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MÚSICA ANTES, PALAVRA DEPOIS

Authors:

Abstract

O processo de catequização das crianças indígenas nas missões jesuítas brasileiras foi bastante peculiar, certamente diferenciado do que ocorria nos colégios europeus. Os padres inacianos precisaram aprender a língua local, adaptar os pro-cessos e materiais pedagógicos e proporcionar aos curumins uma vivência religiosa da qual eles nada conheciam. O uso da música foi essencial para estabelecer uma conexão mais próxima, atrativa aos índios, servindo ao mesmo tempo de isca para a catequese e de reforço ao aprendizado da doutrina. Embora essencialmente vocal, boa parte do repertório musical da catequese foi realizado em instrumentos, particularmente em flautas, amplamente empregadas pelos missionários, so-bretudo nas primeiras décadas de sua atuação (1550-1610). Nesta comunicação, pretendemos demonstrar que o ensino de instrumentos musicais às crianças indígenas, particular-mente de flautas, não visava apenas proporcionar uma varia-ção instrumental ao repertório, mas também estabelecer um elemento uniformizador de resposta à doutrina. A barreira da língua e a compreensão real do conteúdo cristão eram algu-mas das maiores dificuldades enfrentadas pelos padres, mas a realização da música pelas flautas de certa forma minimizava tais obstáculos e proporcionava a sensação de êxito na ativi-dade missionária. Se a palavra é necessária para concretizar e explicitar o pensamento, enquanto a música potencializa seu significado, nas missões jesuítas brasileiras os papéis parecem ter se invertido: a música serviu antes como recurso de assimi-lação, e a palavra, em língua desconhecida, constituidora de um texto complexo, foi por muitas vezes elemento acessório e não totalmente assimilado.
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MÚSICA ANTES, PALAVRA DEPOIS: SOBRE A
REALIZAÇÃO DO REPERTÓRIO DA CATEQUESE
COM INSTRUMENTOS MUSICAIS
NAS MISSÕES JESUÍTAS BRASILEIRAS
Patricia Michelini Aguilar
Universidade Federal do Rio de Janeiro - RJ
Email: patriciamichelini@gmail.com
Resumo:
O processo de catequização das crianças indígenas nas
missões jesuítas brasileiras foi bastante peculiar, certamente
diferenciado do que ocorria nos colégios europeus. Os padres
inacianos precisaram aprender a língua local, adaptar os pro-
cessos e materiais pedagógicos e proporcionar aos curumins
uma vivência religiosa da qual eles nada conheciam. O uso
da música foi essencial para estabelecer uma conexão mais
próxima, atrativa aos índios, servindo ao mesmo tempo de
isca para a catequese e de reforço ao aprendizado da doutrina.
Embora essencialmente vocal, boa parte do repertório musical
da catequese foi realizado em instrumentos, particularmente
em autas, amplamente empregadas pelos missionários, so-
bretudo nas primeiras décadas de sua atuação (1550-1610).
Nesta comunicação, pretendemos demonstrar que o ensino
de instrumentos musicais às crianças indígenas, particular-
mente de autas, não visava apenas proporcionar uma varia-
ção instrumental ao repertório, mas também estabelecer um
elemento uniformizador de resposta à doutrina. A barreira da
língua e a compreensão real do conteúdo cristão eram algu-
mas das maiores diculdades enfrentadas pelos padres, mas a
realização da música pelas autas de certa forma minimizava
tais obstáculos e proporcionava a sensação de êxito na ativi-
dade missionária. Se a palavra é necessária para concretizar e
explicitar o pensamento, enquanto a música potencializa seu
signicado, nas missões jesuítas brasileiras os papéis parecem
ter se invertido: a música serviu antes como recurso de assimi-
lação, e a palavra, em língua desconhecida, constituidora de
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um texto complexo, foi por muitas vezes elemento acessório e
não totalmente assimilado.
Palavras-chave: Jesuítas. Doutrina. Catequese. Música
instrumental. Prática coletiva. Flauta. Flauta doce.
First, music; then, theword: aboutpracticingcatechesisre-
pertoirewith musical instruments in BrazilianJesuit sites
Abstract:
e process of catechizing indigenous children in Brazilian
Jesuit missions was quite peculiar, certainly dierent from what
happened in European colleges. Ignatian priests needed to learn
the local language, adapt pedagogical processes and materials,
and provide children with a religious experience of which they
knew nothing. e use of music was essential to establish a closer
connection, attractive to the Indians, while serving as bait for
catechesis and strengthening the learning of doctrine. Although
essentially vocal, much of the musical repertoire of catechesis
was performed on instruments, particularly on recorders, wide-
ly used by missionaries, especially in the rst decades of their
performance (1550-1610). In this communication, we intend to
demonstrate that the teaching of musical instruments to indi-
genous children, particularly recorders, was not only intended
to provide an instrumental variation to the repertoire but also
to establish a unifying element of response to doctrine. e lan-
guage barrier and the actual understanding of Christian content
were some of the greatest diculties faced by the priests, but the
performance of the music by the recorders in a way minimized
such obstacles and provided a sense of success in missionary acti-
vity. If the word is necessary to concretize and make explicit the
thought, while music enhances its meaning, in the Brazilian Je-
suit missions the roles seem to have been inverted: music served
before as a resource of assimilation, and the word, in unknown
language, constituting a complex text, was often accessory ele-
ment and not fully assimilated.
Key words: Jesuits.Doctrine.Catechesis. Instrumental Music.
Collective Music Practice.Flute. Recorder.
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1. INTRODUÇÃO
Em agosto de 1549 chegaram ao Brasil os primeiros mis-
sionários jesuítas, liderados pelo Pe. Manoel da Nóbrega. Vi-
sando primordialmente catequisar os gentios, percorreram boa
parte do litoral do Nordeste e Sudeste, exercendo pregação
itinerante, ao mesmo tempo em que estabeleciam casas de ler
e escrever, futuros colégios, em aldeias e centros urbanos estra-
tegicamente localizados.
O processo de catequização dos índios nas missões brasi-
leiras foi bastante peculiar, diferenciado do que ocorria nos
colégios europeus. Antes de aprender a língua da terra, os
padres inacianos precisaram recorrer aos tradutores locais,
adaptar os processos e materiais pedagógicos e proporcionar
às crianças indígenas, alvo principal de suas investidas, uma
vivência religiosa da qual eles nada conheciam.
O uso da música foi essencial para estabelecer uma co-
nexão mais próxima, atrativa aos índios, servindo ao mesmo
tempo de isca para a catequese e de reforço ao aprendizado
da doutrina. Os meninos aprendiam a cantar orações, canti-
gas devotas e o repertório básico da catequese, primeiramente
em sua língua nativa e depois em português e latim; aqueles
que se destacavam aprendiam também a tocar instrumentos, e
rapidamente eram recrutados para auxiliar os padres nas pro-
cissões, missas e demais atividades religiosas.
Neste texto, pretendemos demonstrar que a prática jesu-
íta de fazer os meninos índios tocarem o repertório religioso
com instrumentos musicais, sobretudo com autas, não visa-
va apenas proporcionar uma alternativa timbrística ao uso das
vozes, ou reproduzir o modelo europeu; servia também para
estabelecer um elemento uniformizador de resposta à doutri-
na. A barreira da língua e a compreensão real do conteúdo
cristão eram algumas das maiores diculdades enfrentadas
pelos padres, mas a realização da música pelas autas de certa
forma minimizava tais obstáculos e proporcionava a sensação
de êxito na atividade missionária, sobretudo nas primeiras dé-
cadas de atuação dos inacianos.
A partir da análise de cartas e relatos produzidos pelos je-
suítas entre os anos de 1549 e 1614, com apoio da bibliograa
especializada, apresentaremos elementos comuns e especí-
cos da metodologia de ensino da doutrina empregada pelos
170
padres no Brasil e na Europa; falaremos brevemente sobre o
processo de ensino de música e dos instrumentos, para então
reetirmos sobre a função e uso dos instrumentos em nossas
considerações nais.
2. O ENSINO DA DOUTRINA NOS COLÉGIOS JESUÍTAS
EUROPEUSE NAS MISSÕES BRASILEIRAS
Um dos grandes diferenciais da ordem jesuíta em rela-
ção às outras era o investimento e a atenção dada à educa-
ção formal (O’MALLEY, 2000, p.1-2). Nos primeiros anos
de atuação no Brasil, os jesuítas preocuparam-se em formar
escolas de educação elementar, as chamadas casas de ler
e escrever.Coube ao padre Manoel da Nóbrega a tarefa de
organizar o ensino nestas instituições, futuros colégios. As
casas eram destinadas aos meninos órfãos de Lisboa, aos
mamelucos e aos lhos de caciques (NUNES, 2008, p.6).
As práticas instituídas por Nóbrega e demais padres,
tanto para a catequese quanto para o ensino elementar, fo-
ram baseadas em suas experiências anteriores na Europa
e, principalmente, nas observações in loco a partir da re-
ceptividade dos índios frente a suas ações. Anal, quando
chegou ao Brasil em 1549, a Companhia de Jesus ainda não
havia produzido ou aprovado ocialmente nem um catecis-
mo unicado, nem um plano pedagógico formal1.
Desde o início,o material pedagógico adotado na cate-
quese (doutrina) tinha conteúdo semelhante ao empregado
nas casas e colégios para o ensino da leitura e escrita (car-
tilha), tanto na Europa como nas colônias. Kate van Orden
(2006, p.209) nos traz um exemplo disso, mostrando que
a cartilha do padre jesuíta francês Jacques Cossard, Meth-
odes pour apprendre a lire, a escripre, chanter le plain
chant, et compter (Paris, 1633), tinha como primeira lição
o Pater Noster dividido em sílabas, e já na segunda lição
os estudantes deveriam identicar as sílabas da Ave Maria.
De fato, na Europa dos séculos XVI e XVII os colégios je-
suítas ensinavam primeiro o latim elementar, fazendo a corres-
pondência com as orações básicas (Ave Maria, Pater Noster),
que as crianças certamente já conheciam das missas que fre-
quentavam. Num segundo momento dedicavam-se ao ensi-
no formal da língua vulgar, ou seja, da língua materna das
1. A primeira doutrina
em português de um padre
jesuíta, a do Pe. Marcos
Jorge, foi publicada em
1566 (Doctrina Christaa
ordenada a maneira de
Dialogo para ensinar os
meninos.Lisboa: Fran-
cisco Correa, 1566).
Alguns outros catecismos,
não jesuítas, haviam
sido publicados antes, e
certamente as instruções e
os textos constantes nestas
doutrinas e na dos jesuítas
já eram praticados por seus
autores e discípulos antes
de serem formalizados
nas publicações, servindo
como modelos para a
evangelização nas colônias.
O Concílio de Trento
(1545-1563), fundamental
para denir as diretrizes
da Igreja Católica e ordens
subordinadas, ainda estava
em curso, com muitos
pontos passíveis de discus-
são. No plano pedagógico,
as primeiras instruções de
Loyola foram redigidas em
1556 e a Ratio Studiorum
foi publicada somente em
1598.
171
crianças. O ensino desta língua, sobretudo o ensino da leitura,
estava relacionado com a educação social dos alunos. Orden
explica que eram usados para este m manuais de boas manei-
ras para crianças, como traduções dos livros de Erasmo de Ro-
terdã e Castiglione2 (2006, p.212). No Brasil, considerando
que os meninos índios não falavam português e não tinham
nenhuma referência de liturgia, o processo foi invertido. Pri-
meiramente eram introduzidas noções básicas da língua por-
tuguesa, com o auxílio dos tradutores locais; depois, quando
possível, ensinava-se latim.
Estes tradutores locais, padres e irmãos que aprendiam as
línguas nativas, eram chamados de línguas; eles foram respon-
sáveis pelas primeiras traduções ao tupi dos textos essenciais
para a doutrina, textos estes utilizados por Manoel da Nóbre-
ga e seus companheiros na rotina da catequese e das casas e co-
légios da Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro e
São Paulo. Segundo Barros:
Esse grupo de jesuítas “línguas” não tinha o perl do quadro je-
suítico vindo da Metrópole. Uma boa parte dos irmãos “línguas
admitidos no Brasil no século XVI teve de ser encaminhada para
ordenação com pedidos de dispensas por motivos variados. O
pedido de dispensa para ser ordenado padre apontava para o
fato de que aquela pessoa não correspondia ao perl requerido
pela metrópole, mas ainda assim se pleiteava sua entrada ou pro-
moção na Ordem, por dominar o tupi (BARROS, 2008, p.10).
Dentre os padres, os melhores línguas da fase inicial de
atividade missionária foram Pero Correia, ex-colono e ex-
-escravista, e João de Azpilcueta Navarro, um dos primeiros
a adaptar o Pater Noster para a música dos índios (TINHO-
RÃO, 2000, p.27; CASTAGNA, 1994, p.2). Villas Bôas con-
sidera que os primeiros catecismos em língua nativa eram, na
verdade, destinados aos missionários europeus, e não aos es-
tudantes, pois neles encontram-se meras reproduções do texto
da doutrina, sem reexão sobre conteúdo; serviam como guia
para as pregações (2009, p.169).
Junto a este grupo, havia ainda o dos meninos do Co-
légio dos Órfãos de Lisboa, que chegaram ao Brasil entre
1550 e 1555 para ajudar os jesuítas no processo de cate-
quização. Ao perceberem a capacidade que estes meninos
tinham de se entrosar com os curumins, os padres inacia-
2. ERASMUS ROTE-
RODAMUS, Desiderius
(Erasmo de Roterdã). De
civilitate morum puerilium
libellus. Basiléia: Froben,
1530; CASTIGLIONE,
Baldassare. Il libro del cor-
tegiano. Veneza: AldusMa-
nutius, 1528.
172
nos começaram a levá-los em suas pregações itinerantes.
A estratégia para atrair os meninos índios para a catequese
baseava-se no poder de persuasão e comoção, uma vez que
a presença dos brancos despertava desconança e estranhe-
za entre os índios adultos. E era justamente pela música que
os meninos índios se aproximavam, como se constata no
relato de Pero Correia:
[...]foi o padre Nobrega levando um Irmão comsigo e quatro
meninos, e em sua peregrinação tinha esta maneira que, quando
entravam em alguma aldêa dos Indios, um dos meninos levava
uma cruz pequena levantada, iam cantando as ladainhas, elogo
se juntava, os meninos do logar com elles. Maravilhava-se muito
a gente de cousatão nova e recebia-os muito bem. Ao partir dos
logares tambem iam cantando as ladainhas.(Carta do Irmão Pero
Correia a um padre do Brasil. S/l, s/d [São Vicente, 18 de julho
de 1554], p.163, apud Holler, 2006, v.2, p.94).
De acordo com O’Malley (1994, p.98, apud VILLAS
BÔAS, 2009, p.164-165),
O destaque dado à capacidade de os meninos “alvoroçarem” seus
ouvintes conforma-se com o entendimento que os jesuítas ti-
nham da pregação. Entre três propósitos tradicionais do sermão
– o de comover, instruir e deleitar – concediam primazia ao pri-
meiro. [...] Embora não houvesse uma única matriz, observa-se
[na pregação] a recusa da tradição escolástica, por um lado, e o
cultivo da tradição humanística, por outro.
O encantamento proporcionado pela música europeia
e pela pregação mostrou ser uma via de mão dupla: num
primeiro momento os meninos portugueses atraíam os
curumins para a catequese com suas cantigas devotas, mas
sabemos de um relato de Manoel da Nóbrega ao Pe. Simão
Rodrigues, datado de 1552, que estes mesmos meninos
já haviam se acostumado a cantar música indígena com letra
devocional em tupi, e a tocar os instrumentos dos nativos (TI-
NHORÃO, 2000, p.28-29)3.
Não tardou para que alguns meninos índios, instruídos
pelos jesuítas, fossem arregimentados como colaboradores
dos padres, inclusive na pregação4. Tal prática exigia co-
nhecimento teológico e de retórica clássica, “mas era cor-
<?> Tal iniciativa
recebeu críticas veementes
por parte do bispo visita-
dor D. Pedro Fernandes
Sardinha, que não tardou
a reportar o fato aos
superiores em Portugal em
carta de 1552, mesmo ano
que chegou à Bahia. Sua
postura gerou desconforto
com o Pe. Nóbrega, que
defendia as práticas adota-
das até então, mas acabou
por surtir efeito: quando
o Pe. José de Anchieta
chegou ao Brasil, em
1553, ao que tudo indica
já estava proibido o uso
de música e instrumentos
indígenas para a catequese
(CASTAGNA, 1994,
p.5). Sardinha também
criticou o procedimento
dos missionários para
as conssões, realizadas,
segundo havia constatado,
pelos intérpretes, e não
pelos padres.
4. Em carta de 1552 ao
Padre Simão Rodrigues,
Nóbrega já dizia que”tinha
dous meninos da terra
pera mandar a V. R., os
quais serão muito pera a
Companhia. Sabem bem
ler e escrever e cantar e
são quá pregadores, e não
há quá mais que aprender”
(apudHOLLER, 2006,
v.2, p.74).
173
rente entre os jesuítas não apenas do Brasil, mas também
da Europa, fazerem noviços ou ‘escolásticos’ ainda sem
conhecimento teológico sair em pregações itinerantes”
(VILLAS BÔAS, 2009, p.165).
As crianças que se destacavam no aprendizado da dou-
trina eram encaminhadas aos colégios para complementar
sua formação; depositava-se nelas a esperança da efetivida-
de da catequisação junto aos demais índios, tal como obser-
va Villas Bôas (2009, p.168):
Apesar da composição mista dos alunos, o programa missioná-
rio implantado pelos colégios fazia clara distinção entre eles. Os
meninos órfãos enviados de Lisboa de 1550 a 1555 são percebi-
dos como instrumentos para “atrair” (Nóbrega, 2000, p. 87) e
“ganhar” os da terra através de seus “cantares” (Nóbrega, 2000,
p. 266). A observação lapidar de Nóbrega de que os colégios ser-
viam sobretudo para “criar meninos do gentio” (Nóbrega, 2000,
p. 138) é inextricável da função apostólica e disciplinadora que
os missionários lhes atribuíam. Os línguas pregadores que neles
se formavam seriam capazes de “reformar” os seus pais, exortan-
do-os a abandonar os “maus costumes”.
São vários os relatos em que os padres comemoram a
conversão das crianças e atribuem a elas a propagação da
doutrinaa seus pais e aos adultos das aldeias. Mas, conside-
rando a pouca experiência religiosa destes meninos e meni-
nas, o vocabulário restrito, a falta de compreensão do texto
em sua totalidade e o discurso não reexivo que praticavam
em suas pregações, podemos imaginar que o poder de per-
suasão destas crianças era extremamente frágil e inecaz.
Mesmo os irmãos línguas não tinham a mesma formação
teológica dos padres, como vimos. Não seria, certamente,
pela palavra que os adultos se converteriam.
3. O USO DA MÚSICA E DOS INSTRUMENTOS
PELOS JESUÍTAS
O desejo de integração e conversão idealizado pelos je-
suítas nunca foi consumado de fato. E nem poderia ter sido
diferente, tendo em conta que aos índios foram impostos
modelos europeus de organização do trabalho, da socieda-
174
de e da disciplina cristã, num processo de sufocamento de
seus costumes e sua cultura.
Neste ambiente inóspito, a música chegou como uma
possibilidade ecaz de aproximação. De fato, ela veio não
apenas como um meio para a integração, uma linguagem
capaz de conectar realidades culturais tão distantes. Servin-
do a crenças, temores, à fé e ao consolo de todos, de ma-
neira supranatural, ela assumiu um papel fundamental na
sociedade que se estabelecia.
Constatamos o uso da música pelos missionários pratica-
mente desde que chegaram ao Brasil. Às crianças indígenas,
principal alvo da catequese dos jesuítas, os padres e irmãos
não tardaram a ensinar música, tanto o canto como alguns
instrumentos, num esforço para concretizar sua ação peda-
gógica e a conversão cristã. O repertório praticado pelos
meninos incluía orações cantadas, ladainhas (cantadas em
procissões), laudas, cantigas e hinos, como o Te Deum.
A maior parte do repertório era monódico e, embora
essencialmente vocal, era frequentemente realizado em
instrumentos, notadamente em flautas, que os meninos
aprendiam no contexto da catequese5. O aprendizado se
dava oralmente, por repetição e memorização; não há re-
gistros de ensino da teoria musical. Tal metodologia não
se restringia às colônias; nos colégios europeus também se
encontram evidências do uso de diálogos e aprendizado
de canções de memória, como explica Orden, sobre o en-
sino da doutrina na França:
Muito [do repertório devoto], se não todo ele, poderia
ser aprendido oralmente em aulas que operavam usando
a metodologia de diálogos típica da catequese: perguntas
sucintas, respostas memorizadas e instrução oral. Assim
como as respostas cantadas na missa, que todas as crianças
deveriam aprender, essas canções parecem ter sido projeta-
das para ser ensinadas e cantadas de memória6 (ORDEN,
2006, p.232-233).
Ao memorizar as melodias, os meninos estariam tam-
bém memorizando os textos da doutrina, ainda que não
compreendessem seu conteúdo.
Havia também repertório polifônico, possivelmente
adaptado a consorts (conjuntos) de autas e realizado como
5. Para um maior
detalhamento do uso
das autas pelos jesuítas,
bem como de aspectos do
ensino e prática da música
nas missões brasileiras,
ver AGUILAR, 2017,
p.44-95.
6. “Much if not all of
this might have been
learnt by ear in classes
that operated using the
dialogic methods typical
of catechistic teaching:
succinct questions, memo-
rised responses and oral
instruction. Like the sung
responses at Mass that all
children were expected to
learn, these songs seem de-
signed to be taught by rote
and sung from memory.”
175
canto de órgão7 nas missas. É possível que a auta tenha
sido utilizada em outros contextos, como na realização de
cânones didáticos, em autos e peças teatrais de cunho reli-
gioso e em cerimônias de láurea.
Os cânones a uníssono (ou oitava) eram ensinados para
introduzir polifonia às crianças. Orden (2006, p. 233) cons-
tata que eles estão presentes em um grande número de car-
tilhas europeias do período e que, assim como o restante do
repertório, também poderiam ser aprendidos de memória.
A autora observa ainda que
enquanto as canções homofônicas ensinavam as crianças a fala-
rem juntas ao mesmo tempo e adequavam sua dicção às normas,
os cânones as ensinavam a manter-se em seu lugar em circuns-
tâncias mais complexas, a concentrar-se e a contribuir com uma
única voz para a harmonia8 (ORDEN, 2006, p.245).
Notamos no texto de Ordem que o aprendizado da música
servia também para o aprendizado da disciplina e da ordem
social. Se por um lado a música proporcionava a experiência
artística, transcendente, mística, funcionando “como elemen-
to de religião, isto é, de religação, de força ligadora, unanimi-
zadora, defensiva e protetora dos diversos indivíduos sociais
que se ajuntavam sem lei nem rei” (ANDRADE, 1991, p.16),
por outro ela fazia com que todos falassem juntos os textos
devotos, na mesma língua, na mesma entonação e no mesmo
rítmo, sem brechas para questionamentos ou dúvidas.
José Miguel Wisnik faz uma interessante reexão sobre a
força da música, particularmente realizada em uníssono, na
idealização de uma sociedade sem conitos:
Um único som anado, cantado em uníssono por um grupo
humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmi-
ca: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo,
um princípio ordenador. Sobre uma frequência invisível, trava-
-se um acordo, antes de qualquer acorde, que projeta não só o
fundamento de um cosmos sonoro, mas também do universo
social. As sociedades existem na medida em que possam fazer
música, ou seja, travar um acordo mínimo sobre a constituição
de uma ordem entre as violências que possam atingi-las do exte-
rior e as violências que as dividem a partir do seu interior. Assim
a música se oferece tradicionalmente como o mais intenso mo-
delo utópico da sociedade harmonizada e/ou, ao mesmo tempo,
7. O termo “canto de ór-
gão” é usado na Península
Ibérica aproximadamente
entre os séculos XIII e
XVIII. É sinônimo de
canto polifônico, assim
como canto gurado.
São termos que indicam
composições realizadas
em notação com métrica
proporcional, ou seja, com
uso de guras rítmicas (daí
gurado). Eram usados
em oposição ao canto
gregoriano ou canto plano,
realizados com notação
neumática, que só indica
a altura dos sons, e não a
duração.
8. And while homopho-
nic songs taught children
to speak together in time
and constrained their
diction to the norms,
canons taught them to
hold their place in more
complex circumstances,
to concentrate, and to
contribute a unique voice
to the harmony.”
176
a acabada representação ideológica (simulação interessada) de
que ela não tem conitos (1989, p.30).
Analisando alguns relatos jesuítas, como a Carta para o Pa-
dre Provincial de Portugal (Bahia, 1565), de Antonio Blasques9,
percebemos que era justamente na realização do repertório de-
voto pelas crianças-autistas que se percebia a concretização
de uma sociedade em harmonia, utópica, convenientemente
convertida. Ao armar que, para o Bispo e demais autoridades
eclesiásticas presentes, “todo o regozijo era ver os Indiosicos
Brasis tangerem as suas autas [...] porque nisto parece que
punham muita parte do seu contentamento”, Blasques evi-
dencia um aparente descaso com a real assimilação da dou-
trina pelos curumins, e a valorização dada à capacidade de
reproduzir o repertório em conjunto, mostrando organização
e obediência a seu mestre.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensino da doutrina aos índios nas missões jesuítas era
realizado fundamentalmente por intérpretes, os chamados lín-
guas, que não tinham formação adequada em teologia e retó-
rica. Muitos destes intérpretes eram crianças indígenas recém
educadas, que pouco haviam assimilado o conteúdo dos textos
devotos.
A música era utilizada inicialmente como um atrativo para
a doutrina, especialmente para chamar as crianças indígenas
para a catequese. Num outro momento, a realização do re-
pertório devoto cantado em uníssono funcionava como um
reforço para a memorização dos textos.
Quando realizado por instrumentos, sobretudo por au-
tas, tal repertório funcionava como um trunfo para a discipli-
na e organização dos curumins, impressionando até mesmo os
padres visitadores, que viam naquela manifestação a esperança
de êxito da atividade missionária.
Se a palavra é necessária para concretizar e explicitar o
pensamento, enquanto a música potencializa seu signica-
do, nas missões jesuítas brasileiras os papéis parecem ter se
invertido: a música serviu antes como recurso de assimila-
ção, e a palavra, em língua desconhecida, constituidora de
um texto complexo, foi por muitas vezes elemento acessório
e não totalmente assimilado.
9. A transcrição deste
relato está em HOLLER,
2006, v.2, p.14-141.
177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Around 1600, students in France learnt to read with printed primers. They began with the letters of the alphabet, learning them by playing with little wooden or cardboard tablets or picking them out of books, and then moved on to syllables, which were learnt from syllabaries printed in large letters and containing the Pater noster , Ave Maria , Credo , Confiteor and the Benedicite . When they began to spell out whole words, children moved on to another syllabary containing the Magnificat , the Nunc Dimittis , Salve Regina , the Seven Penitential Psalms and the litanies of the Saints, all of them common prayers. Two pages from Jacques Cossard's Methodes pour apprendre a lire, a escripre, chanter le plain chant, et compter (Paris, 1633) can give us some idea of what these early modern primers looked like (see Figures 1–2). In the first lesson the text of the Pater noster is broken into syllables, whereas in the second lesson the students must discern the syllables of the Ave Maria themselves, a task aided by the small numbers Cossard has placed beneath the text to show how many letters should be read together as a syllable.
A flauta doce no Brasil: da chegada dos jesuítas à década de 1970. Tese (Doutoradoem Música
  • Patricia Aguilar
  • Michelini
AGUILAR, Patricia Michelini. A flauta doce no Brasil: da chegada dos jesuítas à década de 1970. Tese (Doutoradoem Música), Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.
Aspectos da música brasileira
  • Mário Andrade
  • De
ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.
Entre heterodoxos e ortodoxos: notas sobre catecismos dialogados na Europa e nas Colônias no século XVI
  • Maria Barros
  • Cândida
BARROS, Maria Cândida. Entre heterodoxos e ortodoxos: notas sobre catecismos dialogados na Europa e nas Colônias no século XVI. In: Fênix -Revista de História e Estudos Culturais, v. 5, n. 4, 2008, p. 1-20.
A música como instrumento de catequese no Brasil dos séculos XVI e XVII
  • Paulo Castagna
CASTAGNA, Paulo. A música como instrumento de catequese no Brasil dos séculos XVI e XVII. In: D.O. Leitura, n. 143, 1994, p.6-9.
Uma história de cantares de Sion na terra dos Brasis:a música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759). Tese (Doutorado em Música)
  • Marcos Holler
HOLLER, Marcos. Uma história de cantares de Sion na terra dos Brasis:a música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759). Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2006.
Educação jesuítica na Bahia colonial: colégio urbano, internato em seminário, noviciado
  • Antonietta Nunes
  • Aguiar
NUNES, Antonietta d'Aguiar. Educação jesuítica na Bahia colonial: colégio urbano, internato em seminário, noviciado. In:Mneme -Revista de Humanidades da UFRN, v.9, n. 24, 2008. (II Encontro Internacional de História Colonial, Natal, 16 a 19 set. 2008). Disponível em: http://www.cerescaico. ufrn.br/mneme/anais. Acesso em 01 de junho de 2016.
As festas no Brasil colonial
  • José Tinhorão
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TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Editora 34, 2000.