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NARRATIVAS DO RURAL BRASILEIRO NA OBRA TELEFICCIONAL DE BENEDITO RUY BARBOSA: territórios do imaginário do desejo e dos conflitos pela terra

Authors:
  • Junqueira e Peetz Consultores Ltda.

Abstract

O artigo visa identificar, analisar e interpretar o conjunto das representações sociais e do imaginário rural constituintes de parte relevante da obra de Benedito Ruy Barbosa, no contexto da teleficção seriada brasileira, apontando para o papel articulador desses elementos na informação, na educação, na rememoração e no incentivo à discussão popular das temáticas postas em circulação, assim como na construção e na apropriação de sentidos sociais pelas audiências e pela sociedade em geral, a partir dos conteúdos com temática agrária oferecidos por esse produto cultural televisivo.
Volume 11, Número 2, agosto de 2017 | Página 43
Revista Mídia e Cotidiano
Artigo Seção Temática/Livre
Volume 11, Número 2, agosto de 2017
Submetido em: 28/06/2017
Aprovado em: 23/07/2017
NARRATIVAS DO RURAL BRASILEIRO NA OBRA TELEFICCIONAL DE
BENEDITO RUY BARBOSA: territórios do imaginário do desejo e dos conflitos
pela terra
NARRATIVES OF THE BRAZILIAN RURAL IN BENEDITO RUY BARBOSA'S
TELEFICIONAL WORK: territories of the imaginary of desire and conflicts over
land
Antonio Helio JUNQUEIRA1
Resumo: O artigo aponta e analisa elementos da representação social e do imaginário
sobre o ambiente rural brasileiro, enquanto articuladores centrais da obra teleficcional
temática de Benedito Ruy Barbosa, visando, particularmente, destacar a evolução da
apropriação destes no desenvolvimento da narrativa autoral barbosiana sobre a terra,
desde as produções centradas na violenta luta social pela posse de sua superfície, que
caracterizaram suas telenovelas dos anos 1990 (“Pantanal”, “Renascer”, “Rei do Gado”),
até a conquista da plena representação simbólica do solo enquanto sistema organo-
mineral vivo e complexo, sujeito à morte, em sua telenovela mais recente (“Velho
Chico”), em conformidade com os caminhos da evolução da própria ecologia como
campo científico e discursivo na sociedade brasileira contemporânea.
Palavras-chave: Comunicação; teleficção seriada; imaginário; representação; rural.
Abstract: The article points out and analyzes elements of social representation and
imaginary about the Brazilian rural environment, as central articulators of the thematic
teleficcional work by Benedito Ruy Barbosa, aiming, in particular, to highlight the
evolution of the appropriation of these in the development of author narrative on earth,
from the productions centered on the violent social struggle for possession of its surface,
which characterized his telenovelas of the 1990s ("Pantanal", "Renascer", "Rei do
Gado") until the conquest of full symbolic representation of the soil as an living and
complex organo-mineral system, subject to death, in his most recent telenovela ("Velho
Chico"), in accordance with the evolutionary pathways of ecology itself as a scientific
and discursive field in contemporary Brazilian society.
Keywords: Communication; serial teleficcion; imaginary; representation; rural.
1Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado em Comunicação e Práticas de
Consumo (CNPq-ESPM). Pesquisador e professor colaborador do Mestrado Profissional em Gestão de
Alimentos e Bebidas da Universidade Anhembi Morumbi (UAM). E-mail: helio@hortica.com.br
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Introdução
A telenovela constitui-se no produto cultural brasileiro mais consumido e o de
maior popularidade, tendo se transformado, ao longo de mais de seis décadas da
existência da televisão no país, em um dos elementos mais distintivos da cultura, e,
provavelmente, o que melhor caracteriza uma densa e compartilhada “narrativa da
nação” (LOPES, 2003, 2009). A telenovela constitui-se em um lugar privilegiado para
os debates públicos nacionais de temas significativos da formação e da sedimentação da
memória, da História e do imaginário coletivo no cotidiano nacional (BACCEGA, 2003,
2011, 2013; LOPES, 2003, 2004a, 2004b 2009). Sua condição supera em muito,
portanto, estigmas culturais que, com certas teimosia e regularidade, têm lhe imposto a
pecha de produto de baixa qualidade, sentimentalista e alienante.
No Brasil, a telenovela tornou-se, elemento chave reconhecido e legitimado das
construções das representações socioculturais, capaz de criar, atualizar, dar visibilidade
e reciclar repertórios imaginários comuns (ORTIZ; BORELLI; RAMOS, 1991).
Articulando dialeticamente públicos e realidades díspares que compõem o conjunto da
nação brasileira , a teleficção seriada televisiva, e mais especificamente a telenovela,
permite o reconhecimento da diferença e o estabelecimento do diálogo social, ainda que
marcado pela luta da construção e interpretação dos sentidos dessa “comunidade
nacional imaginada” (ANDERSON, 2008).
Podemos dizer, baseados no estado da arte dos estudos da recepção ativa e do
consumo, que a telenovela participa significativamente do agendamento das pautas
sociopolíticas e culturais do cotidiano nacional (BACCEGA, 1998; LOPES, 1993).
Trata-se do que Lopes (2009) identificou como a função de agenda setting aplicada ao
ambiente teleficcional brasileiro. Dessa perspectiva, temas sensíveis da realidade
conflituosa do espaço rural brasileiro, tais como a luta pela posse da terra, a violência
contra os trabalhadores rurais sem-terra, os desmandos do poder do “coronelismo”, a
grilagem de propriedades agrárias, o abuso da exploração ambiental, entre outros tantos,
ganham exposição e espaço para o conhecimento, a informação e o debate público nem
sempre experimentado em outros fóruns e nas agências tradicionais de educação formal,
informal ou não formal (escola, família, igreja e outras).
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Como detentora de recursos comunicativos próprios e específicos, a teleficção
seriada brasileira, e especialmente a telenovela, torna-se apta à execução de ações
informativas, formativas e educativas, deliberadas, implícitas ou até mesmo não
intencionais, que se desdobram na “institucionalização das políticas de comunicação e
cultura no país” (LOPES, 2009, p. 32), recuperando e atualizando a missão pedagógica
primitiva do melodrama (THOMASSEAU, 2005). A teleficção contribui, desse modo,
para a construção e consolidação de uma sociedade multicultural no Brasil (LOPES,
2009) e para as ações informativas e educativas das audiências e da sociedade em geral
(BACCEGA, 2003, 2011, 2013). Seus produtos podem ser então identificados como
“fóruns culturais” (NEWCOMB, 1999), constituídos pela pluralidade das interpretações
de seus conteúdos e que contribuem para o entendimento da diferença, da diversidade e
da distinção, tanto quanto para a mudança social (FAIRCLOUGH, 2001). A teleficção
seriada, e em especial a telenovela, assume ainda a função de narradora da História da
sociedade contemporânea (FISKE, 1987, MOTTER, 2000, 2001), propiciando a
conexão do sujeito, em sua esfera individual, com o social em que está imerso
(SILVERSTONE, 1989). No contexto da problemática rural centenariamente
experimentada pelo Brasil e distante, na maior parte de sua dimensão, do conhecimento
sócio-histórico de suas raízes e do debate popular quanto ao seu futuro, torna-se
evidente o grande papel e relevância da telenovela, ou da teleficção seriada de maneira
geral, ao agendar a exposição pública das estruturas, articulações, lógicas, dinâmicas e
mazelas das questões agrárias no País.
Metodologicamente, a presente pesquisa constituiu-se da seleção e análise de um
amplo conjunto de excertos textuais (escritos e audiovisuais) das obras teleficcionais de
temática rural de Benedito Ruy Barbosa que obtiveram, em seus respectivos períodos de
exibição, maior sucesso e repercussão junto às audiências e à crítica especializada,
incluindo quatro telenovelas (“Pantanal”, “O rei do gado”, “Renascer” e “Velho Chico”)
e uma minissérie (“Mad Maria”). Sobre ele se aplicaram os princípios e procedimentos
teórico-metodológicos da Análise do Discurso (AD) (GREGOLIN, 2003, 2007;
ORLANDI, 1990, 2003, 2007), os quais serviram ao propósito da investigação dos
modos como se dão, no âmbito da teleficção seriada, as interações discursivas entre as
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esferas da produção e da recepção, consumo e (re)significação de conceitos, valores,
signos e sentidos associados ao ambiente rural brasileiro.
O conceito de imaginário a que nos filiamos no percurso das interpretações
empreendidas decorre dos pensamentos de Castoriadis (1982), La Plantine e Trindade
(2003) e Juremir Machado da Silva (2017) que o apontam como elemento estruturante
da construção e da desconstrução do Real, no interior mesmo das banalidades do
cotidiano utilitário e pragmático, mas não sujeito aos seus cerceamentos e limitações.
Enquanto a representação decorre de uma imagem do já vivido, o imaginário permite o
vislumbre do porvir na multiplicidade dos possíveis. Nesse sentido, o imaginário é,
plenamente, político.
Imaginário e representação do rural em Benedito Ruy Barbosa
Benedito Ruy Barbosa tem sido consensualmente apontado como o autor
nacional de teleficção seriada que mais se debruçou sobre o ambiente rural brasileiro.
Em sua obra, temas como as questões da luta pela posse da terra e pela reforma agrária
se destacam, em meio à exibição das condições miseráveis históricas e presentes de
grandes contingentes de trabalhadores rurais, incluindo os imigrantes. Nascido ele
próprio no interior paulista, na cidade de Gália, conviveu em sua infância com a
profunda realidade contrastante entre o rural e o urbano, com os problemas enfrentados
pelos trabalhadores rurais, com os efeitos sentidos especialmente no campo, como
consequência da depressão econômica da II Guerra Mundial, o que veio a contribuir
fortemente para a formação do seu universo autoral.
em 1971, quando ocupou cargo público na TV Cultura de São Paulo,
Benedito Ruy Barbosa escreveu Meu pedacinho de chão com trama eminentemente
rural em parceira com Teixeira Filho, dentro de uma proposta pioneira: a novela
educativa, construída a partir de relatórios e estatísticas provenientes das secretarias
estaduais paulistas da Agricultura e da Saúde, no governo de Laudo Natel (1971-1975).
A novela conforma o início da sua carreira autoral, na qual muitos outros sucessos com
temática afim viriam a ocupar centralidade.
No período posterior à censura imposta aos produtos culturais da televisão,
Benedito Ruy Barbosa veio a se destacar em três novas tramas rurais: “Pantanal” (Rede
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Manchete, 1990), “Renascer” (Rede Globo de Televisão, 1993) e “O rei do gado” (Rede
Globo de Televisão, 1996-1997), consideradas pela crítica como uma trilogia do autor
sobre a ruralidade brasileira e que veio a se expandir com a inclusão de “Velho Chico”,
em 2016 (JUNQUEIRA, 2016a; JUNQUEIRA, 2016b; BACCEGA, 2017). Cabe
destacar, contudo, que a mesma temática já havia emergido anteriormente em sua obra,
como em “Cabocla” (Rede Globo de Televisão, 1979) e “Imigrantes” (Rede
Bandeirantes de Televisão, 1971-1972). São todas telenovelas que, juntamente com a
minissérie “Mad Maria”, põem em confronto, cada uma no seu contexto próprio, os
cenários rural e urbano, evidenciando as relações de poder e de disputas políticas,
econômicas e simbólicas aí presentes.
A seguir, destacamos temas e linhas fundamentais e estruturantes da
representação narrativa do rural nas obras audiovisuais brasileiras, tanto no cinema
quanto na televisão, no interior dos quais tecemos os paralelos correspondentes com a
obra contemporânea de Benedito Ruy Barbosa.
O rural como lócus imaginário do paraíso, da tormenta e do atraso
A representação do rural brasileiro se constrói seminalmente, em suas múltiplas
dimensões, a partir do imaginário colonizador português, impregnado de medievalismos
e contradições renascentistas frente aos assombros e deslumbramentos decorrentes da
descoberta do Novo Mundo. Seu discurso fundador é a carta de Pero Vaz de Caminha,
comunicando ao Rei de Portugal, o achamento das Terras brasilis. O Brasil nasce,
assim, discursivamente constituído pelo olhar do Outro (ORLANDI, 1990),
característica que impregnará de modo indelével as entranhas nacionais. Trata-se do
lugar onde a natureza exuberante, indomada e sensual se transforma no lócus amoenus
tropical: espaço bucólico, farto, doce e submisso às vontades e veleidades humanas; o
paraíso terrestre (re)encontrado; Pindorama, enfim.
Deslumbramento, fascínio, sedução e morte decorrentes do contato com
criaturas fantásticas, mitológicas, são elementos recorrentes no universo simbólico
medieval e tornam-se heranças coloniais que se reproduzem de modo abundante tanto
no folclore amazônico ribeirinho, quanto no árido interior nordestino, nas bordas e
costas atlânticas, nos meios dos matos e dos oceanos desse imenso Brasil. Abandonadas
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aos poucos pelas gentes das cidades, tais crenças encontrarão guarida nas noites rurais e
interioranas, ao redor das fogueiras, em tempos de luas cheias, no interior das matas
escuras e ao longo de viagens invigilantes por rios e mares do vasto território nacional.
Em diferentes momentos da vida cultural brasileira, o rural será visto e revisto
como o repositório, por excelência, de um imaginário mítico genuíno, autenticamente
nacional, a alma profunda do país, ainda pura e intocada pelas artimanhas da indústria
cultural internacional. Essas (re)aproximações e as decorrentes (re)apropriações
ideológicas de seus conteúdos simbólicos seguirão, a cada momento, diferentes lógicas
e propósitos identitários, educativos, revolucionários, conforme veremos.
Redescoberto e revalorizado pelo modernismo sedento das identidades
nacionais, esse simbolismo circunscrito às ruralidades ganhará espaço na representação
do imaginário nacional, especialmente na década de 1920. No interior das
efervescências antropofágicas, se buscará encontrar um caráter (ou sua ausência) para o
país, algo que dê conta de explicar as imensas e irreconciliáveis contradições nascentes
de uma modernização periférica e tardia.
Na obra teleficcional rural de Benedito Ruy Barbosa a exploração narrativa
dessas dimensões míticas, fantasmagóricas, mágicas será recorrente. Gente que se
transforma em bicho (“Pantanal”, “Renascer”), deslumbramento e morte no “inferno
verde” amazônico (“Mad Maria”), habitantes imaginários dos rios (“Pantanal”, “Velho
Chico”), pactos com o demônio (“Pantanal”, “Velho Chico”), entre inúmeras outras
alusões e presenças frequentam suas tramas novelísticas e nelas interferem, ditando ou
mudando rumos e destinos de personagens, com a naturalização própria da presença do
imaginário popular no cotidiano (JUNQUEIRA, 2016a, 2016b, JUNQUEIRA;
BACCEGA, 2017).
A simbolização do rural em contraposição ao urbano emergente, no interior da
produção audiovisual brasileira sobretudo no cinema não será, entretanto,
costumeiramente da ordem do lúdico valorativo de sua força como raiz cultural, fonte
de valores míticos, genuinamente nacionais, e estruturantes de um projeto social
possível para o País. Em realidade, sobretudo nos anos das décadas de 1940 e 1950, a
predominância paulista no cenário da produção fílmica, resultará na herança de uma
abordagem fortemente desmoralizante do homem rural, estigmatizado na figura do
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caipira, do caboclo, ou ainda mais propriamente do Jeca Tatu, forjado na lavra literária
de Monteiro Lobato.
No interior desta visão, o rural se construirá essencialmente como lócus do
atraso a emperrar o avanço benéfico e inexorável da locomotiva paulistana em direção
ao futuro, cujos resultados eram postos acima de qualquer suspeita. Essa representação,
decorrente da visão positivista, funcionalista e higienista da ordem social, instituía a
dicotomização irreconciliável do real nacional entre o arcaico portador do atraso, do
fora de moda, de toda ordem de estorvo e o moderno, única forma de acesso e desfrute
das benesses do mundo. Antagoniza-se essas esferas a tal ponto que se as podia
imaginar habitantes de espaços e de tempos distintos da vida nacional.
Tratava-se de adotar, sem demoras, uma representação ficcional alinhada às
estratégias da racionalidade industrial do mercado internacional, sobretudo baseadas na
expansão cultural norte-americana. Neste contexto, o rural é o Outro, visto de fora,
universo do qual a burguesia se distingui e no qual, obviamente, não se reconhece. As
questões do homem do campo não encontram respaldo nas cidades e só a ele dizem
respeito, pois que “ele padeceria de problemas imediatos, desejos elementares [...] esse
sujeito pré-urbanizado e pré-desenvolvido está e parece sempre ter estado aquém a
humanidade” (TOLENTINO, 2001. p.296-297). Assim, esse indivíduo cuja expressão
cultural máxima é o Jeca Tatu , sequer pode ser compreendido; apenas ridicularizado e
visto à distância, pois que “representa valores que não condizem com o mundo do
trabalho, da indústria, das cidades e dos códigos de consumo”, (TOLENTINO, 2001. p.
297); um pária, enfim.
O rural, que estivera desde sempre na raiz da geração das riquezas brasileiras,
entre as quais as fortunas do café migradas à nascente indústria e urbanização do polo
então mais dinâmico do País, perdia sua hegemonia e desbaratava a própria essência
cultural de sua representação simbólica. Transforma-se num estorvo, para o que a única
saída era transformá-lo em valor memorial de algum tipo de essência identitária, de uma
reserva historicamente confinada de autenticidade e de nacionalidade; de uma herança
de brasilidade, desde que circunscrita às inócuas esferas dos “escaninhos da memória”.
(TOLENTINO, 2001. p. 297);
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A representação construída na maior parte da produção cultural do período não
conta de articular as contraposições prevalecentes no embate violento que se
estabelecia na expansão da cidade sobre o campo e nas alterações que introduzia nas
relações de trabalho e assalariamento entre fazendeiros patrões e empregados. Herdeiras
diretas das oligarquias escravagistas, tais ordens de simbolizações não distinguiam os
trabalhadores para além da quase bestialidade, da falta de saúde, dentes, modos e
educação; sua própria fome era decorrente da sua preguiça e desinteresse para com as
condições mais imediatas da existência. Dele, diferencia-se o fazendeiro empreendedor,
senhor de caprichos, razão e sentimento, ao qual cabia a inexorável e inadiável tarefa de
modernizar-se a si mesmo, sob pena de ser varrido para debaixo do tapete pelo
progresso histórico.
A representação do sujeito rural ingênuo, simplório e ignorante possui larga
trajetória no imaginário nacional. Suas raízes estão bem fincadas na literatura e no
cinema, a partir de personagens como o Jeca Tatu e Candinho, ambos representados nas
telas por Amácio Mazzaropi. O primeiro deles inspirado na obra literária de Monteiro
Lobato (1947) rendeu mais de três décadas de atuação para Mazzaropi e um grande
número de filmes. Já o segundo, exibido em 1953, foi inspirado no clássico Cândido, ou
o otimismo, de Voltaire (2013).
O caipira imaginário de Mazzaropi participa da conformação de uma identidade
nacional, ainda que em representação exagerada, grotesca e caricata. Vincula-se às
imagens da carência, da precariedade, do atraso e da ignorância existencial do homem
simples do campo. Filia-se ao personagem criado por Lobato para denunciar o atraso
desse homem rural visto pelo escritor como uma sub-raça, uma verdadeira praga ,
que em tudo se distinguia, como uma “quantidade negativa” da mão de obra imigrante
que então afluía ao país e assumia parcelas crescentes do trabalho no campo. Anos mais
tarde, em 1918, com o artigo Problema Vital, Monteiro Lobato volta ao tema e torna-se
mais condescendente com o caipira a cuja existência vinha então quatro anos dando
visibilidade nacional. Em sua nova investidura, a culpa pelo atraso, apatia e ignorância
não reside na culpa do próprio rurícola, mas na enfermidade biológica (parasitoses,
verminoses) e moral do próprio país, que pela doença, enfraquece e dobra o seu povo.
Para o autor, então: “o Jeca não é assim, está assim” (LOBATO, 1964, p.244).
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Candinho, por sua vez, vai acrescentar novos elementos a essa representação do caipira.
Ao preguiçoso, bronco e desajeitado Jeca Tatu, vão se somar as características da
ingenuidade, pureza, candura, otimismo, generosidade e inocência.
Pelas duas vertentes representacionais, contudo, os resultados obtidos se
equivalem: o homem rural brasileiro, infantilizado pela necessidade do amparo e
tratamentos clínicos ou pela demanda da proteção e tutoramento moral, posto que inábil
à sobrevivência sem malícias é um trabalhador inapto para o trabalho e não se adequa
às necessidades do capital em expansão sobre o ambiente agrário e sobre a indústria
então nascente. É um homem fora do tempo e, assim, substituível na engrenagem
produtiva pela mão de obra melhor adaptável do imigrante.
O secular avanço da agropecuária nacional em direção à conquista do interior,
alterará muito lentamente esse quadro, instaurando formas de exploração sempre
atrasadas em relação aos mais importantes centros produtivos e comerciais europeus e
norte-americanos: uma modernização arcaizante desde o princípio e talvez para quase
sempre; um processo urbano-industrial que amalgamava, a um só tempo, o pior de dois
mundos.
Neste contexto, a evolução das formas de acesso e posse à terra irá criando um
complexo tecido sócio-histórico por todo o território do País, cujas linhas de cerzimento
serão os fios de sangue jorrados em conflitos cada vez mais violentos entre posseiros e
latifundiários. Crivado de balas, riscos de facões, tocaias e caxixes, o Brasil rural
transcorrerá um longo percurso desde a política da concessão das terras por sesmarias
legalmente vigente desde o período colonial, até 17 de julho de 1822 , para chegar à
institucionalização da reforma agrária, não sem antes passar por um período de farta
distribuição das terras públicas, que veio a contribuir decisivamente para a consolidação
de imensos latifúndios no País.
Com o início da industrialização e crescimento dos processos de urbanização,
especialmente a partir de São Paulo, a alta burguesia do café embora tivesse
conquistado fortuna e conforto, não dispunha ainda das condições morais para a
simbolização de si própria como elite cultural apta a ocupar o seu lugar no mundo,
especialmente organizado pelo olhar eurocêntrico e afrancesado do seu desejo. Aí, ainda
não haverá sequer espaço para a representação do rural real circundante. Neste contexto,
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a bugrada nativa precisa ser europeizada em seus modos, expressões e sentimentos. As
pinturas das florestas necessitam ser adornadas com as mais finas flores dos jardins da
França, os negros e os caipiras se tornam invisíveis.
Com o avançar dos processos da modernização urbana e nos seus reflexos sobre
o campo, o rural atrasado e anacrônico se tornará definitivamente um estorvo, motivo de
vergonha nacional, de achaques e vitupérios de toda ordem. Muitos textos e
personagens da obra de Monteiro Lobato e de forma especial o seu Jeca Tatu , serão
emblemáticos dessa urgência em não apenas denunciar, mas superar, a qualquer custo, o
clima e os modos modorrentos e paquidérmicos do ambiente rural brasileiro. Situação
que perdura até os dias de hoje.
O patriarcalismo arcaico: violência e ordenação do espaço e do tempo rural
Tradicionalmente, o meio rural brasileiro é midiaticamente simbolizado como
território patriarcal reservado à expressão da virilidade desbravadora e empreendedora,
tanto quanto das práticas da dominação masculina sobre a natureza, sobre as mulheres,
sobre os filhos, sobre os empregados, sobre os pobres, sobre toda a sorte de bens
terrenos e sobre as almas dos dominados. Frente à inquebrantável bravura e
incondicional determinação da empresa viril, à natureza inculta não se apresenta saída
outra que não a rendição, a submissão, o mais completo adoçamento. Vai residir aí toda
a força simbólica seminal do coronel-fazendeiro desbravador, senhor de terras, de
corpos, de almas, da Justiça e dos destinos.
O rural é, como já vimos, lugar de repouso do atraso e da tradição por mais cega
e bestializada que se revele diante das condições temporais da existência. Raduan
Nassar (1975), em “Lavoura arcaica”, constrói obra magistralmente reveladora desse
universo simbólico, ao mesmo tempo em que denuncia o seu mal, definitivo e
inexorável.
Alinhada a esse imaginário rural prevalecente no Brasil, a obra teleficcional de
Benedito Ruy Barbosa reporta-se frequentemente a esse patriarcalismo arcaico do
campo, no interior do qual confere regular primazia a seus personagens masculinos. O
apelo à recorrência aos mesmos temas, traços psicológicos dos personagens e até ao
mesmo ator características que costumam assegurar o sucesso das telenovelas , fez
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com que Antonio Fagundes (protagonista de “Renascer”, “O rei do gado” e “Velho
Chico”) acabasse por se transformar no mais renomado herói-patriarca das séries rurais
contemporaneamente já produzidas no país (BALOGH, 1998).
Neste mesmo universo, o lugar preferencialmente reservado às mulheres,
conforme muito bem explicitado por Balogh (1998, p.16) costuma ser o “das fêmeas
boas, primitivas, muito apegadas à terra e nada intelectualizadas” (BALOGH, 1998).
Benedito Ruy Barbosa, contudo, se reserva a iniciativa de, ao menos em algumas
oportunidades, conceder espaço para revelar a emancipação e a autodescoberta
possíveis para as mulheres rurais. E faz isso mesmo no interior dos mais tradicionais
núcleos masculinos de fazendeiros, como são os emblemáticos casos de Maria Bruaca
(“Pantanal”) e Dona Patroa (“Renascer”).
A figura patriarcal não se resume, contudo, apenas às expressões do mando e ao
exercício do patronato. Ela se diversifica e enriquece em nuances da organização das
rotinas e da ordem da vida cotidiana, da orquestração das fidelidades, das promessas de
recompensa futuras e de reconhecimentos; de uma calculada distribuição dos afetos,
enfim. Neste contexto, coronelismo, jagunçagem e capangagem são identidades
cúmplices que constroem como faces do mesmo fenômeno social de
dominação/subordinação.
A feminilidade da terra contraposta à virilidade da agricultura
Sob a vigência do patriarcalismo e da virilidade prevalecentes nas narrativas
sobre a ruralidade brasileira, a terra será recorrentemente representada, no universo
imagético popular, como fêmea, mulher e mãe, espaço úmido e apto à prenhez da vida.
Em sua dimensão oposta, a agricultura, consubstanciada na imagem do homem
cultivador, será quem possuirá e fecundará o solo e lançará sobre ele as sementes, em
busca dos frutos futuros da pulsão do sonho e do desejo.
Na exploração do imaginário brasileiro sobre esta relação terra/fêmea-
agricultor/macho, pela produção audiovisual contemporânea, uma das abordagens mais
emblemáticas pode ser encontrada na cena do filme “Policarpo Quaresma, herói do
Brasil” (Brasil, 1998, direção de Paulo Thiago), em que o protagonista, completamente
tomado de paixão e delírio por sua nova função agrícola, livre e deliberadamente
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assumida como ato patriótico, deita de bruços sobre o chão e simula copular com a terra
durante uma chuva torrencial que irriga abundantemente o solo promissor aos frutos
desta fecundação.
Na obra de Benedito Ruy Barbosa, sobre a qual ora nos detemos, as cenas
iniciais de “Renascer” também se filiam a esta ordem de representação. Logo na
introdução da personagem do coronel ainda jovem, este se deslumbra fartamente frente
à imagem de um imenso Jequitibá-da-bahia que encontra em meio à mata e delira em
sonhos de possuir a terra que “se é capaz de produzir aquela formosura, o que mais não
será capaz de dar”. Ali mesmo planeja delimitar aquela como área de sua conquista e
simbolicamente crava no solo próximo às raízes da árvore, seu facão, como símbolo de
seu domínio e posse sobre a porção da natureza desejada. O herói da saga afaga a terra,
cheira-lhe as entranhas e penetra-a simbolicamente, repleto de prazer pelo ardente
desejo de sua posse.
Na representação imaginária da própria terra na produção ficcional brasileira
vemos que, se por um lado, o desejo de sua posse é por excelência o motor da ação
humana no campo e a raiz estruturante da luta de classes no contexto da modernização
periférica, por outro, a simbolização dela enquanto sistema organo-mineral vivo e
complexo e objeto da pulsão por uma integração ecológica e cultural, é precária e tardia.
Porém, destacamos que na obra de Benedito Ruy Barbosa a conquista dessa
representação simbólica é progressiva, perceptível e reconhecível, até atingir relevância
e centralidade em “Velho Chico”. Esse percurso simbólico coincide com os caminhos
da própria evolução da ecologia como campo científico e discursivo na sociedade
contemporânea.
Na efervescência dos revolucionários anos da década de 1960, os focos da luta
social sonhada pela intelectualidade e pelos artistas engajados era o da consolidação do
imaginário da posse da terra como elemento estruturante da luta de classes no Brasil e
ponto nevrálgico para a construção da ação revolucionária. Neste contexto, as
produções culturais cepecistas e cinemanovistas concebem a terra como lócus de
mediação simbólica das relações sociais, arena de conflitos violentamente sangrentos,
depósito de sonhos, esperanças, sementes e corpos. Porém, narrativamente, a terra não
pode revelar sua existência e sua vida próprias, pois que tal perspectiva apresentava-se,
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ainda, carente de simbolização. Tal conquista sígnica se consolidará lentamente a partir
dos anos das décadas de 1960, 1970 e 1980, com o progressivo estabelecimento da
ecologia e do ambientalismo no seio das preocupações sociais, em âmbito mundial, com
reflexos importantes no Brasil.
De fato, conforme proposto por Terry Eagleton (1993) na sua interpretação da
estética em Marx, toda representação é fenômeno construído pela História, a partir do
vivido e decorre, portanto, da relação de classes em permanente disputa hegemônica
pelos sentidos e significados sociais. Nesse sentido, todo o futuro, o porvir, o ainda não
vivido não pode ser representado, pois carece de simbolização própria. Assim, a
simbolização da natureza como ente vivo e sujeito, portanto, à própria morte na
esfera do rural e do popular ficcional só pode surgir e se desenvolver seguindo as trilhas
das construções discursivas forjadas nos embates sócio-históricos do ambientalismo
mais vigoroso, no Brasil, apenas a partir dos anos das décadas de 1980 e 1990.
Opulência e miséria
No senso comum, em geral, e na representação popular do rural brasileiro, em
particular, a fome no campo tem sido tema menos recorrente do que seria justo supor. O
entendimento desse fenômeno decorre, quase sempre, da demanda necessária de uma
interpretação mais crítica e intelectualizada da realidade nacional e suas mazelas,
inacessível a boa parte da população. Assim, acaba por predominar, na representação
urbana do ambiente agrário, um imaginário de opulência, fartura e saciedade alimentar,
em certa medida naturalizado enquanto identificação do espaço da agropecuária como
lócus, por excelência, da produção dos gêneros e, portanto, naturalmente de acesso
generalizado a eles. Falta, portanto, a essa leitura, a informação e a reflexão crítica sobre
as imensas desigualdades da distribuição dos produtos do trabalho que se reproduz no
interior do campo, tanto quanto no ambiente urbano, senão até mesmo com mais
intensidade naquele, do que neste último.
Assim, neste universo simbólico, a fome é quase sempre decorrente de
condições catastróficas naturais, exógenas à ação do Homem, e de grandes proporções
como as secas e o seu inverso, as enchentes. A representação da fome enquanto caráter
estrutural e estruturante das relações de poder agrário não se generaliza, nem tampouco
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se consolida, pelo menos até meados da década de 1960 e seguintes, anos sob o firme e
crescente vigor da ditadura militar no País.
Será, de fato, no âmbito das produções do CPC e do Cinema Novo que se
construirá o espaço simbólico do que veio a ser denominado por um de seus mais
notórios estandartes, Glauber Rocha, de “estética da fome”. Tratava-se de um conjunto
de pressupostos de retratação do ambiente cênico que impunha uma proximidade e uma
dramaticidade próprias aos enquadramentos e uma luminosidade “estourada” da qual
não se poderia abrir mão como expressão crua da violência sertaneja colonizada e
semifeudal. Incluía, ainda, a decidida influência dos referenciais literários para a
construção do universo imagético rural pretendido, não apenas da cultura letrada de
Guimarães Rosa (“Grande sertão: veredas”), Graciliano Ramos (“Vidas secas”), Raquel
de Queiroz (“O quinze”), mas também da oralidade, da dramaturgia e do cordel
populares.
No âmbito dessas categorias da representação simbólica, a interioridade da casa
rural na teleficção será inúmeras vezes organizada em torno das refeições à mesa.
Refeições sempre fartas nas casas senhoriais e nunca totalmente minguadas nas dos
empregados. Uma representação repleta de matizes reveladores das trincas, das ranhuras
e dos rasgos nas tramas sociais. Assim, por mais afrancesada que seja a sala de jantar,
suas louças, faianças e pratarias, a cozinha será sempre enfumaçada, guarnecida de
panelas e utensílios toscos, engordurados, gastos e desfeitos pelo uso frequente, de
sombras densas, frequentada e operada por negras e mulatas bem-humoradas,
sorridentes, sempre disponíveis para o preparo e o cozimento dos alimentos, para as
rezas e as benzeções, para as invocações dos espíritos e das proteções especialmente
para os seus patrões.
Na obra teleficcional de Benedito Ruy Barbosa, essas tensões sociais que
resultam na miséria e na fome de importantes parcelas da população rural emergem e se
mostram, às vezes, repletas de grandes teatralidade e lirismo. Uma das mais longas
sequências ilustrativas dessa apropriação simbólica pode ser encontrada na procissão do
enterro de Tião Galinha, em “Renascer”. Nela mesclam-se elementos simbólicos da
forte religiosidade popular prevalecente no campo (a própria procissão, os véus pretos
sobre a cabeça das mulheres, os terços entre os dedos, as cantorias sacras) e recursos
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visuais sobrepostos, como imagens da fome africana e trechos manuscritos do poema
“O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto (1979, p. 115):
Como todo real é espesso, aquele rio é espesso e real.
Como é muito mais espesso o sangue de um homem
do que o sonho de um homem. Espesso como uma
maçã é espessa. Como uma maçã...é muito mais espessa
se um homem a come do que se um homem a
vê. Como é ainda mais espesso se a fome a come.
Como é ainda mais espessa, se não a pode comer a
fome que a vê.
É possível identificar em toda essa intertextualidade proposta muito mais do que
a mera e explícita denúncia da injustiça social na distribuição dos bens terrenos, a
despeito da incomensurável importância deste fenômeno. A dualidade que permeia as
posturas do comer e do olhar do poema de João Cabral está presente nos poemas
litúrgicos védicos que foram apropriados pela filósofa francesa Simone Weil (1979,
1993), que tanto os admirava. A respeito da simbologia contida nesses poemas
ancestrais e que materializam na figura de dois pássaros pousados sobre uma figueira
mítica sobre a qual exibem comportamentos antagônicos enquanto um come seus
frutos, outro apenas observa , Weil conclui que a dor da existência humana reside na
impossibilidade de conciliação entre o desejo da possessão expresso no ato do comer,
que jamais se sacia, pois que renasce sempre em uma nova fome e em um novo desejo,
no eterno retorno às tormentas da existência e o ato do simples testemunho do olhar,
consubstanciado na renúncia à posse e na concentração da atenção sobre o mundo, de
onde pode nascer o bem para o Outro, para a doação, para o além de si.
Neste contexto, Tião Galinha perece sem honra e sem glória, pois que não
transcende o desejo da posse e sucumbe às artimanhas mundanas para a sua saciedade,
de fato nunca nem de perto satisfeita. Nasce pobre e morre miserável, destoando do
destino reservado a grande parte das personagens secundárias das tramas teleficcionais
rurais, que experimentam ascensão social e a dignificação de suas existências.
No sentido bakhtiniano (BAKHTIN, 2000), nesta ambiência cênica e narrativa, a
enunciação da fome reflete a estrutura social constituinte da consciência dos locutores
da fala (autor-diretor), conferindo-lhe forma, estilo, acabamento e sentido expressivos,
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que, se espera, dialoguem produtivamente com os receptores da mensagem. Para
Bakhtin (1992), a tomada de consciência sobre um fenômeno como a fome, por
exemplo, pode prescindir de uma expressão exterior, mas não de uma expressão
ideológica, pois que toda tomada de consciência implica a construção de um discurso
interior, ainda que rudimentar.
Considerações finais
Na abordagem do rural brasileiro, a obra de Benedito Ruy Barbosa por nós
analisada ao longo do percurso desta pesquisa, pode ser pensada como uma única
grande narrativa, que se desdobra e se complementa em unidades, capítulos, partes.
unicidade na diferença. continuidade nas quebras. retomadas. renascimentos
das mortes. O rural brasileiro de Benedito Ruy Barbosa é um só e em sua unidade
retrata profundas raízes, memórias, esperanças e mazelas presentes em todos e em cada
um de nós.
Na obra barbosiana, o rural é lugar imaginário de sonho e conflito. O sonho pela
posse da terra move vidas, sela destinos, gera ações sociais, mobiliza sindicatos,
lideranças e militantes e, na ausência de sucesso de todas essas instâncias, leva ao pacto
mágico com o demônio, sinalizando que quando o social não alcança, a saída individual
ainda pode representar a última esperança, ou a mais total (des)esperança, posto que
negadora da possibilidade do triunfo do bem sobre o mal.
Benedito Ruy Barbosa sempre conta a mesma história, mas busca com toda
sinceridade, profundidade e entrega, encontrar as cores, as tonalidades, os ritmos de
cada uma de suas partes. Tratando-se do rural brasileiro, Benedito estrutura suas
narrativas a partir da figura central masculina patriarcal do grande proprietário coronel,
senhor de terras, almas e destinos. Se, por um lado, tal figura principal incorpora os
ranços e personifica o atraso, o conservadorismo e a tradição do apego à terra, em suas
relações sociais muitas vezes injustas, por outro, sempre possui a sua própria abertura
para a redenção e a mudança. São personagens ambíguas. Em realidade, são os
personagens secundários que desempenham papel similar na trama que sucumbem ao
castigo e punição. São os “outros” coronéis, os “outros” grandes proprietários que
conflitam com o herói da trama que não encontram sua própria escapatória e
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indulgência, reafirmando as mazelas sócio-históricas do campo. Como núcleo
emocional das tramas, as histórias frequentemente retornam ao amor tumultuado e
proibido entre representantes de famílias arqui-inimigas de poderosos proprietários de
terras, como medievalistamente estruturados no imaginário social pelo romance de
Romeu e Julieta.
Benedito Ruy Barbosa não abre mão do desfile das personagens rurais que
compõem o imaginário nacional do ambiente agrário: os simplórios matutos, os padres,
as beatas, as prostitutas, os advogados interesseiros, os capangas e jagunços, os donos
de botecos de beiras de estrada, as professorinhas rurais.
Se, por um lado, a forte religiosidade do povo brasileiro do campo se impõe
como pano de fundo e sublinha a estética narrativa, é na discursividade sobre a
esperança na justiça social entre os homens que repousa sua força teleficcional. Neste
campo, ainda que o papel da política e principalmente dos (maus) políticos e o alcance
dos movimentos sociais e dos partidos radicais sejam esmaecidos, senão de todo
apagadas, o apelo pela defesa da natureza e da comunhão pacífica e não-predatória entre
a produção e o meio ambiente ganham progressiva centralidade. Nesse sentido, a obra
barbosiana mostras de vir percorrendo um caminho de engrandecimento discursivo
progressivo.
Na representação imaginária da própria terra na produção ficcional brasileira
elemento central da obra de Benedito Ruy Barbosa vemos que, se por um lado, o
desejo de sua posse é por excelência o motor da ação humana no campo e a raiz
estruturante da luta de classes no contexto da modernização periférica, por outro, a
simbolização dela enquanto sistema organo-mineral vivo e complexo e objeto da pulsão
por uma integração ecológica e cultural, é precária e tardia. Porém, destacamos que na
obra de Benedito Ruy Barbosa a conquista dessa representação simbólica é progressiva,
perceptível e reconhecível, até atingir relevância e centralidade em “Velho Chico”. Esse
percurso simbólico coincide com os caminhos da própria evolução da ecologia como
campo científico e discursivo na sociedade contemporânea.
Se, em “Renascer” teleficção do início dos anos 1990 , Benedito Ruy Barbosa
já pode articular a presença simbólica da terra como elemento de fertilidade generosa e
objeto de amor e de desejo a lhe perfurarem as entranhas, para muito além da simples
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superfície da posse, em “Velho Chico” obra produzida um quarto de século mais
tarde , o amor e respeito a esse ente natural ganharão espaços e contornos discursivos
próprios tão densos, alongados, revestidos muitas vezes de poética e de didatismo algo
pueris, que se tornarão capazes de provocar os mais diferentes níveis de consciência e
de repercussão, identificáveis pela multiplicidade de discursos ideológicos postos em
circulação pela audiência telespectadora em diferentes mídias sociais, especialmente as
digitais.
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A análise do discurso é um campo de pesquisa cujo objetivo é compreender a produção social de sentidos, realizada por sujeitos históricos, por meio da materialidade das linguagens. Cada vez mais, a mídia tem-se tornado objeto privilegiado das investigações dos analistas de discurso. Neste trabalho, analisando textos da grande mídia brasileira, procurase mostrar a importância da aproximação entre análise do discurso e estudos da mídia, a fim de compreender os movimentos discursivos de produção de identidades. Palavras-chave: Discurso; mídia; identidades; história, memória. ABSTRACT Discourse analysis is a field of research which aims to understand the social production of senses, engendered by historical subjects, through the materiality of languages. Media has more and more become a privileged object of investigation by discourse analysts. This paper analyses texts generated by the broad Brazilian media. We aim to demonstrate the importance of the aproximation between discourse analysis and media studies in order to understand the discoursive movements in the production of identities. Keywords: Discourse; media; identities; history; memory.
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