Este livro procura analisar os modos plurais em que se sustentou a edição de livros em Portugal num período marcado por uma matriz autoritária na relação do poder com a sociedade, o Estado Novo. Pretendeu-se, com a pesquisa efectuada, chegar às múltiplas formas de como a edição e o editor se foram construindo num cenário à partida adverso. O estudo assumiu como objectivo essencial a interpretação da vitalidade e complexidade demonstradas pela persona do editor português e pelo sector de actividade em que este se posiciona, demonstrando como foi no período explorado que se foram constituindo paulatinamente as bases da moderna cultura tipográfica portuguesa, caracterizada pela existência de aspectos tensionais e contraditórios. Registou-se uma transformação do campo editorial que, durante os anos observados (princípio dos anos 1940 a finais dos 1960, três décadas de particular importância para a edição) se distancia do que se pode considerar um antigo regime tipográfico. A adopção de alguns traços de contemporaneidade da edição coexistem com a persistência de atributos que a ancoram a um mercado acanhado, estruturalmente frágil e habitado por personagens cujo sentimento de identidade tende a mitificar o editor como personalidade abnegada, heróica e amante do mundo das letras e das ideias. Eivado de paradoxos, o acanhado mercado do livro no século XX parece sempre ter guardado lugar ao aparecimento de novos editores e de novos projectos editoriais que, por vezes, parecem irromper em revoada, como no decurso dos anos 1940. Os actores deste dinamismo cunharam o mundo social da edição portuguesa, projectando uma identidade que remanesce actualmente e que durante o lapso temporal em que vigora grande parte do Estado Novo estava alinhada com a que prevalecia, ou havia prevalecido pouco tempo antes, em amplos segmentos daqueles que se dedicavam ao ofício de editar noutras paragens. Ser editor em Portugal durante o período autoritário era, a julgar pelas práticas discursivas de muitos dos seus agentes, em grande medida, aderir à noção de apostolado, sobrelevando a cultura ao negócio, assumindo mais a posição intelectual do que a função gestora. Discrepantes apenas à superfície, as lógicas de manutenção de um ethos editorial ancorado num espírito de devoção cultural – embora de modo progressivamente menos entrincheirado e com maior hibridação à medida que os anos finais da ditadura se aproximam – e de capacidade de uma certa vanguarda dos métodos, géneros e materiais de produção e disseminação do livro, ganham coerência quando observadas em várias durações e escalas. Longe de optarem por uma lógica confrontacional assumida, método que os conduziria inevitavelmente ao reduto da clandestinidade, os editores portugueses recorreram a estratégias de relação não aquiescente à matriz política e ideológica do regime que não deixaram de passar por escolhas de coexistência (exemplo da tranquilidade relativa do percurso do grémio do sector) e mesmo de uma certa colaboração (caso dos livros escolares, em que editores e livreiros não deixavam de participar activamente nos concursos de adjudicação governamental), logrando assim alguma pacificação nas relações com um poder repressivo e censório que, se nunca terá conseguido ou querido edificar e aprofundar uma política do livro consistente, também não singrou pela prática totalitária do aniquilamento dos agentes que o trabalhavam. Assumir um discurso eminentemente cultural não foi apenas uma forma de elaborar um sentido de si dos editores num contexto de supressão da liberdade e de baixíssimos índices de alfabetização, constituindo, porventura, uma dimensão identitária fundamental na gestão dos processos contraditórios na edição portuguesa, essenciais à sua sobrevivência e transfiguração. No quadro de uma mudança lenta, mas observável na oferta e métodos editoriais portugueses do período estudado, em domínios como a modernização gráfica, a inovação e arrojo nas capas, muito maior actualidade internacional na literatura e no pensamento, maior qualidade na impressão e mais rigor na tradução, dá-se a permanência de um campo suportado até bastante tarde por elementos tradicionais e até por algum paroquialismo associado à exclusão da indústria do livro português dos processos em que os sistemas editoriais mais avançados se foram vendo envolvidos, perceptível, por exemplo, nas dinâmicas de internacionalização da produção e comercialização. Se, por um lado, este dado estrutural poupou a realidade nacional de alguma redução best-sellerizante que se desenvolveu mais precocemente noutros países, permitindo à generalidade dos editores portugueses um certo sentido de militância na sua intervenção e, portanto, de uma saliente consciência de não abdicação perante as contingências do mercado e do aparelho repressivo sobre o livre pensamento, por outro, manteve-a afastada de soluções com curso consolidado nos sistemas centrais.
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