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Doença: onipotência e indisciplina

Authors:
  • Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta - Psicoterapia Gestaltista

Abstract

1 SBEM Como seres no mundo, estruturados e estruturantes de relações, estabelecemos limites e somos limitados por nossos contextos relacionais explicitados através de dimensões culturais. Criamos símbolos, linguagem, consequentemente, padrões morais, regras de convivência, sociedades. Esse processo de convivência implica necessariamente em distanciamento de nosso ser, pois ele foi transcendido, transformado na relação com o outro. O processo de transformação do indivíduo-do ser humano-é também o de sua estruturação enquanto individualidade, limitada por necessidades orgânicas, biológicas, ou questionada por possibilidades perceptivas, relacionais, psicológicas. Em um resumo grosseiro seria possível dizer: vive-se para comer ou come-se para viver. Sobreviver ou existir. Todo ser humano está sobrevivendo desde que sua imanência é biológica. Esse processo é cheio de dificuldades. O meio ambiente é hostil (calor, frio, falta de comida etc.) e a sociedade impõe suas regras hierarquizadas
Publicado no Boletim da SBEM - Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia - Regional Bahia/Sergipe outubro/dezembro 1999, p. 57-59!!
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Como seres no mundo, estruturados e estruturantes de relações,
estabelecemos limites e somos limitados por nossos contextos relacionais
explicitados através de dimensões culturais. Criamos símbolos,
linguagem, consequentemente, padrões morais, regras de convivência,
sociedades. Esse processo de convivência implica necessariamente em
distanciamento de nosso ser, pois ele foi transcendido, transformado na
relação com o outro.
O processo de transformação do indivíduo - do ser humano - é também o
de sua estruturação enquanto individualidade, limitada por necessidades
orgânicas, biológicas, ou questionada por possibilidades perceptivas,
relacionais, psicológicas. Em um resumo grosseiro seria possível dizer:
vive-se para comer ou come-se para viver. Sobreviver ou existir.
Todo ser humano está sobrevivendo desde que sua imanência é biológica.
Esse processo é cheio de dificuldades. O meio ambiente é hostil (calor,
frio, falta de comida etc.) e a sociedade impõe suas regras hierarquizadas
Doença: onipotência e indisciplina
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS
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baseadas em “come quem pode”. O dinheiro, o valor permeia e
desnaturaliza os processos naturais. O indivíduo luta para sobreviver,
aprende, soma ajudas ensinadas e sobrevive, vencendo etapas ou
falhando. As mortes prematuras, indicadas pelas estatísticas, são
reveladoras do esforço, da impossibilidade.
O processo natural, cru (a relação do ser com o mundo) começa a ser
cozido (1). Aproveitamos os registros, as trajetórias de como se vence
problemas. Somos, treinados, civilizados, socializados. A escola é um
guia, um farol que nos orienta do primário ao pós-doutorado: aprendemos
como fazer.
Contextuados no objetivo de resolver, comprometidos com o resultado,
nos decapitamos, nos estrangulamos, nos fragmentamos nesse processo
de satisfazer necessidades para sobreviver. Perdemos a cabeça. Padrões,
mapas e regras decidem o caminho que devemos trilhar. Não
estruturamos autonomia, pois sempre temos que estar amparados e
seguros pela baliza norteadora de nossos propósitos e desejos, embora
tenhamos arremedo de autonomia dada pelo poder, pelo status. Somos o
que temos, o que conseguimos. Isso nos realiza, nos adapta, mas nos
esvazia.
Ser constituído pela aderência inicia a reificação (coisificação) do ser.
Nesse contexto, o significado é estabelecido pelos valores, em última
análise, pelos símbolos. O símbolo, à medida que representa uma
realidade, a distorce e trai, pois é usado em outro contexto que não o de
sua estruturação. Passamos a agir e interagir pelos prolongamentos
distorcidos. É a alienação. Perdemos o corpo. Nossos desejos e
necessidades são manipulados e condicionados pela busca de felicidade e
de bem-estar. Nesse novo contexto, os resultados podem também ser
confundidos com grandes esperanças e ilusões.
Vivemos para e por. Perder o como, o presente, é perder o único contexto
humanizante, o contexto no qual se é independente do que se tem, do que
se faz. O desaparecimento da vivência do presente cria os indivíduos
despersonalizados, que vivem em função de realizar seus sonhos e
desejos. Seus olhos estão voltados para o além daqui, não-aceitam limites
que se interponham aos seus própositos e metas. Quando o obstáculo, o
limite surge, cria-se a vítima desesperada que chora e se lamenta,
negando a realidade limitadora através da esperança de salvação; ou
aparece o intrépido, o obstinado lutador, que busca resolver o limite.
Publicado no Boletim da SBEM - Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia - Regional Bahia/Sergipe outubro/dezembro 1999, p. 57-59!!
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Os limites são aceitos e integrados por individualidades estruturadas, não
fragmentadas. Individualidades estruturadas não vivem em função de ter.
Aceitam o que acontece como o que está acontecendo. Não buscam
resultados, nem vivem voltadas para desejos, nem aguilhoadas pelas
frustrações de não realização dos mesmos. Vivem o presente, não têm
ansiedade, não têm medo ou angústia.
Estes comentários sobre ser e parecer, aderência e imanência, são os
contextos que utilizaremos para entender o processo conhecido como
doença. Não vamos pensar em doença como desequilíbrio, pois
estaríamos presos ao postulado reducionista, determinista de homeostase.
Doença é a criação de uma nova estrutura biológica-psicológica, que se
constitui em antítese responsável por perturbações, mal-estares, dores,
impossibilidades, mudanças, comprometimentos. Surgem limites, perdas,
dificuldades, incapacidades. Quando esse limite é aceito, integra-se a
doença. Quando não é aceito, estranheza, revolta e ilusão caracterizam a
maneira de vivenciar a doença. Esses filtros (estranheza, revolta e ilusão)
estruturam uma atitude onipotente (não-aceitação da impotência, do
limite) indisciplinada.
A questão não é a doença, não é o limite ou o processo. A questão é
aceitação desse limite, desse processo. Toda vez que um limite não é
integrado, não é aceito, gera onipotência, gera divisão, cria vazios.
Existem pessoas "doentes" por não serem altas, não serem magras e por
não serem ricas! A síndrome de pânico, a depressão, nada mais são que
vivência de falha, de frustração, de não ter conseguido o que queria, o que
podia, o que merecia, o que precisava, o que sonhava! Stress, angústia,
neurose, fobias, doença mental são tão explicitadores desses processos,
que dispõem de inúmeras teorias e profissionais treinados para lidar e
explicar tais estados.
É fundamental perceber a doença como uma totalidade e não como um
aspecto do ser. Não se tem depressão, se é deprimido, não se tem neurose,
se é neurótico. Este enfoque é possibilitador de apreensão da
individualidade coisificada, doente. Vale registrar que geralmente se
tenta globalizar quando fica impossível somar, juntar dados. Perceber que
o todo não é a soma das partes se torna impossível devido as
conceituações elementaristas e reducionistas.
E as doenças irreversíveis, a AIDS, a diabetes, certos estágios do câncer?
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Lidar com a irreversibilidade é lidar com a impotência; é o impossível, é
o inexorável. Como "curadores" percebemos o inexorável, o irreversível
como limites que, se trabalhados, podem ser abrandados; mas, precisamos
que o "doente" também perceba assim. Esta é a grande luta, vale lembrar
o artigo da Dra. Alcina Vinhaes Bittencourt "Porque educar o diabético
pode falhar": "Estão os profissionais da área de saúde cientes da
necessidade de educar o diabético? O diabético pode então estar bem
informado e, ao mesmo tempo, ser incapaz de traduzir essas informações
ou de tomar decisões ante o seu tratamento, porque estar informado não
é igual a atuar. Cria-se uma situação onde os pacientes-alunos tornam-
se adversários ou inimigos do profissional de saúde-professor. O
paciente torna-se submisso e/ou rebelde, e a equipe, por não alcançar
seus objetivos, sente-se impotente." (2)
Disciplina é a grande arma. O ser se fragmenta exatamente por ter aberto
mão da única coisa absolutamente sua: a possibilidade de estabelecer seus
métodos, suas rotinas, suas normas consoantes suas motivações,
possibilidades e necessidades. Estruturado segundo demandas
circunstanciais e padrões relacionais segue o que é bom, evita o ruim.
Disciplina evita doença e disciplina é uma anfitriã perfeita para receber
esta visita: a doença. Entretanto, podemos nos disciplinar se
aceitarmos o que nos limita. Como pode uma criança viver sem açúcar?
Como pode lembrar a hora de tomar os remédios? Como se afastar dos
suculentos docinhos recheados, se exatamente são eles que fazem
esquecer a amarga realidade da doença? E os obesos? E os soros
positivos, como podem abrir mão do prazer, abrir mão de contaminar, se
estão se sentindo à beira do túmulo? Vingança, inveja, raiva, medo.
Este é o colorido psicológico que mascara uma simples questão: não
aceitação do limite. Aceitar a doença, o limite, é aceitar a vida, é aceitar a
morte. Como humanos, não somos imortais, mas somos seres com
infinitas possibilidades. Não porque se restringir ao círculo limitado
das contigências biológicas, é necessário transcendê-lo e só assim os
limites são integrados, aceitos e transformados. A doença deixa de ser um
estado vitimizante, virando um processo humanizador. Não é raro,
sabermos de muitos casos em que, depois de doenças graves, ou de
doenças crônicas, as pessoas percebem o universo, entendem o porque de
terem vivido, de estarem vivas, conseguindo transformar a doença em
ensinamento, em superação em seu duplo sentido.
Havendo problema existe necessariamente solução; basta mergulhar nos
Publicado no Boletim da SBEM - Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia - Regional Bahia/Sergipe outubro/dezembro 1999, p. 57-59!!
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dados do problema e evitar os caminhos de solução que nada têm com as
estruturas da problemática. Mergulhando no problema conseguimos
resolvê-lo; dedicados à doença conseguimos deixar de senti-la como uma
aderência ou um castigo. Passamos a perceber a nova realidade limitada e
estabelecemos métodos, disciplinas de convivência, que com certeza se
não trouxer cura, trará nova maneira de lidar com impasses, nos fará
aceitar a impotência disciplinadamente e isso é libertador - perdemos os
medos e as metas. Lembro o mito de Sísifo eterno e presente. Vale à pena
revê-lo: Sísifo foi condenado, em castigo à sua desobediência e
onipotência por querer libertar Prometeu da cólera dos Deuses, a levar
uma imensa pedra até o alto de uma montanha. Após muitos esforços ele
realiza seu trabalho, e para seu desespero Zeus chuta a pedra, dizendo que
ele a tem de carregar novamente até o alto da montanha. Após inúmeros
levar ao alto e pedra rolar abaixo, Sísifo tem um insight, percebe que o
castigo não é levar até o alto, é levar ao alto e a pedra ser rolada para
baixo e levar de novo, infinitamente. Neste momento de compreensão ele
se liberta, perde a meta de por fim a seu castigo, aceita sua realidade, não
mais sendo castigado. É o homem livre dos deuses, é o absoluto senhor
de sua vivência. Liberta-se do castigo e dos deuses. Levar a pedra é sua
tarefa, seu trabalho.
Notas:
(1) - Claude Lévi-Strauss, "Le Cru et le Cuit", Librairie Plon, Paris, 1964
(2) - "Por que educar o diabético pode falhar", publicado no Boletim da
SBEM, ANOI, nº3, abril/junho 99, pag.31
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