor e legislador da compreensão sumária deles em um único e
mesmo nome, que é o da amizade.
Os biógrafos neo-platônicos, como Porfírio, associaram estas concepções entre o
parentesco do kósmos e a crença na transmigração e as reuniram sob a rubrica do nome
de Pitágoras, para quem a transmigração faz com que todos os seres animados sejam
aparentados e pertencentes a uma mesma família.
4 οὔτε γὰρ ἂν λλ νθρώπ προσφιλὴς ν εἴη τοιοτος οὔτε θε: κοινωνεῖν γὰρ δύνατος, ὅτῳ δὲ µ
νι κοινωνία, φιλία οὐκ ἂν εἴη. φασ δ᾽ οἱ σοφοί, Καλλίκλεις, κα οὐρανὸν κα γῆν κα θεοὺς κα
νθρώπους τὴν κοινωνίαν συνέχειν κα φιλίαν κα κοσµιότητα κα σωφροσύνην κα δικαιότητα, κα τ
λον τοτο δι τατα κόσµον καλοσιν, ταρε, οὐκ κοσµίαν οὐδὲ κολασίαν. σὺ δέ µοι δοκεῖς οὐ
προσέχειν τὸν νοῦν τούτοις, κα τατα σοφὸς ὤν, λλ λέληθέν σε τι σότης γεωµετρικ κα ἐν θεος
κα ἐν νθρώποις µέγα δύναται, σὺ δὲ πλεονεξίαν οἴει δεῖν σκεῖν: γεωµετρίας γὰρ µελεῖς. εἶεν:
ξελεγκτέος δὴ οὗτος λόγος µῖν στιν, ὡς οὐ δικαιοσύνης κα σωφροσύνης κτήσει εὐδαίµονες οἱ
εὐδαίµονες, κακίας δὲ οἱ θλιοι, εἰ οὗτος ληθής στιν, σκεπτέον τί τὰ συµβαίνοντα.
A crença na transmigração correlaciona a reminiscência com o princípio da
migração da alma e com a noção de parentesco de toda a vida, como partes da totalidade
do kósmos. No pano de fundo geral do pitagorismo, a doutrina da transmigração e o
parentesco cósmico implicam-se mutuamente. A conexão entre memória e
transmigração é compartilhada tanto pela escatologia órfica das lâminas de ouro
mortuárias, como pelo pitagorismo.
Temos a conexão explícita entre a doutrina da transmigração e
memória, esta última sendo a chave não somente para a esperança da
imortalidade, um fio retirado do labirinto de reencarnações, do
esquecimento, mas também daquilo que nós chamamos a priori
filosófico, a base do conhecimento. (...) A alma não é simplesmente
imortal, mas deve habitar o ciclo da necessidade como condição para
o seu retorno ao divino. A habitação dorculo da necessidade efetua
a existência e parentesco de toda a vida (LUTCHE, 2009, p. 18).
Se o parentesco de todo o Cosmo é explicitamente mencionado no Górgias, a
doutrina da transmigração também deve estar presente, ao menos implicitamente, já que
o pano de fundo destes princípios é o mesmo e devia ser familiar no âmbito da filosofia
do quarto século. A despeito da maioria dos scholars considerar espúrio o Fr. 14 DK
atribuído a Filolau, de Crótona (HUFFMAN, 1993, p. 402), o conteúdo certamente
condiz com a recepção e integração das escatologias baseadas na doutrina da
transmigração na filosofia platônica, notadamente, no contexto de Górgias 493a e
Crátilo 400a5.
Vale mencionar o texto de Filolau também. Os pitagóricos dizem o
seguinte: Os antigos teólogos e adivinhos também deram testemunho
da explicação de como em algumas penas a alma é subjugada ao corpo
e sepultada nele como em uma tumba6.
A doutrina da transmigração fundamenta a inversão do verso de Eurípedes:
enquanto vivos, estamos “sepultados” na tumba somática. A união psicossomática
indissociável forja um lugar na alma, que é sede dos apetites, e a sujeita a oscilar de um
lugar para outro. O vínculo máximo da alma com o corpo, ao mesmo tempo em que
desencadeia a instabilidade psíquica, reforça o aprisionamento somático através da
instrumentalidade dos prazeres derivados do mau uso da percepção. Esse lugar, sede dos
5 Para uma discussão que contende a favor da autenticidade do Fr. 14 atribuído a Filolau, ver Cornelli,
2013.
6 Clement, Stromata 3.17 (2.203 Stählin) ἄξιον δὲ καὶ τῆς Φιλολάου λέξεως µνηµονεῦσαι· λέγει
Πυθαγόρειος ὧδε· <‘µαρτυρέονται ... τέθαπται’>.
apetites, torna a alma passível de ser moldada pela eficácia da persuasão e da
encantação mítica (493a).
Incapaz de reter qualquer conteúdo, como uma peneira (πίθον), essa parte da
alma torna os homens não iniciados, irrefletidos (τοὺς δὲ ἀνοήτους µυήτους) e sem
potência para reter nada por causa da falta de e esquecimento (493.c, οὐ δυναµένην
στέγειν δι' ἀπιστίαν τε καὶ λήθην).
A insaciabilidade apetitiva prende a alma no ciclo interminável de repleção, cuja
imagem é a do trabalho infindo de encher de água um tonel furado com uma peneira. O
trabalho apetitivo sem fim é a própria imagem da prisão no ciclo de nascimentos e
mortes, o que reforça a tese de que a doutrina da transmigração está implícita no
Górgias. Além disso, a falta de e esquecimento dos irrefletidos impede a inteligência
da conexão do parentesco da alma com a totalidade cósmica.
Compondo o contexto filosófico do cenário dramático órfico-pitagórico,
Alcméon de Crótona defende a analogia entre os movimentos celestiais e o movimento
da alma humana, a qual procura reproduzir o movimento das estrelas no âmbito do
corpo. “Todas as coisas divinas também se movem contínua e eternamente, a lua, o sol e
as estrelas, e o céu como um todo”.
A analogia entre a regularidade celestial e a saúde indicam que a saúde do corpo
é percebida como um microcosmo afinado. A mesma harmonia musical que impõe
regras no Cosmo produz saúde no corpo. No Fr. B4 D.K. a saúde resulta de um balanço
em uma mistura simétrica de qualidades (τὴν δὲ ὑγείαν τὴν σύµµετρον τῶν ποιῶν
κρᾶσιν), enquanto as doenças resultam da “monarquia” de elementos corporais
οναρχίαν) formando polos opostos. O Cosmo é um todo em que cada elemento é
independente e todas as coisas devem encontrar seu lugar na harmonia universal.
Alcméon estende a concepção simétrica da saúde como mistura proporcional
para a esfera política através de uma analogia: a isonomia está para a monarkhía, assim
como a saúde está para a doença. No plano político, a isonomia aponta para um
equilíbrio dinâmico de forças e elementos que se alternam segundo uma crase
proporcional. A alternância hegemônica compõe uma unidade holística dinâmica e
equilibrada. Cálicles não tem a inteligência de que a força bruta não pode comandar e
que o governo resulta da força regrada pela proporção da igualdade geométrica
ordenadora do kósmos (PERILLIÉ, 2005, p. 189).
O mesmo princípio de ordenação proporcional deve regrar a alma e os afetos. A
moderação nos apetites e temperança são justificados a partir da tradição pitagórica.
Segundo Jâmblico, a moderação e equilíbrio de desejos constitui uma das principais
correntes da moralidade pitagórica. Os pitagóricos deviam se guardar dos prazeres tanto
quanto possível, pois nada causa mais a queda no erro do que as paixões. Nada devia ser
feito visando o prazer, pois este fim é desonroso e prejudicial. Tudo devia ter como fim
o bem e o honroso e secundariamente visar o útil e vantajoso. Jâmblico (TAYLOR,
1818, 16, p. 35) nota que, para os pitagóricos, a falta de comedimento (ἀκρασία) e
ganância (πλεονεξία) geram a natureza de todos os vícios7. A referência a exercícios em
busca da temperança e autodomínio como prática e gênero de vida associado à
cosmologia pitagórica é um tema recorrente nas fontes antigas.
No contexto do Górgias, a referência de Platão à pleonexía e à proporção
geométrica remetem, também, ao fragmento 3 de Archytas:
Pois é necessário tornar-se ciente, sendo insciente, ou aprendendo de
um outro ou descobrindo por si mesmo. Aprendendo a partir de outro
pertence a outro, enquanto descobrindo por si mesmo pertence a si
mesmo. Descoberta, enquanto não investigada, é difícil e infrequente,
mas enquanto investigada, fácil e frequente, mas se alguém não sabe
<como calcular> (logízdestai) é impossível investigar.
Uma vez que o cálculo foi descoberto, impede a discórdia e aumenta a
concórdia. Pois não procuram ganância desmedida (πλεονεξία) e
igualdade existe, uma vez que isto veio a ser. Pois por meio do cálculo
(proporção) veremos reconciliação em nossas transações com os
outros. Por causa disso, então, o pobre recebe do poderoso e o rico
para o necessitado, ambos crendo que haverá igualdade. Isto serve
como um cânon e um impedimento para a injustiça. Impede aqueles
que sabem como calcular antes que eles cometam injustiça,
persuadindo-os que eles não poderão ficar ocultos, sempre que eles
aparecem para ele (o cânon). Impede aqueles que não sabem como
calcular de cometer injustiça, tendo revelado a eles como injustos por
meio dele (do cálculo).8
7 τὸ γεννικν τν περ τ µαθήµατα κα πιτηδεύµατα πόνων ετο δεν πάρχειν κα τς τς µφύτου
πᾶσιν κρασίας τε κα πλεονεξίας βασάνους τε ποικιλωτάτας τε κολάσεις κα νακοπάς, πυρ κα
σιδήρ κατ' αὐτῆς συντελουµένας, διαθεσµοθετσαι τος χρωµένοις, ς οὔτε καρτερεν οτε ποµένειν
δύναταί τις κακς ν.
8 Fragment 3, Huffman:
Stobaeus IV. 1.139 (88.5-89.8 Wachsmuth-Hense)
ἐκ το ρχύτου Περ µαθετάτωον
Iamblichus, On General Mathematical Science II (44.10-17 Festa)
Διόπερ ρχύτας ἐν τῷ Περ µαθεµατικῶν λέγει· δε γὰρ µαθόντα παρλλω αὐτὸν ξευρόντα, ὧν
νεπιστάµωον σθα, πιστάµονα γενέσθαι. τὸ µὲν ὦν µαθὲν παρλλω κα λλότριον,
τὸ δξευρὲν διαὔταυτον κα διον· ξευρὲν δὲ µ ζατοντα πορον
κα σπάνιον, ζατοντα δὲ εὔπορον κα ῥᾴδιον, µ πιστάµενον δὲ 4
λογίζεσθαι ζητεῖν δύνατον. 5
στάσιν µὲν παυσεν, µόνοιαν δὲ αὔξησεν λογισµὸς εὑρεθείς. 6
πλεονεξία τε γρ οκ στιν τούτου γενοµένου κα σότας στιν· τούτῳ 7
A pleonexía, entendida no sentido da ganância que acarreta a distribuição injusta
de bens, é, segundo Arkhytas, a maior causa de conflitos e discórdia na cidade. O
cálculo propicia o cânon pelo qual a injustiça distributiva é evitada. O cálculo pressupõe
a habilidade de estabelecerproporções” que configura a ciência superior. Tributário da
longa tradição axiológica da “justa medida”9 por operar a transitividade da virtude
intelectual para a esfera ético-política e fornecer os critérios para a melhor ordenação da
vida. De acordo com Huffman, a possibilidade prática do uso do cálculo (λογισµός)
deriva, em última instância, da logística (λογιστικά), a ciência dos números. Não
obstante, o uso prático do cálculo pressupõe não uma expertise científica, mas uma
capacidade inata e compartilhada entre os seres racionais de um “senso de proporção”
ou de uma habilidade para entender proporções básicas (2005, p. 72, 73.).
A clareza das proporções teria o efeito de infundir a persuasão e impedir a
desmedida da pleonexía. A eficácia persuasiva dos números induz ao rico que os
bens excessivos ao pobre e convence a ambos de que haverá uma justa proporção nessa
divisão. Além disso, o senso racional de proporcionalidade determina a possibilidade de
ajuizar acerca do que é justo e injusto e fundamenta a legislação que previne o crime
mediante a justa retribuição penal, proporcional ao crime cometido. Por conseguinte, a
estabilidade racional da logística se transfere e sustenta a estabilidade política pelo
estabelecimento da concórdia (µόνοια).
Todavia, Platão reconfigura o vínculo estabelecido por Arkhytas entre a
organização política e a matemática e promove uma generalização rumo a uma visão
cósmica unificada, usando o termo “igualdade geométrica” como equivalente ao
regramento que cinge a Natureza à lei. Os apetites são matizados pela intensidade e
multiplicidade, mas não podem ser quantificados pelo cálculo. Por conseguinte, a philía,
como gênero de desejo, não pode expressar relações proporcionais quantificáveis.
A transposição da cosmologia pitagórica permite a hipótese de que as alusões
platônicas, em seu criticismo à pleonexía de Cálicles, servem como paradigma para a
composição dos mitos filosóficos. A partir de um acervo tradicional multifacetado,
γὰρ περ τν συναλλαγµάτων διαλλασσόµεθα. δι τοτον ον ο πέν- 8
ητες λαµβάνοντι παρ τν δυναµένων, ο τε πλούσιοι διδόντι τος 9
δεοµένοις, πιστεύοντες µφότεροι δι τοτω τ σον ξειν. κανν δ 10
κα κωλυτρ τν δικούντων < ἐὼν > τος µν πισταµένους λογίζεσθαι 11
πρν δικεν παυσε, πείρας τι ο δυνασονται λαθεῖν, ταν παὐτὸν 12
λθωντι· τος δ µ πισταµένους ν αὐτῶ δηλώσας δικοντας 13
κώλυσεν δικικσαι. 14
9 Para uma descrição detalhada do contexto filosófico da concepção de µέτρον, ver Perillié (2005).
Platão transpõe concepções filosóficas prévias e estoques de valores ético-políticos e os
recompõe em sequências imagéticas que estão em consonância com os argumentos
dialéticos desenvolvidos no diálogo.
A philía cósmica do Górgias é um impulso de união, uma força psíquica que
enlaça os seres numa comunhão única e prazerosa, segundo a finalidade do bem. Na
reconfiguração platônica da tradição pitagórica, a proporção geométrica é assimilada à
boa ordenação psíquica, na qual o desejo e o prazer são harmonizados pela temperança
e regrados pela phrónesis.
3. Amizade e amor ao saber no Fédon: a philía como condição para a kosmía.
No drama que marca a sua despedida filosófica, Sócrates é instado a defender-se
diante de um tribunal de amigos (Fédon 63b). A separação iminente dos amigos suscita
a definição de morte como separação entre alma e corpo, separação em que cada um
passa a ficar em si e por si. A vida, por inferência, é união, composição e
interdependência.
A filosofia é o exercício de emancipação do pensamento em relação às injunções
corporais; é o movimento desencadeado pelo amor ao saber (66e). Os que filosofam
retamente aspiram unir-se ao objeto de seu amor, tal como aqueles que procuram os
amados no Hades com a esperança de reencontrar os seus afetos (68a).
O movimento de separação e emancipação do pensamento em busca da
realidade em si mesma deriva da aspiração do amante pelo alvo do seu amor: a
sabedoria da qual ele é carente. Amante e carente, o filósofo deseja a separação imposta
pela morte somente porque aspira à união mais plena com o alvo amado.
O temor da morte é um signo suficiente de que quem o experimenta não é um
autêntico filósofo, um amante do saber, mas um amante do corpo (φιλοσώµατος), um
amante das riquezas (φιλοχρήµατος), ou um amante das honrarias (φιλότιµος), ou
ambas as coisas10. Os amantes do saber, em contrapartida, são exortados brandamente
pela filosofia e, uma vez libertos da ilusão dos sentidos, contemplam a realidade dos
seres, como através das barras de uma prisão (83a, ss).
10 Οὐκοῦν ἱκανόν σοι τεκµήριον, ἔφη, τοῦτο ἀνδρός, ὃν ἂν ἴδῃς ἀγανακτοῦντα µέλλοντα ἀποθανεῖσθαι,
ὅτι οὐκ ἄρ' ἦν φιλόσοφος ἀλλά τις φιλοσώµατος; αὐτὸς δέ που οὗτος τυγχάνει ὢν καὶ φιλοχρήµατος καὶ
φιλότιµος, ἤτοι τὰ ἕτερα τούτων µφότερα. don 68d-e.
A natureza da alma é determinada pela natureza dos desejos e se torna conatural
ao alvo do seu amor. A purificação do pensamento decorre na intensidade e natureza
dos desejos e a natureza psíquica expressa a consonância com o gênero de prazeres que
configuram a realidade percebida (84a-b).
A alma pura que pratica a reta filosofia (ὀρθῶς φιλοσοφοῦσα) e o exercício de
morte (µελέτε θανάτου) (80e) se assemelha (τὸ µοιον) ao divino, ao imortal e sábio (τό
θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιµον) (81a). A alma impura, sempre associada ao corpo
que ela cuidou e amou (ἀεὶ ξυνοῦσα καὶ τοῦτο θεραπεύουσα καὶ ἐρῶσα) (81b), se torna
uma imagem do corpo (τοῦ σωµατοειδοῦς) pelo intercurso (µιλία) e associação
(συνουσία) que a fazem conatural a ele (ἐνεποίησε ξύµφυτον) (81c).
A própria potência de apreender a realidade em si mesma, através do
conhecimento e da reminiscência, depende da natureza dos afetos. A reminiscência é
um conhecimento de outro gênero do conhecimento oriundo da percepção imediata.
Quando um dos amantes (οἱ ἐρασταί) avista uma lira, um manto, ou qualquer outro
objeto que o amado tem, o pensamento apreende a imagem do amado e não da lira.
A anámnesis é não somente a passagem da percepção para a concepção, mas é o
movimento de emancipação da diânoia causado pelo amor. Somente o amor elevado
libera a alma da tirania de prazeres e dores encadeados à percepção imediata (Fédon,
73d, ss). Somente o amor é força capaz de ultrapassar a percepção e concentrar a alma
em si mesma, no pensamento do inteligível e na apreensão das relações somente
pensáveis. Somente o amor tem a potência para fazer do viver um aprender a morrer e
estar morto, na separação e purificação dos raciocínios necessária para a apreensão da
verdade dos seres. Somente o amor torna possível a espistemologia. Em vez de começar
com a percepção, o conhecimento começa com a força impulsora do desejo.
A reminiscência de conhecimentos perdidos é, assim, a resultante de um
movimento afetivo. Símias e Cebes são amigos e a visão de um suscita a lembrança do
outro. Por outro lado, a percepção de imagens suscita a apreensão pelo pensamento do
paradigma qual do elas são imagens. Todos os fenômenos que assomam à percepção
carecem de realidade em relação àquilo que existe em si mesmo e é passível de ser
pensado. Tudo o que a percepção informa são diferenças e semelhanças. Somente a
concepção forja as relações pensáveis.
Assim como o amante apreende pelo pensamento a silhueta do amado, ao ver
uma lira que lhe pertence, assim também o amante do saber, movido pelo desejo do real
e pelo prazer oriundo da inteligência, parte da percepção da igualdade aparente para a
concepção da igualdade em si mesma.
Por que os afetos são condição para a reminiscência e para o conhecimento? Por
que todo desejo é princípio de ação e causa do agir. O que os distingue não é somente a
especificidade do objeto, mas a intensidade do impulso para a ação e os efeitos que
tornam a natureza da psykhé consonante e semelhante à natureza do alvo do desejo.
Desejos longamente cultivados modificam a natureza psíquica. O amor e a amizade são
as forças que enlaçam os amantes à realidade verdadeira e trazem kosmía para a alma.
No Hades, a alma dotada de kosmía e phrónesis segue docilmente o seu daimōn
no caminho de sua natureza própria ( µὲν οὖν κοσµία τε καὶ φρόνιµος ψυχὴ ἕπεταί τε
καὶ οὐκ ἀγνοεῖ τὰ παρόντα·) (108a). O amigo dotado de kosmía e phrónesis, sendo
amado, induz que as almas daqueles que o amam acabem por se assemelhar à sua
natureza.
Mas, no Fédon, chega o fim do amigo que, dentre todos os outros, foi o mais
excelente, o de maior phrónesis e o mais justo. (118a, τῶν τότε ὧν ἐπειράθηµεν ἀρίστου
καὶ ἄλλως φρονιµωτάτου καὶ δικαιοτάτου). Ao fim, este homem único e insubstituível
morre e deixa o vazio, a reminiscência e o encanto.
O que fazer para afastar o medo e consolar a criança que remanesce em todos e
em cada um? É preciso a cada dia cantar encantações para afastar o abandono, o vazio e
a carência. E nenhum encantador é melhor do que os próprios amigos que ficam (Fédon,
78a). Nenhuma prova de amizade é mais verdadeira do que a dos amigos se cuidarem e
se encantarem mutuamente, sempre com a reminiscência daquele que partiu para o
invisível, mas que deixou a exemplaridade do caminho para a descoberta das potências
da alma; alma que vê todas as coisas com o olhar daquela alma que contemplou a
kosmía.
Referências
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