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Futuros presentes: a ficção distópica como reflexo do cotidiano

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Abstract

Resumo: O artigo apresenta a distopia enquanto gênero literário como reflexo do cotidiano, em narrativas que, em um primeiro momento, abordam um futuro imaginado. Nas distopias, esse futuro é encarado sempre como pior que o presente, porém, o que esse trabalho busca tencionar é o quanto tais narrativas já apresentam uma descrença com o próprio cotidiano do momento presente de escrita e apresentação da obra. Para tal, buscamos em um primeiro momento conceituar o gênero distópico e, após, trabalhar a noção de cotidiano, a partir dos autores Agnes Heller e Michel de Certeau, relacionando tais conceitos com as obras distópicas Nós, 1984 e Jogos Vorazes. Abstract: The article presents dystopia as a literary genre and a reflection of everyday life in narratives that, at first, approach an imagined future. In dystopias, this future is always faced as worse than present, but what this study seeks to demonstrate is how these narratives already present a disbelief with everyday life of the present moment of writing and presentation of the story. To achieve this, we first sought to conceptualize the dystopic genre and, afterwards, to work on the notion of everyday life, from the authors Agnes Heller and Michel de Certeau, relating such concepts to the dystopic narratives We, 1984 and Hunger Games. Resumen: El artículo presenta el género literario de la distopía como reflejo de lo cotidiano, a partir de narrativas que, en un primer momento, abordan un futuro imaginado. En las distopías, ese futuro es encarado siempre como peor que el presente, pero, lo que ese trabajo busca pretender, es mostrar cuanto tales narrativas ya presentan una incredulidad con el propio cotidiano del momento presente de escritura y presentación de la obra. Buscamos, en un primer momento, conceptuar el género distópico y, después, trabajar la noción de cotidiano, a partir de los autores Agnes Heller y Michel de Certeau, relacionando tales conceptos con las obras distópicas Nosotros, 1984 y Los Juegos del Hambre.
Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 1, p. 136, agosto, 2018
Rizoma
Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar algumas das relações
que o futuro descrito nas cções distópicas estabelece com questões
presentes na vida cotidiana, mais especicamente no contexto das
épocas em que tais textos foram escritos. Para alcançar os objetivos
propostos, o trabalho trará à baila os conceitos de utopia e distopia,
conforme tratados por Thomas Morus e Evanir Pavloski, dialogando
com questões propostas por Agnes Heller e Michel de Certeau ao
abordar o tema do cotidiano. Tais discussões serão ilustradas pelas obras
Nós, de Yevgeny Zamyatin, 1984, de George Orwell, e Jogos Vorazes,
de Suzanne Collins, as quais serão abordadas ao longo do artigo.
Palavras-chave: Cotidiano. Futuro. Ficção. Distopia.
Futuros presentes: la cción distópica
como reejo de lo cotidiano
Resumen: Este artículo tiene por objetivo abordar algunas de las
relaciones que el futuro descrito en las cciones distópicas establece
con cuestiones presentes en la vida cotidiana, más especícamente
en el contexto de las épocas en que tales textos fueron escritos.
Para alcanzar los objetivos propuestos, el trabajo traerá a la baila
los conceptos de utopía y distopía, conforme tratados por Thomas
Morus y Evanir Pavloski, dialogando con cuestiones propuestas por
Agnes Heller y Michel de Certeau al abordar el tema de lo cotidiano.
Tales discusiones serán ilustradas por las obras Nosotros, de Yevgeny
Zamyatin, 1984, de George Orwell, y de Los Juegos del Hambre, de
Suzanne Collins, las cuales serán abordadas a lo largo del artículo.
Palabras clave: Cotidiano. Futuro. Ficción. Distopia.
Present futures: dystopian ction
as a reection of everyday life
Abstract: This paper aims to address some of the relationships that the
future described in dystopian ctions establishes with issues present in
everyday life, more specically in the context of the times when such
Juliana Souza1
Fernanda Costantino2
Emmanoel Ferreira3
1 Mestranda do Programa de Pós
Graduação em Mídia e Cotidiano;
2 Mestranda do Programa de Pós
Graduação em Mídia e Cotidiano.
3 Doutor em Comunicação, Profes-
sor do Departamento de Estudos Cul-
turais e Mídia e do Programa de Pós
Graduação em Mídia e Cotidiano.
Futuros presentes:
a cção distópica como reexo do cotidiano
https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma
e-ISSN 2318-406X
DOI: 10.17058/rzm.v6i1.9791 A matéria publicada nesse per iódico é l i-
cencia da sob forma d e uma Licença Creativ e
Commons – Atribuição 4.0 Internacional
http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 1, p. 137, agosto, 2018
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texts were written. In order to reach the proposed objectives, this work
will bring to the fore the concepts of utopia and dystopia, as treated by
Thomas Morus and Evanir Pavloski, dialoguing with questions proposed
by Agners Heller and Michel de Certeau when addressing the subject
of everyday life. Such discussions will be illustrated by the works We ,
by Yevgeny Zamyatin, 1984, by George Orwell and Hunger Games, by
Suzanne Collins, which will be discussed throughout the paper.
Keywords: Everyday Life. Future. Fiction. Dystopia.
Introdução
Em 2016, a revista Bravo! e o jornal digital Nexo publicaram4 duas
matérias abordando o mesmo tema: a cção distópica e sua aproximação
com a realidade. Por se tratar de algo contrário ao ideal existente no conceito
de utopia, a distopia caracteriza-se como um futuro pior do que o presente.
Em ambas as matérias, os jornalistas atentaram para o fato de as alusões
ccionais ao futuro não estarem apenas relacionadas com o retrato das
incertezas do que está por vir, mas também como uma própria leitura do
presente. O texto da Bravo! propõe ao leitor que tente isolar as narrativas
do mundo real de modo que seja possível entender o seu sentido e aprender
algo a partir das obras de cção. o Nexo, que, por sua vez, conversou
com roteiristas e cineastas5, propõe um teste com 10 questões que misturam
cenários reais e distópicos trazendo apenas duas opções de resposta em
cada item, desaando o leitor a diferenciar a cção da realidade.
Se olharmos para a cronologia da produção das narrativas
distópicas, o livro Nós, escrito entre 1920 e 1921 pelo russo Yevgeny
Zamyatin, pode ser considerado pioneiro na temática e traz em sua
trama um planeta Terra quase mil anos após os dias atuais. Nesta Terra
do futuro, a sociedade vive de acordo com as leis da Matemática,
pois ela, segundo o narrador – o personagem D-503, é a ciência mais
nobre no que tange à criação de uma ordem perfeita. De acordo com o
mesmo narrador, os antepassados (ou seja, os humanos do século XX)
viviam em completo caos, algo inaceitável para os padrões de vida da
época retratada no livro. Em Nós, todas as ações dos personagens são
vigiadas e controladas ao longo do dia, tudo é cronometrado. A única
exceção são alguns breves momentos de privacidade aos quais os
cidadãos têm direito, geralmente utilizados para encontros amorosos.
Além do controle dos corpos e do tempo, também a ordenação
– matemática daqueles mesmos corpos. Os indivíduos devem
se locomover na mais perfeita ordem, alinhados. Não à toa um dos
símbolos de maior potência na história é o do quadrado. Para alguns
críticos literários, Nós não seria uma obra distópica nos moldes de
outras mais conhecidas e estabelecidas ao longo do século XX, pois
sua sociedade, ou grande parte dela, via aquela forma de vida como
4 Matérias publicadas na internet.
Link completo nas referências.
5 O diretor e roteirista Jotagá Crema,
o escritor e cineasta João Paulo
Cuenca e o editor e roteirista de
quadrinhos Raphael Fernandes. Link
da entrevista nas referências.
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evoluída. Em todo caso, há, ali, uma visível crítica à ordem imposta
deliberadamente e ditatorialmente por um governo, e isto ocorre
quando o narrador começa a repensar aquele modo de vida.
Talvez de forma mais sutil que as obras que viriam a surgir nos
anos e décadas seguintes, Nós abre, de certa forma, o caminho para
este gênero da literatura que viria a conhecer grande importância ao
longo do século XX e agora no século XXI. Já a obra 1984, escrita
por George Orwell, é vista como uma das mais inuentes do último
século, ao tratar a distopia em um regime totalitário e vigilante. Nos
últimos anos, as obras de cção que abordam a distopia voltaram a
ganhar destaque na literatura e no cinema, principalmente diante do
público jovem. Responsável por trazer o tema novamente à tona no
século XXI, Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, desperta o interesse
de jovens e adultos ao abordar a distopia em meio a um contexto de
resistência e engajamento frente a um governo ditatorial.
Esta retomada das obras de cção distópicas na literatura e no
cinema nos últimos anos pode ser entendida como um reexo das
necessidades do indivíduo de encontrar respostas para o atual contexto
da sociedade em que vive. Os lmes contemporâneos de Hollywood,
baseados em narrativas distópicas, têm, cada vez mais, apostado em
roteiros que reitam os medos, esperanças, conitos e ideologias políticas
da sociedade americana (KELLNER, 2016). Eles não apresentam
temas ambientais e sociopolíticos como também discutem o futuro da
humanidade. Segundo Kellner (2016) esse é o cinema contemporâneo
de apocalipse social hollywoodiano. Tais temas surgem para responder
aos anseios da sociedade em relação ao cotidiano.
Dentro desta perspectiva tencionamos, neste artigo, abordar algumas
das relações que o futuro descrito nas cções distópicas estabelece com
a vida cotidiana. Para alcançar os objetivos propostos neste trabalho,
traremos à baila os conceitos de utopia e distopia, conforme tratados por
Thomas Morus e Evanir Pavloski, dialogando com questões propostas
por Agnes Heller e Michel de Certeau, ao abordar o tema do cotidiano.
Tais proposições serão ilustradas pelas obras Nós, de Yevgeny Zamyatin,
1984, de George Orwell, e Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, descritas
anteriormente, e que serão abordadas ao longo do artigo.
Utopia e distopia: o futuro como locus de reexão
Quando Thomas Morus fez uma análise crítica da sociedade inglesa
no século XVI, ele apontou na composição social, no aspecto político e
na dimensão econômica, fatores responsáveis pela falta de liberdade e
diversos problemas da população. Dividida de forma estraticada entre
nobres, clero, soldados e os miseráveis, a Inglaterra era governada por
um regime absolutista, onde “o príncipe é a fonte de onde o bem e o mal
jorram, como uma torrente, sobre o povo” (MORUS, 2004, p. 14)
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A obra de Thomas Morus e a consequente assimilação da ideia de
Utopia também como um gênero textual, abriu caminho para diversas
outras produções textuais losócas, sociológicas e literárias serem
inseridas nesta temática utópica (PAVLOSKI, 2005). Apesar disso, o
gênero não se limita apenas ao proposto por Morus, sendo composto
por diversos outros aspectos característicos, surgindo exemplos – em
uma comparação diacrônica – em obras anteriores ao século XVI
como “A República”6, de Platão. Do mesmo modo, o historiador
Szachi (1972) atenta para outras propostas que podem ser inseridas
nessa temática. Em suas palavras:
Esquemas semelhantes percebemos em casos de ‘viagens’ no tempo,
empreendidas tantas vezes, seja em direção ao legendário ‘século de ouro’,
seja para um futuro que embora não muito claro em seus contornos, é, com
certeza, mais feliz. E não será uma ‘utopia’ o que escreve o político que
propõe um projeto de constituição ideal para seu país? (SZACHI, 1972, p. 3)
Foi essa ideia de utopia, cunhada no século XVI, que permitiu
nutrir uma visão otimista e esperançosa de um “lugar melhor” no
futuro, com formas perfeitas de governo e convivência, apesar de
consistir num padrão de sociedade jamais vivido ou alcançado. Para
o crítico literário Swietochowski (apud SZACHI, 1972), representar
uma forma ideal das relações sociais é um desejo inerente de qualquer
época, nação ou até mesmo um indivíduo. É ele a dizer:
A utopia como a forma ideal de relações sociais é elemento o mais
generalizado no mundo espiritual. Faz parte de todas as crenças religiosas,
teorias morais e legais, sistemas de educação, criações poéticas, em uma
palavra, de todo conhecimento e obra que visam oferecer modelos para
a vida humana. É impossível imaginar qualquer época, nação ou mesmo
indivíduo que não tenha sonhado com um céu na terra, que não tenha
sido mais ou menos utópico. Onde quer que existam – e elas existem em
toda parte – miséria, injustiça e dor, haverá também especulações sobre
como erradicar as causas do mal. Na imensa escala que se estende por
toda a história da cultura, desde as fantasias do nômade selvagem até as
reexões do lósofo moderno, encontra-se uma innidade de versões da
utopia. (SWIETOCHOWSKI, apud SZACHI, 1972, p. 8).
Reetindo sobre esse pensamento, é como se as utopias existentes
nas diversas épocas da humanidade fossem suas lhas legítimas
(SZACHI, 1972). Entre os diferentes tipos de utopia existentes, Szachi
(1972) estabelece uma divisão de dois grandes grupos para caracterizá-
las: utopias escapistas e utopias heroicas. No caso das utopias escapistas,
como o autor classica a obra de Morus (2004), apesar de apresentarem
uma crítica contra a realidade, não organizam um caminho para uma
mudança da sociedade. Não existe nelas um programa pragmático que
determina a renovação da estrutura social, “mas constroem em suas
obras um espaço de libertação e de devaneio individual” (PAVLOSKI,
2005, p. 38). Já as utopias heroicas estruturam um plano de ação
5 Em “A Utopia”, Thomas Morus
faz menções à obra de Platão,
comparando as práticas dos
Utopianos com as teorias idealizadas
pelo lósofo grego.
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visando às transformações objetivadas ao longo da narrativa. Além
de revolucionários, os planos “preveem a reestruturação profunda dos
padrões políticos, econômicos, morais e ideológicos que regem uma
sociedade particular” (PAVLOSKI, 2005, p. 39).
A ilha da República de Utopia criada por Morus (2004), assim
como muitas outras utopias escapistas7, é centrada na ideia de um
espaço diferente, onde uma localidade imaginária não remete somente
à distância geográca, mas também a costumes, modos de agir e
estruturas sociais. Soma-se então a representação de uma sociedade
ideal a esse objetivo de fuga da realidade trazida com as obras utópicas,
onde é dada ao indivíduo a possibilidade de condenar o presente, mas
sem enfrentá-lo. Ainda nas palavras de Szachi (1972, p. 23): “Diz-
se o que é o bem, mas não se diz como alcançá-lo. Diz-se em que
consiste o mal, mas não se diz como substituí-lo pelo bem”. Morus
(2004), ao longo da narrativa, deixou transparecer, mesmo que de
forma subjetiva, a crítica de que seus desejos para o que chamava de
sociedade ideal não seriam possíveis, muito em função das práticas do
sistema vigente da época. É ele a dizer: “Contudo, devo confessar que
muita coisa na República de Utopia que eu desejaria ver imitada
em nossas cidades – coisa que mais desejo do que espero” (MORUS,
2004, p. 131).
Antes uma fuga da realidade para o lugar ideal, a crítica social
feita por meio dessa obra dá lugar para representações mais enérgicas.
Com o passar dos séculos e a emergência de novas potências mundiais, a
intensicação das disputas de poder e territórios, principalmente através
de guerras, o otimismo por um “lugar melhor” começou a ser derrubado.
Nunca haviam acontecido guerras mundiais, que envolvessem todas as
potências, ao invés de se concentrar em batalhas unilaterais. Hobsbawm
(1995) destaca que foi a partir de 1914, com a eclosão da Primeira
Guerra Mundial, que um conito envolveu todas as grandes potências
e as tropas do ultramar foram enviadas para lutar e operar além de seus
limites. Segundo o autor, foram 31 anos de conitos ao redor do mundo
que culminaram na morte de milhões de pessoas, através do uso dos
mais diferentes tipos de armamentos pesados e de destruição em massa,
como a bomba nuclear. Em suas palavras:
(...) quatro dias após a explosão da primeira bomba nuclear —, em que
o m de considerável proporção da raça humana não pareceu muito
distante. (...) A humanidade sobreviveu. (...) Não há como compreender o
Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. (HOBSBAWM,
1995, pp. 24-25).
O período entre guerras (1918-1939) foi marcado pela Grande
Depressão e a quebra da Bolsa de Nova York, a ascensão dos regimes
totalitários na Europa, tensões sociais e políticas, bem como o m
da hegemonia do capitalismo, dando espaço para a prática socialista
na URSS. Em diversos momentos ao longo das disputas, o m da
7 Como exemplo de utopias
escapistas que trazem a ideia de um
novo espaço imaginário, podemos
citar A Nova Atlântida, de Francis
Bacon (1627), e As Viagens de
Gulliver, de Jonathan Swift (1726).
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humanidade era visto como próximo, em função das mortes e
destruições provocadas, principalmente, durante a Segunda Guerra
Mundial. Mas, com o início da Guerra Fria, as tensões se intensicaram
ainda mais, dando indícios de um conito iminente. Diante desse
cenário, começa a crescer o pensamento distópico. Contrário à utopia,
ele não pensa no futuro como uma sociedade perfeita, mas, sim, muito
pior do que a que é vivida no tempo presente.
Pavloski (2005) associa a ascensão do gênero distópico na
literatura, em detrimento da utopia, à revolução comunista na
Rússia e à ascensão do fascismo na Europa, somados à invasão dos
conceitos e técnicas da cção cientíca, uma vez que eles geram uma
potencialização negativa da sociedade. Segundo o autor,
No contexto de constante renovação técnica e, consequentemente, social, as
distopias começam a ocupar um espaço de destaque somente no século XX,
sendo a revolução comunista na Rússia e a ascensão do fascismo na Itália,
Alemanha e Espanha apontadas como determinantes do orescimento da
literatura distópica em detrimento dos ideais utópicos. A mudança de utopia
para distopia envolve precisamente a invasão do utopismo tradicional
pelos conceitos e técnicas da cção cientíca. Ocorre uma potencialização
negativa das sociedades modelares – o que as torna repelentes por envolver
a imposição da ordem à custa da liberdade – em projeções que nos
forçam a enfrentar as implicações das utopias de modo mais concreto e,
consequentemente, mais agudo. (PAVLOSKI, 2005, p. 63).
A distopia, como gênero literário, torna-se então “a denúncia
dos efeitos de poder ligados às formas discursivas” (HILARIO,
2013, p. 206). Ela transfere para a narrativa os medos e ansiedades da
sociedade em relação ao futuro que surgem no início do século XX,
principalmente, no que tange à presença da tecnologia, que começa
cada vez mais a determinar estilos de vida, produção e dominação,
e da materialização das utopias, que saem do ‘papel’ e começam a
ganhar formas de organização da sociedade (KOPP, 2011). Essas
questões, amplamente abordadas nas obras iniciais do pensamento
distópico, personicam o “temor quanto ao destino do homem diante
de um novo mundo que pode conduzi-lo a ser um outro homem, um
homem transformado” (KOPP, 2011, p. 52).
Trazendo uma imagem de um futuro ameaçador, onde o estado
totalitário domina a sociedade, as distopias têm como suporte ao
controle e poder um grande aparato tecnológico. De acordo com
Kopp (2011), existe uma questão acerca da tecnologia nas narrativas
distópicas trazida por Beauchamp (1986): se ela seria apenas um
mecanismo nas mãos dos sistemas totalitários, de modo a facilitar
o controle e o poder, ou se a tecnologia teria condições de sozinha,
atingir tamanha autonomia para modicar a sociedade e fazê-la
subserviente às suas intenções. Nesse ponto, Beauchamp (1986)
destaca a presença de duas correntes que discutem o tema: os
tecnólos e os tecnofóbicos:
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Os primeiros veriam a tecnologia como um valor neutro, um instrumento
capaz de ser usado para os ns os quais o humano se inclinar a fazer.
Por outro lado, os tecnofóbicos acreditam que a tecnologia pode
vir a transcender os propósitos criados inicialmente e pode adquirir
independência, numa espécie de relação ao modo do que foi imaginado
por Mary Shelley, em Frankenstein (1831). Esta percepção tecnofóbica
é a que dene, em seu ponto de vista, a maioria das cções distópicas,
revelando a tecnologia como um monstro moderno capaz de ser totalitária
em si mesma e não apenas um caminho para facilitar a ordenação e o
controle da sociedade. (BEAUCHAMP, apud KOPP, 2011, p. 51)
Esse contexto permanece no século XXI e, com as mudanças
trazidas para a sociedade com o início deste século e o m do período
da Guerra Fria (HOBSBAWM, 1995), pode ser observado a partir dos
ataques de 11 de setembro de 2001, que destacaram a vulnerabilidade
dos EUA aos ataques terroristas. Segundo Phaar e Clark (2012),
foi justamente após os ataques que as obras de distopia voltaram a
explodir, agora no século XXI. De acordo com os autores:
Romances distópicos e pós-apocalípticos parecem evocar e liberar
a mentalidade de medo e isolamento sentido por muitas pessoas do
mundo real depois dos ataques ao Pentágono e ao World Trade Center.
Certamente, muitas crianças crescendo após 11/9 podem sentir menos
conança em relação a sua segurança pessoal que as gerações que vieram
antes. E mesmo aqueles que possuem forte suporte pessoal podem
sentir uma erosão paralela na conança dos adultos que, supostamente,
controlam o mundo. (PHAAR; CLARK, 2012, p. 08).
Assim, as obras distópicas, novamente, surgem em um contexto
de incerteza e descrença nas dimensões política, social e econômica,
onde o futuro passa a ser enxergado, mais uma vez, com um olhar
negativo. As distopias, portanto, reetem tanto o que a sociedade
espera do futuro, como também aquilo que ela experimenta em sua
própria vida cotidiana.
Ficção distópica como crítica e reexo do cotidiano
Ao trabalhar o conceito de cotidiano, Heller (2000, p. 17) arma que
“a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa
na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua
personalidade”. Assim, o cotidiano é heterogêneo e os diversos aspectos
e núcleos diferentes que o orbitam ocupam lugares de forma hierárquica
para cada indivíduo. Como o homem utiliza todas as suas capacidades
simultaneamente, nenhuma delas será exercida em sua potência máxima.
Além do mais, a vida cotidiana é regida pelo imediatismo, sem uma
grande distância entre o intervalo de tempo do pensamento e da ação.
Por fazer do mundo um ambiente imediato, o homem muitas vezes
trabalha com a imitação. Assim, cada indivíduo irá se reproduzir como
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indivíduo único e também, indiretamente, como totalidade social as
possibilidades de reprodução social que permitem a mimese e o imediatismo
no cotidiano. “O homem é, ao mesmo tempo, singular e genérico. Apenas, na
vida cotidiana, este ser genérico, coparticipante do coletivo, da humanidade,
se encontra em potência, nem sempre realizável. Na vida cotidiana só se
percebe o singular” (CARVALHO; NETTO, 2007, p. 26).
Desta maneira, de acordo com Heller (2000), a vida cotidiana
é aquela que mais se presta à alienação. De toda forma, ela não é
necessariamente de todo alienada, pois ainda espaço para explicitação
e movimento contra o uxo alienante. Porém, “quanto maior for a
alienação produzida pela estrutura econômica de uma sociedade
dada, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação
para as demais esferas” (HELLER, 2000, p. 38). Pode-se armar,
portanto, que uma forma de suspensão da cotidianidade é através da
homogeneização, uma objetivação que realiza a passagem do “homem
inteiro (muda relação de sua particularidade e ‘genericidade’) para o
inteiramente homem (unidade consciente do particular e do genérico)”
(HELLER, 2000, p. 38). Essa suspensão pode ser realizada, de acordo
com a autora, através do trabalho, da arte, da ciência e da moral.
Na obra 1984, de George Orwell, por exemplo, indivíduos
encontram-se alienados em sua cotidianidade através dos próprios
mecanismos de poder e controle do estado autoritário e vigilante. O
livro se passa em um contexto de guerra constante, no qual a Oceania
vive um regime ditatorial presidido pelo Grande Irmão, gura máxima
do grande partido, que sempre “está de olho em você”. Assim, todos
os atos de cada indivíduo são controlados pelo estado, que insere a
sociedade em uma lógica da violência, da burocracia e da miséria. Não
suspensão de tal cotidianidade e, quando há qualquer tentativa, a
mesma é apagada pelo regime, que não só repreende qualquer ato que
contra seus princípios como também reescreve a própria história,
borrando todo passado que pudesse abalar o presente. Winston Smith,
personagem principal do livro, busca uma espécie de suspensão da
alienação ao qual é subordinado, mas até mesmo suas tentativas são,
ao m, tolhidas e reprimidas, fadadas ao silêncio.
Dessa forma, 1984 pode, em teoria, representar uma espécie de
projeção do futuro distópico para o qual a sociedade poderia caminhar,
mas é uma obra que se insere também naquilo que o autor e a sociedade
presenciava no seu momento de escrita e em sua cotidianidade. O
ano de 1949, no qual o livro foi lançado, e o contexto da Inglaterra,
terra natal de Orwell, e de toda a Europa são estopins para que obras
distópicas passassem a gurar no imaginário literário. Bem diferente
da utopia positivista de Thomas Morus, as novas “utopias negativas”
do século XX representam a desesperança com o futuro, em parte por
conta do contexto das Grandes Guerras, da crise econômica iniciada
em 1929 e da falência de regimes socialistas da União Soviética,
conforme abordado anteriormente neste artigo.
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Além de 1984, a obra Nós, escrita pelo russo Yevgeny Zamyatin
entre 1920 e 1921, também expressa certa descrença com um futuro
pós-guerra. Escrito poucos anos após a Revolução Russa 1917,
quando os bolcheviques tomaram o poder, Nós reete em suas páginas
a instabilidade política e social da Rússia nos primeiros anos depois
da queda do antigo regime czarista. A partir da representação de uma
sociedade que vive aproximadamente 900 anos após o século XX,
Nós apresenta logo de início o narrador da história, o personagem
D-503 – em Nós, os indivíduos possuem um código de identicação,
e não um nome que não cansa de descrever a perfeição da vida e
da sociedade daquela época esta descrição está diretamente ligada
à diegese narrativa, que se trata de registros históricos apontados
pelo narrador. A suposta utopia presente no início da trama começa a
se corromper quando uma personagem, I-330 – corruptora do sistema,
atravessa o caminho de D-503 e este começa a questionar sua total
obediência ao Estado Único – este é o nome do estado-ditadura que
controla todos os indivíduos.
Em Nós, assim como em 1984, todos os indivíduos são
monitorados vinte e quatro horas por dia; além disso, têm suas ações
completamente cronometradas de forma precisa. A ordem, em Nós, é
o equilíbrio absoluto, o contrário do caos em que viviam as sociedades
no século XX8; a matemática é o saber supremo, já que esta instaura
a ordem em sua mais perfeita harmonia, aplicando-se, diretamente,
inclusive aos atos artísticos e criativos, como na composição musical.
Como arma D-503 em certa passagem do texto:
Que grande prazer o meu ao escutar depois a nossa música contemporânea
(...) Os acordes breves das fórmulas de Taylor, de McLaren; as passagens
sonoras, quadradas, do teorema de Pitágoras (...) Quanta grandeza! Que
regularidade inexível! Que limitada era a música dos antigos, sem
mais restrições do que as de uma fantasia bárbara. (ZAMYATIN, epub,
pp. 17-18).
Mesmo que expressando essa desesperança com o que as
sociedades passavam a vivenciar a partir da modernidade e do
capitalismo, Orwell (2010) e Zamyatin ainda enxergavam o que Heller
(2000), ao conceituar o próprio cotidiano, chama de suspensão da
cotidianidade a consciência de um estado para além da uniformidade
e imediatismo da vida cotidiana. Em posfácio escrito para a obra de
George Orwell, Fromm (1961, p. 370), ao abordar as obras distópicas
do século XX, questiona esse aspecto comum às “utopias negativas”:
A questão é losóca, antropológica e psicológica, e talvez também
religiosa. É a seguinte: pode a natureza humana ser modicada de tal
maneira que o homem esquecesse seu desejo de liberdade, dignidade,
integridade, amor – ou seja, pode o homem esquecer que é humano?
Ou tem a natureza humana uma dinâmica que reagiria à violação dessas
necessidades humanas básicas com a tentativa de transformar uma
sociedade inumana numa sociedade humana? (FROMM, 1961, p. 370).
8 Como dito no início do
artigo, a trama de Nós se passa
aproximadamente 900 anos após o
século XX. Cf. Zamyatin, epub, p. 10.
Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 1, p. 145, agosto, 2018
Rizoma
Assim, tanto em 1984 quanto em Nós, os personagens buscam o
que Heller (2000) chama de homogeneização, ou seja, a percepção da
unidade consciente e genérica a todos os homens – algo próximo ao que
Fromm coloca em seu posfácio com o que chama de sociedade humana.
De forma análoga, Michel de Certeau propõe o que ele chama de
táticas como forma de subversão de regras a partir de certas práticas do
cotidiano. De acordo com o pensador francês, são elas que possibilitam
a vitória do fraco sobre o forte – sobre o sistema, o estabelecido,
o congurado a partir da apropriação das forças que lhe escapam;
de certa forma a partir do uso da força do sistema contra o próprio
sistema. Nas palavras de Certeau (1998, p. 47), “ele o consegue em
momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos (...), mas
a sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria
decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’”. Podemos vericar o
emprego de tais táticas em Nós, quando a personagem I-330 começa um
processo de aproximação do narrador e protagonista, D-503, a m de
“encantá-lo”, no intuito de alcançar seu objetivo: o desmonte do regime
totalitário descrito na trama. Busca-se a subversão do próprio sistema,
a partir de dentro. Ou ainda, em 1984, quando Winston passa a viver
um romance com Julia e ambos sonham com uma revolução vinda dos
“proletas”, os trabalhadores “que não haviam aprendido a pensar, mas
que acumulavam em seus corações, ventres e músculos a força que um
dia subverteria o mundo” (ORWELL, 2010, p. 259). Ocorre o mesmo
Jogos Vorazes, quando a personagem principal, Katniss Everdeen,
simula um sentimento romântico em direção a Peeta, para que ambos
pudessem sair vivos da arena de batalha. São práticas do cotidiano, artes
do fazer, no dizer de Certeau (1998), que pretendem implodir estruturas
cristalizadas e normatizadas.
Além de seguir a proposta de uma sociedade distópica, a obra
Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, é concebida em meio a um cenário
de subserviência e medo, onde a população é tolhida de seus direitos e
obrigada a assistir aos “espetáculos” dos Jogos Vorazes. Na narrativa,
os 12 distritos de Panem estão prestes a participar da 74ª edição dos
Jogos. Todos os jovens, de 12 a 18 anos são obrigados a colocar seu
nome na Colheita, cerimônia que vai escolher a dupla representante
nos jogos. Faz parte do cotidiano de cada um dos distritos viver sob
a pressão da Capital. Não existe liberdade, mas, sim, uma coerção da
Capital sobre cada um deles, incluindo os mais ricos.
A alienação dos habitantes de Panem começa com a
obrigatoriedade de produção para atender aos interesses da Capital.
Cada distrito é responsável por um tipo de produção: ouro e pedras
preciosas (1), alvenaria (2), tecnologia (3), pescaria (4), energia (5),
transportes (6), madeira (7), têxteis (8), grãos (9), pecuária (10),
agricultura (11) e mineração (12). Eles não se comunicam entre si e
não sabem o que acontece no dia a dia do outro, tendo acesso apenas
ao que é televisionado pelo único canal fornecido pela Capital.
Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 1, p. 146, agosto, 2018
Rizoma
No mundo de Panem, é fácil perceber traços da América contemporânea.
Por exemplo, a nossa atual obsessão com reality shows, arte corporal e
consumismo em massa estão todos claramente expressos nessa sociedade
futura. Até mesmo nossa contínua vontade de empreender guerras e o
crescente custo emocional desse comportamento estão tecidos no o
narrativo dos restos dessa América quase futura. (GANT, 2012, p. 89).9
Dessa maneira, ao levar para a narrativa a ideia de televisionar
assassinatos triviais como forma de entretenimento e dominação, Collins
(2010) também acaba por fazer uma analogia com a sociedade atual. A
narrativa distópica apresenta um tempo histórico que emerge ao longo
do texto, de modo a apresentar estruturas históricas de compreensão.
Mas, apesar disso, esse mesmo tempo é anti-histórico. Isso pode ser
explicado através da existência de um espaço ccional, que é real,
geogracamente falando, mas que é rearranjado no universo ccional.
Em Jogos Vorazes, por exemplo, a narrativa se passa em uma América
do Norte pós-apocalíptica, que foi destruída após uma série de desastres
climáticos. Essa organização do discurso narrativo, que compreende
a relação entre narrativa e história, pode-se explicar justamente como
uma coordenação temporal da narratividade através do tempo histórico.
Segundo White (1984), isso acontece em decorrência de uma
modalidade humana da consciência do tempo, onde um evento
especicamente histórico não é algo que possa ser inserido de qualquer
forma em uma história de acordo com o desejo do autor.
(...) é antes um tipo de evento que pode “contribuir” para o “desenvolvimento
de um enredo”. É como se o enredo estivesse em processo de
desenvolvimento antes da ocorrência de qualquer evento, e qualquer evento
poderia ser dotado de “historicidade” apenas na medida em que poderia
ser mostrado em contribuir para este processo. E, de fato, tal parece ser o
caso, porque para Ricouer “historicidade” é um modo estrutural ou nível de
“temporalidade” em si. (WHITE, 1984, p. 27, tradução nossa).10
Essa relação temporal entre presente, passado e futuro é um dos
principais elementos da narrativa, uma vez que a existência do tempo
ccional encontra um mínimo de explicação racional se levada em
consideração a realidade da temporalidade humana (CARVALHO, 2010),
abrindo espaço para concepções de tempo que ultrapassam meramente a
dimensão cronológica, como as psicológicas, por exemplo. É a realidade
humana que permite compreender as alterações do tempo, seja em
distensões ou em sua nitude. O autor destaca ainda a característica do
tempo como parte da memória da humanidade, sendo o que possibilita
resgatar o passado e também prever possibilidades para o futuro.
Nesse ponto, sobre as projeções acerca de um futuro desconhecido,
resgate do passado ou até mesmo para xar as noções do tempo presente,
é que Ricoeur (1994, pp. 25-26) atribui a importância da narrativa.
Em nome de que proferir o direito de o passado e o futuro serem de algum
modo? Ainda uma vez, em nome do que dizemos e fazemos a propósito
9 “In the world of Panem, it’s
easy to see traces of contemporary
America. For example, our current
obsession with reality TV, body
art, and mass consumerism are all
clearly extrapolated in this future
society. Even our recurring and
ongoing willingness to wage war and
the growing emotional cost of that
behavior are woven into the thread of
this near-future remnant of America.”
10 “…it is rather a kind of event that
can ‘contribute’ to ‘the developement
of a plot’. It is as if the plot were
anentity in process of development
prior to the occurrence of any given
event, and any given event could be
endowed with ‘historicality’ only in
the extent to which it could be shown
at contribute to this process. And,
indeed, such seems to be the case,
because for Ricoeur‘historicality’
is a structural mode or level of
temporality’ itself”.
Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 1, p. 147, agosto, 2018
Rizoma
deles. Ora, o que dizemos e fazemos quanto a isso? Narramos as coisas
que consideramos verdadeiras e predizemos acontecimentos que ocorrem
tal como havíamos antecipado. É pois sempre a linguagem, assim como
a experiência, a ação, que esta articula, que resiste ao assalto dos céticos.
Ora, predizer é prever e narrar é “discernir pelo espírito”.
A essa intriga do tempo, que Ricoeur (1994) remete à obra aristotélica
Poética e suas considerações temporais sobre início, meio e m, surgem
as próprias considerações do autor sobre a tríplice mimética existente na
mediação entre o tempo e a narrativa. A mimese, muito além da imitação,
tem como papel tornar concreta a narrativa, o ato de narrar. Em uma
síntese de Carvalho (2010), entende-se como mimese I a representação
das dimensões éticas, o mundo social e sua complexidade; mimese II
como o ato de conguração, onde existe a presença de um narrador e,
simultaneamente, onde ocorre a mediação entre a mimese I e mimese III
que, por sua vez, diz respeito à reconguração, com presença ativa do
leitor11. Com isso, torna-se possível então compreender a existência de
temas históricos nas narrativas distópicas com o intuito de contribuir para
o contexto e espaço ccional desenhados nas tramas distópicas.
O diálogo existente nas obras narrativas – aqui, exemplicadas
através do gênero distópico – entre literatura e história é visto como um
jogo transdisciplinar e interdiscursivo que envolve as diferentes formas
de conhecimento sobre o mundo (PESAVENTO, 2006, p. 6), onde, ainda
segundo a autora, “a história pergunta e a literatura responde”. Associar
narrativas como as aqui apresentadas – Nós, 1984 e Jogos Vorazes – com
temas pertinentes nas discussões da atualidade torna-se então possível a
partir da atemporalidade do gênero narrativo. Nas palavras da autora:
A verdade da cção literária não está, pois, em revelar a existência real de
personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões
em jogo numa temporalidade dada. O texto literário revela e insinua
as verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados
pela cção. Mais do que isso, o texto literário é expressão ou sintoma de
formas de pensar e agir. (PESAVENTO, 2006, p. 7).
Uma vez que ela não tem um tempo datado, a narrativa consegue
aproveitar a história para criar um entendimento lógico com o leitor/
espectador, mesmo que apresente um universo distanciado e fantasioso
em um primeiro momento.
Conclusão
Nós, 1984 e Jogos Vorazes são obras que trabalham a ideia de
um futuro distópico, mas que, paralelamente, realizam um retrato
da sociedade no momento em que se inserem. A retomada de tais
obras, com o apelo para um público jovem/adolescente, mostra que
o momento de crise econômica e política transforma nossa percepção
11 A questão sobre a presença ativa
leitor será aprofundada no tópico
seguinte.
Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 1, p. 148, agosto, 2018
Rizoma
sobre o futuro a partir de uma “utopia negativa”. O diálogo existente
entre a literatura e a história pode ser compreendido como uma
resposta aos anseios da sociedade que são respondidos por meio da
trama das narrativas.
Cabe ressaltar aqui que esta discussão vai além da proposta
neste artigo. Poderíamos abordar, por exemplo, o quanto o
biopoder, no sistema capitalista, subjuga nossos corpos e nossa
própria percepção acerca do futuro. O recado é simples: após o
capitalismo, só há a distopia. E as obras de cção distópicas
parecem reetir essa forma de pensamento acerca do futuro, ou seja,
a representação de uma sociedade distópica como uma estratégia
de dominação, onde não há um horizonte nem nal feliz após o m
do capitalismo. “Para nós é fácil imaginar o m do mundo – vide
os inúmeros lmes apocalípticos –, mas não o m do capitalismo”
(ZIZEK, 2011, p.).
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a-tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-
movimento-occupy-wall-street> Acesso em: 31 de maio de 2017.
RECEBIDO EM: 31/05/2017 ACEITO EM: 31/05/2018
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O artigo traz uma proposta de prática a ser realizada com alunos do Ensino Médio, ou licenciandos em matemática, a partir da leitura do livro “Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins. Foi possível identificar aspectos matemáticos implícitos na narrativa e assim foi elaborada a situação-problema: qual a probabilidade da Katniss e/ou do Gale serem sorteados para participar dos Jogos Vorazes? Além disso, uma possível resolução é apresentada utilizando dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nota-se que cada professor, ao propor esta atividade em aula, poderá encontrar caminhos e conclusões diferentes das apresentadas neste artigo. A leitura do livro, ou mesmo apenas do trecho aqui apresentado, pode suscitar interpretações matemáticas diferentes para cada leitor que se aventurar pela história, tornando esse exercício provocador tanto para estudante quanto para professor.
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Films provide important insights into the psychological, socio-political, and ideological make-up of a society and culture. Reading film diagnostically allows one to gain insights into social problems and conflicts and to appraise the dominant socio-political problems and crises of the contemporary moment. This article engages Hollywood films that contain allegories of catastrophe within the context of the Bush-Cheney era. As I attempt to show, horror, fantasy and other popular film genres articulate fears of the present moment concerning the state and the military, ecological and social crisis, and other phenomena, and can thus provide critical images and provide experiences that raise questions about the existing society
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A tríplice mimese de Paul Ricoeur como fundamento para o processo de mediação jornalística
  • Carlos Alberto Carvalho
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CARVALHO, Carlos Alberto de. A tríplice mimese de Paul Ricoeur como fundamento para o processo de mediação jornalística. In: ENCONTRO DA COMPÓS, 19., 2010, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: Compós, 2010. Disponível em http://compos.com.puc-rio. br/media/gt9_carlos_%20alberto_carvalho.pdf
Teoria crítica e literatura: A distopia como ferramenta de análise radical da modernidade
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Rizoma HILÁRIO, Leomir. Teoria crítica e literatura: A distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário de Literatura, Florianópolis, v. 18, n. 2, 2013. Disponível em: http:// dx.doi.org/10.5007/2175-7917.2013v18n2p201/. Acesso em: HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Comunicação e mídia da literatura distópica de meados do século 20: Zamiatin, Huxley, Orwell, Vonnegut e Bradbury. 2011. 278 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em
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Programa de Pós-Graduação em Letras-Mestrado)Universidade Federal do Paraná
  • Dissertação
f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Letras-Mestrado)Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005.
Hungering for Righteousness: Music, Spirituality and Katniss Everdeen
  • Tammy L Gant
GANT, Tammy L. Hungering for Righteousness: Music, Spirituality and Katniss Everdeen. In: PHARR, M. F.; CLARK, L. A (Eds.). Bread, Blood and The Hunger Games: Critical Essays on the Suzanne Collins Trilogy. Jefferson: Macfarland, 2012.
Teoria crítica e literatura: A distopia como ferramenta de análise radical da modernidade
  • Agnes Heller
  • Cotidiano E A História
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HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. Rizoma HILÁRIO, Leomir. Teoria crítica e literatura: A distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário de Literatura, Florianópolis, v. 18, n. 2, 2013. Disponível em: http:// dx.doi.org/10.5007/2175-7917.2013v18n2p201/. Acesso em: