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A formação estética na criação artística do livro-imagem
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PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 36, n. 1, p. 94-115, jan./mar. 2018
Abstract
Keywords:
Creative process.
Visual narrative.
Aesthetic
education.
Wordless
picturebook.
Childhood.
Aesthetic education in the artistic creative processes of the wordless
picturebook
This paper intends to discuss artistic and creative processes considering books
designed specifically for children. The data and considerations in this text were
part of my doctoral research in visual arts at Universidade Estadual de Campinas,
Brazil,which analyzed the processes of artists creating visual narratives and the
reading of these visual images by preschool children. Several interviews with
Brazilian and French artists were conducted in which they narrate their intentions,
objectives and ideas at the moment of creation, considering the child. And to
support it, I have used two different but interrelated frames of reference i.e., the
writings of E. H. Gombrich and Fayga Ostrower. It is essential to understand the
creative process in order to comprehend the finished work, as a result of
questionings, choices and changes throughout the course. In this sense, through
the images it becomes visible the intention to offer young readers images that
instigate the thought, feed the imagination and educate the eye to other visual
languages.
Resumen
Palabras clave:
Literatura
Infantil.
Educación
Estética.
Creación
Artística.
La educación estética en la creación artística del libro-imagen sin palavras
Este artigo intenta discutir los procesos de creación artística analisando libros que
son pensados para un tipo específico de público: los niños y niñas. Los datos y las
reflexiones presentes en este texto son parte de nuestra investigación de doctorado
en Artes Visuales en la Universidade Estadual de Campinas-Brasil, cuyo objetivo
fue compreender el proceso de creación de narrativas visuales de artistas y la
lectura de imágenes realizadas por niños preescolares. Tuvimos como referencial
teórico en el campo de las Artes Visuales las contribuciones de Ernest Gombrich y
Fayga Ostrower. Realizamos entrevistas con artistas brasileños y franceses que
hablaron de sus intencionalidades, objetivos y concepciones en el momento de la
creación, teniendo como objetivo los niños. Entender el proceso de creación del
libro con imágenes sin palabras, en este caso, es parte fundamental para
compreender la obra finalizada, bajo la óptica del producto final como resultado
de problematizaciones, de elecciones y cambios realizados al largo de todo el
trayecto. En este sentido, es visible, a través de las imágenes, la intención de
ofrecer a los jóvenes lectores imágenes que provocan el pensamiento, alimentan el
imaginário y educan la mirada para otros posibles lenguajes visuales.
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Introdução
Este artigo busca aproximar o universo da arte e as especificidades da criação artística
considerando um tipo específico de público: as crianças. Muitos artistas se engajam na
produção de obras que podem ser fruídas também por crianças, assim como diversas são as
maneiras que os artistas se aproximam da produção da criança de modo a nutrir seu próprio
trabalho. Desse modo, nosso foco está nas produções editoriais feitas por artistas plásticos que
são enquadradas como Literatura para crianças. Esses artistas trabalham com diversos
suportes plásticos e dedicam-se, também, à criação de imagens que são inseridas em livros,
ora como ilustração ora como narrativa visual.
Os dados e as reflexões contidas neste texto fazem parte de nossa pesquisa de
doutoramento em Artes Visuais, que buscou compreender, por um lado, o processo de criação
de narrativas visuais de dois artistas, que realizam trabalhos em diálogo com crianças pré-
escolares; de outro lado, buscou-se verificar os modos que as crianças faziam a leitura dessas
imagens e se os significados por elas levantados correspondiam com a expectativa dos
artistas.
Relatos de artistas brasileiros e franceses coletados ao longo da pesquisa também nos
aproximam das especificidades da criação artística, demonstrando as intencionalidades, os
objetivos e as concepções dos artistas no momento da criação, tendo em vista a criança.
Assim, alguns questionamentos são feitos: o que move o artista a produzir narrativas visuais?
Por que contar essa história e não outra? Por que contar desse modo e não de outro? Por que
contar com essa técnica e não outra? Por que uma história tem texto escrito e outras não?
Dessa forma, debruçaremos nos dizeres sobre os processos de criação, mais especificamente
das criações de narrativas visuais para crianças, buscando enfatizar o processo como parte
fundamental para compreender a obra finalizada, sob a ótica do produto final como resultado
de problematizações, de escolhas e alterações feitas ao longo de todo o trajeto.
Criação [também] para criança
Como parte fundamental deste estudo sobre as narrativas visuais, sempre
consideramos a criança como nosso leitor ideal ou idealizado: aquele sempre disposto para a
leitura, que demonstra interesse, que trata com seriedade a história, que tem muita
curiosidade, apesar da ingenuidade e do repertório mais restrito. Tratamos, desse modo, de um
tipo de leitor específico, detentor de conhecimentos distintos dos adultos, com critérios
estéticos distantes daqueles do mercado de arte ou que legitimam obras e artistas. Essa
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para que as crianças os compreendam. Muitos autores de texto/imagem acomodam os
conteúdos expressivos dentro de um espectro de temas aptos à infância ou tratam temas mais
densos/tensos de maneira metafórica e atingem excelente qualidade estética em obras
A criação artística, em geral, não predetermina o público, não se escolhe criar pelo
gênero ou faixa etária. Assim, com a criação das narrativas gráficas acontece a mesma coisa.
Existem diversos tipos de produções no mercado editorial, algumas, no entanto, são rotuladas
s, o
mercado editorial e não os artistas. A artista francesa Sara esclarece o início de sua produção
de livros de imagem, expondo essa situação:
Foi encontrando os editores que eu tomei consciência que os livros de
tá bom: sejam pequenos ou grandes, eu não coloco distinção ou hierarquia
entre os seres. É ao ser sensível que eu me dirijo [...]1.
Parmegianni (1989) considera Rodolphe Töpffer como o primeiro autor a se
questionar sobre a legibilidade das imagens destinadas às crianças leitoras. Além de produzir
narrativas gráficas, Töpffer era pedagogo, tinha contato com crianças e jovens e, apesar de ser
consciente do poder das imagens para a condução narrativa, sabia dos desafios na estruturação
da composição que tornassem cognoscível a leitura:
Há dois modos de escrever histórias, uma com capítulo, linhas, palavras: é a
literatura propriamente dita; ou, de modo alternativo, com sucessões de
cenas representadas graficamente: é literatura em estampas. [...] Esta, da qual
a crítica não se ocupa e os eruditos têm pouco interesse, mas que exerce uma
grande atração, [...] mais particularmente nas crianças e no povo, quer dizer,
as duas categorias de público que são os mais fáceis de corromper e que será
mais desejável educar. (TÖPFFER apud PARMEGIANNI, 1989, p. 23,
tradução nossa).
Essa é uma questão premente também entre os criadores de livros de imagem no
Brasil. Renato Moriconi, artista brasileiro, demonstra que sua postura se equipara à de Sara,
quando diz:
Eu sei que eu estou dialogando com criança, mas não só pra ela. Eu não
estou fazendo também a coisa só pra mim, porque se eu fizesse só pra mim
eu não ia publicar. Preciso imprimir três mil livros se é só pra mim? Eu sei
que eu tô dialogando com alguém e eu tenho que pensar: isso tá
funcionando da maneira que eu quis? Eu penso mais nesse sentido, se tá
compreensível. Agora, faixa etária eu não penso2.
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André Neves, artista brasileiro, diz que situa sua produção de livros no universo da
infância, considerando que o leitor esteja vivendo esse período ou rememorando-o:
Eu crio uma imagem e esse visual é para qualquer olhar. Gosto quando a
arte possibilita uma leitura universal pra qualquer leitor. Eu produzo um
livro pra qualquer leitor. Mas a estrutura do que eu faço é na vivência da
infância e não da criança. Na infância de qualquer leitor3.
A receptividade do livro de imagem pelas crianças é algo muito apreciado pelos
artistas, que encontram leitores dispostos a ler o livro independentemente de critérios
externos. A particularidade presente na leitura do livro de imagem é que as crianças buscam
erigir sua leitura tendo como ferramenta a curiosidade, o descompromisso e o divertimento, a
despeito de seus repertórios.
Apesar de a arte ser uma área ampla e controversa, para as crianças, no entanto,
despreocupadas com as categorizações e nomenclaturas do universo adulto, arte é algo para
ser vivenciado. Assistir uma peça, ler uma história ou produzir plasticamente equiparam-se no
envolvimento afetivo que a experiência artística proporciona. A criança não dimensiona o
repertório que se amplia, o saber que se cultiva ou a possível repercussão de um artista ou
obra no circuito das artes, ela vive a experiência de corpo inteiro. Anna Marie Holm (2004,
que ocorre durante a experiência estética é mais amplo. A compreensão se dá por meio dos
sentidos, ampliando a consciência. O interessante é que não temos que chegar a nada
maneira que desejarem e critérios rígidos impedem que ela própria conduza sua construção de
sentidos.
Criação artística e sentido da arte
Permanentemente está colocada a questão do sentido da arte para a sociedade. O
sentido ou as funções da arte variam no que tange ao tempo e às sociedades abordadas; os
motivos de se fazer arte são tão mutáveis quanto à própria arte. Nesse sentido, Fayga
Ostrower (1987, p. 22) discute a importância e o sentido de se produzir arte para a sociedade
atual:
Em nossa sociedade, a posição diante do fenômeno artístico é, no mínimo,
ambivalente, quando não bastasse contraditória. Por um lado, reconhece-se a
obra de arte, produto do fazer artístico, como algo valioso em termos
financeiros; por outro, o fazer artístico em si é considerado inútil, mera
diversão ou lazer, terapia talvez, mas nunca trabalho, no sentido de uma
produtividade responsável e engajada e, menos ainda, no sentido da
realização de uma necessidade social. (OSTROWER, 1987, p. 22).
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A propósito da banalização do trabalho em arte, do descompromisso do trabalho do
artista, que ainda é visto por muitos como um bon vivant, Elzbieta (2014, p. 187, tradução
nossa), artista franco-polonesa, enfatiza o oposto, o rigor do labor e a abertura poética
palavra para falar de um domínio geralmente considerado o contrário, como o modelo da
O fazer artístico assim como o produto da arte oscila entre uma necessidade
intrínseca ao ser humano, como um modo de expressão (ou contestação) da sociedade, ou
como uma atividade dispensável. Do mesmo modo, o artista, diversas vezes, é entendido
como um sujeito isento de regras e rigores sociais, como alguém que executa uma atividade
prazerosa e o faz por ser detentor de uma dádiva. Gombrich (apud ARNHEIM, 2007, p. 247)
versa sobre esses diferentes pontos de vista e afirma:
[...] não podemos mais estar certos de que a arte pode ser necessária à
existência humana. Na verdade, a arte existiu em todas as civilizações que
conhecemos. Um decreto oficial só conseguiria suprimi-la temporariamente.
Mas talvez a arte seja meramente agradável, e não realmente indispensável.
Fica evidente que a arte e a atividade artística, dispensáveis ou não, estão presentes
hoje e sempre estiveram na história da humanidade com maior ou menor legitimidade, em
diferentes momentos. Nessa discussão nos interessam, particularmente, os processos de
criação e os motivos pelos quais os artistas fazem arte.
O fazer artístico acontece a partir de um impulso criador muitas vezes marcado pela
necessidade de execução. Na produção artística convergem as intenções poéticas, as escolhas
e o domínio da técnica, que representa o veículo para o conteúdo expressivo, cingida na
intencionalidade da expressão do artista. No entanto, o fazer em arte excede o controle técnico
dos materiais. A propósito disso, Ostrower (1999), diz:
Cabe entender bem o seguinte: após 10 anos de trabalho, qualquer artista
seria capaz de produzir muita coisa que depende da mera habilidade técnica.
interessa e sim algo que se lhe apresente
como essencial e necessário, e até mesmo inevitável, algo que ele possa
identificar-se e pelo qual possa assumir inteira responsabilidade. Algo que
queira e precise dizer. (OSTROWER, 1999, p. 9).
Do mesmo modo que enfatizamos que o controle do método e das técnicas artísticas
são necessários para o fazer artístico, estes não o restringem. Não obstante, os conteúdos
expressivos podem ser forjados por aqueles que não foram iniciados formalmente nas artes
plásticas. Elzbieta coloca-se como alguém que necessitou expressar-se plasticamente, embora
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desenhar. Então, eu não recebi um diploma e por isso eu fico até hoje na postura de
4.
A atividade plástica advém de diferentes intenções e possibilita sensações distintas
criar, enquanto muitos diplomados não são impelidos a fazê-lo. Na atuação com crianças,
observamos que a oferta de materiais instiga a exploração e evidencia a potência da qualidade
plástica emergente no seu fazer artístico. Fayga Ostrower (1997), no entanto, esclarece-nos a
diferença do fazer artístico entre a criança e o adulto. O cerne da criação é o mesmo, mas o
que difere são os motivos pelos quais ela é executada. A criação como fenômeno expressivo
acarreta intencionalidades distintas:
a de
contato com o mundo, em que a criança muda principalmente a si mesma.
Ainda que ela afete o ambiente, ela não o faz intencionalmente; pois tudo o
que a criança faz, o faz em função de necessidade de seu próprio
crescimento, da busca de ela se realizar. O adulto criativo altera o mundo
que o cerca, o mundo físico e psíquico; em suas atividades produtivas ele
acrescenta sempre algo em termos de informação, e sobretudo em termos de
formação. (OSTROWER, 1997, p. 130).
Podemos considerar um aspecto em comum entre a produção criativa do adulto e a da
criança quando o autor enfatiza a necessidade de executar determinada ação e a busca de
realização pessoal. Essa necessidade de produzir artisticamente ocorre quando o fazer
expressivo se torna imprescindível, inadiável. Aproximando-nos da nossa temática, tomamos
Angela Lago como exemplo. A artista revela, acerca da criação de seu premiado livro Cena
de Rua, o motivo que a levou a produzir uma obra abordando o cotidiano de um menino
vendedor de rua com o descaso, abandono e percalços concernentes à vida urbana:
O sentimento de orfandade. Então eu tive o sentimento de orfandade
aguçado pelo menino de rua. Eu perdi meu pai mais madura, [...] mas na
hora que você fica órfã, você é órfã com 50, 70 anos. [...] Talvez ele tenha
sido necessário pra mim, engraçado que eu acho que os livros são
necessários pro autor. Que não é pro leitor, é pros autores mesmo [...]5.
O diálogo interior pode estar entrelaçado aos procedimentos de trabalho do artista. Na
tomada de decisões, tanto conceituais quanto metodológicas, os artistas lidam a todo o
momento com questões subjetivas. Sua produção pode remeter-se a questões externas, mas
estas serão sempre observadas a partir de seu ponto de vista. Odilon Moraes classifica sua
maneira de proceder metodologicamente como um encapsulamento que só pode ser aberto,
desvelado, quando a produção estiver consistente e no momento propício (escolhido por ele)
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É uma maneira de criar. Tem pessoas que criam a partir do outro
e do olhar do outro, e tem pessoa que cria a partir da falta de comunicação. A minha criação
é completamente oposta da criação coletiva. Então o ato de criar é o ato de conversar
comigo mesmo6.
diz muito sobre a criação
artística. As ações são permeadas de decisões que, assim como as inquietações, muitas vezes
meus livros, eu sempre estive em profunda solidão. Sozinha com as escolhas, sozinha com a
interferem na execução e na escolha do fim. Desse modo, ter um interlocutor interpretando
uma obra em processo pode ser angustiante dada a (possível) fragilidade do trabalho em
andamento. Apesar de o artista idealizar a obra, pensar sua metodologia, prever desafios, a
artista é capaz de imaginar certos atos, imaginar suas consequências, propor certos
As etapas e decisões a serem tomadas ocorrem, na maioria das vezes, em
sobreposição, no momento em que as questões conceituais e formais ainda se encontram
intrincadas. Ainda com Ostrower (1999, p. 201) entendemos que:
As dúvidas e hesitações surgem espontaneamente. O artista não precisa
deter-se para analisá-las, encontrar palavras ou teorias para elas, assim como
não precisa racionalizar, explicar ou justificar as decisões a que chega. Basta
ele sentir que algo não está inteiramente certo e ir em busca de uma saída.
Mas o importante a saber é que a própria capacidade de duvidar, de avaliar e
concluir novamente será incorporada nas formas expressivas como uma
conquista. [...] Tais tensões não precisam ser necessariamente dramáticas,
mas elas dão vitalidade à obra. (OSTROWER, 1999, p. 201).
Do ponto de vista da criação, a linguagem visual é extremamente desafiadora, pois
está atrelada a outro modo de expressão: a linguagem não-verbal. Esse modo de comunicação
(OSTROWER, 1999, p. 23).
A narrativa visual do livro de imagem, grosso modo, é um conjunto de imagens
interligadas em sequência. Podemos nos aproximar do pensamento de Arnheim (2007, p. 368)
tece
enquanto a execução está em progresso não é simplesmente a adição de novas contas ao
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Cada imagem narra, assim como cada imagem subsequente acrescenta informações para a
define como um objeto produzido pela mão do homem, em um determinado dispositivo e
sempre para transmitir a seu espectador, sob forma simbolizada, um discurso sobre o mundo
Percebemos, no entanto, que muitos livros-imagem não têm discursos narrativos
categóricos e/ou herméticos. Existem elementos que o artista coloca explicitamente, mas
muitos outros são apenas sugestivos, permitindo que o leitor exercite sua leitura para
compreender. Nesse ponto, torna-se evidente que muitos indícios poéticos são inseridos na
sucessão de páginas, mas, sobretudo, entre uma e outra.
Diferentes são os motivos que levam os artistas a criarem as narrativas visuais, sendo
que eles também ilustram obras com textos próprios ou de outros autores. A narrativa pela
imagem é colocada como um modo singular de mobilizar o artista durante o processo de
criação de uma história, exigindo dele mais do que uma grande habilidade plástica. O artista
francês, Serge Bloch, coloca outro lado da criação de narrativas visuais como um trabalho que
pode não interessar a todos aqueles capazes de executá- Eu fiz quadrinhos sem texto. É
interessante, mas é muito mais complicado. É muito mais difícil quando não tem texto para
passar as ideias nas histórias7.
Em determinados livros ou editoras, os artistas são induzidos a inserir textos escritos
nas narrativas visuais, seja pelo motivo da narrativa não estar compreensível visualmente ou
pela necessidade de venda para determinado público. Sara expõe essa situação, quando revela:
algumas vezes, eu acrescento texto – sob demanda do editor na maior parte dos casos, pois
é muito mais difícil para ele vender livros sem texto
Angela Lago (2013), em situação inversa, retirou as palavras do livro Cântico dos
Cânticos. Ao longo de dois anos, a autora trabalhou na reestruturação de trechos do texto
bíblico em busca de um novo poema, mas ao fim decidiu transformá-lo num livro de imagem
pela insatisfação gerada na relação palavra- O fracasso com o texto, com toda
sinceridade. No Cântico dos Cânticos [...] eu tentei o texto. São todas umas tentativas muito
doidas. Mas todas me frustraram, depois de anos eu resolvi tapar o texto com flor e remeter o
leitor ao texto bíblico8.
Anne Brouillard (apud VAN DER LINDEN, 2011), artista belga, por motivos distintos
de Angela Lago, retirou o texto do livro L’Orage (Éd. Grandir, 1998), transformando-o em
livro de imagem. Ela explica o processo de (re)construção da obra:
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De início, eu tinha um texto para esse livro [...]. Não uma versão definitiva,
só fragmentos. Mas eu tinha a sensação de que as imagens poderiam acabar
ofuscadas. Na nossa cultura, o texto tem primazia sobre a imagem. Quando
texto e imagem estão associados, a imagem é vista em seu conjunto, mas não
como uma narrativa de fato. E meu desejo era colocar tudo nas imagens, que
elas pudessem ser lidas enquanto tal [...]. Assim, fui levando as imagens
pouco a pouco. (BROUILLARD apud VAN DER LINDEN, 2011, p. 81).
Os exemplos dessas artistas nos remetem às reflexões de Mello (2008, p. 44) acerca do
estado de profunda concentração, quando a consciência está extraordinariamente bem
ordenada. Os pensamentos, as intenções, os sentimentos e todos os sentidos enfocam a mesma
Ater-se à ideia de que qualquer bom artista visual seria capaz de criar livros de
imagem é desconsiderar outros conhecimentos inerentes à produção visual em sequência. São
necessárias habilidades que confluam na composição e nas lacunas poéticas de cada imagem,
nos significados sugeridos em cada virada de página, na cadência narrativa e no desenrolar da
história. Além, é claro, do uso da cor, dos planos, dos enquadramentos, das referências visuais
e históricas presentes, também, nos livros que possuem texto escrito. Em relação a essa
9, já que todas as informações têm de estar contidas (ou sugeridas) nas imagens.
Ao mesmo tempo, a estruturação da narrativa visual não precisa ser um amontoado de
ações minuciosamente descritas. A harmonia se dá na proporção, variável de acordo com a
descrição psicológica dos personagens, com o trecho narrativo, as rupturas temporais etc.
Laurent Cardon narra o período de adaptação e aprendizado que passou quando começou a
produzir livros de imagem:
Antes de saber disso eu comecei a fazer 40 páginas... sabe, uma obsessão
pelo fato de fazer animação a decompor demais, isso acontecia muito nas
minhas histórias, aí eles (editores) comentaram: “acho que tem muitas
imagens, tem que limpar um pouco”. Aí eu me toquei! É verdade, acho que
não precisa contar tudo. Então isso foi uma coisa que ficou uma
preocupação muito grande para mim. Tentar deixar o mínimo de imagens
nas minhas histórias, para poder chegar num número limitado de páginas e
uma preocupação também: Será que precisa? Então isso é obsessão agora.
Fico sempre pensando nisso10.
A dinamicidade do livro de imagem não condiz apenas com ter texto ou não. A
composição é outra num livro em que a imagem tem que narrar. A ausência do texto é uma
escolha do artista e não uma debilidade, de modo que, se retirarmos o texto de um livro
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ilustrado, não o transformamos em livro de imagem. Suzy Lee (2012, p. 100) estabelece as
diferenças na criação de narrativas visuais:
A postura diante de diferentes suportes não pode ser a mesma. Cortar ou
redimensionar figuras e comprimi-las em páginas não cria necessariamente
um livro-imagem. Livros-imagem não consistem apenas na criação de estilo
com algumas grandes figuras. Os mais cativantes são aqueles nos quais
sentimos que o artista lidou com a materialidade do objeto, sem esquecer sua
escala.
O editor Christian Demilly (2008, p.21, tradução nossa) reconhece, em parte, a
forma particular de criação que interessa especialmente aos ilustradores que têm uma alma de
Tem gente que prefere fazer
sem palavras. Talvez eles tenham medo das palavras11. As crianças, quando questionadas
sobre essa peculiaridade, também elaboram suas suposições que, em geral, alternam entre a
gem como meio de
expressão, pois grande parte dos autores de livros de imagem são autores de outros livros nos
quais o texto escrito está presente. André Neves, discorrendo sobre a diferença na escolha da
presença/ausência de texto, como autor (do texto, das imagens, do projeto gráfico) de diversos
O que me faz criar um livro de imagem e tentar tirar dele as palavras é pelo
simples fato de eu ser um artista visual. A minha palavra vem da imagem e nunca foi ao
contrário12.
Torna-se evidente que a ausência do texto escrito solicita que o autor busque novos
modos de narrar para que a imagem não seja extremamente esmiuçada ou monótona. Do
mesmo modo, demanda atributos de síntese visual ao longo da narrativa da apresentação dos
personagens ao ápice da história.
Nos dizeres dos artistas encontramos, também, diferentes motivos para terem
adentrado nesse campo narrativo. Para a maioria dos autores de livro de imagem, a linguagem
visual já era um meio de expressão. Laurent Cardon expôs como a narrativa visual, de certo
modo, sempre esteve presente em seu trabalho:
Obviamente, pra mim, o livro de imagem é uma extensão do storyboard. Não
é por acaso. Trabalhei a vida inteira com animação, então trabalhei muito
com storyboard. [...] Então, você conta em imagens como começa o plano,
como acaba o plano. Você só coloca o texto a partir do momento que você
precisa do texto. Você tenta resolver tudo com imagem. É realmente uma
ginástica, um trabalho. [...] É isso que me deu vontade de trabalhar com
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livro de imagem. É mais uma provocação que eu faço pra mim mesmo, até
que ponto precisa de texto pra contar essa história? Então eu vou puxando
os limites pra ver como que eu faço. É mais uma brincadeira13.
A adequação em relação ao tema e abordagem pretendida, além do desafio imposto,
impera na presença/ausência do texto escrito. Angela Lago, ainda sobre Cena de Rua, disse:
À travers la ville, a fim de demonstrar
Os dizeres desses artistas, autores (também) de narrativas visuais, colocam em questão
as particularidades do métier, no que diz respeito à capacidade de criar uma imagem de
ilustração ou uma imagem narrativa autônoma, colocando em conflito os termos ilustrador e
autor. Renato Moriconi distingue esses termos, salientando a autoria em outros pontos além
do texto escrito:
[...] acho até pra reforçar que somos autores, eu gosto muito mais de usar
“artista do livro”, que o artista visual. Não da imagem somente, mas é o
criador, o pensador daquele livro que a gente lê. [...] O criador de imagem
cria um outro universo, cria um ambiente pra que aquele texto se
desenvolva. Tanto pela imagem, e hoje eu trabalho assim, que não apenas a
imagem, a pintura, eles criam arquitetura pra que aquele texto se
desenvolva. Ou seja, pensam o projeto gráfico, pensam onde a mancha
tipográfica vai ficar, onde ela vai dialogar com aquela imagem, se vão ficar
em lugares separados, se vão interagir, tudo isso faz parte do trabalho do
artista do livro14.
proposto por Moriconi é aquele que concebe o livro como um
objeto de nuances presentes nos vários aspectos da obra, no projeto gráfico, na textura do
papel e da impressão, no tipo de encadernação e também na composição narrativa.
Assim sendo, essa visão global do objeto instiga os artistas que trabalham com o livro,
uma vez que todos os pormenores são intencionais: o tipo de papel, a gramatura, o formato, a
paginação, o tipo de impressão e as imagens. Estas, incumbidas de sustentar e guiar a
narrativa, são o chamariz para o aprofundamento na leitura. Roger Mello (2012, p.208)
sintetiza a intencionalidade poética e as manobras técnicas necessárias para ser capaz de
. É uma
busca da narrativa e é um exercício plástico. É sempre um exercício plástico-
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O trabalho criativo do artista concerne, desse modo, a uma complexa trama de
elementos visuais que devem extrapolar o nível descritivo das imagens, fazendo emergir
narrativa(s). Por ser a narrativa visual um campo de experimentação que tem como
característica intrínseca a inquietação diante do objeto finalizado, os artistas buscam transpor
os experimentos anteriores, reinventando formatos, composições etc.
A mudança visível na produção de livros contemporâneos é fruto do trabalho
experimental dos artistas que se dedicam a transcender o objeto e a linguagem gráfica. Muitos
entre
duas ou mais linguagens, desafiando qualquer rotulagem. Roger Mello15 considera o papel de
alguns editores do mercado editorial brasileiro como facilitadores no desenvolvimento dos
ão considerados como
intencionado pelo mercado de livros dirigidos para crianças. Muitos deles contêm aberturas
poéticas, metáforas visuais e possibilitam muitas leituras para pessoas de todas as idades.
da literatura restrita a um público seleto de estudiosos.
Para atingir a autonomia na narrativa visual, o artista tem que traçar caminhos distintos
da narrativa escrita. É preciso condensar imageticamente as informações relativas ao contexto,
aos personagens, conflitos etc. Tudo é referido pela imagem. O espaçamento entre as ações e
a passagem do tempo são igualmente construídos na sucessão das páginas. Assim, torna-se
evidente que a criação passa pela tentativa e erro, rupturas e desvios. Escolhas marcam a todo
tempo a criação artística. A propósito do processo de pesquisa inerente ao ato criador, Fayga
Ostrower (1999, p. 20) diz:
Certas intenções do artista, vagas que sejam inicialmente, convergem numa
artista no decorrer da elaboração formal da imagem. Quer dizer: o próprio
processo de trabalho se converte em processo criador, de buscas e de
descobertas sempre mais abrangentes.
Laurent Cardon é um artista/cineasta que arquiva diversas etapas de seus trabalhos, e
esses materiais documentam os processos de construção dos livros e as decisões tomadas.
Demonstram, também, como o cineasta foi adaptando seu olhar para a criação de narrativas
visuais que seriam inseridas em livros. Apesar de o movimento criador ser o mesmo, ele teve
que apreender e transpor sua habilidade narrativa (já presente em seus trabalhos com cinema)
para outro suporte, o livro.
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O artista mostrou-nos diversos documentos digitais desvelando os processos de seus
livros e de como se alteraram. Outros, no entanto, têm a arte final bem próxima do esboço,
com a linguagem gráfica marcada pelo desenho espontâneo, como, por exemplo, a obra
Aranha por um fio (Ed. Biruta, 2011). As diferentes versões permitem ver as várias camadas,
as etapas, os avanços e os recuos. Esses materiais revelam o processo de pensamento do
artista para a construção do livro.
Sendo assim, pode-se dizer que esses documentos, independentemente de sua
materialidade, contêm sempre a ideia de registro. Há, por parte do artista, uma necessidade de
reter alguns elementos, que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa
concretização.
Olhar para o processo criativo como um espaço de aprendizagens e descobertas,
reconhecendo o valor próprio do fluxo criativo, conhecer suas etapas, identificar mudanças,
determinar tendências, demonstra-nos que o processo de criação artística não é um mistério
sublime, mas fruto de trabalho árduo.
A técnica e o suporte como aliado poético
Na criação de imagens narrativas, diversos pontos são fundantes na estruturação do
discurso imagético. Por meio dos elementos da composição, como ponto, linha, cor etc., os
artistas sistematizam as imagens numa sequência intencional, de modo que a história
desponte. Assim, através de uma linguagem não verbal pautada na narração visual, torna-se
possível a identificação de estruturas narrativas, como personagens, tempo, espaço, clímax e
desfecho.
O desenvolvimento desse modo particular de narração se ancora na técnica e no livro
como substrato da imagem. Desse modo, o domínio técnico da linguagem visual é o primeiro
degrau para criar narrativas visuais. No entanto, como já dissemos anteriormente, o exercício
das imagens em sequência transpassa o domínio da técnica. Ostrower (1999, p. 18) ajuda-nos
a discernir o papel da técnica no fazer artístico, quando afirma que:
Jamais a arte será mera questão de habilidade ou se limitará a meros
problemas técnicos. A técnica representa um instrumento de trabalho, que o
artista precisa conhecer evidentemente e dominar com plena soberania
(aqui entenda-se bem: cada artista há de encontrar suas técnicas [...]. Mas,
absorvidas inteiramente pelas formas expressivas.
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O reconhecimento do material e da técnica utilizado em determinada obra constituem
a identificação e a contextualização do artista e da obra, mas não devem ser, no entanto,
Ostrower (1999), está estritamente ligado à desenvoltura que o material e a técnica permitem
ao artista, assim como com a pertinência ao tema em questão. Pressupomos, assim, que o
artista conheça uma gama de técnicas artísticas e que possa transitar entre elas em favor da
obra.
Sendo assim, encontramos no cenário brasileiro diversos autores de livros de imagem
que alternam as técnicas em seus diferentes livros, citando, por exemplo, Angela Lago,
Renato Moriconi, Graça Lima etc. Segundo Dondis (1997, p. 25), a técnica representa para o
artista a possibilidade de concretude de seu fazer artístico, já que:
[...] as técnicas são os agentes no processo de comunicação visual; é através
de sua energia que o caráter de uma solução visual adquire forma. As opções
são vastas, e são muitos os formatos e os meios; [...] por mais avassalador
que seja o número de opções abertas a quem pretenda solucionar um
problema visual, são as técnicas que apresentarão sempre uma maior eficácia
enquanto elementos de conexão entre a intenção e o resultado.
Laurent Cardon (2013) narrou como a produção de seu primeiro livro de imagem,
Calma, Camaleão, contribuiu para que ele criasse o grafismo presente em suas narrativas:
Mais ou menos com esse livro que eu desenvolvi esse grafismo, que é
totalmente digital, que parece meio gravura de madeira. [...] Então sempre
tem esse processo, eu faço sem realmente me preocupar com a finalização
ou o tipo de desenho. Nem sabia que ia ter um desenho tão humorístico, ia
fazer uma coisa mais sombria até, queria fazer uma coisa mais pesada, nem
sabia se ia usar cores, apesar de ter colocado no rough16.
O discurso de Cardon revela como o ato criador desencadeou, durante o processo de
criação, a descoberta de muitos aspectos novos, principalmente para o próprio autor. As
etapas parecem desviar do controle, moldando-se durante as (inconscientes) tomadas de
decisão.
A privação de materiais pode, em grande medida, representar a ruptura do fluxo
criativo. No entanto, pode contribuir para a inquietação artística e culminar naquilo que
Ostrower (1999) denomina acaso. Situações essas que emergem e redimensionam o fazer
criativo. Sara (1991, p.11 , tradução nossa), que tem a técnica do papier dechiré (papel
rasgado) como marca de seu trabalho,
no momento que eu não tinha como comprar muito material como aquarela, pintura. Eu tinha
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Nessa condição pontual, a artista encontrou uma técnica de grande valor expressivo.
Fayga Ostrower (1999, p. 1), ainda sobre o acaso na criação, coloca-nos:
Pensando bem, até parecem uma espécie de catalizadores potencializando a
criatividade, questionando o sentido de nosso fazer e imediatamente
redimensionando-o. Talvez contenham mensagens, propostas nossas
endereçadas a nós mesmos. Não captaríamos, nesses estranhos acasos, ecos
do nosso próprio ser sensível?
A técnica desenvolvida por Sara17 a partir da ausência de material representou o
disparador de uma poética capaz de, na maioria dos casos, narrar histórias densas, tendo como
uma gramática que eu utilizo à serviço da expressão das emoções, dos instantes, das
O conhecimento da estrutura do livro e a inserção da narrativa visual demandam do
artista o que Moriconi chamou de arquitetura, sendo o artista do livro aquele que o concebe
como um objeto de três dimensões, no qual todos os pormenores têm valor e convergem na
poética artística. Ostrower (1999, p. 33) considera que:
Nas obras de arte, os conteúdos expressivos resultam de constantes inter-
relações entre partes e totalidade. Cada componente, ao participar de uma
composição, dela receberá um determinado significado. Este significado não
existia independentemente, como um dado fixo ou pré-estabelecido [...].
Tudo surge e se define em interações recíprocas.
Esse complexo ato criador reclama ao autor conhecimentos que perpassam diversos
fazeres artísticos reunidos por Suzy Lee (2012, p. 103):
A fim de fazer um livro, o criador tem que ser o ilustrador, o escritor, o
editor, o designer, o impressor, o encadernador e sua própria casa editorial
ao mesmo tempo. Não quero dizer que o criador tenha de fazer tudo isso
sozinho, mas tem que estar envolvido de maneira consciente no processo
integral, embora na prática possa participar de algumas partes. Quando se faz
um livro, é necessária a cooperação e a inspiração das muitas pessoas
envolvidas. O criador deve desenvolver a compreensão do todo, pela
vivência do processo com uma ideia geral em mente.
A propósito dessas questões que englobam a produção de livros, Sophie Van der
Linden (2012, p. 33) enfatiza que:
[...] muitos criadores, porém, adquiriram sólido conhecimento sobre as
limitações impostas pelas reproduções. Alguns exigem acompanhar de perto,
ou até de controlar todos os procedimentos, e trabalham com a ideia do livro
como fim. [...] O trabalho é então efetuado em função do resultado esperado
após a reprodução, o que permite a Claude Ponti, por exemplo, dizer que, a
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A compreensão do objeto e a apropriação dessa materialidade na sustentação poética
são notáveis no trabalho de Angela Lago, na construção dos livros de imagem e nos livros
ilustrados. A tridimensionalidade do livro é o ponto inicial da concepção de da autora no que
concerne ao livro e ao ato leitor. Para ela, no movimento de leitura, o livro nunca está a 180°,
sempre tem um ângulo mais fechado que modifica a compreensão (e a relação) que temos
com a composição imagética.
O autor da imagem tem que considerar essa concavidade para ampliar as
possibilidades de leitura e fruição. Angela Lago (1994) utiliza com desenvoltura o que para
outros artistas é um empecilho: a dobra ou, em termos técnicos, a espinha do livro. Seu livro
Cena de Rua (LAGO, 1994) demonstra as apropriações que citamos, tanto no que tange à
encadernação: o ângulo de leitura corrobora com o ponto de fuga da imagem e encurrala o
menino no beco escuro, adensando a narrativa. Ao mesmo tempo, as articulações coincidem
com a dobra da página e geram movimento nos personagens, ou contribuem para marcar o
interior e o exterior de um carro. As quatro margens de uma página dupla não satisfazem essa
perspectiva de livro. A autora defende que o meio da página tem de ser levado em
consideração como possibilidade estrutural e poética e, com isso, ressalta a existência de oito
margens18, que modifica a concepção de livro.
Outros livros de imagem de Angela Lago (2013) exploram o objeto na construção
narrativa, como Cântico dos cânticos, considerado como livro de arte dado sua qualidade
estética. A autora leva as possibilidades de sentido da dobra ainda mais longe em O
personagem encalhado (LAGO, 2002), no qual o mote da história é um personagem que fica
preso na dobra do livro.
A materialidade do objeto como parte constituinte da narrativa é explorada por muitos
artistas, mas Suzy Lee despontou nos últimos anos como uma das autoras de literatura para
crianças que mais vinculou a materialidade à narração, transformando num jogo as
descobertas de leitura. Em seus livros de imagem que compõem a trilogia da margem19, a
autora aproveita o formato do livro e a dobra do meio como espaços de construção poética:
lvi atacá-
(LEE, 2012, p. 102). O livro deixa de ser apenas substrato e passa a ser conteúdo. A dobra da
página na trilogia representa, cada qual a seu modo, a divisória entre duas instâncias, entre o
real e o imaginário. Essas separações não são estanques, de modo que são transgredidas ao
longo da narrativa. São incorporadas imageticamente à narrativa.
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Sophie Van der Linden (2011, p. 33) aborda a dobra da página como uma
tarde. É a hora do instan
O espaço vazio também uma é característica importante no trabalho de Suzy Lee
branco da página é essencial para adicionar sentido ao contexto, uma página sem palavras ou
o não desenho tem função narrativa de
alongar o tempo-espaço, ampliando as possibilidades de leitura tanto com crianças como com
adultos.
O uso consciente da cor representa um ponto importante na criação para crianças.
Convivemos com a ideia de que tudo o que é destinado para as crianças (das paredes da escola
aos brinquedos) tem que ter cores vivas e vibrantes. Conforme enfatizamos anteriormente, o
cuidado com as produções para crianças deve ser redobrado, cujos produtos devem enriquecer
o repertório das crianças sem subestimar sua inteligência e capacidade de compreensão e
muito menos direcionar suas escolhas. A respeito dos elementos básicos da comunicação
vis
Arnheim (2004) defende que a principal contribuição da Gestalt foi compreender que a
visão ocorre como um processo de campo, de modo que o todo determina a função de cada
todos os componentes dependem um do outro, de modo que, por exemplo, a cor que
perc
2007, p. 14).
Serge Bloch, em sua entrevista, critica o uso desenfreado de cores que poluem e
confundem a leitura. Em suas imagens, o traço leve e negro compartilha a página com poucas
e precisas cores. Sua preferência pelo traço está ligada à herança que recebeu de artistas que
tinham o desenho como marca de trabalho, tais como Paul Klee, Steinberg, Sempé etc. Muitos
autores de imagem para crianças utilizam, sobretudo, as cores na construção de sua poética,
com paletas de cores bastantes características, como é o caso de Marilda Castanha, que pode
ser facilmente reconhecida pelos matizes terrosos presentes em suas lindas imagens. Suzy Lee
tentáculo importante na criação da história. Seu uso
Biazetto (2008, p. 77) também defende que:
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A cor é o elemento visual com maior grau de sensualidade e emoção no
processo visual. Nenhum outro atrai com tanta intensidade quanto a cor. É
possível elaborar um grande número de relacionamentos entre a cor e os
outros elementos, alcançando significados bastante diversos. Podemos
alcançar uma ampla variedade de significados por meio de combinações
entre cores.
O artista, que a partir de um processo criativo desafiador cria um universo visual
coeso, exige também do leitor um olhar disposto a experimentar novos modos de ler. As
crianças indicaram que a intenção dos autores é fazê-
-imagem é ser capaz de conduzir, com delicadeza,
crianças participantes da pesquisa aqui indicada se referiram, também, à necessidade de
observar com cuidado e de ter tempo para refletir. Renato Moriconi exemplifica os perfis de
preciso ser didático demais e explicar tudo na imagem. Eu posso ter uma narrativa
acontecendo e ter esses hyperlinks, essas histórias. Eu posso ter esses links, mas também ter
20.
O processo de criação de livros de narrativas visuais não se esgota, desse modo, na
finalização do livro. Na voz dos autores/artistas percebemos que eles reivindicam o olhar
ativo do leitor, na busca e construção dos significados. Na virada de páginas, muitas conexões
são feitas e revistas. Suzy Lee (2012) ressalta a importância desse momento na construção de
significados:
Os dedos do leitor fazem parte do livro. A ideia de tempo difere a cada
página que vemos. O leitor pode ajustar o tempo ao virar as páginas. A
situação muda passo a passo à medida que o leitor vira uma página,
conforme a capa do toureiro se agita e volta. O significado ocorre entre as
páginas e é dado pelo ato de virá-las. (LEE, 2012, p.120).
Esse jogo da leitura, como exercício de linguagem, constitui-se nos diferentes modos
de narrar, não se fixando apenas no enredo. Além disso, a dimensão sensível calcada pelo
artista no processo de criação é evocada pelo olhar no processo de leitura. Sara (2008,
tradução nossa) descreve o perfil de leitor que almeja para suas obras:
O leitor dos meus livros pode relacionar-se com sua parte sensível; uma
imagem lhe fala e ele toma a palavra para dizer o que ele vê e forçosamente,
ele fala dele mesmo nesse momento. Ele assume esse risco de falar dele
próprio. Eu sou contra a posição do telespectador que é prisioneiro de uma
emoção que não o pertence, mas que é induzida pelo texto associado à
imagem. O primeiro ato de militância é recusar as manipulações dando a
palavra ao espectador ou ao leitor. (SARA, 2008, tradução nossa).
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É a percepção de um trabalho vinculado a um tipo de artista aberto ao diálogo com o
leitor, que se coloca, como artista, num outro lugar e que exige que o leitor também se
desloque. A imagem, nesse caso, não é adorno, é conteúdo expressivo.
Pudemos perceber ao longo dos discursos dos artistas/autores dos livros que, além de
demonstrarem engajamento naquilo que exercem, revelam o cuidado na elaboração das
imagens que são direcionadas principalmente para jovens leitores. As obras desses artistas
demonstram grande qualidade estética e são produzidas com comprometimento equivalente
ao trabalho em artes plásticas em outros suportes. É possível observar nas falas dos artistas
outra questão muito pertinente acerca do respeito em relação ao leitor-criança. Nesse sentido,
torna-se visível através das imagens a intenção de oferecer aos leitores imagens que instigam
o pensamento, alimentam o imaginário e educam o olhar para outras linguagens visuais.
Desse modo, as narrativas visuais colocam-se como objetos artísticos que contribuem para a
formação estética e poética de seus leitores; aproxima os leitores do universo das formas e
seus conteúdos expressivos. Assim, esses artistas transitam por diversas técnicas e linguagens
artísticas, em diferentes suportes e formatos, convidando os leitores, a cada obra, a tomar
contato com o universo do livro e suas inúmeras possibilidades.
____________
Notas
Anotações de diário de campo a partir da palestra proferida no 30ème Salon du Livre et de la Presse
Jeunesse Seine-Saint-Denis, em 2014, em Montreuil, França.
2 Entrevista realizada pela autora com Renato Moriconi na cidade de Paris, França, em maio de 2014.
3 Entrevista realizada pela autora com André Neves, na cidade de Porto Alegre, RS, em novembro de
2008.
4 Anotações de diário de campo a partir da palestra proferida por Elzbieta no 30ème Salon du Livre et
de la Presse Jeunesse Seine-Saint-Denis, em 2014, em Montreuil, França.
5 Entrevista realizada pela autora com Angela Lago, na cidade de Belo Horizonte, MG, em dezembro
de 2008.
6 Entrevista realizada pela autora com Odilon Moraes, na cidade de São Paulo, SP, em dezembro de
2013.
7 Entrevista realizada pela autora com Serge Bloch na cidade de Paris-França, em dezembro de 2014.
Tradução nossa.
8 Vide nota nº 5.
9 Anotações de diário de campo a partir de uma fala de Eva Furnari durante a Bologna Children's Book
Fair, na Itália, em março de 2014.
10 Entrevista realizada pela autora com Laurent Cardon na cidade de São Paulo, SP, em fevereiro de
2013.
11 Vide nota nº 7. Tradução nossa.
12 Vide nota nº 3.
13 Vide nota nº 10.
14 Vide nota nº 2.
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15 Anotações de diário de campo a partir de uma fala de Roger Mello durante a Bologna Children's
Book Fair, na Itália, em março de 2014.
16 Ver nota nº 10.
17 Disponível em: <http://universdesara.org/article.php3?id_article=37>. Acesso em: dez. 2015.
18 Anotações em diário de campo durante palestra na Feira do livro de Bolonha, em 2014.
19 Onda (2009), Espelho (2010) e Sombra (2011), todos lançados no Brasil pela Editora Cosac Naify.
20 Vide nota nº 2.
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