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Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt,
- Lisboa Portugal — analise.social@ics.ul.pt
RECENSÃO
Estado de Crise,
de Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni,
por Patrícia André
Análise Social, (.º), (n.º ), pp. -
https://doi.org/./..
-
RECENSÕES
, Zygmunt, , Carlo
Estado de Crise,
Lisboa, Relógio d’Água Editores, , pp.
Patrícia André
Apesar de proliferarem as proclamações
do m da crise e os anúncios da retoma
económica e do crescimento, a verdade é
que para muitos a crise ainda paira por aí
e – como diz Bauman quanto à moderni-
dade – as notícias da sua morte parecem
ser manifestamente exageradas. De uma
ou de outra forma, ela ainda está presente
no discurso público e mediático e, acima
de tudo, nas ponderações e interações do
quotidiano de muitos cidadãos.
Por isso, apesar de já não ser uma
novidade editorial, retomar esta obra de
Bauman e Bordoni é ainda muito opor-
tuno e, na verdade, não menos interes-
sante (re)lê-la agora – à distância dos
dias quentes do pânico económico – para
nos ajudar a compreender qual é, anal,
a verdadeira natureza da crise e o lugar
que realmente ocupa nas estruturas que
alicerçam a sociedade contemporânea.
Desde logo, este lastro da crise nas
nossas vidas reforça a plausibilidade de
uma das principais teses do livro e que vai
logo enunciada no título Estado de Crise:
é que já não é a crise, é, antes, um estado
https://doi.org/./as..
RECENSÕES
de crise. Bordoni avisa-nos mesmo, de
forma radical, que “não há saída para a
crise, nunca” (p. ).
Mas já lá vamos. Antes, um breve
contexto: Estado de crise (editado origi-
nalmente em e na tradução portu-
guesa em ) é um dos vários livros a
duas vozes (Tabet, ), que marcaram
os últimos anos da produção bibliográ-
ca de Zygmunt Bauman – o sociólogo
polaco (falecido em ) que foi um dos
mais originais pensadores da contempo-
raneidade (Silva, ). Carlo Bordoni,
sociólogo, jornalista e escritor italiano
dedica-se, em especial, à sociologia dos
processos culturais e é um ativo comen-
tador dos eventos sociais, políticos e eco-
nómicos no espaço público. O encontro
dos dois autores em “Estado de Crise”
surge na sequência de um primeiro
ensaio de diálogo que Bordoni ()
incluiu no seu livro La società incisura.
Neste projeto de decifração da crise,
os dois sociólogos falam de muitas crises,
mas desengane-se quem espere encon-
trar um livro exclusivamente centrado
na crise económico-nanceira global
que se desenrolou especialmente a partir
de . No entanto, ainda que não tra-
tada explicitamente, é, inevitavelmente,
essa crise – a única que hoje dispensa
predicados para ser reconhecida à boa
maneira das implicaturas conversacio-
nais de Grice – que surge e ressurge de
modo latente, como contexto e pretexto,
ao longo deste ensaio. Bordoni assinala o
facto de ser anal “uma crise profunda de
transformação social e económica com
raízes no passado” e sublinha que para a
“compreender e aceitar temos de voltar
às suas causas” (p. ). E é precisamente
essa a tarefa que o livro abraça: descre-
ver e explicar a situação multifacetada de
crise em que nos encontramos e da qual
a crise económico-nanceira não será
mais do que uma expressão.
Com efeito, apesar de o próprio livro
se encontrar organizado em capítulos
que aludem especicadamente a diferen-
tes objetos de crise – crise do Estado, crise
da modernidade e crise da democracia –
e cada uma destas crises ser identicada
e caracterizada, não parece que os auto-
res lhes atribuam nem fronteiras rígi-
das, nem sequer estatutos equivalentes.
Ainda que esta arrumação analítica não
seja feita explicitamente, nas descrições
de Bauman e Bordoni a crise do Estado
e a crise da democracia são, claramente,
enquadradas na crise da modernidade, já
que a verdadeira metacrise (assim iden-
ticada por Bauman, p. ) que dene
oestado de crise se refere ao desmorona-
mento de uma das estruturas basilares
da era moderna, tal como foi identitaria-
mente construída. Assim, talvez o estado
de crise possa ser descrito com mais pre-
cisão, não como uma soma ou conjuga-
ção de crises, mas como uma estrutura
de variações da crise. Esta interpretação
é sugerida pela forma como os autores
falam das diversas crises e as relacionam
entre si, pois não é avançada nenhuma
conceptualização da crise que nos per-
mita discernir com rigor analítico de
que crise falamos sempre que se utiliza a
locução crise. No entanto, os retratos ins-
tantâneos que os autores nos oferecem,
com descrições vívidas das crises que
assolam a contemporaneidade social e
RECENSÕES
política e dos caminhos que levaram até
elas, permitem-nos ensaiar uma leitura
de articulação em que preferimos a gura
da estrutura em detrimento da mera
constelação. Explicando melhor, a ideia
de uma grande crise com várias faces
parece mais adequada às descrições dos
autores do que a ideia da mera concomi-
tância de crises – sem prejuízo daquelas
faces continuarem a ser designadas como
crises, pois apesar de serem elementos da
estrutura mantêm características identi-
tárias próprias que advêm dos sistemas
particulares a que pertencem (e.g. econo-
mia, política).
A forma como, na perspetiva de
Bauman e Bordoni, estas crises ou facetas
se relacionam entre si, também convida
a visualizá-las como estrutura de varia-
ções, pois parecem articular-se entre si
de forma concêntrica, nuns casos, hierár-
quica, noutros, mas sempre interdepen-
dentes e incorporadas na fonte de liação
da estrutura e que, como já referimos,
será a crise da modernidade.
De facto, os autores aludem a uma
espécie de crise geral, cuja caracteri-
zação vai sendo anada ao longo do
livro – “a crise enfrentada pelo mundo
ocidental” (p. ), sendo dado especial
destaque àquele que é entendido como
um dos principais elementos da crise do
Estado moderno: o divórcio entre poder
(enquanto capacidade para levar as coisas
a cabo) e política (enquanto habilidade
de decidir que coisas são necessárias e
devem ser feitas) (p. ).
A separação entre poder e política
é apresentada como razão essencial da
ausência de capacidade executiva por
parte do Estado para implementar solu-
ções e respostas aos problemas coloca-
dos pela crise, e esta incapacidade do
Estado traduz-se, por sua vez, numa das
mais distintivas características da crise,
não só do Estado, mas da crise em geral:
a chamada crise de agência do Estado
moderno, que assiste à transferência do
seu poder de ação para forças supraesta-
tais situadas no chamado “espaço de u-
xos”1 (pp. -).
Para Bauman e Bordoni, o processo
que terá levado a esta crise de agência terá
uma dupla raiz: por um lado, as opções
(predicadas de neoliberais) de desregu-
lamentação, privatização e terceirização
que foram, elas próprias, deslocando, ao
longo das últimas décadas, algumas fun-
ções do Estado e com elas o seu poder
de ação; por outro lado, o fenómeno da
globalização que concorreu para a irra-
diação do poder do Estado-nação.
Ambas as dinâmicas assinaladas terão
contribuído para a separação entre poder
e política e, assim, para a crise de agên-
cia do Estado, na medida em que foram
determinantes da diluição das fronteiras
que permitiu a fuga do poder para fora
dos seus limites, enquanto a “política
continuou territorialmente xada e res-
tringida” (p. ). Este desfasamento entre
as exigências das dinâmicas globais e as
formas de ação política meramente locais
acaba por ser traduzido, em toda a sua
1 Conceito adotado de Manuel Castells e
que se refere a um novo espaço politicamente
livre por contraposição ao clássico “espaço de
lugares” das regiões politicamente separadas
através das fronteiras dos Estados.
RECENSÕES
amplitude, na chamada crise do modelo
westfaliano, cuja “ruidosa insuciência”
tem amplicado a crise de agência do
Estado numa verdadeira crise de sobera-
nia territorial (p. ).
Para além do mais, a crise de agência
do Estado reconduz-se também – e na
medida em que a ação económica dos
Estados se encontra enfraquecida – a
uma crise do Estado Social, na sequência
da sua “incapacidade de prover serviços
sociais adequados” (p. ) e mesmo do
“desmantelamento dos nossos sistemas
sociais ou de previdência”, cando posta
em causa “a existência de um ador
social” (pp. -).
As instituições democráticas não
poderiam sair imunes deste cenário em
que se vai já desenhando o atual estado de
crise, pois a crise do Estado condiciona as
suas capacidades de agir como mediador
social, regulador da economia ou garante
da segurança (p. ), o que diminui for-
temente as condições da sua representa-
tividade democrática. Mas é também a
fuga do poder do Estado-nação para as
forças supranacionais que sustentam a
atual governança que constitui o âmago
da crise da democracia representativa,
na medida em que, livres da política, os
novos agentes estão também livres da
direção e controlo democráticos (p. ).
Além do mais, o divórcio entre os cida-
dãos e a política ameaça perigosamente
transmutar-se numa situação de antipo-
lítica favorável a populismos e naciona-
lismos, prelúdio de regimes tirânicos e
autoritários (p. ).
A centralidade da crise de agência do
Estado e o seu carácter pivotal no estado
de crise parece bastante evidente e, por
isso, não surpreende que Bauman arme
que “estamos a atravessar múltiplas cri-
ses, porém a mais crítica delas – com
efeito, uma ‘metacrise’ que torna todas
as demais quase insolúveis – é a crise de
agência, mais precisamente, da ‘agência
tal como a conhecemos’, a agência do
Estado” (p. ).
No entanto, esta armação deve ser
lida com cautela, já que anal o estado
de crise vem a denir-se, para o próprio
Bauman, por outra metacrise bem mais
radicular e que, como já foi mencionado
acima, interpela o âmago da moderni-
dade porque se refere à crença no pro-
gresso que constituiu uma das principais
promessas do programa da moderni-
dade. Nas palavras do pensador polaco:
“pode-se argumentar que o colapso da
conança no predeterminado (e por isso
mesmo garantido) ‘avanço na direcção
denida desejável’ (…) forma a base
de todas as demais crises que afectam a
nossa herança”(p. ).
A crise da modernidade adquire, deste
modo, uma ascendência existencial sobre
as demais expressões do estado de crise.
Com efeito, a ideia de progresso linear,
unidirecional, portador de desenvol-
vimento e aperfeiçoamento contínuo,
inerente à história e alicerce de uma
cosmovisão otimista, tal como pressa-
giado pelo manifesto da modernidade,
parece não ter sobrevivido às sucessivas
falências a que as construções moder-
nas têm sido sujeitas. Bauman recupera
as palavras de John Gray: “para os que
vivem dentro de um mito, ele parece um
facto autoevidente. O progresso humano
RECENSÕES
é um facto dessa ordem. (…) A espécie
humana, claro, não está a marchar para
lugar algum” (p. ). Desfeito o mito
do progresso, o medo toma o lugar da
esperança e é esta ameaça perpétua e o
desalento que acarreta que promove a
substituição do império do progresso
pela cultura do imediato em resposta ao
colapso das certezas (p. ).
Mas a fé no progresso não pode ser
desligada do fundacional conjunto de
aspirações modernas em relação às
quais pode, anal, ser entendida como
instrumental: o domínio absoluto do
homem sobre a natureza e a administra-
ção humana de todas as coisas humanas.
É a procura da ordem em vez do caos, o
desejo de debelar a contingência em troca
de previsibilidade e o desejo do controlo
pela razão em detrimento da submis-
são ao irracionalismo histórico. Estas
aspirações consubstanciam a promessa
moderna fundamental da segurança, mas
são também vitais para a realização do
outro valor supremo da modernidade, “a
liberdade humana de se criar e armar:
os seres humanos são livres de escolher o
seu modo preferido de estar no mundo.
Todas as formas estão à disponibilidade
de todos” (p. ) – relembra Bauman
parafraseando Pico della Mirandola.
Apesar de ambos concordarem que
o destino do apalavrado progresso
moderno foi o desencanto e a amargura,
Bauman e Bordoni exibem fundamen-
tais divergências sobre o fado das demais
aspirações modernas e, em especial,
sobre o atual estatuto da modernidade.
Com efeito, Bordoni entende que as
principais promessas da modernidade
fracassaram (“foram retiradas”) e que
a era moderna se encontra já bem dis-
tante (o italiano vislumbra-lhe o m “nas
revoltas de estudantes e trabalhadores, na
revolução cultural importada da China
de Mao e na primeira frustração de uma
sociedade rica de consumo”, p. ),
o mesmo se passando com o período
transitório que se lhe seguiu, a chamada
pós-modernidade, que terá emergido nos
anos espraiando-se por uns meros,
mas fulgurosos, anos. Deste modo,
para Bordoni, a crise da modernidade é
este longo adeus que vivemos desde o iní-
cio do seu desmoronamento (“desenca-
deado pelo contraste entre as condições
dos trabalhadores e da classe dominante,
a burguesia”, p. ), passando pelo desa-
bar das suas bases (abaladas pela desma-
terialização do trabalho e a globalização,
p. ) e atravessando as fronteiras da
pós-modernidade que “serviu para nos
transportar para um futuro ainda não
nomeado” (p. ).
“Como é que sabe que estamos a sair
da modernidade? Como poderia alguém
saber isso, uma vez que coisas assim
– começos e ns – não são conhe-
cíveis pelos contemporâneos, pelas
pessoas que as vivem?” (p. ) – ques-
tiona Bauman de forma cristalina para
enquadrar o seu entendimento quanto
ao estatuto atual da modernidade. De
facto, Bauman não só contesta a saída
da modernidade do ponto de vista das
condições epistémicas para a sua ar-
mação, como assevera que “em vez de
estarmos a dizer adeus à modernidade,
ainda esperamos colher os frutos das
suas promessas” (p. ). Pois, “a mais
RECENSÕES
grandiosa das grandes narrativas moder-
nas” – a sonhada administração humana
dos seres humanos e da natureza –
estará tão viva quanto antes (p. ).
Deste ponto de vista, terão sido as estra-
tégias para as alcançar, e não as pro-
messas da modernidade, a fracassar
(p. ). Poderíamos pensar que a dife-
rença seria apenas de ligrana analítica,
mas na verdade se tivermos em conta
a divergência quanto ao estatuto atual
da modernidade, torna-se evidente que
Bauman constrói a sua leitura a partir
de um “agora” que se altera, mas onde
Bordoni vê ruturas radicais, o sociólogo
polaco vê mudanças subtis e complexas
que – aqui sim – são mais percetíveis
através de uma ligrana analítica mais
cuidada. Parte desse aparato analítico,
apurado para melhor percecionar as
transformações da modernidade, é o
muito difundido conceito baumaniano
de modernidade líquida, a que o autor
recorreu para nomear as alterações da
identidade moderna. A conceptuali-
zação baumaniana exprime a sua dis-
cordância da elaboração pós-moderna,
pois, por um lado, (apesar de o próprio
ter chegado a utilizar relutantemente o
termo) “o advento daquilo a que equi-
vocadamente se chamou de ‘pós-moder-
nidade’ foi um evento interno dentro da
história da era moderna” (p. ), e por
outro, do ponto de vista do conteúdo,
concentrava-se apenas naquilo que desa-
parecia de cena sem curar de explorar o
que entrava de novo. Por isso, Bauman
“senti[u] necessidade de cunhar e utilizar
um termo com o objectivo de expressar o
que são essas novas realidades (…). Daí
veio a escolha da metáfora da ‘liquidez’ ”
(p. ). É, assim, na modernidade
líquida, onde pontica a exibilidade e a
provisoriedade, que se desenrola a crise
da modernidade (sólida).
Bauman e Bordoni podem discordar
quanto à conceptualização do presente
estado das coisas modernas, mas – ao
completar o esboço do estado de crise –
ambos partilham da mesma visão no que
respeita a um dos elementos centrais da
crise das relações interpessoais que tam-
bém constitui uma das múltiplas faces da
endémica situação de crise: a síndrome
consumista – um formidável obstáculo
nas palavras de Bauman (p. ) e a
apoteose da modernidade para Bordoni
(p. ). Ao mesmo tempo que a socie-
dade de massa moderna atravessa um
processo de desmassicação que acarreta
um despertar da autonomia e individua-
lidade de cada um, assistimos também à
quebra de vínculos sociais tradicionais,
ao alarme da solidão e à multiplicação
de relações sem compromissos baseadas
apenas na graticação que delas se extrai
(conceito de “relações puras” cunhado
por Giddens, p. ). É a transposição
para as relações humanas do modelo
das relações consumidor-produto e dos
ciclos de desejo, coisas e graticação que
se tornam num fator de adiaforização ou
anestesia moral. De forma singular, com
uma qualidade quase ccional, quase
literária, capaz de apreender a intimidade
do comportamento individual e os não-
-ditos das dinâmicas coletivas, Bauman
traduz a crise em crise das pessoas, dos
sujeitos, dos indivíduos uns com os
outros. E é por isso que adverte que não
RECENSÕES
podemos olhar apenas para as facetas
mais mediáticas do estado de crise: “não
são só a política e a sobrevivência da
comunidade que se encontram ameaça-
das. A nossa intimidade interpessoal, e
a satisfação e a realização que obtemos
dela, também estão em perigo quando
confrontadas com a pressão combinada
de uma visão consumista do mundo e
do ideal das ‘relações puras’” (p. ). Na
verdade, o perigo da dissipação para den-
tro do mito.
, C. (), La società insicura.
Convivere con la paura nel mondo liquido,
Roma, Aliberti.
, F. C. da (), Obituary “Remem-
bering Zygmunt Bauman (-).
Análise Social, , (.º), pp. -.
, S. (), “Bibliographie exhaus-
tive anglophone et francophone de
Zygmunt Bauman”. Socio, . Disponí-
vel em http://journals.openedition.org/
socio/ [consultado em --].
, P. (), Recensão “Estado de Crise, Lis-
boa, Relógio d’Água Editores, ”. Análise Social,
, (.º), pp. -.
Patrícia André » patricia.andre@cedis.fd.unl.pt »
’, - e – Centro de Inves-
tigação e Desenvolvimento sobre Direito e Socie-
dade, Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa » Campus de Campolide — -
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