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SOBRE A IMPORTÂNCIA DE ENSINAR
EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS
SUSANA TERMIGNONI
MARIA JOSÉ BOCORNY FINATTO*
RESUMO: Este artigo está inserido no âmbito de duas vertentes da Fraseologia
Contrastiva: a Fraseografi a Bilíngue e a Fraseodidática, tendo como foco uma
subcategoria das unidades fraseológicas – as expressões idiomáticas. Neste
artigo, não abordaremos a Fraseografi a, mas a importância mundial crescente da
Fraseodidática, apresentando as razões pelas quais acreditamos fi rmemente que as
unidades fraseológicas devam fazer parte do programa de aprendizagem de uma
língua estrangeira. Para isso, foi desenhado um protótipo de dicionário on-line
semibilíngue para a compreensão de expressões idiomáticas italiano-português,
voltado para aprendizes brasileiros de língua italiana de nível intermediário-
avançado.
PALAVRAS-CHAVE: expressão idiomática; italiano-português; fraseodidática;
ensino.
RIASSUNTO: Questo articolo si inserisce nell’ambito di due fi loni della
Fraseologia Contrastiva: la Fraseografi a Bilingue e la Fraseodidattica, ed
è incentrato su una sottocategoria delle unità fraseologiche – le espressioni
idiomatiche. In questo articolo non tratteremo di Fraseografi a, ma della crescente
importanza internazionale della Fraseodidattica, presentando le ragioni per cui
crediamo fortemente che le unità fraseologiche debbano far parte del programma
di apprendimento di una lingua straniera. A questo scopo, è stato progettato un
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (Brasil) – stermignoni@
yahoo.com.br / mariafi natto@gmail.com
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-8281.v0i35p112-124
modello di dizionario on-line semibilingue di espressioni idiomatiche italiano-
portoghese brasiliano, rivolto alla comprensione e destinato a apprendenti
brasiliani di lingua italiana di livello intermedio-avanzato.
PAROLE-CHIAVE: espressione idiomatica; italiano-portoghese; fraseodidattica;
insegnamento.
ABSTRACT: This article falls under two strands of contrastive phraseology:
bilingual phraseography and phraseodidactics, focusing on a subset of
phraseological units: idiomatic expressions. In this article, we will not
discuss Phraseography, but rather the increasing international importance
of Phraseodidactics, presenting also the reasons why we strongly believe that
phraseological units should be part of a foreign language learning program. In
order to do this, we designed a prototype of a semi-bilingual Italian-Brazilian
Portuguese online dictionary of idiomatic expressions for intermediate-advanced
Brazilian learners of Italian, in order to help in comprehension.
KEYWORDS: idioms; Italian-Portuguese; Phraseodidactics; teaching.
Revista de Italianística XXXV| 2017114
1. Introdução1
O Curso de Letras – Licenciatura e Bacharelado Português-Italiano
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é um dos poucos Cursos de Graduação em
Língua Italiana no Brasil que oferece essas duas habilitações. Os dicionários são ferramentas
1 A pesquisa e as refl exões que apresentamos aqui nasceram durante o percursoo que levou à tese
de doutorado intitulada Bases teórico-metodológicas para um hiperdicionário semibilíngue de ex-
pressões idiomáticas italiano-português em meio a um AVA, defendida por Susana Termignoni em
2015 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação de Maria José Bocorny Finatto.
Revista de Italianística XXXV| 2017115
imprescindíveis para os estudantes das duas terminalidades, que precisam contar com bons
instrumentos de apoio ao estudo do italiano.
No que tange à Fraseografi a bilíngue, embora venha crescendo o interesse pelo ensino do
italiano e as pesquisas em nível acadêmico estejam hoje em grande expansão, ainda há poucos
dicionários fraseológicos bilíngues impressos ou eletrônicos no Brasil, sendo ainda mais
escassos os materiais para o ensino de unidades fraseológicas (UFs), das quais as expressões
idiomáticas (EIs) são uma subcategoria. Em pesquisas já realizadas, tentamos contribuir para
minimizar essa lacuna no par de línguas italiano-português e enfatizar a importância do ensino
dessas estruturas.
Procuramos, assim, estabelecer as bases teórico-metodológicas para o desenho e a
implementação de um hiperdicionário semibilíngue italiano-português para compreensão
de EIs, voltado a aprendizes brasileiros de língua italiana de nível intermediário-avançado,
inserido em um Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA).
Não serão tratadas aqui as questões fraseográfi cas que se referem à construção do modelo
de dicionário, mas sim as questões didáticas. Abordaremos o ponto de vista de estudiosos sobre
o ensino de UFs e as razões pelas quais acreditamos que elas devam fazer parte do programa
de aprendizagem de uma língua estrangeira, evidenciando a importância crescente e mundial
que a Fraseodidática vem adquirindo.
2. Fraseologia e Fraseodidática
O termo fraseologia designa tanto o campo de investigação que tem como objeto de estudo
e de pesquisa as unidades fraseológicas (a Fraseologia) quanto o variado conjunto composto
por essas estruturas. Elas compreendem desde marcadores conversacionais (‘Feliz Natal!’),
colocações (‘bala perdida’), expressões idiomáticas (‘terminar em pizza’), até unidades mais
fi xas como os provérbios (‘Devagar se vai ao longe’), as frases feitas (‘Falando no diabo....
aparece o rabo’) e os aforismos (‘Diga ao povo que fi co!’).
Existem duas grandes tendências no âmbito da Fraseologia: a concepção estreita, que
considera como UFs as combinações fi xas de palavras que, por sua estrutura, se equivaleriam a
um sintagma, e a concepção ampla, que considera como UFs as combinações fi xas de palavras
com estrutura sintagmática e com estrutura oracional (TRISTÁ PEREZ, 1998). Adotamos a
concepção ampla de Fraseologia.
A Fraseodidática (ou didática da fraseologia) ocupa-se das questões relativas ao ensino-
aprendizagem das UFs em língua materna (LM) ou em língua estrangeira (LE). Seu objetivo
é permitir o reconhecimento, a aprendizagem e o emprego das unidades polilexicais com
signifi cado próprio e a aplicação adequada desse conhecimento à situação comunicativa
(ETTINGER, 2008).
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Para González Rey (2010, p. 2, grifo nosso), “[...] essa disciplina defi ne-se não somente
pelo seu objeto de estudo, mas também pela função que reclama no seio da didática das línguas
estrangeiras, uma vez que nesse âmbito a presença da fraseologia é quase inexistente”.
Sutkowska (2013) reforça essas palavras afi rmando que a Fraseodidática é um campo de estudo
“pouco e mal explorado” e que o próprio termo Fraseodidática não é conhecido pela maior
parte dos estudiosos e professores de línguas, conhecendo-se menos ainda o que signifi ca e
qual seu campo de aplicação.
São muitos os pesquisadores que destacam a importância da fraseologia no âmbito do
ensino e aprendizagem de LM e de LE para a obtenção de uma boa competência linguística.
Para citar alguns, vale lembrar o pioneiro Bréal (1897), o próprio Bally (1951), González
Rey (2002, 2006, 2010, 2014), Bárdosi (2010), Ettinger (2008) e Xatara (1998, 2001) para o
francês; Tagnin (1989, 2005, 2013) para o português brasileiro e o inglês; Penadés Martínez
(1999), Ruiz (1997, 1998), Sevilla Muñoz y González Rodríguez (1984) para o espanhol, e
Ortiz Álvarez (2000,2011) para o espanhol e o português brasileiro como LE; Vale (2001),
Fulgêncio (2008) e Fernandes (2011) para o português brasileiro; Zamora Muñoz (1999,2005)
e Navarro (2005, 2007) para o italiano e o espanhol; Zamora Muñoz et al. (2006) para o
italiano, Bárdosi (2010) para o húngaro.
No entanto, o alcance dessa linha didática é ainda restrito devido à divergência de opiniões
entre fraseófi los – para os quais a aquisição da fraseologia da LE é indispensável para uma boa
competência comunicativa – e fraseófobos, que acreditam se tratar de uma parte totalmente
supérfl ua do léxico (ETTINGER, 2008; GONZÁLEZ REY, 2010). É importante resumir aqui
os argumentos que, para González Rey, estariam na base dessas duas posições. Antes disso,
porém, é preciso esclarecer que essa autora refere-se às UFs com a denominação amplamente
adotada na literatura francesa – expressions fi gées (expressões fi xas/EFs). Conforme explicita,
as EFs compreendem “as fórmulas de rotina ou expressões dialógicas, as expressões imagéticas
(somatismos, cromatismos, zoomorfi smos, expressões numerais, etc.), as colocações e as
parêmias” (2010, p.3-4).
Para os fraseófobos, diz essa autora, a) um discurso pode ser construído sem que seja
empregada uma só EF; b) as EFs pertencem ao domínio dos falantes nativos, e um aprendiz não
precisa tornar-se um bilíngue para ser profi ciente em LE; c) as EFs são mutáveis, e aprendê-las
requer um grande investimento que nem sempre é compensador.
Por outro lado, González Rey pondera que os argumentos a favor do ensino da fraseologia
de uma LE ultrapassam os inconvenientes. Portanto, para os fraseófi los, a) não dominar as
EFs da LE denuncia a condição de aprendiz e desconhecê-las pode causar mal-entendidos e
constrangimentos; b) embora o objetivo do aprendiz não seja falar como um nativo, ele almeja
expressar-se de forma natural na LE, sobretudo depois de alguns anos de estudo; c) como a
Linguística de Corpus revelou a imensa quantidade de EFs que permeiam uma língua, fi cou
demonstrado que elas são incontornáveis na didática das línguas; d) o ensino das EFs propicia
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uma abordagem cultural da língua a ser aprendida – uma expressão como ‘Paris vale bem uma
missa’ realmente vale uma explicação!, exemplifi ca a fraseóloga, fazendo um jogo de palavras.
Não é demais enfatizar o quanto esse último argumento apontado por González Rey
(2010) – o ensino das EFs propicia uma abordagem cultural da língua a ser aprendida – é
importante quando a questão é defender a importância de ensinar EIs. De todos os argumentos
apresentados, esse talvez seja o mais produtivo para a aquisição da competência em uma LE,
pois compreender essa parcela do léxico pode descortinar múltiplos horizontes para quem
está conhecendo um mundo novo e com ele quer interagir. Retomando o que diz González
Rey (embora perdendo lamentavelmente o jogo de palavras, possível apenas com a expressão
francesa), também acreditamos que as EIs italianas parlar male di Garibaldi e fare un
quarantotto “valem bem uma explicação”, contexto que ensejaria a oportunidade de abordar a
história dos movimentos pela Unifi cação da Itália no século XIX.
Julgamos que aprender a identifi car uma EI como uma unidade da LE que possui um
signifi cado específi co, e compreender tal signifi cado, é um ganho inquestionável para um
estudante de LE. Saber usá-la na ocasião adequada denotaria um alto grau de profi ciência
nessa língua. Não por acaso, no Quadro Europeu Comum de Referência (QECR), as EIs estão
situadas nos níveis mais altos da aprendizagem das línguas, principalmente pela difi culdade de
compreensão que apresentam devido à sua opacidade.
3. Por que ensinar expressões idiomáticas?
Um falante, expressando-se em uma LE, pode produzir sentenças gramaticalmente corretas,
embora nem sempre como aquelas produzidas por um nativo, ou seja, frequentemente ele
constrói estruturas destoantes das usuais. Da mesma forma, pode não entender uma sequência
de palavras, apesar de conhecê-las individualmente. Isso ocorre porque essas estruturas foram
convencionadas. O uso de expressões fi xas é um fato recorrente e constante na língua, por isso
não se pode continuar a considerá-las como exceções e a pensar a língua exclusivamente como
um conjunto de regras (FULGÊNCIO, 2008, p.28).
No ensino/aprendizagem de LE, essas estruturas convencionadas ainda não têm o
reconhecimento que merecem como imensa parcela do léxico cujo legado histórico e social
constitui valor inestimável para uma comunidade linguística. Com efeito, “[...] na práxis
didática e nos textos, a refl exão sobre a linguagem fi gurada geralmente é negligenciada e
o aprendizado das expressões idiomáticas é frequentemente relegado a atividades pouco
signifi cativas e marginais” (CARDONA, 2008, p.45).
Os estudos de fraseodidática demonstram que as UFs são um instrumento precioso no
desenvolvimento da competência comunicativa dos aprendizes. Por essa razão, e dado o avanço
alcançado nas pesquisas fraseológicas atuais, queremos reforçar os dois adjetivos utilizados
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por González Rey (2010) e por Sutkowska (2013), respectivamente, ao se referirem ao valor
das UFs no domínio de uma LE: seu estudo é incontornável e seu papel na didática das LEs é
incontestável.
Para refl etirmos sobre a pertinência de ensinar UF, e em especial EIs, valemo-nos de uma
pergunta de Ettinger: “Seriam os fraseologismos realmente tão importantes, representativos e
imprescindíveis no uso da língua para serem ensinados e aprendidos na língua materna ou em
uma língua estrangeira?” (2008, p.97).
Sobre a competência linguística dos falantes, Fulgêncio (2008, p.21) mostra que não só de
regras e parâmetros é feito seu conhecimento e que o uso de agrupamentos memorizados é um
dos processos envolvidos na construção de sentenças. Além de sequências mais frequentes,
preferidas pelos falantes em situações pragmáticas defi nidas, existem sintagmas memorizados,
fórmulas fi xas, blocos de palavras que eles repetem como um todo coeso.
Estudos do Léxico-Gramática comprovaram empiricamente que as UFs são tanto ou mais
numerosas que as construções livres (GROSS, 1994). De fato, elas permeiam completamente
a nossa linguagem, embora nem sequer o percebamos. Pollio et al. (2000 apud CARDONA,
2008) analisaram, nos anos 1970, diferentes tipologias de texto em diversos contextos
comunicativos, demonstrando que são produzidas em média 4/5 expressões fi guradas em um
minuto de conversa. Jackendoff estima que “[...] o número de expressões multipalavra no
léxico de um falante é da mesma magnitude que o número de palavras isoladas” (1997, p.156).
Evidentemente há mais razões além do seu volume expressivo para se ensinar essas
unidades: elas permeiam diferentes tipos de texto e de discurso, tanto na língua oral quanto na
língua escrita. Em conversas cotidianas e em leituras de jornais e revistas, deparamo-nos com
EIs pertencentes ao patrimônio linguístico universal – vittoria di Pirro/ lavarsi le mani –, que
coexistem com EIs forjadas há bem menos tempo, em diferentes comunidades linguísticas – to
rearrange the deck chairs on the Titanic/ ce n’est pas du caviar/ ‘não é nenhuma Brastemp’.
As línguas possuem um background cultural em constante evolução – por isso, González
Rey (2010) as classifi ca como ‘mutáveis’-, e naturalmente vão incorporando novas unidades
polilexicais que nascem de acontecimentos próprios da sua evolução histórica e cultural.
Observamos que as EIs, por exemplo, vão sendo utilizadas, sempre com maior frequência,
até mesmo nos discursos especializados. Evidentemente de maneira esparsa e pontual, porém
de qualquer forma surpreendente em se tratando de um terreno a princípio inóspito para o
cultivo dessas unidades, que tradicionalmente (e erroneamente) eram consideradas típicas
da coloquialidade. De fato, as EIs perpassam todo tipo de gênero textual. É assim que, na
supervisão analítica com seus pares – todos especialistas, portanto –, o psicanalista relata que
o paciente, querendo negar o problema, ‘fez como a avestruz’ ou ‘fi ngiu-se de peixe morto’.
Ou, em um artigo sobre um tema como metodologias do ensino de LE, Porcelli (1994) afi rma
que “[...] de nada adianta o professor ter muita bala na agulha, se não possui um alvo preciso”.
Como se vê “[...] existe um mecanismo de retomada de estruturas completas, recuperadas
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da memória como um conjunto coeso (FULGÊNCIO, 2008, p.20)”, blocos de palavras pré-
fabricados, memorizados e prontos para o uso que vêm em auxílio dos falantes nas interações
comunicativas, até mesmo de cunho especializado entre pares. Parece-nos, portanto, ser
inegável o papel de relevo que elas desempenham.
Já no jornalismo e na publicidade, as EIs são largamente empregadas, recurso valioso de
jornalistas e publicitários para atrair a atenção do leitor em manchetes e chamadas publicitárias.
Para dar um exemplo, uma expressão que nasceu no âmbito da propaganda brasileira é ‘a
família margarina’, ou seja, a família perfeita, típica dos comerciais desse produto, que
comumente utilizam a imagem de uma família sorridente, bonita e saudável. A língua italiana
possui um correspondente na expressão la famiglia mulino bianco, na qual Mulino Bianco é o
nome de uma famosa marca italiana de biscoitos e produtos de forno pertencente à tradicional
indústria de massas Barilla, que veicula na mídia a mesma imagem familiar que transpira saúde
e felicidade. Eis um caso em que a realidade é percebida de maneira muito semelhante por
sistemas linguísticos diferentes.
Consequentemente, programas de estudo de LEs que não atentem para a importância dessas
estruturas deixam em difi culdades o estudante que, inevitavelmente, sempre se defronta com
elas quando em contato com a LE, em manchetes jornalísticas, em anúncios publicitários,
em programas televisivos ou na própria interação oral cotidiana, não conseguindo, por vezes,
captar nuances e referências importantes da realidade estrangeira.
A nosso ver, esse fato, por si só, já seria sufi ciente para justifi car a importância de estudar
essas unidades, se não para empregá-las, para compreendê-las. É o que afi rma Ettinger
(2008, p.100) ao defender que as UFs de uma LE devem ser aprendidas, em primeiro lugar,
para adquirir uma competência fraseológica passiva. E conclui: “Contar com conhecimentos
fraseológicos profundos em uma língua estrangeira facilita a compreensão leitora, dá pistas
sobre as intenções do falante, torna as alusões contidas nos textos mais transparentes, permite
entender jogos de palavras, sobretudo na publicidade etc.” (IGLESIAS, 2007, p.70, apud
ETTINGER, 2008, p.101, grifo nosso).
Essa visão é reforçada por Luque Nadal:
[...] se analisarmos artigos de opinião atuais em espanhol, inglês,
francês, etc., vemos que eles frequentemente apresentam difi culdades de
compreensão para um leitor não familiarizado com universos culturais
específi cos de um país e de uma época, o que implica que um estudante
estrangeiro precisará conhecer não somente aspectos da gramática e do
léxico de uma língua, mas também ter outros conhecimentos adicionais
de tipo cultural. (2009, p.95)
Dignas de nota são também as palavras de Guilhermina Jorge:
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Introduzir a idiomaticidade no processo de aprendizagem de uma língua
é oferecer aos aprendizes uma riqueza suplementar, um vínculo entre a
língua e a experiência humana. Essa riqueza dá vida à língua e assim
poderíamos falar de uma humanização da língua e do ensino (1992 apud
GONZÁLEZ REY, 2010, p. 2-3).
Imagine-se, por exemplo, a difi culdade de um aprendiz brasileiro de língua italiana para
entender a seguinte propaganda institucional em defesa de melhores condições de locomoção
para os defi cientes visuais:
Fig. 1: Jogo de palavras com a EI “
mettere il bastone fra
le ruote
”em uma propaganda institucional
Fonte: Il Messaggero (1992)
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A EI italiana mettere un bastone fra le ruote (literalmente ‘colocar um bastão entre as
rodas’) signifi ca ‘criar obstáculos ao andamento de uma atividade ou de um negócio’
e equivale em português à EI ‘jogar areia’ (TERMIGNONI, 2009, p.105). Nessa peça
publicitária, há um jogo de palavras em que os vocábulos ruote (rodas) e bastoni (palavra
que pode signifi car também ‘bengalas’) são invertidos, invertendo também a ideia de ‘criar
obstáculos’, da expressão original: seriam as rodas dos carros, estacionados nas calçadas, a
atrapalhar os defi cientes visuais, cujos passos são orientados por suas bengalas. O artifício da
deslexicalização, ou desautomatização (ZULUAGA, 1980) como é chamado, é muito usado
para causar determinado efeito no leitor e chamar sua atenção, frequentemente em publicidade
e na imprensa em geral.
Imagine-se, ainda, compreender as seguintes manchetes dos jornais italianos, em 2011,
por ocasião dos festejos do150º aniversario da Unifi cação Italiana: È successo un quarantotto
celebra l’Unità d’Italia / Viva l’Italia ma fateci parlare un po’male di Garibaldi / L’Italia
è fatta facciamo i lettori / Viva Verdi! La colonna sonora del Risorgimento. Todos esses
títulos contêm UFs subvertidas – EIs, aforismos, slogans – que fazem alusão a episódios
da Unifi cação Italiana. Cristalizadas na língua e transmitidas de geração em geração, essas
estruturas têm sua origem naquele período da história da Itália e são emblemáticas de eventos e
personagens de relevo na cultura do país. Para quem estuda a língua italiana, o domínio dessas
formas idiomáticas é de grande valia. Além de permitir decifrar manchetes desse tipo, oferece
a oportunidade de ampliar o conhecimento da cultura e da história da Itália, pois a riqueza
semântica que elas contêm é como um fi o condutor que vai traçando esse percurso singular e
irrepetível da história.
As EIs succedere (fare/essere) un quarantotto permanecem ainda na fala cotidiana dos
italianos, signifi cando “uma situação imprevista de agitação e tumulto”, reminiscência dos
inúmeros movimentos revolucionários que sacudiram a Itália e a Europa da Restauração,
sobretudo no ano de 1848, número que dá origem às EIs (quarantotto = ‘quarenta e oito’).
Também a EI parlar male di Garibaldi passou a fazer parte do idioma com o signifi cado de
“[...] falar mal de coisas consideradas intocáveis e indiscutíveis”, uma referência ao papel
desempenhado pelo herói de dois mundos no processo de Unifi cação Italiana.
Já o famoso aforismo Fatta l’Italia bisogna fare gli italiani, atribuído por alguns ao
ministro Massimo D’Azeglio, e por outros a Camillo Benso, Conde de Cavour, indicava
um dos problemas mais sérios que o governo precisou enfrentar depois da Unifi cação: as
imensas diferenças entre o Norte e o Sul e a pouca unidade cultural e linguística da Itália
recém-unifi cada. Por último, a popularidade do compositor vêneto Giuseppe Verdi originou o
igualmente famoso acrônimo V.E.R.D.I. (Vittorio Emanuele Re D’Italia) presente no slogan
VIVA VERDI!, o qual, escrito nos muros das cidades italianas sob o domínio austríaco,
difundiu-se na península como forma de incitar a monarquia dos Savoia a tomar o poder, o que
efetivamente se verifi cou em 1861.
Revista de Italianística XXXV| 2017122
Aqui convém retomar o que diz Eugenio Coseriu (1980) sobre o discurso repetido ao
incluir entre as diferentes categorias de UFs aquelas que podem ser “de citação”, ou seja,
partes de textos conhecidos (literários ou não) e importantes para se identifi car as tradições
linguísticas dos povos. Além das citadas, há também as que derivam de trechos literários,
como, por exemplo, do Inferno da Divina Comédia, de Dante Alighieri (Lasciate ogni speranza
voi che entrate/ senza infamia e senza lode), encontradas frequentemente em revistas e jornais
da atualidade. Outro bom exemplo é o célebre aforismo Eppur si muove ..., que Galileu Galilei
teria murmurado, cabeça baixa, diante do Tribunal da Santa Inquisição, logo após ter renegado
sua crença de que a Terra se move ao redor do Sol, forma fi xa que na Itália é repetida à
exaustão, desautomatizada (Eppur si muore; Eppur si mangia, etc.) ou não (Eppur si muove),
nas mais diversas circunstâncias comunicativas.
Fica claro, assim, que não se consegue decifrar uma infi nidade de contextos se não se
conhece esse tipo de estrutura na LE. A mesma fraseóloga Guilhermina Jorge, refl etindo sobre
as difi culdades que tem o aprendiz de LE de decodifi car (e também de codifi car) tais unidades,
pondera:
O falante apercebe-se da existência da lexicalização e da originalidade
semântica de dada estrutura na sua língua materna, mas terá mais
difi culdades em reconhecê-la e interpretá-la na língua estrangeira. Deste
modo, o falante enfrenta várias difi culdades no domínio da fraseologia:
– difi culdades de reconhecimento (a EI pode confundir-se com frases não
idiomáticas);
– difi culdades de interpretação (o sentido literal pode preceder o sentido
idiomático e substituir esse);
– difi culdades de produção (o falante pode sentir difi culdade em reutilizar
a expressão num contexto). (1997, p. 40, grifo nosso).
Além disso, importa ressaltar que, ao aprender essas construções, o aluno se integra mais à
realidade da língua da qual está procurando se apropriar, e passa a entender que as diferenças
existentes entre ela e sua língua não residem apenas nas formas linguísticas, mas expressam
uma maneira diferente de se relacionar com o mundo.
4. Conclusão
Para além do domínio linguístico, conhecer as UFs e em especial as EIs de uma LE permite
conhecer o povo e a cultura que lhes deu vida, o que descortina uma gama de possibilidades
para o seu ensino, pela sua criatividade, expressividade e presença constante nos discursos
cotidianos, podendo tornar-se um aprendizado muito atraente, inclusive em uma perspectiva
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contrastiva. Parece-nos evidente, assim, que a inserção dessas formas fi xas e idiomáticas no
processo de ensino/aprendizagem da língua italiana pode somente benefi ciar nossos estudantes.
Certamente, estudos sobre frequência e relevância das EIs contribuem para a seleção de quais
delas incluir em cada nível de aprendizado.
Como acreditamos ter demonstrado, essas são possibilidades que deveriam ser exploradas
nas aulas de italiano para brasileiros, tanto sob o aspecto linguístico-comunicativo quanto sob o
aspecto histórico-cultural, com a apresentação de múltiplos e diferentes prismas da sociedade,
da cultura e da história italianas, de forma original e, por que não, recreativa.
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