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"Você é um 'accident-prone diplomat'"

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Abstract

3172. “Você é um ‘accident prone diplomat’: minhas interações com o embaixador Rubens Antônio Barbosa”, Brasília, 2 outubro 2017, 45 p. Ensaio impressionista para servir de depoimento sobre minha relação de trabalho e amizade com o diplomata que foi meu chefe em diversas ocasiões. Enviado a ele, em 2/10/2017. Revista a versão reduzida, encaminhada em 12 de dezembro de 2017; enviada em 17/12/2017. Publicado na versão restrita no livro de Rubens Antônio Barbosa: Um diplomata a serviço do Estado: na defesa do interesse nacional (depoimentos ao Cpdoc) (Rio de Janeiro: FGV, 2018, 300 p.; ISBN: 978-85-225-2078-7), pp. 273-289.
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“Você é um ‘accident-prone diplomat’”:
minhas interações com o embaixador Rubens Antônio Barbosa
Depoimento elaborado por Paulo Roberto de Almeida
para subsidiar construção de testemunho oral.
Brasília, janeiro 2010-outubro de 2017.
Publicado, em versão resumida, no livro de Rubens Antônio Barbosa: Um diplomata
a serviço do Estado: na defesa do interesse nacional (depoimentos ao Cpdoc) (Rio de
Janeiro: FGV, 2018, 300 p.; ISBN: 978-85-225-2078-7), pp. 273-289).
A frase destacada no título foi, obviamente, pronunciada em Washington, pelo
embaixador Rubens Antônio Barbosa, em algum momento do ano de 2001; concordo
inteiramente com ela e, de certa forma, dela me orgulho, pois ela expressa, com rara
felicidade, minha atitude na diplomacia e, talvez, na própria vida. Não, não me
considero um diplomata desastrado, daqueles tipos caricaturais de cinema que
provocam acidentes pela sua simples aparição no cenário. Sou, sim, um diplomata
contestador, ou contrarianista, e nunca pretendi ser diferente. Estou sempre querendo
questionar os fundamentos empíricos de algum argumento, descobrir suas possíveis
deficiências para chegar a uma resposta mais adequada ao problema colocado; em
resumo, sou um desconfiado, um dubitativo, praticando um ceticismo sadio.
Creio que o Embaixador Rubens Antônio Barbosa captou, com total
percuciência, um traço de meu caráter, responsável tanto pela minha trajetória
profissional e acadêmica, quanto por alguns “acidentes de trabalho” ao longo de uma
carreira a que ele não esteve alheio, muito pelo contrário. Mas a frase em questão foi
dita em meio a uma interação profissional que durou várias décadas, ou seja, quase
toda minha carreira ativa no serviço diplomático, e ela talvez esteja na origem da
trajetória ulterior, de encerramento parcial da cooperação ativa, quando Rubens
Barbosa decidiu se aposentar. Vejamos, assim, como essa interação se deu, e como
ela se desenvolveu ao longo do último terço do século XX e início do século XXI.
Gênese
Conheci o então jovem conselheiro Rubens Antônio Barbosa ainda antes de
ingressar na carreira, em outubro de 1977, mas por puro acaso e sem que eu sequer
tivesse me movimentado para tanto, posto que não tinha certeza, então de conseguir
entrar na diplomacia. Explico.
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2!
Eu vinha de quase sete anos de autoexílio no exterior, quando, ao tomar
conhecimento de concurso para a diplomacia pelos jornais, resolvi ‘testar’ minha
‘ficha no SNI’ e fazer os exames de ingresso. Inscrevi-me, primeiro, no concurso para
o Curso de Formação à Carreira Diplomática, ou seja, a “porta” normal de ingresso na
carreira, feita de uma seleção pelo Instituto Rio Branco para todo e qualquer
candidato possuindo dois anos de qualquer curso superior. Eu já possuía Mestrado no
exterior (mais exatamente na Bélgica) e estava inscrito num doutoramento (também
na Bélgica, embora interrompido voluntariamente pelo meu retorno ao Brasil), e não
tinha a intenção de voltar a ser estudante, quando eu já era professor em São Paulo.
Para minha sorte, ou por puro acaso, o Itamaraty estava igualmente selecionando
candidatos à carreira mediante exames mais rigorosos – requerendo justamente curso
superior completo – com dispensa do CPCD-IRBr e ingresso direto, em função da
ampliação dos quadros que estava sendo feita nessa época, de expansão do Serviço
Exterior brasileiro em novos postos e novas atribuições funcionais, entre elas a
promoção comercial e a cooperação econômica, técnica e tecnológica. Assim,
portanto, que terminei a seleção para o Rio Branco – para a qual fui admitido em
segundo lugar, devo dizer, e achei as provas muito ‘fáceis’, com duas únicas exceções
– inscrevi-me no concurso direto, fixado para dois meses depois.
Lembro-me de ter feito as provas da segunda etapa em plena crise político-
militar em Brasília, em outubro de 1977, quando o general Sylvio Frota, até então
ministro do Exército, tentava “enquadrar” o presidente Geisel nas suas concepções
anticomunistas. O fato é que, um belo dia, sem que eu soubesse a razão ou a origem,
alguém do Rio Branco pediu que eu fosse ver o Conselheiro Rubens Barbosa, na
Divisão de Europa Oriental, a DE-II, no terceiro andar do Anexo I do Palácio do
Itamaraty. Cheguei ainda em meio às provas e sem saber exatamente porque eu tinha
sido chamado, posto que não conhecia absolutamente ninguém na carreira ou na Casa.
Desajeitado e meio confuso, apresentei-me na DE-II e fui imediatamente
recebido pelo jovem e desconhecido Conselheiro. Sem maiores rodeios, ele me
convidou para trabalhar com ele, ou melhor, naquela Divisão, anunciando que eu
passaria a cuidar dos temas comerciais e econômicos relativos a um projeto recém
começado, de análise e diagnóstico do comércio do Brasil com os países do Leste
Europeu – ou seja, todos os Estados da esfera soviética, inclusive a própria – e de
proposições para a ampliação desses fluxos de comércio. A DE-II – mas eu não tinha
a menor percepção dessas peculiaridades então – era a única divisão política que
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também fazia promoção comercial, dadas as outras peculiaridades do comércio com o
Leste Europeu, quase todo ele estatizado, aliás do lado de lá totalmente. Eu até teria,
sob o meu comando, economistas contratados no quadro desse projeto – financiado
pela Secretaria do Planejamento – para atingir os objetivos propostos, quais sejam, a
ampliação e diversificação do comércio com os países do Leste Europeu.
Muito surpreso por esse convite, quando eu tinha dúvidas sinceras de que
conseguiria ingressar na carreira pela via direta – eu ainda precisava fazer provas de
Direito e de Inglês, matérias nas quais eu me sentia menos preparado – respondi que
ainda não tinha certeza de que entraria naquele momento, agradeci, portanto, mas não
me comprometi. Algum tempo depois, eu soube a origem do convite: o “professor”
que corrigiu a prova de economia, feita no dia anterior, o conselheiro Carlos Eduardo
Paes de Carvalho, era vizinho de Rubens Antônio Barbosa e casado com a irmã de
sua esposa, Maria Ignez Correa da Costa Barbosa. Ele obviamente alertou o Rubens
Barbosa de que havia um candidato especialmente competente em economia, o que
gerou, então aquele convite imediato. Enfim, depois de agradecer, embora, de certa
forma, declinando o convite – jamais fui capaz de dizer não de forma convincente –
voltei às minhas provas, passei, novamente em segundo lugar, e retornei
imediatamente a São Paulo, onde ainda estava dando aulas em duas faculdades
(sociologia na FMU, e economia brasileira e internacional na Campos Salles).
Eu só deveria tomar posse em 1o. de dezembro de 1977, quando também
deveria escolher a minha divisão, passando a trabalhar imediatamente. Pela minha
classificação no concurso direto – o segundo lugar me dava direito a um prêmio
vinculado a essa qualificação, na verdade uma medalhinha – eu poderia escolher
praticamente qualquer divisão que quisesse, inclusive as de maior prestígio (isto é,
com viagens), que normalmente eram a DNU (Nações Unidas) e a DPC (Política
Comercial, ou seja, GATT e todo o resto). O que eu não previa era receber, ainda em
São Paulo, um telefonema do conselheiro Rubens Barbosa pedindo-me não só para
aceitar trabalhar na DE-II (uma divisão não exatamente requisitada pelos novos
diplomatas, dispondo de tanto charme quanto um sapato soviético), como também
para antecipar-me ao calendário oficial e ir mais cedo para Brasília, de fato para
começar a trabalhar imediatamente. Como se vê, o conselheiro estava ansioso para me
fazer trabalho, o que era um indicativo de que queria fazer da até então obscura DE-II
– posto que cuidando de países não exatamente apreciados pelo regime militar – um
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verdadeiro ‘departamento de promoção comercial’, sob o comando de uma das
‘estrelas montantes’ do Itamaraty, o ministro Paulo Tarso Flecha de Lima.
Não me lembro agora de minha reação oral a esse convite inusitado para fazer
horas extras ex-ante, mas tive de declinar da viagem, não apenas porque eu ainda
estava dando aulas em São Paulo, como também porque não havia previsão no MRE
para “posses antecipadas”, e seria estranho eu começar a trabalhar sem ser funcionário
público, ou seja, sem ser empossado oficialmente. Em todo caso, cercado assim pelo
conselheiro, eu fui sutilmente constrangido a aceitar aquele convite, do qual aliás, eu
nunca vim a me arrepender, a despeito de ter ido, justamente, para uma divisão sem o
charme habitual das “grandes divisões” do Itamaraty. Com muitas dúvidas a respeito
de meu futuro imediato, parti a Brasília sem saber exatamente o que eu iria fazer...
No dia 1o. de dezembro de 1977, estávamos os treze daquele pequeno exército
brancaleônico – jovens, por favor, consultem o Google para o nome Mario Monicelli
e seu filme L’Incredibile Armata Brancaglione – alinhados na Divisão do Pessoal,
aguardando que o conselheiro Sergio Duarte, chefe da DP, nos desse posse e lotação.
De minha parte, foi uma decisão de momento, pois até então eu hesitava quanto ao
convite do conselheiro Rubens Barbosa: não sabia realmente o que escolher, mas o
simples fato de ter recebido um duplo, ou triplo, convite foi decisivo na escolha. O
chefe da DP, que nos listou as vagas disponíveis na Secretaria de Estado, chamou o
primeiro da turma, que não hesitou um momento: DPC. Em seguida, se virou para
mim: “Secretário Paulo Roberto de Almeida, qual a sua preferência?”
Olhei para ele e disse: “DE-II”. Ele franziu os sobrolhos – como se dizia nos
livros de antigamente – e me interrogou novamente: “Qual a sua escolha?” Eu repeti:
DE-II”. Ele então adotou um tom paternalista e tentou me explicar: “Você não
entendeu: eu ainda tenho uma vaga na DPC, e duas na DNU; você pode escolher o
que você quiser.” Repeti, pela terceira vez: “DE-II”. Todos me olharam como se eu
fosse um ser bizarro, diretamente saído de outro planeta, como se pensassem: “Esse
cara deve ser maluco, tanta divisão boa e ele fica logo com a DE-II?!” Acho que o
chefe da DP não entendeu minha escolha; talvez nem mesmo eu – ignaro como era
das coisas do Itamaraty – tenha compreendido a extensão de minha opção naquele
momento, provavelmente fora dos padrões ‘normais’ das ‘ambições diplomáticas’.
Mas ela foi decisiva no meu itinerário ulterior, e provavelmente durante os trinta anos
seguintes da minha carreira, como agora passarei a relatar, em um tom relativamente
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impressionista, mas desprovido de qualquer intenção laudatória, uma vez que sempre
me pautei, em meus escritos, por total honestidade intelectual.
Ritos de passagem
Vindos de um concurso direto, a maior parte de nossa turma – com exceção de
três ou quatro, que tinham ingressado no CPCD-IRBr no ano anterior, mas fizeram o
concurso direto para poupar um ano de estudos – não tinha nenhuma experiência de
trabalho diplomático ou da Casa tout court. Não tínhamos sido ‘socializados’ nos usos
e costumes diplomáticos, nem tivemos tempo de aprender corretamente os ossos do
ofício, salvo umas poucas palestras de apresentação geral da Casa. Assim, o primeiro
expediente que eu apresentei ao Conselheiro Rubens Barbosa – um telegrama para um
dos postos que estavam sob minha responsabilidade, Polônia ou Iugoslávia, já não me
recordo – estava redigido em linguagem ‘civil’, em total desconformidade com a
redação profissional, que, aliás, eu ainda não tinha aprendido praticamente nada. O
Conselheiro foi compreensivo, e meu ensinou as primeiras letras, o “beabá” da
redação diplomática (embora eu acredite não ter jamais incorporado todos os trejeitos
redacionais da Casa).
De hábito, contudo, era muito exigente, consigo mesmo e com os
subordinados, e pouco paciente com os ‘lentos’: seu foco exclusivo era o trabalho,
não apenas o trabalho burocrático, normal, costumeiro, mas aquilo que os marxistas
chamam de ‘sobre-trabalho’, a mais-valia a ser extraída do trabalho duro e dedicado.
O terceiro secretário é o ‘proletário’ da diplomacia, o ‘servo de gleba’ desse regime
feudal que constitui o Itamaraty, um ‘operário’ da linha de montagem que faz mover
aquela complexa máquina do serviço exterior, um ‘soldado’ da frente de batalha que
são as negociações diplomáticas, mas ele tem de saber cumprir ordens, mesmo as
mais absurdas. Nunca fui muito muito adepto dessa servidão ritual do diplomata.
Confesso, de fato, que esse não é, nem nunca foi o meu estilo: de espírito
aberto, senão ‘libertário’, nunca deixei ter uma segunda opinião, contrarianista,
chegando muito frequentemente a contestar ordens de superiores, ou arguindo algum
argumento alternativo. Embora determinativo, o conselheiro Rubens Barbosa gostava
de ouvir, desde que os argumentos fossem razoáveis e ponderados, sem aquilo que
habitualmente se chama de “enrolação”. Ele queria resultados, sem se importar muito
com os meios, ou os instrumentos para chegar a algum resultado. Creio que foi isso
que me fez apreciar o estilo do conselheiro: o foco no trabalho, a despreocupação com
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os formalismos e os maneirismos dos demais diplomatas, a produção, os resultados, a
criação de ainda mais trabalho, o seu jeito seco de falar, indo direto ao assunto,
sobretudo sem aquilo que antigamente se designava por ‘frescuras’ (alguns acham que
tem demais entre os diplomatas, algo do qual não tenho certeza; talvez um pouquinho
acima da média, apenas).
Com minha filosofia libertária – mas ainda marxista nessa época, inclusive
usando um ‘nom de plume’ para publicar alguns artigos sob o regime militar –
comecei minha vida dupla nas ‘entranhas do monstro’ (uma vez que eu ainda estava
empenhado em derrubar o governo militar). O Vaticano, involuntariamente, ajudou no
meu primeiro trabalho realmente importante no MRE: com a morte de mais um papa,
a poucos dias de sua eleição – seja lá como tenha sido o processo de escolha dos
cardeais – o papa seguinte resultou ser um polonês, justo o ‘meu’ país. Karol Wojtylla
era realmente uma figura extraordinária, mas isso eu aprendi em pouco tempo, lendo
os boletins da Radio Free Europe e da Radio Liberty (eram as nossas principais fontes
de informação sobre o bloco soviético, melhores, em todo caso, do que os telegramas
ou os ofícios das embaixadas, já que eram financiadas pelas generosas dotações da
CIA). O conselheiro apreciou meu resumo sobre o papel político da Igreja Católica no
leste europeu e, em especial, sobre seu papel decisivo na história da Polônia
comunista. Acho que comecei bem: meu memorandum (tinha esse nome latino, mas
escrevíamos em vernáculo...) parece ter sido apreciado, e lamento hoje não ter
guardado cópia em meus registros pessoais, na verdade organizados bem depois.
O conselheiro era um grande trabalhador e, toda noite, era um dos últimos a
sair, carregando várias pastas embaixo do braço; no dia seguinte, às 9hs, já estava no
trabalho com todos os nossos expedientes processados, corrigidos, aumentados. Ele
então começava a fazer o que sempre fez: distribuir mais trabalho a cada um de nós –
um punhado de terceiros secretários, quatro ou cinco, e um ou dois primeiros
secretários. Esse stakhanovismo todo no trabalho diplomático combinava com o
socialismo real, numa época em que eu era ainda socialista (mas certamente não pró
soviético). Eu já tinha conhecido (e vivido) no socialismo real (vários deles), durante
meu exílio voluntário na Europa, e sabia muito bem a tremenda fraude que era aquela
‘coisa’. O conselheiro talvez apreciasse meu estilo anarco-marxista, contestador mas
trabalhador, e o fato é que eu fiquei bem, muito bem, na ‘irrelevante’ DE-II.
Tão bem que acabei namorando e, depois, casando na DE-II, graças a um
complô do conselheiro, que me colocou para trabalhar com a menina mais inteligente
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e bonita de toda a tropa de economistas. Carmen Lícia estava, teoricamente, sob a
minha ‘chefia’ (seja lá o que isso queria dizer), mas ela ganhava praticamente o dobro
do que eu ganhava (bem, ela era economista; eu, um simples diplomata), ela tinha
telefone, e até um carro; eu só tinha um apartamento funcional, o que parece até
razoável como troca. Bem, o fato é que abençoados pelo conselheiro, e seu estilo de
trabalho, acabamos ficando juntos, no trabalho e na vida civil. Casamos um ano
depois (ainda estamos casados, permito-me lembrar). Não posso dizer que o
conselheiro tenha sido nosso “anjo da guarda”, pois desses detalhes cuidamos nós
mesmos, mas se não fosse seu convite – e o fato de nos ter colocado para trabalhar
juntos (mais juntos, impossível: na mesma sala, uma mesa de frente para a outra) – eu
não teria conhecido Carmen Lícia (et tout ce qui s’ensuit...).
Minha iniciação nas lides diplomáticas e meus primeiros passos nos estranhos
‘costumes’ diplomáticos foram dados, portanto, na DE-II, sob a chefia do conselheiro
Rubens Barbosa, com efeitos até mais permanentes do que eu poderia examinar. Ao
me ser oferecido meu primeiro posto no exterior, sem que eu jamais tivesse solicitado
uma remoção, senti certa resistência do conselheiro em me ‘soltar’. De minha parte,
eu teria ficado mais tempo no Brasil, pois o trabalho me interessava – mesmo com
toda a ‘breguice’ e falta completa de charme dos países do bloco soviético – e o
ambiente era bom, mas foi Carmen Lícia, já grávida, quem ‘aceitou’, se ouso dizer, a
remoção para Berna, meu primeiro trabalho no exterior, de uma série de seis
remoções até o ano 2000. Acho que comecei bem a carreira; ela continuaria bem...
Interregno europeu
A estada na Suíça não poderia ter sido melhor: Pedro Paulo nasceu a poucos
meses de nossa instalação, mas antes e depois de seu nascimento estávamos viajando
intensamente, ao norte, ao sul, a leste e a oeste de Berna, a capital helvética. Retomei
o doutoramento na Bélgica, interrompido com minha volta ao Brasil em 1977, e com
a vida de fraldas e mamadeiras, sem muitas saídas de lazer também comecei a
escrever um romance apócrifo tendo como personagem Sherlock Holmes no Brasil,
mas nunca cheguei a ir além do primeiro capítulo. Em todo caso, comecei a ler, anotar
e a redigir partes do que seria a minha tese, sobre a Revolução Burguesa no Brasil,
uma herança de minha fase florestânica, em todo caso radicalmente transformada a
partir de um projeto novo que elaborei, consoante um novo posicionamento, com base
em minhas leituras, na experiência de vida desde 1977 e novas reflexões sobre o
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desenvolvimento comparado das sociedades nas condições do capitalismo central e
suas dependências periféricas.
Retomando o processo da tese em 1981, eu a terminaria e defenderia em 1984,
já no meu segundo posto, Belgrado, escolhido justamente para não ficar muito
distante de Bruxelas. Durante todo o período, combinei estudos e viagens por toda a
Europa com Carmen Lícia, sem esquecer de trabalhar, obviamente. Não me lembro de
ter trocado extensa correspondência nesse período, talvez cartões protocolares em
ocasiões festivas e mais alguma coisa mais puramente informativa. Digamos que eu
acompanhava de longe a sua ascensão funcional, o que compreende sua promoção a
ministro de segunda classe, bastante rápida por sinal. Eu também tinha sido
promovido a segundo secretário, aos exatos dois anos do início da carreira, mas essa
promoção foi estritamente por antiguidade, sem qualquer mérito, como ocorre
geralmente com terceiro-secretários. Terminada a tese, estava na hora de pensar em
voltar para o Brasil, para uma nova etapa de vida, minha e do Brasil.
Nova República, novos tempos, velhas relações
Voltei ao Brasil no exato momento em que Tancredo Neves foi indiretamente
eleito à presidência da República. Meu primeiro chefe, depois ministro de segunda
classe, já tinha sido promovido a Embaixador, valendo-se, para que conste o registro,
de uma facilidade aberta por uma mudança na legislação do Serviço Exterior,
permitindo aos que se encontrassem trabalhando para outros órgãos – e teoricamente
fora, temporariamente, da lista de antiguidade – se beneficiassem ainda assim de
promoções (fora do quadro, como se dizia, ou seja, eram promovidos mas ficavam
sem um número na lista de antiguidade, apenas a inserção apropriada). O Brasil tem
desses casuísmos típicos dos comportamentos corporativos, feitos para beneficiar
certas categorias de pessoas, ou talvez pessoas específicas, em detrimento das demais.
Não quero dizer que o então ministro, doravante embaixador Rubens Barbosa, tenha
sido o instigador da medida, ele apenas tomou carona numa disposição feita sob
medida para beneficiar alguns amigos do poder, o que provavelmente não era o seu
caso na época. Ele se encontrava inclusive trabalhando num dos órgãos da Presidência
da República quando esse arranjo interna corporis foi instituído, mais exatamente no
gabinete do então Ministro Especial (ou Extraordinário, suprema ironia) da
Desburocratização, Hélio Beltrão. Grande homem, inteligência instintiva, neste caso
trabalhando segundo regras de simples bom-senso, e que fez um trabalho
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verdadeiramente extraordinário, apenas para ser derrotado mais tarde pela mesma
burocracia que havia tentado superar: muitas das suas medidas reverteram no cipoal
administrativo nos anos seguintes, pois esta é uma fatalidade do Estado brasileiro.
Em todo caso, assim que desembarquei em Brasília, ele me disse para esperar
um pouco que estaria pronto assumindo novas funções na Secretaria de Estado e
pretendia que eu fosse trabalhar novamente com ele. Fiquei lisonjeado com o convite,
pois não teria de me preocupar com a escolha de alguma área de meu interesse (mas
que provavelmente já teria todas as suas vagas ocupadas). Burocracias fortemente
endogâmicas e autocentradas, como a do Itamaraty, são assim: as pessoas vão sendo
colocadas na máquina administrativa tanto em função de uma teia de relações
pessoais que elas vão tecendo ao longo da carreira, como em consequência do mérito
próprio, ou seja, do esforço individual e do desempenho nas atividades correntes.
O embaixador Rubens Barbosa convidou-me, pouco antes da posse do
presidente eleito Tancredo Neves, a trabalhar com ele na então SRC, Secretaria de
Relações com o Congresso, a ponte entre o Itamaraty e o poder legislativo (com
minúsculas, desde então). Eu não tinha especial predileção pela área, não
especialmente dedicada à política externa – talvez, mais bem, um trabalho de
assistência a viagens de parlamentares, com menor ênfase na tramitação de atos
internacionais no Congresso – mas aproveitei a oportunidade para começar a
pesquisar e analisar o papel dos partidos políticos e do próprio Congresso nas relações
internacionais e na política externa do Brasil, objeto de alguns ensaios meus, que
depois integraram os primeiros livros publicados.
A transição política não se deu exatamente como o programado, ou esperado:
o presidente eleito foi internado na véspera da posse, para o que seria uma operação
simples, mas todos sabem a história trágica no decorrer do mês que se passou entre
sua “pequena intervenção cirúrgica para tratar uma simples diverticulite” e o final
agônico que ele teve de enfrentar, num quadro de infecção generalizada. A tragédia
brasileira também representou uma outra tragédia em minha família, embora esperada
desde algum tempo: meu pai, um fumante inveterado desde sempre, desenvolveu um
câncer de pulmão e de garganta e veio a falecer quase ao mesmo tempo que Tancredo
Neves, no mês de abril de 1985.
A posse, se é que houve tal coisa, foi patética: o vice presidente (por acaso)
José Sarney foi “entronizado” pelo presidente do Supremo, na ausência do presidente
“sainte”, João Figueiredo, que preferiu abandonar o Palácio do Planalto pelos fundos
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a ter de passar a faixa presidencial a um traidor do partido governamental, como de
fato era o caso de Sarney. Punhaladas nas costas são comuns em política, mas os
militares devem guardar um sentido mais severo dos compromissos assumidos. Em
todo caso, não fui trabalhar com o Embaixador Rubens Barbosa, como esperado, ou
melhor, ele não foi trabalhar comigo. Com a posse, como novo chanceler (escolhido
por Tancredo), do engenheiro, banqueiro (Itaú), industrial (Itautec) ex-prefeito (de
São Paulo) e político improvisado, Olavo Setúbal, Rubens Barbosa tornou-se seu
chefe de gabinete, não me convidou para trabalhar com ele no que chamávamos de
“Casa Grande”; eu fiquei na “senzala” do Anexo I, servindo de assessor ao novo
chefe da SRC, embaixador Luis Felipe Teixeira Soares, de ilustre família. Chefe
muito cauteloso, como poucos encontrei na carreira, hesitando assinar algum
telegrama que eu preparava, por eventualmente achar que “podia não pegar bem”
junto aos superiores na Casa Grande.
Nessa época – e suponho que em outras também – o Itamaraty era, a cada
“estação anual” da assembleias gerais da ONU, um verdadeiro “baby sitter” de
parlamentares (de seus familiares também, se por acaso viajassem a Nova York
igualmente): carro no aeroporto, recepção na residência do Representante junto à
ONU, assistência com tradução e o que mais fosse preciso. Poucos parlamentares
permaneciam de fato na Assembleia Geral – bem, não deve ser nada agradável ficar
sentado por longas horas, ouvindo aqueles enfadonhos discursos das mais diversas
ditaduras, afirmando que o sistema internacional não ajudava no desenvolvimento de
seus países – e a maior parte do tempo era ocupada em lojas de departamento e em
restaurantes da cidade. Um belo passeio cada ano, em alternância para os felizardos
que viajavam com tudo pago pelo Estado (ou seja, por todos nós). Eu sempre achei
um absurdo esse tipo de “mordomia”, e nunca deixei de expressar minha opinião, para
espanto de alguns colegas, que achavam tudo aquilo “normal” (diárias ajudam...).
Nova experiência de trabalho conjunto, após breve interlúdio
Enquanto o embaixador Rubens Barbosa atuou como chefe de Gabinete do
ministro Olavo Setúbal, durante quase todo o ano de 1985, eu permaneci como
assessor da Secretaria de Relações com o Congresso, aperfeiçoando o conhecimento
pessoal, de tipo acadêmico e funcional, sobre as relações entre parlamento e política
externa – de cujas pesquisas resultaram alguns artigos entre as interações entre os
partidos políticos e a diplomacia brasileira – e preparando novas etapas de minha
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11!
dupla militância entre a academia e a diplomacia. No segundo semestre desse ano já
estava dando aulas de Sociologia Política no Mestrado em Sociologia da UnB, a
mesma matéria que também assumi no Instituto Rio Branco, no início do ano seguinte
(e que já tinha sido dada por Marcílio Marques Moreira, quando o IRBr funcionava
no Rio de Janeiro, até 1975, e depois disso, em Brasília, pelo Professor José Carlos
Brandi Aleixo, da UnB).
Foram anos de intenso trabalho, tanto no plano pessoal, quanto, suponho, para
o chanceler-banqueiro e seu chefe de Gabinete: em todo caso, o ministro Setúbal
causou alguns tremores no Itamaraty, ao decidir por alguma, embora pequena,
abertura na fortaleza protecionista da política comercial brasileira: o que ele fez,
simplesmente – mas que deixou os diplomatas da área de cabelos em pé – foi aceitar,
numa reunião ministerial do GATT, mas com muitas salvaguardas, discutir os novos
temas que os países desenvolvidos, com os Estados Unidos à frente, estavam
querendo incluir na próxima rodada multilateral de negociações comerciais. Os
diplomatas da Divisão de Política Comercial, que já tinha resistido a uma tentativa
semelhante quando o ministro da Fazenda Ernani Galvêas – em troca de algum alívio
na questão da dívida brasileira – tentou a mesma coisa, em 1982, se mostraram muito
contrariados com o gesto de Setúbal, com o que o chanceler da “diplomacia de
resultados” passou a ser menos admirado por esses nacionalistas. O “Doutor Olavo”,
como era conhecido por todos, dentro e fora da Casa, abriu, em todo caso, as portas
para o que os assim chamados nacionalistas e “desenvolvimentistas” – como eles
provavelmente gostariam de ser chamados – reputavam ser um erro estratégico:
aceitar, enfim, as repetidas demandas de americanos e de alguns outros representantes
de países desenvolvidos para que os novos temas (serviços, propriedade intelectual,
investimentos, e alguns outros paralelos) fossem incluídos na próxima reunião
ministerial do Gatt, com vistas a lançar uma nova rodada de negociações comerciais.
Olavo Setúbal, no entanto, não “desfrutaria” dessa aparente “modernização” –
ou concessão indevida e desastrosa, como queriam acreditar os proponentes de uma
política comercial anacronicamente mercantilista desde muito tempo – pois, como já
ocorrido com diversos outros empresários que se deixam encantar pela possibilidade
de iniciar uma carreira política, ele também foi picado pela chamada “mosca azul”.
Vários homens de negócios, convidados por algum presidente desejoso de atrair o
“grande capital”, a “burguesia industrial”, ou representantes daquilo que os marxistas
chamam de “capital financeiro monopolista” para se desempenharem como ministros
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12!
do seu governo, passam a acreditar que possuem chances eleitorais de se saírem bem
em algum escrutínio para cargos executivos ou um mandato parlamentar. Doutor
Olavo acreditou que poderia se eleger prefeito de São Paulo, nas eleições que
ocorreriam em outubro de 1985, e negociou sua candidatura com o então Partido da
Frente Liberal, que, atraído mais pelo “capital” do que pelo personagem, aceitou a
oferta, apenas para abandoná-lo no caminho, logo em seguida, ao ter provavelmente
obtido alguma contribuição do banqueiro e ter logo constatado que o candidato não
teria chances reais de ganhar a disputa na principal cidade do país.
Lá se foi, portanto, Doutor Olavo para sua aventura político-eleitoreira, com o
que o embaixador Rubens Barbosa perdeu seu cargo no Gabinete: quase que ele fica
numa difícil situação, a se deslanchar uma dessas batalhas clânicas de que são
pródigas as burocracias introvertidas, como é o Itamaraty. Antes de deixar o
ministério, e se desvincular do governo para ingressar na arena política, Olavo
Setúbal nomeou o embaixador Rubens Barbosa como chefe da administração, o cargo
provavelmente mais poderoso dentre as várias funções dos estamentos funcionais do
Itamaraty, imediatamente após o de Secretário-Geral da Casa, então exercido pelo
poderoso embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, uma espécie de “Roi Soleil”
dentre os embaixadores ascendentes (a despeito de ser relativamente jovem) na
estrutura de poder do Itamaraty. Ele devia esse cargo ao lobby mineiro – ou seja,
diretamente vinculado ao presidente eleito, mas falecido, Tancredo Neves – e podia
ser chamado de chanceler virtual, ou até real, o que ele passou realmente a ser logo
após a designação do próximo chanceler, escolhido pelo presidente Sarney na pessoa
do seu amigo, cafeicultor rico e ex-governador de São Paulo, Roberto de Abreu
Sodré. A primeira medida de Paulo Tarso foi demitir sumariamente Rubens Barbosa
desse cargo, uma vez que era notória a competição – alguns diriam animosidade, ou
até hostilidade – entre ambos. Armado igualmente de seu lobby paulista, e em outras
esferas também, Rubens Barbosa conseguiu articular para si, ainda antes de se
encerrar 1985, uma Subsecretaria, a Multilateral, trocando de lugar com um outro
embaixador que ocupava esse cargo.
Pouco tempo depois, ele me mandou chamar da Secretaria de Relações com o
Congresso para trabalhar em seu gabinete da SGAM, o que eu teria aceito com prazer
e imediatamente, se colegas (não sei se bem intencionados, ou apenas preocupados)
não tivessem iniciado uma campanha de “terrorismo funcional” contra essa aceitação.
Diziam-me que se eu fosse trabalhar com Rubens Barbosa eu seria “marcado” pelo
!
13!
SG Flecha de Lima, e não teria nenhuma chance de promoção ou de alguma boa
remoção enquanto ele mandasse na Casa. Lembro-me de na época ter conversado a
respeito com o embaixador Rubens Ricupero que, depois de ter acompanhado
Tancredo Neves em sua viagem bastante cansativa de presidente eleito às principais
capitais de nossos interlocutores mais importantes na frente externa, tinha assumido o
cargo de assessor presidencial para assuntos internacionais. Tranquilizado a respeito
dessa aceitação, passei então a trabalhar, pela terceira vez com Rubens Barbosa, em
meio a certo ambiente de tensão em virtude, justamente, dessa mais propalada do que
real disputa de poder entre dois embaixadores poderosos da Casa.
Foram meses de intenso trabalho durante todo o ano de 1986, como sempre foi
o caso com Rubens Barbosa, um homem que conseguia resolver os mais diversos
assuntos rapidamente, dominando, literalmente, dossiês totalmente novos da noite
para o dia. Ele sempre partia para casa em horários já avançados (mesmo para os
padrões do Itamaraty) sobraçando vários maços para dar continuidade ao trabalho
noite adentro, e voltava na manhã seguinte, já com os diversos assuntos digeridos e
instruções precisas para cada um dos assessores diretos e para os chefes dos
respectivos departamentos e divisões da área política multilateral. Como nunca relutei
ante trabalho pesado, e rápido, e como sempre fui relativamente eficiente na redação
de qualquer memorando, artigo, discurso, expediente de serviço, ou qualquer outro
texto exigindo algum conhecimento geral, passei diversos meses fazendo um trabalho
que eu mesmo não julgo o mais interessante na burocracia do Itamaraty: o de
Gabinete. A despeito da aparência de poder que isso transmite, trata-se de burocracia
pura, na maior parte do tempo, uma vez que o trabalho executivo de formulação de
posições e de preparação de instruções fica necessariamente com os encarregados de
cada um dos temas e áreas nas unidades primárias, isto é, substantivas.
Mas, o fato é que eu não apenas despachava e movia papeis de um lado para o
outro, mas preparava os próprios despachos do chefe, depois de ouvi-lo e de dar uma
forma burocrática inteligente (pelo menos eu achava, pois sempre detestei o
“diplomatês insosso” que aparece nesses expedientes) às decisões e minutas de
instruções para os postos, além de atender pedidos de artigos ou outros textos fora da
rotina normal. Uma coisa que eu jamais agreguei ao final de meus despachos em
nome da chefia, ou seja, que seriam assinados pelo embaixador Rubens Barbosa, era
sob a forma daquelas três letrinhas rituais, e habituais, que sempre lia nos memoranda
que vinham de outras áreas: “s.m.j.”, ou seja, “salvo melhor juízo”. Tal sintoma de
!
14!
precaução poderia indicar humildade do subscritor anterior, ou então falta de
confiança nas suas próprias opiniões ou argumentos. Mais provavelmente se tratava
de atitude defensiva contra alguma contrariedade vinda pelo alto. Sempre acreditei
que uma exposição clara da questão, uma argumentação sólida quanto ao rumo ou
postura que o Brasil deveria seguir numa determinada votação ou negociação, e a
adoção consequente de uma escolha estritamente definida e defendida dentre as
opções disponíveis, dispensava completamente essas muletas de dúvida intelectual ou
de insegurança funcional. Nunca usei o tal de “SMJ”, pois sempre achei que cada um
deve assumir responsabilidade pelas posturas que assume.
Esse intenso trabalho de gabinete, por vezes enfadonho (pelas questiúnculas
que inevitavelmente surgiam, pelos pedidos de apoio, ao chefe, para quadro de acesso
ou promoção), mas também excitante, quando questões importantes eram deixadas
para julgamento do próprio chefe, me rendeu pelo menos uma indicação – a única que
jamais tive no Itamaraty –, a de passar a integrar o quadro de “cavaleiros” (o dos
secretários) da Ordem de Rio Branco, honraria concedida no Dia do Diplomata de
1986, mas que resultava de recomendação de Rubens Barbosa ainda em 1985, quando
ele ainda ocupava a chefia de Gabinete do “Doutor Olavo” (talvez uma espécie de
compensação por não me ter “arrastado” consigo para o gabinete naquela gestão).
Nunca dei muita importância – na verdade não dou nenhuma – a esse tipo de
“honraria”, que é quase sempre concedida politicamente ou na base do compadrio, e
até cogitei, anos à frente, já na gestão lulopetista, devolver essa minha comenda em
protesto quando um notório medíocre (e corrupto) parlamentar foi com ela agraciado
(ainda que numa categoria diferente da minha na Ordem), apenas por exercer uma
função política. Dissuadido por amigos e colegas, não cheguei a concretizar o gesto
de despeito – ainda que eu tivesse escrito, e quase enviado, uma correspondência para
solicitar meu desligamento do quadro ordinário da Ordem de Rio Branco –, mas
tampouco voltei a usar, em qualquer oportunidade, essas minhas insígnias.
O trabalho no gabinete “multilateral” de Rubens Barbosa – na verdade mais
do que isso, pois sempre surgiam temas “paralelos” – era intenso, o que entretanto
não me impediu de me exercer, durante todo o ano de 1986, como professor de
Sociologia Política na UnB e no Instituto Rio Branco, e de dar aulas eventuais em
alguns outros cursos, ou de proferir palestras ou participar de seminários, para os
quais era regularmente convidado, como um dos poucos diplomatas “doutores” da
Casa. Aliás, até essa época, apesar de ser contemporâneo cronologicamente de todos
!
15!
os meus colegas de turma, eu tinha, na contagem total da lista de antiguidade, 400
pontos a mais que qualquer um deles (e que todos os demais no quesito de pontos por
títulos), uma vez que eu tinha mestrado e doutorado completos (valendo 200 cada
um), e não uma simples graduação como a maioria dos diplomatas (muitos, inclusive
vários chefes da Casa, embaixadores experientes, nem isso tinham, uma vez que
haviam ingressado no Instituto Rio Branco com apenas os dois anos requeridos de
qualquer curso superior). A minha “vantagem comparativa” – absoluta e relativa – foi
no entanto eliminada logo em seguida, na reforma do Regimento do Serviço Exterior
feita justamente em 1986, que decidiu suprimir – não sei por quais motivos, mas
provavelmente de despeito por parte dos “sem títulos” – essa coluna especial, e
supostamente intelectual, daquela listagem. Fui equalizado nos pontos aos demais
colegas, muito embora isso não me trouxesse nenhuma vantagem material, apenas o
reconhecimento do trabalho acadêmico (que deixou de contar, portanto).
Promessas de promoção e de remoção, com condicionalidades
A vida da maior parte dos diplomatas é geralmente feita unicamente e apenas
de duas coisas: promoções e remoções, de preferência o mais rapidamente possível as
primeiras, e as mais agradáveis possíveis as segundas. O resto é o resto, ou seja,
trabalho, muito trabalho, mas também relações, o famoso “quem indica”, quem pede,
quem apoia, quem exige, quem suplica, quem implora, quem comove, quem
convence, quem agrada. Eu confesso que nunca fui de pedir nada a ninguém, pois
sempre considerei que meu trabalho deveria valer por si só, sem necessidade de
propaganda adicional, minha ou de qualquer outra pessoa. Nunca pedi para ser
removido para este ou aquele posto em especial, tendo sempre recebido convites para
ocupar cargos oportunamente. Tampouco me empenhava, a cada semestre quando
necessário, para “ingressar no quadro de acesso”, essa obsessão tipicamente
diplomática, junto com a sua consequência, que é a de “sair do quadro de acesso” o
mais rapidamente possível, pela promoção obviamente. As minhas promoções e
remoções se deram sempre regularmente, em tempo e condições adequadas e
satisfatórias, e nunca me preocupei com esses pormenores habituais da vida
diplomática, até fase recente, por motivos bem particulares. Essa característica minha,
a de nunca pedir, sequer lembrar, foi aliás motivo de uma ou duas reclamações do
próprio Rubens Barbosa, que julgava que como chefe ele tinha o “dever” de pedir por
mim, pelos seus subordinados, caso contrário poderia ser mal julgado ou mal visto
!
16!
pelos próprios pares, ao não defender e se esforçar pela promoção de um funcionário
seu. Simplesmente não o fiz, em nenhum momento de nossa longa convivência, por
não ser de meu estilo e comportamento esse tipo de procedimento que julgo próximo
do “beija-mão”, o que sinceramente desprezo. Sempre acreditei que o Itamaraty
deveria, em toda independência, julgar de forma transparente, a qualidade do serviço
e dos trabalhos de seus funcionários, sem qualquer interferência externa. Certo?
Mas, justamente, nesse ano de 1986, trabalhando com Rubens Barbosa, tive
dois contratempos nesses dois dramas da vida funcional de um burocrata diplomata.
Indicado por Rubens Ricupero para seguir o embaixador Marcílio Marques Moreira
na sua missão à frente da embaixada em Washington – então como agora uma das
mais importantes, senão a mais importante, das representações diplomáticas do Brasil
(e para quase todos os demais países) – minha portaria foi preparada pela Divisão do
Pessoal, e de lá seguiu para a Secretaria Geral (a de Paulo Tarso), e lá ficou parada
por semanas e semanas. Ocorre que eu também era candidato a ser promovido a
Primeiro Secretário e, segundo me mandaram recado do próprio SG, eu teria de
escolher: ou teria a promoção, ou a remoção para Washington, as duas não, por serem
consideradas “prêmios em excesso”. Depois de alguma hesitação, mandei “informar”
ao SG que preferia ser promovido, ponto (mas não desisti da remoção).
O embaixador Rubens Barbosa obviamente apoiou minha promoção, que aliás
estava em seu tempo normal, sem qualquer “pulo” extraordinário, mas preferiu não se
envolver na remoção, provavelmente por preferir me reter por mais algum tempo, ou
por já ter outros planos para mim, ou melhor, para minha assessoria continuada a seu
serviço. O fato é que, a despeito do empenho pessoal dos embaixadores Marcílio e
Ricupero, minha remoção para Washington ficou efetivamente bloqueada na SG, sem
qualquer perspectiva de ser aprovada pelo todo poderoso Paulo Tarso (que na verdade
devia apenas estar querendo “cercar” o embaixador Marcílio de “enviados” seus, não
de escolhidos pelo próprio, ou de alguém de perfil independente, como já era o meu).
Fiquei obviamente irritado com o “bloqueio”, mas por muito pouco tempo,
uma vez que logo após uma segunda ou terceira confirmação de impasse, o próprio
Rubens Barbosa convidou-me para acompanhá-lo em sua primeira missão como
embaixador no exterior, uma nova delegação, que estava sendo criada especialmente
para ele em Genebra, um desmembramento da Delegação Permanente, com a
agregação de duas de suas “costelas” numa nova representação, a do Desarmamento e
Direitos Humanos (aqui envolvendo também Refugiados e Cruz Vermelha), apelidada
!
17!
carinhosamente de Brasdesarm (o Itamaraty deve ter, em algum lugar de seus
corredores burocráticos, um departamento secreto, que se reúne de vez em quando,
especialmente encarregado de tramar novas siglas e outros acrônimos estranhos, pois
estão sempre encontrando designações estranhas para novos e velhos serviços).
Sem perspectiva de ir para Washington, já promovido, ganhando muito mal
em Brasília – já não era mais o salário ridículo dos tempos de terceiro secretário, o
que me impediu de ter crediário numa loja de departamentos assim que cheguei em
Brasília, mas ele continuava inferior ao de um simples ascensorista do Senado –
acabei aceitando a inesperada remoção, mesmo que estivesse bastante engajado nos
novos tempos do Brasil: um processo constituinte (em função do qual escrevi vários
trabalhos de cunho acadêmico), aulas na UnB e no Instituto Rio Branco, seminários e
produção intensa no plano intelectual. O Brasil, aliás, vivia em sobressaltos
constantes, pela inépcia do presidente, seu populismo e patrimonialismo evidentes, e
pelos arroubos surrealistas de toda uma fauna de “novos democratas”, depois de mais
de duas décadas de regime autoritário.
A conjuntura econômica se deteriorava sensivelmente e, depois de dois planos
frustrados de estabilização, Cruzado I e II, a inflação voltou a se acelerar de maneira
significativa. A situação chegou ao ponto ridículo de o governo mandar “cercar boi no
pasto”, uma vez que, com os controles de preços, produtos essenciais começaram a
faltar nos suprimentos comerciais. Para agravar, e escondendo o fato de que o país já
se encontrava simplesmente sem reservas – depois de ter importado arroz, feijão, até
carne, durante meses seguidos – para honrar seus compromissos externos, com
arroubos de patriotismo, o presidente anunciou uma “moratória soberana”, dizendo
demagogicamente que não pagaria a dívida externa com a fome do povo brasileiro.
Nunca haverão de faltar líderes populistas e políticos demagogos no Brasil...
Mudança de planos, alteração de situação, um intervalo na cooperação
Pois foi nesse clima de instabilidade quase caótica, que o embaixador Rubens
Barbosa me despachou na frente, em fevereiro de 1987, para adiantar os trabalhos de
instalação da nova representação em Genebra, antes que ele chegasse para cuidar de
encontrar uma residência oficial e outras providências do gênero. Estava eu, portanto,
cuidando da minha própria instalação na cidade, quando a notícia bombástica chegou
por telefonema do próprio: com o agravamento da doença do então ministro da
Fazenda, Dilson Funaro – o segundo da administração Sarney, depois de seis meses
!
18!
do indicado por Tancredo, Francisco Dornelles, seu próprio sobrinho, até 1985 um
funcionário da Receita Federal –, o presidente resolveu designar um socialdemocrata
heterodoxo, o administrador e professor paulista Luiz Carlos Bresser Pereira como
novo chefe das finanças do país, tendo este convidado o embaixador Rubens Barbosa
para ser o seu Secretário de Assuntos Internacionais.
Remoção do titular interrompida, portanto, acabei ficando quase seis meses na
nova delegação, cuidando dos assuntos correntes, entre eles o fascinante processo de
negociação de um tratado abrangente sobre proibição completa de armas químicas,
um instrumento que deveria consolidar e concluir a trajetória iniciada em 1925, pelo
Protocolo de Genebra sobre proibição dessas armas terríveis, ao lado dos acordos já
existentes de proibição de armas biológicas. O de armas químicas tinha isto de novo,
de inédito mesmo – pelo menos comparativamente ao TNP, que o Brasil ainda
recusava, depois de vinte anos de existência – que ele não excluía nenhum campo
nem nenhum país, e era intrusivo de uma forma que a AIEA nunca chegou a ser.
Para surpresa, talvez sorte, do embaixador Rubens Barbosa, seu novo chefe
não durou muito na cadeira de ministro econômico, pois depois de mais um plano de
estabilização fracassado – et pour cause: se baseava nas mesmas premissas errôneas
dos anteriores: controle de preços, congelamento de ativos – e de uma tentativa de
renegociação da dívida brasileira com base num desconto do valor face dos títulos
(proposta recebida com um “non starter” pelo Secretário americano do Tesouro),
Bresser Pereira acabou sendo substituído no governo, com o que se encerrou a
carreira de assessor financeiro internacional do meu ex e novamente futuro chefe.
Depois de aguardar alguns poucos meses para sua nomeação para um novo posto, o
embaixador Rubens Barbosa foi designado chefe da Delegação brasileira junto à
Aladi, em Montevidéu. Assim que sua designação foi confirmada, ele me telefonou
para novamente me convidar a segui-lo no novo posto, mas desta vez recusei partir de
imediato: em Genebra eu tinha acabado de ser transferido de uma delegação para
outra, ao ter sido removido o Embaixador Rubens Ricupero para servir como chefe da
“grande” delegação junto aos organismos econômicos ali sediados.
Os três anos que passei em Genebra, de 1987 a 1990 – primeiro sob a chefia,
já nos momentos finais, do embaixador Paulo Nogueira Batista, figura exponencial do
nacionalismo brasileiro, ex-presidente da Nuclebras, um dos negociadores do acordo
nuclear com a Alemanha de 1975, depois servindo ao embaixador Ricupero, um dos
maiores, senão o maior intelectual da diplomacia brasileira –, foi um dos mais felizes
!
19!
e produtivos, profissionalmente e intelectualmente, de minha vida adulta, e também
familiar, uma vez que continuamos, Carmen Lícia e eu, com Pedro Paulo ainda no
primário, a fazer o que sempre gostamos de fazer em nossa vida conjunta: desfrutar da
cultura europeia, das viagens, da gastronomia, dos livros, do prazer intelectual, enfim.
Ao final da estada, ainda fomos brindados com a chegada de nossa filha, Maíra, logo
embarcada aos seis meses, aí sim, para o novo posto, desta vez Montevidéu, para
atender ao convite feito bem antes pelo embaixador Rubens Barbosa. Com certo
pesar, ao final de 1989, nos despedimos de Genebra, e das muitas viagens europeias
nos fins de semana, para iniciar nossa quarta remoção, desta vez próxima ao Brasil.
Montevidéu: uma pequena, mas igualmente frutífera estada
Genebra tinha sido, de fato, uma grande experiência profissional e intelectual
para mim: seguindo a agenda, e atuando em nome do Brasil em diferentes organismos
multilaterais – Gatt, Unctad, Ompi e outros –, eu realmente aprendi tudo aquilo que
eu não tinha ainda aprendido nos dez anos anteriores da carreira, em termos práticos e
não simplesmente conceituais, em especial comércio internacional – em complemento
(ou até à diferença) daquilo que se aprende nos livros –, propriedade intelectual e
questões ditas relevantes da chamada “Nova Ordem Econômica Internacional” (de
fato revisando resoluções inócuas aprovadas na ONU e na Unctad). Já Montevidéu
representou uma experiência relativamente similar, ainda que regional, onde pude
completar a minha formação em relações econômicas internacionais ao passar a
cuidar de integração regional, de preferências comerciais, enfim, o complemento do
modelo mercantilista que já havia conhecido em Genebra. Foram dois anos de estudos
e de aprendizado no terreno, e pela primeira vez me sentindo como o representante de
uma “grande potência”, o que em Genebra nunca se deu claramente (inclusive porque
o Brasil continuava a ser um país adepto de planos mal concebidos de estabilização).
Na Aladi, a defesa dos interesses da “grande potência” regional se dava
frequentemente como representante alterno do Brasil, uma vez que o embaixador
Barbosa podia estar viajando a serviço, ou exercendo a própria chefia do Conselho de
Representantes da organização de integração latino-americana, o que representou não
só um aprendizado de minha parte, junto a delegados mais experientes, alguns até
provenientes da velha Alalc, mas também uma nova oportunidade de exercer meus
talentos como “negociador”, ou como “representante oficial” do Brasil numa entidade
multilateral regional. À diferença de Genebra, e das negociações comerciais do início
!
20!
da Rodada Uruguai – quando muitos países já nem sequer fingiam qualquer tipo de
consideração quando o Brasil expunha suas posições acauteladoras, ou simplesmente
opositoras, junto com Índia e alguns outros “xiitas” do Terceiro Mundo, aos projetos
de liberalização ampliada dos intercâmbios globais e de incorporação de novos temas
ao sistema multilateral (investimentos, propriedade intelectual, serviços) –, em
Montevidéu os “representantes” do Brasil – o embaixador Rubens Barbosa, ou eu
mesmo – éramos tratados com toda deferência e respeito. Mais de uma vez, eu me
descobri sorrindo interiormente, de satisfação, ao registrar a reação positiva de algum
representante de país “hermano” ao avançar algum argumento sobre o qual eu mesmo
tinha dúvidas quanto à sua conveniência ou sua adequação ao item da agenda em
discussão, que se traduzia em algo como: “El delegado de Brasil tiene razón...”.
Parece que ser grande potência é isso: não importa a qualidade do argumento, ele é
recebido com toda a deferência.
O embaixador Rubens Barbosa mantinha em Montevidéu o mesmo ritmo
intenso de trabalho, propriamente stakhanovista, a que eu já estava acostumado das
vezes anteriores: não apenas o atendimento completo de todas as instruções de
Brasília, assim como a cobrança a Brasília de respostas a nossos próprios telegramas
e, mais importante, a elaboração de uma agenda suplementar de trabalho, para o
Brasil e para a própria Aladi, ou seja, criando novas frentes de trabalho para todos
nós, da delegação, e para os burocratas das Secretaria da Aladi, que talvez não
estivessem acostumados com todas aquelas de demandas de informação e de
elaboração de estudos sobre os mais diferentes aspectos da integração regional. Não
contente com o mourejar incessante da delegação e da Aladi, ele ainda encontrava
tempo, energia e disposição para se lançar em novas iniciativas, seja de trabalho, seja
mesmo de contatos intensos com a elite local, a começar pelo próprio presidente.
Suponho que essas incursões no relacionamento social e político local suscitassem
restrições ou comentários ferinos por parte da embaixada bilateral, o que realmente
nunca me incomodou, e tampouco parece ter tido qualquer efeito no “representante”
junto a Aladi: as recepções e convites na residência oficial se sucediam, assim como
convites para falar ou participar de eventos propriamente “nacionais” no Uruguai, não
apenas aqueles estritamente no âmbito comercial ou multilateral.
O Uruguai, nessa época, ou seja início dos anos 1990, estava passando por
uma fase inédita de modernização, em grande parte motivada pela sua própria adesão
ao empreendimento do Mercosul, ao seu início visto com inusitado otimismo por
!
21!
parte das elites econômicas, ao mesmo tempo que recebido com muita insatisfação
por parte das “elites” operárias e sindicais, que tinham nítida consciência de que
aquele exemplo precoce de welfare State poderia ser atingido em seus fundamentos.
Quando chegamos a Montevidéu, o Uruguai ainda vivia num ambiente que me
parecia o Brasil dos anos 1950: velhos ônibus ingleses ainda circulavam lentamente e
muitos carros pareciam saídos de algum ambiente “cubano” (de embargo supõe-se).
Os uruguaios tomavam mate nas calçadas, jogavam futebol nas ruas da cidade, e o
principal contrabando na “18 de Julho” era formado por dois produtos tipicamente
brasileiros de supermercado: maionese Helmann e chocolates Garoto, ambos expostos
ao sol nas bancadas de esquina. O Mercosul foi recebido com alguma hostilidade
pelos meios sindicais e universitários de esquerda: todos os problemas do país
passaram a ser creditados ao pequeno bloco de comércio que ensaiava então seus
primeiros passos. Tudo isso me parecia muita honra e muito equívoco, mas era claro
que o Uruguai precisa se modernizar para se adaptar aos novos tempos.
Não durou muito a aventura uruguaia: um ano e meio para mim, um pouco
mais para Rubens Barbosa. Já em meados de 1991 o presidente Collor, pressionado
pelas novas demandas de trabalho em consequência das próprias iniciativas de
“aprendiz de feiticeiro” que iniciou em sua curta e tumultuada gestão, criava uma
Secretaria Especial de Integração, para cuidar do Mercosul, com o que o Itamaraty
corria o risco de perder o controle do mais importante projeto político-estratégico
então em curso. Mas o presidente deve tê-lo feito apenas para tirar um ministro
rejeitado pela sua clientela universitária: o da Educação, tornado repentinamente
“coordenador” do processo de integração, a despeito de o próprio Tratado de
Assunção designar os ministros de relações exteriores e de economia como os
titulares do Conselho do bloco. Ato imediato, o chanceler Francisco Rezek criou um
“Departamento da Integração”, para cuja chefia foi convidado Rubens Barbosa; ele
partiu imediatamente para assumir as novas funções em Brasília, mesmo com
residência ainda montada em Montevidéu.
O novo Departamento teria duas divisões, uma do Mercosul propriamente dito
e outra dos demais assuntos da Aladi; recebi, obviamente, um convite para associar-
me à nova aventura, o que aceitei imediatamente. Fui no entanto confrontado com um
alerta do chefe da Administração em Brasília. Se eu partisse imediatamente de volta,
com menos de dois anos de posto, eu perderia a ajuda de custo, o que implicaria uma
diminuição significativa de recursos voltando ao Brasil e tendo de adquirir carro,
!
22!
novos móveis, reforma do apartamento funcional, etc. Ao partir para o exterior, essa
diminuição relativa na ajuda de custo não significava uma grande perda, pois com
dois ou três meses de salário no posto dava para recompor as despesas iniciais, mas na
direção contrária representaria um “déficit” importante. Alertado, pois, pela solícita
atenção do chefe da Administração, consenti em permanecer em Montevidéu, até
completar dois anos, e assim incorrer no benefício da ajuda de custo completa. Mas,
tirei férias antes da partida, para já trabalhar em Brasília nos mesmos temas de
integração de que me ocupava em Montevidéu, aproveitando para cuidar de nova
moradia, informação sobre escolas para as crianças e outras coisas práticas.
Rubens Barbosa também voltou ao posto, no intervalo, para as despedidas de
praxe e a mudança de volta ao Brasil. Com o que ambos, entre o final de 1991 e o
início de 1992, demos início a uma etapa de uma colaboração que já vinha tornando-
se um hábito. De Montevidéu trouxemos não apenas o aprendizado e a experiência
nessa nova agenda da política comercial externa do Brasil, mas o conhecimento
prático para nossos dois primeiros livros publicados por uma editora comercial do
setor: as Aduaneiras. Rubens Barbosa estava dando os retoques finais ao seu livro
sobre a Aladi e a integração latino-americana, e eu ainda pensava aproveitar todos os
materiais que havia preparado e escrito em Montevidéu para preparar um livro sobre o
Mercosul, que só foi publicado às vésperas de partir novamente do Brasil, em 1993.
O Brasil do impeachment, em 1992: um ritmo alucinante de trabalhos
O ano e meio que passei trabalhando com o embaixador Rubens Barbosa em
Brasília, do início de 1992 a meados de 1993, foram dos mais intensos e produtivos
de minha carreira diplomática, graças, sobretudo, à imensa capacidade do chefe em
mobilizar funcionários, recursos e iniciativas para tornar a rotina burocrática da
Secretaria de Estado um turbilhão de atividades inovadoras nas mais diversas
vertentes do trabalho diplomático. Pude colaborar, no limite de minha capacidade, em
quase todas as novas iniciativas de Rubens Barbosa, mas o seu ritmo alucinante de
trabalho aproximou-se várias vezes da exaustão, por começar cedo, terminar tarde e
prolongar-se nas horas vagas e fins de semana.
Os fins sempre são mais importantes do que os meios, mas sem a necessária
coordenação e ativação dos meios, o que foi provido justamente pela produtividade do
chefe, teria sido impossível cumprir uma agenda impressionante de trabalho nesse
curto espaço de tempo. Cabe registrar, em primeiro lugar, a ascensão fulgurante de
!
23!
Rubens Barbosa, de “simples” chefe de Departamento, o DIN, a Subsecretário Geral
de toda a área econômica, passando pela elevação do departamento a subsecretaria
setorial (integração), depois cobrindo toda a área econômica multilateral (ou seja, as
negociações comerciais multilaterais, inclusive). Estávamos, então, em meio ao
marasmo da Rodada Uruguai, quando, depois da frustrada conferência ministerial de
Bruxelas, em 1990, as negociações ficaram paralisadas por mais de um ano, até que
os dois grandes “parceiros” do processo, EUA e UE, se acertassem mutuamente
quanto à preservação de seus interesses defensivos em agricultura – subsídios à
produção interna e subvenções às exportações – no famigerado acordo de Blair House
(um dos anexos da Casa Branca, em Washington), que permitiu terminar a Rodada,
com relativa frustração de nossos agrícolas ofensivos, pois que o Brasil (e outros
exportadores agrícolas competitivos) pensava poder limitar bem mais seriamente o
protecionismo agrícolas dos ricos e integrar de forma mais efetiva o setor agrícola às
regras gerais do sistema multilateral de comércio, terminando com décadas de uso
abusivo de “waivers” e compromissos deficientes de liberalização no setor. O Brasil
ainda tinha de fazer concessões “dolorosas” nas áreas de serviços, investimentos e
propriedade intelectual, o que de certa forma foi facilitado pela pequena “revolução”
conceitual operada pelo presidente Collor em diversos capítulos de nossa interface
econômica interna e externa. A própria Rodada Uruguai terminou, em 1993, com o
que eu chamei de “acabamento” de Bretton Woods, pois se resolveu introduzir a
iniciativa, não prevista no mandato de Punta del Este (1986), de se constituir uma
organização para o comércio internacional, quando o “velho” Gatt tinha funcionado
“provisoriamente” durante meio século, a partir de 1947. Ele passou a ser o novo Gatt
(1994), doravante administrado, com os demais acordos multilaterais e plurilaterais,
pela organização que completou, com a criação da OMC, o tripé iniciado em 1944.
No plano interno, os desafios não foram menores nesses turbulentos anos da
gestão de meio mandato do presidente que tinha prometido acabar com a inflação por
meio de um simples golpe de caratê e que pretendia retirar o Brasil da condição de
“primeiro dos subdesenvolvidos” para colocá-lo como o “último dos desenvolvidos”.
Na verdade, foi uma gestão altamente errática, que começou cortando o número de
ministérios, extinguindo várias autarquias públicas (IBC, IAA, etc.), reduzindo o peso
do Estado na economia, produzindo abertura econômica e liberalização comercial,
notadamente por meio de redução tarifária unilateral (depois acusada de ter operado
“concessões sem barganha”, como se o nosso protecionismo voluntário pudesse ser
!
24!
legitimamente negociado com terceiros), a aceitação de novos compromissos no
terreno das patentes industriais e por meio diversas outras iniciativas impactantes no
terreno econômico (como o início das privatizações e fim de monopólios estatais) e
até estratégico (supressão de um programa nuclear “paralelo” dos militares, por
exemplo, o que preparou o terreno, mais adiante para a aceitação do TNP-1968).
O Itamaraty, graças sobretudo à ação enérgica do embaixador Rubens
Barbosa, conseguiu recuperar o protagonismo no terreno da integração, que parecia
um momento ameaçado pela criação de uma “Secretaria Especial” atribuída a um
ministro caído em desgraça. Barbosa deu imediatamente a partida a um conjunto
impressionante de atividades, a maior parte delas vinculada às muitas tarefas que
deveria cumprir o Mercosul em sua fase de transição, para o que seria, supostamente,
um mercado comum, a ser instalado em menos de quatro anos. Eu, consoante minhas
vantagens comparativas, fiquei encarregado da área de “informação”, o que
compreendia, antes de mais nada, uma base de dados, se possível aberta, voltada para
o registro e a disseminação de todos os atos oficiais do novo bloco, inclusive os
simples relatórios de seus grupos de trabalho, numa conjuntura em que a Secretaria
Administrativa do Mercosul, instalada precariamente em Montevidéu, não possuía
condições mínimas de operar burocraticamente, até por falta de material e pessoal.
Como sabem todos os que trabalham na burocracia pública, metade do tempo
ocupado no “emprego” é dedicado mais aos meios do que aos fins, ou seja, você passa
boa parte das horas de trabalho apenas tentando trabalhar – computadores, servidores,
recursos para despesas correntes, etc. –, sendo que o trabalho realmente finalístico
ocupa menos da metade do tempo total. Graças ao empenho de Rubens Barbosa, na
mobilização dos meios e condições de trabalho, sobretudo na “captura” de pessoal de
apoio (“roubando” um pouco de outras áreas, sob a legação, legítima, de que o
processo de integração era prioritário), pudemos criar as condições para o
desempenho mais que satisfatório do Departamento, que logo virou SGIN e, mais
adiante, SGIE, ao “açambarcar” toda a área econômica (sempre em função do
extraordinário dinamismo do condutor e operador principal).
Sem me envolver diretamente no tratamento corrente de alguns dos assuntos
da agenda, eu me interessava por todos, para prestar informação em primeiro lugar
aos demais agentes da burocracia pública, e num sentido mais largo à própria
sociedade que nos paga. Antes de partir de Montevidéu, nas últimas semanas de 1991,
eu participei ativamente das negociações para a conclusão de um dos instrumentos
!
25!
complementares ao Tratado de Assunção, o Protocolo (provisório) de Solução de
Controvérsias, assinado em Brasília logo em seguida. Assumindo plenamente minhas
atividades em Brasília, no início do ano seguinte, minha primeira providência foi criar
um Boletim de Integração Latino-Americano (BILA), que existiu enquanto eu pude
impulsioná-lo pessoalmente, ao lado, pouco adiante, do Boletim de Diplomacia
Econômica, que já existia no âmbito de outro projeto do MRE (e que também foi
incorporado aos domínios imperiais do embaixador Rubens Barbosa). Confrontei-me,
num primeiro momento, com a carência de equipamentos e pessoal e me desempenhei
da melhor forma possível (levando o meu próprio computador pessoal, por exemplo,
que por ser um Apple me colocou, nessa fase, alguns problemas de transposição de
arquivos para a base comum do MRE). O segundo desafio era do de fazer com que
todos os delegados partindo ou chegando das reuniões setoriais do Mercosul me
trouxessem arquivos eletrônicos das atas, e não apenas cópias dos documentos
adotados e assinados.
A tarefa mais importante, porém, era a de determinar a própria sequência de
adoção de medidas econômicas e administrativas que deveriam integrar as diversas
etapas do percurso levando das economias isoladas (e relativamente fechadas) a uma
zona de livre comércio e, logo em seguida, com a definição de uma tarifa externa
comum, a uma união aduaneira. Fomos ajudados, nesse processo, por um estudo de
José Maria Aragão, publicado originalmente em espanhol pelo Intal, de Buenos Aires,
que eu fiz traduzir e publicar pela nova Subsecretaria de Integração: esse pequeno
manual prático foi absolutamente essencial para ver com maior clareza a infinidade de
providências que teriam de ser tomadas, escalonadamente, para passar do limbo então
existente das economias nacionais relativamente introvertidas ao “purgatório” do livre
comércio, antes de chegar ao suposto paraíso do mercado comum, passando pela
etapa intermediária da união aduaneira. A lista de tarefas levou o Mercosul à adoção,
logo no segundo semestre de 1992, do chamado “cronograma de Las Lenãs”, que nos
deveria levar do purgatório ao paraíso, mas que na prática ficou sempre aquém do que
recomendavam tanto a “teoria da integração”, quanto as necessidades práticas dessas
medidas para influenciar, facilitar, modernizar e integrar à região e ao mundo os
agentes econômicos em cada um dos países membros.
Tendo vivido na Europa em três ocasiões anteriores – a primeira vez como
simples estudante, auto-exilado durante a ditadura militar – eu conhecia relativamente
bem a experiência comunitária, e por isso não tinha nenhuma ilusão de que o Cone
!
26!
Sul pudesse imitar, em poucos anos, o imenso esforço de construção da integração
econômica, que na verdade respondia bem mais a considerações de ordem geopolítica
(depois de três guerras que mudaram sensivelmente a relação de forças na região e no
mundo) do que propriamente a uma necessidade de liberalização comercial, que já
estava sendo feita no âmbito da OCDE ou por evolução econômica “natural” de cada
um dos países. Eu sempre concebi o exercício integracionista no âmbito do Cone Sul
como correspondendo a duas “necessidades” básicas do Brasil: por um lado, a sempre
desejada abertura econômica e liberalização comercial, para um país notoriamente
protecionista, introvertido, dirigista, estatizante e todos os demais vícios de nossa
história e organização econômica; por outro, o disciplinamento e a melhoria de
qualidade das políticas públicas no próprio ambiente doméstico, aspecto que eu
considerava crucial para um país errático como o nosso, e que, naquela época, ainda
se debatia com violentos processos inflacionários, depois de vários planos frustrados
de estabilização, e em meio a um processo, que parecia até então bem sucedido, de
estabilização na própria Argentina, a partir do Plano Cavallo de conversibilidade (o
famoso “currency board”, que equivalia, de fato, a uma dolarização parcial do país).
Rubens Barbosa conseguiu imprimir um ritmo impressionante de trabalho aos
diversos grupos de trabalho cuidando da integração, participava plenamente do Grupo
Mercado Comum, como o “diretor executivo” pelo Brasil, que era a instância que
realmente respondia pelas decisões do Conselho do Mercosul, ou seja, os ministros de
relações exteriores e de economia, e estava o tempo todo circulando no Brasil e pelas
outras três capitais do bloco. Se não fosse pelo seu extraordinário dinamismo, sem
mencionar o vigor físico ao pular de um encontro a outro, de reunião em reunião,
numa jornada de trabalho que devia perfazer 12 ou 14 horas diárias, a fase de
transição do Mercosul não teria sido o êxito que foi nos anos de 1992 a 1994, que
assistiram a tantas mudanças dramáticas no Brasil. Saímos de um impeachment, que
poderia ter sido institucionalmente traumático, em 1992, passamos por um novo
presidente basicamente hesitante quanto às políticas a serem adotadas na preparação
do que veio a ser o Plano Real, e ingressamos numa nova fase, econômica e política, a
partir desse processo de estabilização, que teria de ser complementado em 1999.
Um dos primeiros textos que preparei para o embaixador Rubens Barbosa na
era Itamar Franco referia-se justamente ao processo de reforma tarifária então em
curso, que o vice-presidente no exercício da presidência – talvez instigado por setores
protecionistas da indústria – pretendia delongar, ou em todo caso revisar, por achar
!
27!
que o Brasil poderia estar cedendo demais a padrões mais exigentes de liberalização.
Por uma pequena nota – que não sei se foi ou não convertida em Informação ao PR –
fiz ver que o “refreamento” da reforma desejada por Itamar significaria renunciar à
construção do Mercosul, pois a TEC programada iria refletir exatamente a pauta
aduaneira do Brasil, a ser diluída naquela. A volta atrás da tarifa não veio mais à tona.
Nesses anos dinâmicos da chefia Barbosa em conexão com a participação
brasileira no processo de integração sub-regional minha interação com ele, e com sua
esfera de atividades no Itamaraty, se deu sobretudo ao nível dos debates públicos e da
informação sobre o processo, de maneira geral, uma ação tanto dirigida para dentro –
ou seja, a constituição tentativa de uma abrangente base de dados eletrônica para uso
dos negociadores brasileiros – quanto para fora, ou seja, a informação sobre os
avanços do Mercosul para a sociedade em geral, o que era parcialmente feito através
do boletim por mim editado, o BILA, e que eu pretendia ampliar para a esfera
cibernética, ainda numa fase muito preliminar. O mundo estava recém emergindo para
a linguagem html e a esfera da World Wide Web, e meu conhecimento nesse terreno
ainda estava limitado aos antigos sistemas, conhecidos como BBS, ou Bulletin Board
System, depois totalmente superado. O próprio Itamaraty não estava preparado, por
falta de recursos, equipamentos, técnicos, para passar a essas etapas mais avançadas
dos sistemas de informação abertos e interativos.
O que eu mais fazia, na verdade, era atender a demandas diversas que surgiam
de todos os lados – de entidades empresariais, instituições acadêmicas, associações de
classe, jornalistas etc. – tanto para o embaixador Rubens Barbosa, em cuja intenção
eu podia, eventualmente, preparar textos de apoio, quanto para mim mesmo, uma vez
que também tinha de atender pedidos de informação, ou para palestras, geralmente no
quadro de seminários de cunho acadêmico. Nesse período, fiz, a pedido de Barbosa,
ou demandas externas, diversas viagens pelo Brasil, quase sempre com o objetivo de
informar, explicar, esclarecer como estava sendo implementado o Mercosul. Ao
mesmo tempo, o Brasil passava por uma mudança fundamental, durante o ano de
1992 e início de 1993: Collor se tornou o primeiro presidente a ser submetido a um
processo completo de impeachment – tinha havido um pedido contra Getúlio Vargas
em 1954, que não conseguiu ser aprovado pela Câmara – e o vice-presidente Itamar
Franco assumiu ao início do segundo semestre, até que os procedimentos fossem
levados a termo no final do ano. A despeito da renúncia, pouco antes do julgamento
!
28!
final de Collor pelo Senado, o presidente foi afastado do cargo e condenado a perder
os direitos políticos pelo prazo de oito anos.
O primeiro chanceler a ser designado por Itamar, num governo de ampla
coalizão, foi o senador do PSDB paulista Fernando Henrique Cardoso, que já tinha
sido cogitado para servir na mesma posição na primeira recomposição do governo
Collor, e obstado de fazê-lo por reação contrária de líderes de seu partido. A despeito
da expectativa de que Rubens Barbosa – em vista de suas conexões com o PSDB
paulista, notadamente com o ex-governador Franco Montoro – pudesse assumir a
Secretaria Geral do MRE, o escolhido foi o embaixador Luiz Felipe Lampreia. A
gestão FHC no Itamaraty durou menos de um ano, mas foi extremamente produtiva,
com propostas de mudanças na política externa e de reformas na própria diplomacia.
A “área” administrada pelo embaixador Barbosa continuou a se expandir, em temas e
responsabilidades, e com isso novos assessores foram sendo incorporados à sua
Subsecretaria, e eu me tornei um entre vários outros.
Ademais de todo o “produtivismo”, para mim e para Rubens Barbosa, em
temas da agenda econômica brasileira, em especial no tocante ao processo de
integração do Mercosul, eu me ocupei intensamente, entre o final de 1992 e o
primeiro semestre de 1993, do “salvamento” da Revista Brasileira de Política
Internacional, editada desde 1958 no Rio de Janeiro pelo Instituto Brasileiro de
Relações Internacionais – fundado em 1954, no Palácio Itamaraty – e que tinha ficado
“órfã” depois da morte, em outubro daquele ano, de Cleantho de Paiva Leite, o
principal animador, promotor, financiador, editor e distribuidor da RBPI desde
sempre. Preocupado em que a revista pudesse desaparecer – o que de fato ocorreria
caso ninguém tomasse a si a tarefa de salvá-la – empreendi um esforço extraordinário
para juntar uma pequena equipe de abnegados para fazê-la sobreviver, o que foi
finalmente obtido a partir da recriação do IBRI em Brasília e a composição de uma
nova equipe editorial, com colegas diplomatas e amigos acadêmicos da UnB, para
continuar a editar a revista. Foi um dos empreendimentos mais gratificantes em que
estive envolvido nesse período extremamente vibrante de minha dupla carreira, a
profissional e a acadêmica; tentei igualmente envolver Rubens Barbosa na operação
de salvamento da RBPI, mediante um contato com o então presidente da Fundação
Alexandre de Gusmão, Gelson Fonseca, com o objetivo de ter o apoio da Funag para
a continuidade da edição da revista, o que finalmente não se concretizou.
!
29!
A despeito das dificuldades, consegui obter recursos iniciais – graças à boa
sensibilidade para tal por parte do então presidente da FIEMG, Stefan Bogdan Salej –
o que me permitiu financiar o primeiro número da revista em Brasília, antes de partir
para o meu próximo posto, um ano e meio, apenas, após ter voltado à Secretaria de
Estado. Isso ocorreu justamente como resultado do lançamento da RBPI, em junho de
1993, no próprio gabinete do ministro interino, e novo Secretário Geral do Itamaraty,
embaixador Celso Amorim, convertido em ministro pleno dois meses depois. O fato é
que Itamar, tendo já despedido três ministros da Fazenda e três presidentes do Banco
Central, na sua obsessão por baixar os juros e estimular o crescimento e o emprego,
em meio a mais uma aceleração da inflação, após sucessivas trocas de moedas (quatro
em poucos anos) e planos frustrados de estabilização, decidiu nomear unilateralmente
Fernando Henrique Cardoso como novo ministro da Fazenda, em maio daquele ano.
O convidado para novo chanceler, amigo mineiro de Itamar, ex-governador de
Brasília sob Sarney, José Aparecido, era, então, embaixador do Brasil em Lisboa, e
relutou em assumir o cargo, mas acedeu a demandas para designar Amorim como seu
principal auxiliar, desistindo depois de largar o tranquilo posto na capital portuguesa
para mergulhar novamente no turbilhão de Brasília. Amorim, que também tinha tido
artigos seus publicados na RBPI de Cleantho, apoiou meu esforço de recuperar a
revista e, na mesma cerimônia de lançamento, perguntou-me quais eram meus planos
para o futuro. Tomado de surpresa, não me lembro exatamente do que respondi, mas
devo ter mencionado que Carmen Lícia estava fazendo pesquisas sobre os primeiros
viajantes franceses ao Brasil. Qual não foi minha surpresa quando, pouco tempo após
o evento, uma portaria foi publicada com minha remoção para a embaixada em Paris,
o que até me causou certo constrangimento ao anunciar a novidade a Barbosa, que no
entanto não reagiu de modo desfavorável, para meu alívio e satisfação.
Paris-Londres: os anos do neoliberalismo otimista
Desembarquei em Paris, em setembro de 1993, no mesmo dia em que o novo
ministro da Fazenda, FHC, e seu presidente do Banco Central, Pedro Malan, também
desembarcavam na capital francesa para um primeiro contato direto com Jean-Claude
Trichet, então secretário do Tesouro e, nessa condição presidente do Clube de Paris (o
foro de discussão e negociações de dívidas bilaterais oficiais). Minhas funções, na
embaixada, compreendiam justamente a cobertura dos temas econômico-financeiros,
entre eles a participação do Brasil no Clube de Paris enquanto credor. Mas, o que
!
30!
vinham fazer FHC e Malan em Paris era precisamente a questão do Brasil enquanto
devedor, numa fase em que o Plano Real ainda estava sendo montado e havia uma
preocupação legítima das duas maiores autoridades econômicas do Brasil com a
questão da solvabilidade e a sustentabilidade externa, ou financeira, do país, numa
fase em que não se tinha ainda plena certeza quanto os compromissos externos, no
quadro de um plano mais abrangente de estabilização macroeconômica. Malan e FHC
haviam feito, pouco tempo antes, por notas passadas às embaixadas dos países
credores em Brasília, um apelo para que eles considerassem uma nova negociação da
dívida brasileira bilateral, num quadro de intensos preparativos para a implementação
de um novo plano de estabilização – sobre o qual pairava amplas dúvidas, em vista do
fracasso de todos os planos anteriores – e também de fundadas dúvidas sobre o
suporte financeiro externo que o Brasil poderia ter numa conjuntura de transição de
políticas econômicas no plano doméstico e sua sustentabilidade financeira externa.
Cabe registrar aqui que, depois da “moratória soberana” do Sarney, feita sob
recomendação da equipe “desenvolvimentista” – isto é, UniCampista – que cercava o
ministro Funaro na Fazendo, o Brasil tinha entrado num inferno cambial digno de
alguma versão brasileira do Inferno de Dante, aproximando-se dos primeiros círculos
do total desastre, ao ter perdido créditos externos e não conseguir encontrar um novo
patamar de negociações com o FMI, com os bancos credores e com o Clube de Paris,
justamente. Mailson, depois do meteórico Bresser Pereira, até que tentou normalizar
as relações, mas não conseguiu até o final do governo, porque simplesmente o Brasil
não dispunha de recursos para sequer fazer pagamentos simbólicos aos diversos tipos
de credores externos, e também porque havia o patrulhamento dos nacionalistas e o
assédio dos partidários do calote puro e simples da dívida externa. A esquerda, burra
como sempre, imaginava que o calote seria apenas um justo castigo para banqueiros
gananciosos, que estariam sugando o povo brasileiro e o levando à fome e à miséria,
como havia proclamado, demagogicamente, Sarney, no momento da tal de “moratória
soberana”. Depois de Mailson veio o desastre da Zélia Cardoso de Mello, que nunca
deveria ter sido elevada a ministra, mas o presidente Collor gostava de chocar a nação
com seus gestos intempestivos. Finalmente, o ministro Marcílio Marques Moreira, na
segunda fase do governo Collor – o gabinete de “sábios”, antes do impeachment –,
conseguiu acalmar os mercados voltando à mesa de negociações com propostas mais
razoáveis. Ele até tinha conseguido fechar um acordo com o Clube de Paris – que
ficou conhecido como “Brasil 2” – que envolvia ainda assim o pagamento de volumes
!
31!
talvez em excesso de nossa capacidade de acumular divisas. Esta foi a origem da nova
demanda feita por FHC e Malan, para tentar aliviar os termos do acordo de 1992.
Pois bem, a primeira coisa que disse Jean-Claude Trichet no momento em que
sentávamos todos no salão do Trésor – antes de um belo almoço, que foi regado com
um vinho ainda mais belo, desses que a tecnocracia francesa desfruta gratuitamente
em função do tratamento “Roi Soleil” que ela mesma se atribui com o dinheiro dos
contribuintes – foi uma frase contundente, que deve ter deixado os dois emissários
brasileiros das finanças “desarçonnés”, como diriam os franceses: “Il n’y aura pas de
Brésil trois”, disse ele, assim de pronto, como para desestimular qualquer tentativa do
Brasil de reabrir o acordo de um ano antes para dar novas facilidades ao país. Cabe
igualmente registrar que, na condição de país credor, o Brasil já tinha sido obrigado,
anos antes, quando da incorporação de ex-países socialistas ao grande mundo da
interdependência capitalista, a dar facilidades e a fazer concessões no caso da dívida
bilateral da Polônia – praticamente um perdão de mais da metade da dívida que os
poloneses tinham conosco – que nunca foram aplicadas ao próprio Brasil, julgado um
país em situação “melhor” do que o desastre deixado pelo socialismo real.
Enfim, depois dessa decepção, o almoço transcorreu muito bem, e se o Brasil
não foi contemplado com um “Brasil 3”, a situação melhorou sensivelmente no plano
das finanças externas; um novo acordo foi concluído por Malan com o chamado
“clube de Londres” – bancos comerciais credores – e o Brasil pode enveredar pelo
Plano Real com algum suporte externo (inclusive porque a manutenção dos juros em
patamares elevados, em vista da oposição de Itamar a um ajuste recessivo, atraiu
muitos capitais ao país), conhecendo até a valorização do real em relação ao dólar. Eu
fiquei em Paris tratado de assuntos econômicos, justamente, a partir da condição do
Brasil enquanto país credor de diversos países subdesenvolvidos – beneficiários dos
diferentes esquemas que o G7 foi concebendo para perdoar frações de suas dívidas – e
das relações do Brasil com a OCDE, até então limitadas ao seu Centro (autônomo) de
Desenvolvimento, mas que eu pretendia ampliar para uma série de comitês de
trabalho da própria organização-mãe (entre eles o Comité do Aço, do qual o Brasil
tornou-se membro pleno, nos outros apenas observador).
Nessa altura, estamos falando de 1994, FHC já tinha designado Rubens
Barbosa como o novo embaixador do Brasil junto à Corte de St. James, uma posição
certamente distinguida para quem tinha começado a carreira pelo Consulado em
Londres, quando da chefia da embaixada pelo embaixador Sérgio Corrêa da Costa,
!
32!
com cuja filha, Maria Ignez, neta de Oswaldo Aranha, ele iria se casar mais adiante.
Efetuei uma única visita a Londres quando da presença ali do embaixador Barbosa, e
foi mais ao final de minha estada em Paris, quando estava justamente me preparando
para deixar o posto e ainda não havia visto meu múltiplo chefe anterior. Mas me
mantive permanentemente atento às suas muitas iniciativas, sobretudo as de caráter
acadêmico, como por exemplo a criação de um Centro de Estudos Brasileiros junto à
Universidade de Oxford, sob a liderança de Leslie Bethell, o brasilianista britânico –
especialista em temas da escravidão – editor da grandiosa coleção de estudos reunidos
na Cambridge History of Latin America. Tratou-se de um empreendimento meritório
a todos os títulos, infelizmente descontinuado mais adiante, pela falta de apoio por
parte da chancelaria brasileira durante o governo dos companheiros.
O período em que Rubens Barbosa esteve em Londres correspondeu ao final
do gabinete Margaret Thatcher – traída pelo seu próprio partido Conservador –, ao
patético governo liderado por John Major, e ao início do governo Tony Blair, o líder
que conseguiu arrancar o Labour da sua camisa de força marxista – consagrada num
programa socialista aprovado em 1919 – e coloca-lo numa trajetória (o New Labour)
que pouco distinguiu suas políticas daquelas seguidas efetivamente pela neoliberal
Margaret Thatcher. Junto com o presidente americano Bill Clinton e líderes
moderados da esquerda europeia, Tony Blair foi um dos animadores da chamada
Terceira Via, uma espécie de socialdemocracia conciliada com a globalização, ao qual
o presidente FHC também passou a estar associado. Mais importante que isso, Rubens
Barbosa assistiu aos efeitos devastadores que as crises financeiras do final dos anos
1990 tiveram sobre países emergentes na Ásia e na América Latina (inclusive o
próprio Brasil), mas também no próprio centro, com reflexos nas políticas
econômicas. O mundo vivia certo consenso neoliberal, com tentativas do FMI e de
outras instituições de liberalizar não apenas o comércio internacional, mas também os
próprios fluxos de capitais, anátema para Keynes, que tinha lutado em Bretton Woods
para manter a liberalização dos movimentos de capitais fora de qualquer mandato do
FMI e do Banco Mundial (e tinha conseguido).
Na ocasião, o Brasil – que já tinha sido afetado pela crise do peso mexicano,
ao final de 1994 – foi novamente impactado pelas crises financeiras dos países da
Ásia Pacífico, em 1997, e, sobretudo, pela moratória russa de meados de 1998, o que
obrigou o ministro Malan a costurar um acordo de emergência com o FMI e uma série
de países credores (entre eles a Grã-Bretanha), garantindo um forte “colchão” de 41,5
!
33!
milhões de dólares para reforço de suas reservas em divisas. Mas, a crise não amainou
com essas garantias, inclusive por culpa do próprio ex-presidente Itamar Franco, que,
eleito governador de Minas Gerais, decidiu romper o acordo com o governo federal
em torno da dívida do estado federalizada (e sua obrigação de efetuar pagamentos dos
novos títulos correspondendo a certa fração das receitas estaduais). A nova crise, em
janeiro e fevereiro de 1999, resultou numa mudança importante das políticas
macroeconômicas, consistindo na substituição da âncora cambial por uma nova
âncora monetária – as chamadas “metas de inflação” – e seu complemento sob a
forma de flutuação cambial e adoção de um regime de responsabilidade fiscal que se
inspirava, em grande medida, nas medidas que estavam sendo adotadas em vários
países do mundo, entre eles a Grã-Bretanha. Com efeito, começando pela Nova
Zelândia no começo da década, as “metas de inflação” e a flutuação cambial se
converteram em mecanismos mais disseminados de políticas macroeconômicas que
também foram sendo incorporadas ao menu dos países mais estáveis.
A partir de Londres, o embaixador Rubens Barbosa enviou ao novo presidente
do Banco Central, Armínio Fraga, materiais diversos relativos ao funcionamento do
sistema de “metas de inflação” e aos procedimentos do Bank of England, já então
dotado de plena autonomia – como requerido pelas regras de Maastricht – mas sem
qualquer decisão em favor de uma dissolução da libra britânica na nova moeda
europeia, o euro, medida a ser adotada até 1999, quando as taxas de câmbio das
moedas candidatas seriam rigidamente fixadas numa unidade de referência comum.
Tive a oportunidade de visitar Rubens Barbosa em Londres, quando também
atravessei pela primeira vez o canal da Mancha pelo Eurotúnel, quase ao final de
minha estada em Paris, nas últimas semanas de 1994. Pouco depois eu retornava a
Brasília, para assumir a chefia da Divisão de Política Financeira e Desenvolvimento,
até então dirigida pelo ministro Rafael Valentino Sobrinho, um dos colaboradores de
Roberto Campos quando este foi embaixador em Londres, justamente. Meus contatos
com Rubens Barbosa foram feitos de maneira esparsa, durante cerca de três anos, mas
eu acompanhava os reflexos de seu trabalho na embaixada, pela voz de colegas de
carreira que trabalhavam em Londres ou que passavam ocasionalmente, a serviço ou
por lazer, no Reino Unido. O que mais me atraia, obviamente, era o funcionamento do
Centro de Estudos Brasileiros em Oxford, e os trabalhos acadêmicos que foram,
eventualmente, produzidos naquele âmbito. Lamentei muito quando, anos mais tarde,
aquele Centro desapareceu como entidade efetiva, reabsorvido no canal comum dos
!
34!
centros de estudos latino-americanos que todas as grandes universidades do mundo
anglo-saxão possuem com maior ou menor interesse pelo universo de estudos luso-
brasileiros. Mas isso só ocorreu quando Rubens Barbosa e eu já nos encontrávamos
reunidos para trabalhar juntos novamente, desta vez na Embaixada do Brasil em
Washington, a mais importante das representações brasileiras (assim dizem), com a de
Buenos Aires, na esfera bilateral da diplomacia oficial.
Na capital do Império, a mais produtiva das colaborações
Em Brasília, convidado a chefiar a área encarregada de seguir os temas
financeiros das relações econômicas internacionais do Brasil, entre eles os acordos de
investimentos nos planos bilateral, regional e multilateral, eu aprofundei meus estudos
e o conhecimento intelectual e prático sobre o (não-)sistema financeiro internacional,
assim como tinha sob minha responsabilidade os acordos já concluídos e a negociar
relativos à promoção e proteção recíproca de investimento (os famosos APPIs), da
segunda geração desse tipo de instrumento internacional destinado a facilitar os
investimentos diretos estrangeiros. Tendo acompanhado, em Paris, os esforços da
OCDE, no sentido de negociar e concluir um Acordo Multilateral sobre Investimentos
(MAI, na sigla em inglês), continuei a impulsionar a participação do Brasil na
eventual (ou possível) consolidação de novos patamares de proteção e atração de
capitais estrangeiros em prol do processo brasileiro de desenvolvimento, dentro do
conceito, que sempre privilegiei, da interdependência econômica global.
Havia, ademais, dois acordos de investimento no âmbito do Mercosul, um
chamado de Colônia, outro de Buenos Aires, tratando respectivamente dos
investimentos dentro e fora do novo bloco comercial, que nesse momento ainda
parecia prometedor quanto às suas chances de alcançar os objetivos que ele se havia
fixado – em 1991, com o Tratado de Assunção – no sentido de confirmar seu formato
de união aduaneira e de caminhar, no momento oportuno, para a meta ideal de
conformar um mercado comum. Esses acordos encontravam-se praticamente parados,
seja na burocracia governamental, seja no âmbito do Congresso, vítimas, como
sempre ocorre, das paranoias e temores dos protecionistas, dos soberanistas e dos
nacionalistas introvertidos, assim como também se encontrava paralisada a tramitação
dos APPIs no Congresso, onde tanto representantes da esquerda quanto parlamentares
da direita se opunham a cláusulas de indenização, de solução de controvérsias ou a
outros dispositivos julgados ofensivos à soberania econômica e à jurisdição nacional
!
35!
quanto a disputas que pudessem surgir entre investidores estrangeiros e leis e normas
brasileiras regulando esses investimentos. A barragem da esquerda era propriamente
ideológica, sem outros argumentos que não os da estupidez tradicional contra os
capitais estrangeiros, ao passo que a direita tendia a se concentrar nos argumentos
relativos à “soberania jurídica” dos tribunais nacionais na solução de disputas.
A agenda de reuniões era intensa, envolvendo, nessa altura, a fase preparatória
de um projetado (pelos EUA) acordo de livre comércio hemisférico, segundo decisão
adotada numa cúpula concertada em Miami, em dezembro de 1994, com a
aquiescência e participação do presidente Itamar Franco, do presidente eleito
Fernando Henrique Cardoso, e do chanceler Celso Amorim, teoricamente o
responsável pela aceitação dos termos da declaração, tendentes a negociar, até 2005,
esse amplo acordo, cobrindo não só os tradicionais temas de acesso a mercados
(tarifas, compras governamentais), mas também os novos temas de serviços,
propriedade intelectual e investimentos, justamente. Efetuei uma ou outra viagem a
Miami, onde se desenvolviam as negociações (na verdade consultas) sobre essa
primeira fase do processo da Alca, mas no mais das vezes delegava a meus assessores
mais jovens na DPFD essas oportunidades de participação em foros negociadores de
temas importantes da interface econômica externa do Brasil.
Aproveitei o tempo livre – quer dizer, os momentos de lazer ou de sono – para
continuar pesquisas e estudos em meus temas preferidos de concentração acadêmica,
quais sejam, as relações econômicas internacionais do Brasil. Retirei a experiência
adquirida em Paris – seguindo a OCDE e o Clube de Paris – para preparar uma tese
para o Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, requisito necessário para
galgar uma etapa superior na ascensão funcional da carreira, ou seja, passar de
conselheiro a ministro de segunda classe. Essa tese, finalizada já em 1996, chamava-
se “Brasil e OCDE: uma interação necessária”, e foi devidamente apresentada e
defendida em banca, em meados desse ano, e também devidamente recusada pelos
examinadores, não tanto, talvez, pelos argumentos desenvolvidos, mas mais pela
minha atitude desafiadora em relação a ritos e procedimentos seguidos nesses
exercícios de “graduação”, sempre pautados, ademais do conhecimento estrito dos
temas tratados, pelo devido respeito às hierarquias, disciplinas e humildade, áreas nas
quais continuo um perfeito anarquista, contrarianista e libertário.
A tese, segundo o presidente da banca que me comunicou a recusa, “não
cumpria os requisitos necessários à sua aprovação”, sem que ele me dissesse quais
!
36!
seriam esses requisitos, ou em quais a minha tese não se enquadrava, mas,
paradoxalmente, eu estava autorizado a apresentá-la novamente no ano seguinte.
Obviamente não o fiz – e reservei algumas passagens do trabalho para um dos meus
livros publicados nesses anos, nominalmente O Brasil e o multilateralismo econômico
(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999) – e dediquei-me a fazer o que sempre
gostei de fazer, conformado que o trato com os vivos é sempre difícil, preferindo
então dialogar com os “mortos”, que não costumam reclamar de nossas opiniões sobre
eles ou sua ação. Preparei uma tese sobre a formação da diplomacia econômica no (e
não do) Brasil, no século XIX, que depois deu origem a um livro do mesmo nome, de
pesquisa historiográfica sobre os mais importantes aspectos das relações econômicas
internacionais do Brasil imperial: comércio, finanças, investimentos, mão-de-obra,
relações regionais e o nascimento do multilateralismo econômico naquele século.
Também publiquei um segundo livro sobre o Mercosul – avançando, em 1998,
sobre alguns dos argumentos avançados no primeiro, de 1993 – e também juntei
diversos trabalhos produzidos nos dez anos anteriores para inaugurar uma nova
coleção da UFRGS, com o livro Relações Internacionais e Política Externa do Brasil,
que conheceria duas outras edições, diferentes e atualizadas (2004 e 2012), a partir da
primeira (1998). Pouco depois, no final do primeiro semestre de 1999, o embaixador
Rubens Barbosa passava por Brasília para submeter a nova sabatina no Senado, desta
vez para assumir a embaixada em Washington, após quatro anos em Londres, e
convidou-me para assumir o cargo de ministro-conselheiro naquela missão. Confesso
que, num primeiro impulso, pensei em recusar o convite, por duas razões essenciais:
por um lado, eu pretendia ficar mais um pouco no Brasil, dando continuidade às
minhas pesquisas em história econômica – no Arquivo Histórico Diplomático, por
exemplo, no Rio de Janeiro – e também por alimentar certo preconceito contra os
Estados Unidos, preferindo uma nova estada na Europa, por gosto pessoal, por
preferências gastronômicas, afinidades intelectuais e educativas. Foi Carmen Lícia
quem me convenceu que eu deveria aceitar, o que fiz numa segunda ou terceira
consulta (telefônica) feita por Rubens Barbosa em sua transição entre uma e outra
capital. Fui imediatamente removido para Washington, e tivemos de “liquidar”
rapidamente vários compromissos em Brasília, para poder assumir o novo posto, a
tempo, aliás, de assistir às assembleias das instituições de Bretton Woods (FMI e
Banco Mundial), que eu já seguia profissionalmente por dever de ofício (tendo
comparecido a duas ou três reuniões a partir de Brasília, quando se discutia uma nova
!
37!
possível reforma dos estatutos do FMI tendente a abolir os controles de capitais, o que
foi abandonado na sequência das crises financeiras da segunda metade dos anos 1990.
Mas, antes mesmo de partir a Washington, eu já sugeria a Rubens Barbos uma
iniciativa que correspondia inteiramente a minhas afinidades intelectuais, e secreto
desejo acadêmico, a de reunir na Embaixada os mais importantes brasilianistas
americanos, para efetuar uma espécie de balanço de sua produção intelectual, que eu
já seguia pelos livros e pela produção periódica desde muitos anos. O fato é que
desembarquei em Washington em setembro de 1999, seguindo imediatamente para as
reuniões (e recepções) da assembleia anual de Bretton Woods, em meio a todos
aqueles banqueiros, homens de negócios, diplomatas e burocratas financeiros, que
pulavam de uma reunião a outra, se comprimiam nas recepções oficiais e privadas e
trocavam avidamente cartões de visita, se prometendo novas e prometedoras
atividades. Quase imediatamente depois, recebíamos na Embaixada uma massa
respeitável de velhos e novos brasilianistas, e vários coordenadores de centros de
estudos latino-americanos de grandes universidades americanos, com o objetivo de
debater o estado da arte dos estudos brasileiros nesses centros de pesquisa e estudos.
Aproveitei, então, para propor meu projeto, o de se efetuar uma avaliação
crítica da produção acumulada nas últimas décadas, uma vez que os brasilianistas
tinham participado da própria formação e consolidação da área de ciências sociais e
humanidades no Brasil, nos anos 1950 e 60, e já tínhamos feito, portanto, nossa
“substituição de importações” no limiar do novo milênio. A proposta foi bem acolhida
e foi calorosamente apoiada e levada adiante pelo embaixador Barbosa, que me
alocou alguns recursos (“desviados” de um antigo projeto financiado pelo BID
voltado para a modernização do MRE, e que ele desviou para “pesquisas” nos EUA)
que serviram para convidar participantes selecionados e financiar duas reuniões de
trabalho destinadas a examinar os ensaios produzidos e prepará-los para edição e
publicação.
Minha providência inicial foi no sentido de selecionar e convidar um parceiro
como editor e organizador da obra, o que foi feito na pessoa do sociólogo e
historiador Marshall Eakin, da Universidade Vanderbilt, no Tennessee, com quem
discuti os colaboradores em cada um dos capítulos e áreas a serem cobertos pela
avaliação. Eu conhecia, pessoalmente ou pela bibliografia, alguns dos brasilianistas, o
que facilitou a tarefa de selecionar os especialistas colaboradores. Poucas frustrações
nesse processo: não pude contar com o historiador brasilianista mais conhecido, Tom
!
38!
Skidmore, tomado por outras obrigações, nem consegui que um outro historiador,
Kenneth Maxwell, convidado, lograsse terminar sua prometida colaboração. Eu
mesmo escrevi uma introdução histórica e metodológica, colocando em perspectiva as
várias fases da produção brasilianista, e o co-organizador Marshall Eakin fez uma
revisão completa do volume apresentando os diversos capítulos. A edição brasileira
foi rapidamente preparada, saindo já em 2002: O Brasil dos brasilianistas (Paz e
Terra), e a americana, Envisaging Brazil, foi publicada em 2005 pela Universidade do
Wisconsin, com maior cuidado de revisão.
Outro projeto, para o qual pude igualmente contar com o apoio do embaixador
Barbosa, foi a tentativa de copiar a documentação diplomática americana sobre o
Brasil, ademais de outras fontes originais de papeis sobre o Brasil, muitos deles
depositados na Oliveira Lima Library, junto à Catholic University of America, uma
relação por vezes difícil. Não contando com o apoio financeiro da SERE para a coleta
da documentação depositada nos National Archives, consegui, pelo menos, 20 mil
dólares junto à Fundação Vitae, animada pelo bibliófilo José Mindlin, o que me
permitiu reunir um pequeno grupo de estagiários na embaixada, e um historiador
brasileiro, Francisco Rogido, para compor um Guia dos Arquivos Americanos sobre o
Brasil, alguns anos depois publicado pela Funag. Fizemos alguns seminários tópicos
sobre temas de interesse bilateral, em parceria com entidades americanas do universo
dos think tanks, que são bastante influentes no policy making americano.
O embaixador Barbosa, foi muito mais ativo, e incansável, nas propostas
tendentes a realçar o papel do Brasil no mapa político de Washington, atuando em
todas as frentes abertas a um representante alerta como ele: a das comunicações locais
e em direção do Brasil, a das relações com o Congresso, a das relações com os meios
de negócios e também, o que eu seguia particularmente, a da criação de espaços e de
centros de estudos sobre o Brasil junto às universidades americanas. Ele conseguiu,
com financiamento empresarial, criar um centro junto à Georgetown University, em
Washington, e outro na Columbia, em Nova York, que foi inicialmente dirigida pelo
conhecido economista brasilianista Albert Fishlow. Junto à outra grande universidade
da capital americana, a George Washington, já funcionava, desde muitos anos, o
programa Minerva, criado pelo diplomata e economista – mestre em economia pela
GWU em 1947 – Roberto Campos, e que todo ano trazia um pequeno grupo de
quadros da burocracia pública e das estatais brasileiras para um curso rápido em
administração e finanças como forma de capacitá-los a melhor servir o processo
!
39!
brasileiro de desenvolvimento. A cooperação com outras entidades acadêmicas e as
fundações existentes em Washington era conduzida de forma tópica e seletiva.
Washington representou um ponto alto em minha carreira diplomática, no
sentido do aproveitamento de múltiplas oportunidades de estudo e de pesquisa (eu era
um usuário constante da Library of Congress, por exemplo), e de contato com muitas
personalidades americanas e brasileiras, mas também representou pequenos acidentes
de percurso, dada a grande exposição que Washington naturalmente permite, e minha
própria agenda paralela à diplomacia oficial, no sentido de escrever e publicar artigos
acadêmicos ou de caráter jornalístico. Aqui entra, finalmente, uma explicação para o
título deste depoimento, pois a frase foi dita, como é óbvio, pelo embaixador Rubens
Barbosa, ao enfrentar eu a segunda ou terceira “censura” da Secretaria de Estado, por
artigos ou entrevistas que eu concedi enquanto em Washington. Explico, pois.
O Brasil vivia, entre 2001 e 2002, um clima pré-eleitoral, num contexto de
contestação crescente, por parte do PT e de outras forças esquerdistas, das políticas
ditas “neoliberais” implementadas pela socialdemocracia nos anos 1990, em meio a
crises financeiras e esforços contínuos de estabilização econômica. Como cidadão
participante dos debates públicos em torno das grandes escolhas que tinham de ser
feitas pela nação, eu colaborava frequentemente com pequenos veículos acadêmicos
e, por vezes, fazia intervenções na grande imprensa. Escrevi, por exemplo, um artigo
contra as posições absurdas do candidato Lula em matéria de políticas agrícolas e
comerciais, sustentando a subvenções setoriais e o protecionismo europeu, chamando
a atenção da revista Veja, que então me contatou para uma entrevista para as Páginas
Amarelas (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/02/uma-entrevista-normal-
pela-qual-o.html). Depois de alguma hesitação, resolvi conceder a entrevista, à
condição que não se informasse a minha condição de diplomata, e de ministro-
conselheiro em Washington, apenas mencionando que eu me encontrava publicando
dois livros naquele momento: um de relações internacionais no século XXI (de
inspiração aroniana), e a minha tese sobre a formação da diplomacia acadêmica no
Brasil, finalmente convertida numa volumosa obra de pesquisa historiográfica.
A entrevista foi feita, e causou certo impacto no Itamaraty, mas, a despeito do
fato que nenhum dos meus argumentos – sobre políticas comerciais, sobre o
protecionismo dos mais ricos, sobre o comércio internacional em geral – confrontava
ou desmentia qualquer posição do governo brasileiro ou do próprio Itamaraty, a SERE
resolveu me “punir”, nessa fase apenas alertando que existia a (famigerada) “lei da
!
40!
mordaça” – uma circular estabelecendo censura prévia de Brasília para qualquer tipo
de expressão ou manifestação pública por parte dos diplomatas. Considerei a censura
injusta, mas “instrui” o embaixador Barbosa a responder claramente à consulta da
SERE, dizendo a verdade, ou seja, que eu não o havia consultado, ou sequer
previamente informado, sobre a entrevista concedida ao mais vistoso dos semanários
brasileiros de informação geral. O único aspecto “censurável”, talvez, era o fato de eu
me permitir criticar o candidato (pela terceira vez) do PT à presidência da República,
mas considerei isso meu “direito”, aliás coerente com as posturas do governo e da
própria Casa, ao condenar o protecionismo e as subvenções agrícolas. Essa foi a
primeira censura que recebi, em despacho telegráfico relembrando-me os termos da
tal circular da “censura prévia”.
A segunda foi mais contundente. No final de janeiro de 2002, deveria ocorrer
mais um daqueles circos anuais dos antiglobalizadores, o rum Social Mundial, em
Porto Alegre, capital do PT e do “orçamento participativo”, com o desfile habitual de
altermundialistas de todas as partes do mundo. Provocativamente, eu mencionei o
comparecimento no evento de vários ministros socialistas franceses, e escrevi – e
publiquei vários antes da realização do evento – o que exatamente eles iriam falar no
Fórum e quais seriam os resultados esperados: condenação do capitalismo selvagem,
da globalização assimétrica, das desigualdades sociais, das iniquidades de gênero, da
destruição do meio ambiente pela economia desregulada e coisas desse tipo. Dotado
de título contundente (“A esquerda jurássica marca encontro em Porto Alegre”) e
publicado no jornal O Estado de S. Paulo (26/01/2002), o artigo causou certo frisson
em Brasília, onde resolveram me punir com nova advertência formal, não tanto por ter
ridicularizado os antiglobalizadores, mas por ter ironizado a presença de pelo menos
três ministros socialistas franceses, que talvez tenham visitado o Itamaraty antes ou
depois do convescote altermundialista.
Foi nessa conjuntura que o embaixador Rubens Barbosa, me chamando ao seu
gabinete para me mostrar o telegrama de admoestação – desta vez com palavras mais
diretas – e novamente censurar-me pela nova incursão na “contraversão”, pronunciou
as palavras que figuram no título deste ensaio-depoimento. O fato de eu ser um
diplomata propenso aos “acidentes de percurso” não diminuía em nada minhas outras
utilidades no plano funcional, quais sejam, as habilidades na escrita, na elaboração de
papers e outros elementos úteis na cooperação intelectual com os Estados Unidos.
Barbosa voltou a repetir o que já me havia dito, alguns anos antes, quanto à a estrita
!
41!
separação entre minhas obrigações funcionais e minhas atividades acadêmicas, algo
que nunca observei, nem antes, nem durante ou depois. Continuei mantendo minha
postura absolutamente independente, tanto no desempenho das tarefas funcionais,
quanto na dedicação paralela às lides intelectuais. Numa ou noutra, nunca deixei de
pautar-me, a despeito de todas as advertência recebidas, por meus próprios critérios,
quais sejam, uma fidelidade estrita à análise objetiva, fundamentada em dados obtidos
em fontes originais, sem qualquer concessão às banalidades conceituais da linguagem
oficial.
Ocorreu ainda um terceiro episódio, em decorrência de uma viagem que fiz ao
Brasil em meados do ano, justamente para lançar os livros anunciados na entrevista a
Páginas Amarelas de Veja. Como o Cebri me convidou para fazer uma palestra sobre
a Alca e outras negociações comerciais em curso, formulei comentários “realistas”
sobre as posturas de nossos parceiros no Mercosul, que foram registradas por um
jornalista presente e reproduzidos no dia seguinte num dos maiores jornais nacionais.
Novamente aquela agitação em Brasília, desta vez com a advertência de que um
quarto episódio do gênero poderia motivar minha remoção de Washington. Creio que,
depois desta terceira vez, o embaixador Barbosa conformou-se com o que o diplomata
“propenso a acidentes”, como ele me classificou (em inglês), tinha se tornado imune a
pressões ou punições, ainda que eu tivesse prometido moderação dali em diante.
Organizando a volta, e novos tempos de ostracismo
Acredito ter deixado um bom legado de realizações em Washington, sobretudo
no plano acadêmico e intelectual, que também agregaram ao bom saldo deixado pelo
embaixador Rubens Barbosa. Sentindo os novos tempos adversos, a partir da eleição
dos companheiros, e uma administração na SERE desejosa de “limpar o terreno”, ele
mesmo marcou sua saída da embaixada, em conversa direta com o presidente Lula –
quando de sua primeira aparição na assembleia da ONU, em setembro de 2003, em
Nova York – acertando que sairia em abril de 2004. Eu também tinha planos de voltar
a Brasília, por razões profissionais, familiares e pessoais, mas não tinha nada em vista
na Secretaria de Estado (pouco propensa, obviamente, a acolher um crítico evidente
dos novos tempos companheiros).
A oportunidade surgiu ao início de 2004 quando, depois de dois anos atuando
como professor orientador do mestrado do Rio Branco, recebi o convite, do diretor,
para assumir a coordenação do curso, ficando ainda responsável por um programa de
!
42!
pesquisas, pela edição de uma revista e outras tarefas típicas de um mestrado. Aceitei
o convite, apenas para ser “desconvidado” poucos dias depois, pelo fato de que o SG
Samuel Pinheiro Guimarães tinha “outras ideias” (segundo me foi dito) para a
condução do programa de mestrado. Entendi o recado e passei visualizar outras
possibilidades. Elas surgiram, numa nova viagem a Brasília, que fiz em meados desse
ano, recebendo o convite de um dos mais distinguidos petistas do alto escalão,
membro da “troika” de aconselhamento do presidente, Luiz Gushiken – que
partilhava do inner circle do Planalto, junto com Antonio Palocci e José Dirceu –,
para integrar sua equipe de assessores no Núcleo de Assuntos Estratégicos, um
sucedâneo da antiga Secretaria de Assuntos Estratégicos, em escala menor.
Despedi-me do embaixador Rubens Barbosa, pela última vez como assessor
direto, mas não como término da colaboração, em setembro de 2004, e dei início a
uma nova fase de atividades funcionais e acadêmicas, sem desconfiar, ao início, de
que o afastamento da SERE duraria o inteiro reinado dos companheiros no poder,
uma vez que nunca mais tive cargos na Secretaria de Estado de modo estável. Depois
de dois anos no NAE-PR, deixei o órgão quando do afastamento, por razões de saúde,
de seu presidente, e apresentei-me na SERE, pronto para trabalhar novamente na
diplomacia. Na verdade, fiquei anos e anos no chamado DEC, Departamento de
Escadas e Corredores, período muito bem aproveitado para leituras, estudos,
pesquisas, escritos e publicações variadas, abertas e discretas. A longa travessia do
deserto durou os exatos 13 anos e meio do reinado lulopetista no governo e na
diplomacia, e só foi interrompida por uma missão temporária na China, para atuar no
Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Shanghai, em 2010, e por uma remoção
formal para servir como Cônsul Geral Adjunto no Consulado em Hartford, entre 2013
e 2015. Em caráter particular, aceitei um estágio de três meses na Universidade do
Illinois em Urbana-Champaign, em 2009, e tirei uma licença-prêmio em 2012, para
passar cinco meses em Paris, dando aulas no programa de mestrado do Instituto de
Estudos da América Latina, associado à Sorbonne. Foram novas oportunidades de
estudos, pesquisas, escritos e palestras diversas, com intensa produção veiculada em
meu blog pessoal, Diplomatizzando.
Nesse longo intervalo de mais de dez anos sem cargos no Brasil, encontrei-me
várias vezes com o embaixador Rubens Barbosa, já instalado em São Paulo e
trabalhando na iniciativa privada, com seu próprio escritório de consultoria e a
direção do Conselho de Comércio Exterior da FIESP, ademais de muitas outras
!
43!
atividades. Acolhi com grande satisfação, e colaborei em alguns números, o
lançamento da revista Interesse Nacional, que ele concebeu, financiou e dirigiu no
plano executivo, com a editoria de assessores de qualidade. Nunca deixei de ser bem
mais radical do que ele na oposição ao desastroso governo companheiro, que
terminou por afundar a economia do país.
Partilhando concepções relativamente próximas no que tange à política
externa brasileira, foi mais do que natural o convite que eu formulei ao embaixador
Rubens Barbosa para que ele prefaciasse o meu livro Nunca Antes na Diplomacia...: a
política externa do Brasil em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014).
Nunca redigi, por outro lado, ou prestei qualquer colaboração para qualquer um dos
muitos artigos que ele produzia quinzenalmente para a imprensa periódica, tocando
em aspectos diversos da vida nacional, com destaque, obviamente, para a diplomacia.
Também saudei com satisfação outra iniciativa que ele teve ao fundar e dar início ao
funcionamento do IRICE, Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior,
um tentativa de trazer para São Paulo os grandes debates sobre política externa que já
ocorriam no Rio de Janeiro sob a égide do Cebri, e da própria Funag, em Brasília.
Novos tempos, novas tarefas
Em minha volta ao Brasil, no final de 2015, ainda enfrentei mais seis meses de
ostracismo, assistindo ao desenrolar da crise política que vitimava o quarto governo
companheiro, o da inepta presidente que produziu a maior crise econômica da história
do Brasil, antes de ser convidado a assumir o cargo de Diretor do Instituto de
Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag, mas já depois do impeachment e ao
fim dos governos lulopetistas. Não deixei, porém, de colaborar com a Funag e o IPRI,
ao ter coordenado um seminário, uma exposição e um livro em homenagem aos 200
anos de nascimento do historiador-diplomata Adolfo Varnhagen, o que me deu grande
satisfação pois, até então, eu só conhecia o chato do historiador patriótico, e acabei
descobrindo, graças aos trabalhos de Arno Wehling, presidente do IHGB, o autor do
Memorial Orgânico, possivelmente o primeiro planejamento estratégico e geopolítico
elaborado no Brasil (em 1849).
Entre muitas outras atividades à frente do IPRI, convidei o embaixador
Rubens Barbosa para protagonizar um dos capítulos da série criada com o Instituto
Rio Branco, chamada “Percursos Diplomáticos”, destinada, justamente, a recolher
depoimentos de antigos diplomatas que se distinguiram ao serviço da política externa
!
44!
brasileira. Também associei-o ao lançamento de uma coletânea de textos do político
gaúcho, seu antecessor na embaixada em Washington e ex-chanceler Oswaldo
Aranha, uma vez que ele é casado com uma das netas do grande estadista, Maria
Ignez Corrêa da Costa Barbosa. Vários outros projetos em colaboração já estão
planejados e figuram no pipeline do IPRI, enquanto eu estiver em sua direção.
Se ouso formular um julgamento sintético, ao final deste longo depoimento
pessoal sobre uma colaboração de quase 40 anos (com intervalos), sobre minha visão
do embaixador Rubens Barbosa, ele poderia ser simbolizado por uma expressão de
caráter empresarial: um dos grandes, senão o maior, dos executivos da diplomacia
brasileira durante cerca de meio século, ainda não de todo aproveitado em sua
máxima capacidade de direção e de produtividade. Sem ser um dos intelectuais da
carreira – a exemplo dos embaixadores Rubens Ricupero ou Gelson Fonseca –,
Rubens Barbosa sobrepuja todos os demais diplomatas – desde secretário e em todas
as fases de sua vida profissional – enquanto condutor, administrador e executor de
tarefas, tomando iniciativas e aproximando a diplomacia de um ambiente que se
aproxima do estilo de trabalho de qualquer grande corporação empresarial.
Se não fosse desonroso esse tipo de comparação “stalinista”, Rubens Barbosa
poderia ser chamado de Stakhanov da diplomacia brasileira, tal o seu vigor, energia e
determinação na chefia de todos os cargos que ocupou, não apenas cobrando trabalho
de todos os seus colaboradores, mas trabalhando ele mesmo muito além da rotina
normal dos demais diplomatas (que tendem a cultivar hábitos mais amenos). Nunca
deixou de trabalhar intensamente durante mais de oito ou nove horas no escritório e
de levar ainda trabalho para casa, hábito que eu também cultivo, também, por achar
que o melhor ambiente para pensar e produzir, longe da chatice burocrática do dia, é o
recesso do lar, em longas horas durante a noite, avançando na madrugada.
Tenho orgulho de ter trabalhado, e de ter podido colaborar, no limite de minha
capacidade intelectual e dedicação funcional, com esse diplomata executivo que, mais
do que qualquer outro da carreira, encarnou como poucos dotes pessoais do servidor
exemplar, no pleno atendimento do objetivo principal que, na vida empresarial, se
chama produtividade. Assinamos poucos trabalhos conjuntos, mas temos em nosso
acervo pelo menos dois livros organizados, e diversos outros textos de serviço – sob a
forma de expedientes diplomáticos, como memorandos, notas ao presidente, discursos
para os chefes da Casa – que se juntam a comentários recíprocos destinados a
!
45!
publicações individuais. Não me considero um servidor fiel, pois sempre me pautei
pelos meus próprios critérios de produção intelectual – recusando, por exemplo, todo
aquele bullshit vernacular de que são pródigos os textos oficiais – mas me considero
um diplomata leal, que cumpriu funções normais da diplomacia e até algumas além da
agenda corrente, que são, na verdade, as que me deram mais prazer intelectual. Se
algumas vezes decepcionei o embaixador Rubens Barbosa, e certamente o fiz ao
longo de mais de três décadas de colaboração, foi por manter meu espírito rebelde,
contrarianista, infenso às regras normais da carreira diplomática, tendo a coragem, e
assumindo o ônus, de manter minha liberdade pessoal, contra cânones e padrões de
uma carreira pautada pela hierarquia a disciplina (duas regras que nunca cumpri, de
fato). Em todo caso, sou grato ao embaixador Rubens Barbosa, pelas oportunidades
que tive na carreira, por servir em postos e funções que me enriqueceram, no plano
intelectual, tremendamente, e por ter sempre tido gestos de apoio em todos os
momentos de contrariedade ao longo de minha travessia do deserto.
A despeito de ser, reconheço, um diplomata “propenso ao conflito” – por
defender minha liberdade de expressão, contra os padrões habituais da Casa – tive no
embaixador Rubens Barbosa um chefe compreensivo e um colega de stakhanovismo
diplomático, o que me deixou inteiramente à vontade numa carreira que, se foi
importante em minha vida, nunca constituiu o meu único foco de interesse. O estudo,
a pesquisa, a produção intelectual sempre estiveram acima da burocracia da Casa, e
creio que o embaixador Rubens Barbosa compreendeu isso, e soube respeitar o meu
jeito heterodoxo de ser. Meus agradecimentos, mas sobretudo meus cumprimentos
pela belíssima carreira da qual ele pode estar legitimamente orgulhoso de ter
construído e mantido ao longo de mais de meio século de intensos trabalhos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de outubro de 2017.
Publicado, em versão resumida, no livro de Rubens Antônio Barbosa: Um
diplomata a serviço do Estado: na defesa do interesse nacional (depoimentos ao
Cpdoc) (Rio de Janeiro: FGV, 2018, 300 p.; ISBN: 978-85-225-2078-7), pp. 273-
289).
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