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Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, e o terrorismo anal

Authors:

Abstract

O presente artigo analisa o romance de João Silvério Trevisan, publicado pela primeira vez no Brasil em 1984, tendo como referencial teórico o artigo de Beatriz Preciado, “Terror anal”, publicado em 2009, pelas edições Melusina, na Espanha. Embora o texto de Preciado seja posterior, o romance de Trevisan já produzia a revolução anal, conforme teorizado pela filósofa. Desse modo, demonstraremos as articulações entre desejo homossexual e literatura representadas exacerbadamente no texto do autor paulista.
ISSN: 2358-0844
n. 6, v. 1 nov 2016.-abr. 2017
p. 241-252.
Recebido em 07/03/16
Aceito em 19/10/16
~241~
Vagas notícias de Melinha Marchiotti,
de João Silvério Trevisan,
e o terrorismo anal
Fábio Figueiredo Camargo
1
RESUMO: O presente artigo analisa o romance de João Silvério Trevisan, publicado pela primeira vez no
Brasil em 1984, tendo como referencial teórico o artigo de Beatriz Preciado, “Terror anal”, publicado em
2009, pelas edições Melusina, na Espanha. Embora o texto de Preciado seja posterior, o romance de
Trevisan produzia a revolução anal, conforme teorizado pela filósofa. Desse modo, demonstraremos as
articulações entre desejo homossexual e literatura representadas exacerbadamente no texto do autor paulista.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura brasileira; Homoerotismo; Teoria queer; João Silvério Trevisan.
Abstract: This article analyzes the novel by John Silverio Trevisan, first published in Brazil in 1984, with the
theoretical article by Beatriz Preciado, "Anal Terror", published in 2009 by Melusine editions in Spain. Although the
Preciado’s text comes later, the Trevisan’s novel was producing anal revolution, as theorized by philosopher.
Thereby demonstrate the links between homosexual desire and literature exaggeratedly represented in the Trevisan’s
novel.
Keywords: Brazilian Literature; Homoeroticism; Queer theory; João Silvério Trevisan.
Resumén: En este artículo se analiza la novela de João Silvério Trevisan, publicado por primera vez en Brasil en
1984, la referencia teórica es el artículo de Beatriz Preciado, "Terror anal", publicado en 2009 por las ediciones
Melusina en España. Aunque el texto Preciado viene después, la novela de Trevisan estaba produciendo la
revolución anal, como teorizado por la filósofa. De esta manera demostraremos los vínculos entre el deseo
homosexual y la literatura exageradamente homoerotica producida en el texto del autor.
Palabras clave: Literatura brasileña ; homoerotismo ; la teoría queer ; João Silvério Trevisan.
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Professor Adjunto de Literatura brasileira da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Literaturas de
Língua Portuguesa pela PUC Minas. E-mail: fcamargo3@uol.com.br
C A M AR G O , F. F . Va g as n ot í ci as d e Me li nh a Ma rc h io tt i, d e Jo ão S il v ér io T r ev i sa n , e o t er r or is m o an a l
Periódicus, Salvador, n. 6, v. 1, nov.2016-abr. 2017 Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidades
Publicação periódica vinculada ao Grupo de Pesquisa CUS, da Universidade Federal da Bahia UFBA
ISSN: 2358-0844 Endereço: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus
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Daí, a maneira precavida, claudicante deste texto: a cada instante, ele se distancia,
estabelece suas medidas de um lado e de outro, tateia em direção a seus limites, se choca
com o que não quer dizer, cava fossos para definir seu próprio caminho. A cada instante,
denuncia a confusão possível. Declina sua identidade, não sem dizer previamente: não sou
isto nem aquilo.
Michel Foucault
1984, Brasil, João Silvério Trevisan publica seu romance Vagas notícias de Melinha
Marchiotti no qual narra, a partir de um narrador em primeira pessoa que tem seu nome, o drama de
um escritor tentando produzir um romance no país. O romance dentro do romance seria a história de
uma personagem baseada na tia do escritor, Helena Trevisan, reconhecida pela família como louca e
internada no Hospital psiquiátrico do Juqueri, estado de São Paulo. No romance escrito pelo
narrador personagem, a protagonista se chama Melinha Marchiotti. Enquanto o narrador escreve ou
tenta escrever o seu livro, o leitor se depara com as agruras da profissão de escritor no país e é
levado a se deparar com a loucura tanto da tia do escritor quanto da desconfiança do personagem
narrador sobre sua própria loucura. Em meio a tudo isso o narrador personagem/autor vive uma
intensa paixão por Pepo, que morrerá em decorrência de um acidente de moto.
2009, Espanha, Beatriz Preciado escreve e publica um posfácio ao livro de Guy
Hocquenghem, O desejo homossexual, intitulado “Terror anal”. Neste texto, a teórica expõe o
contexto de produção do livro de Hocquenghem, publicado na França em 1972, e afirma que desde
os idos dos anos 1960 o mundo começa a viver a era da revolução anal. Para Beatriz Preciado essa
revolução começa a se fazer pelas tentativas dos movimentos lésbicos e gays dos anos 1960 e 1970
de descolonizar o ânus. Para isso ela se vale de uma espécie de conto da carochinha no começo de
seu artigo, demonstrando como a cultura ocidental e falocêntrica fechou o ânus como modo de
controle das relações sociais e afetivas ao longo da história para implementar uma sociedade
produtiva. De acordo com Beatriz Preciado, a cultura tomou como sua função: “Fechar o ânus para
que a energia sexual que podia fluir através dele se convertesse em honorável e saudável
companheirismo viril, em intercâmbio linguístico, em comunicação, em imprensa, em publicidade,
em capital.” (PRECIADO, 2009, p.136 Tradução nossa)
2
Citando Roland Barthes, a teórica continua lembrando que um texto terrorista é aquele que
intervém socialmente graças à violência com que excede às leis de seu contexto social, das
2
Cerrar el ano para que la energía sexual que podría fluir a través de El se convertiera en honorable y sana camarederia
varonil, en intercambio lingüístico, en comunicación, en prensa, en publicidad, en capital.
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ideologias nas quais se insere, gerando sua própria inteligibilidade histórica. Beatriz Preciado
considera o livro de Hocquenghem o primeiro texto terrorista “que confronta diretamente a
linguagem heterossexual hegemônica. É o primeiro diagnóstico crítico acerca da relação entre
capitalismo e heterossexualidade realizado por um gay que não oculta sua condição de “escória
social” e “anormal” para começar a falar.” (PRECIADO, 2009, p.138 – Tradução nossa)
3
Beatriz Preciado continuará, em seu posfácio, a tecer elogios ao manifesto de
Hocquenghem, mas o que nos chama a atenção é o quanto seu texto, ao se constituir paralelamente
como comentário a uma produção anterior, acrescenta uma indeterminação de gênero importante,
criando espaço para uma certa poetização ou uma ficcionalização do gênero ensaístico de um
posfácio. Se ela inicia com uma espécie de fábula ou lenda, continuará a fazer diversos deslizamentos
entre o ensaio, o texto teórico produzido para a academia e, muitas vezes, hermético, que apresenta
seus exemplos e ao mesmo tempo analisa um outro texto a partir de uma tessitura de argumentos que
variam de provas documentais a uma arqueologia dos movimentos sociais que culminariam na
revolução anal. Todos os argumentos são apresentados em um modo pouco usual para um posfácio,
reduzindo a margem que o classificaria como um texto “científico”, pois é produzido como algo
inconstante, instável, encenando uma indeterminação que o faz bastante singular.
Na narrativa de João Silvério Trevisan essa ambiguidade e mistura de gêneros se dá também
de modo a que seja possível visualizar em seu romance e no romance dentro do romance poemas,
cartas, críticas literárias, bilhetes, diagnósticos médicos, trechos de textos de diversos autores
muitas vezes alterados, rasurados, reescritos conforme a imaginação do autor ou do narrador-
personagem. Assim são reescritos, (re)inventados textos de Freud, de Magnus Hirschfeld, de Karoly
Maria kertbeny, o criador da palavra “homossexualismo”, de Dostoievski, de Mikhail Bakunin, bem
como atestados dos médicos que diagnosticaram Qorpo-Santo e Lima Barreto. Sem a necessidade
de explicações mais demoradas ou de comprovação da veracidade desses documentos o autor e seu
narrador demonstram não se importarem com a verdade dos fatos. Desse modo aparecem subtítulos
como “RECOMENDAÇÕES DO NEURÓLOGO MAGNUS HIRSCHFELD SOBRE A
MASSAGEM NA PRÓSTATA” (TREVISAN, 1984, p.103 – grifos do autor) ou “PANFLETO DO
TERRORISTA STRIGA BRIDBEY SOBRE AS VIRTUDES REVOLUCIONÁRIAS DO
RELAXAMENTO DO ESFÍNCTER” (TREVISAN, 1984, p.107 grifos do autor). Pode-se dizer
que o livro de João Silvério Trevisan é um texto de ânus aberto, pois não se preocupa com a ordem
3
[...] que confronta directamente el lenguaje heterosexual hegemónico. Es el primer diagnóstico crítico acerca de la relación
entre capitalismo y heterosexualidad realizado por un marica que no oculta su condición de “escoria social”, y “anormal”
para empezar a hablar.
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produtivista, mas com a energia fluida que poderá advir dessa profusão de textos sobre textos, que
se deslocam, ao que tudo indica, ao leo, embora seu eixo seja a ideia de uma sexualidade livre.
Nesse sentido podemos dizer que João Silvério Trevisan pratica o terrorismo anal do qual fala
Beatriz Preciado, produzindo dentro do código literário algo para além da domesticação
normatizadora, comum ao texto literário produzido nos anos de 1980 no Brasil.
Devo lembrar que Trevisan está mais atrelado, por questões temporais, às teorias de Georges
Bataille e Herbert Marcuse. Lembro que Beatriz Preciado, no texto específico aqui tratado, sequer
toca nas teorias desses dois autores, subssumindo-os em seu discurso. No entanto, é digno de nota que
Bataille é citado no texto de Gui Hocquenghem apenas duas vezes e que Marcuse é citado três vezes.
Esses filósofos, que parecem não frequentar o discurso de Beatriz Preciado, estão na base do
raciocínio de todo e qualquer discurso que negue o modo de produção da sociedade ocidental
capitalista e o quanto essa produtividade implica na negação ou obliteração da sexualidade, sendo
importantes teóricos lidos pela geração de João Silvério Trevisan. O fato de estes filósofos não serem
citados no texto de Beatriz Preciado pode-se dar pelo motivo de a escritora, dentro do escopo
desconstrucionista do qual faz parte sua teoria, optar por não citar fontes e bases de consulta. Esta
estratégia se coaduna à indefinição de gêneros, produzindo o terrorismo anal no próprio texto que se
faz inconstante, in progress, texto terrorista que é. Embora o texto in progress não seja novidade na
literatura, cabe salientar que para a teoria da literatura esta é uma novidade, e, embora o texto da teórica
não seja especificamente sobre literatura, está aqui tomado como texto de embasamento para a
construção da argumentação de que a narrativa de João Silvério Trevisan produz terrorismo anal. Deve-
se acrescentar o fato de que em vários momentos de Vagas notícias de Melinha Marchiotti notam-se
diversos trechos que trabalham diretamente ou apontam para as teorias de Marcuse e Bataille.
O fato é que tanto a teórica quanto o escritor têm em comum o tratamento dispensado à
necessidade de abertura do ânus tanto metaforicamente quanto concretamente. Nas palavras de
Beatriz Preciado: “Se tem que se abrir o ânus público teremos que fazê-lo pela via cultural. Os meios
de comunicação são redes extensas e difusas de construção e normalização da identidade:
TERRORISMO ANAL = TERRORISMO KULTURAL. (PRECIADO, 2009, p.144 Tradução
nossa)
4
. Daí a necessidade da criação de novas redes de utilização dos meios de comunicação como
espaços blicos a serem utilizados pelos diferentes agentes das artes e da área da cultura para
divulgação das questões que colocam em cheque as estruturas organizadas ou do que seja e devam ser
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Si hay que abrir el ano publico habrá gue hacerlo por la vía cultural. Los medios de comunicación son redes extensas y
difusas de construcción y normalización de la identidad: TERRORISMO ANAL = TERRORISMO KULTURAL.
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considerados objetos culturais. A literatura, como parte das produções humanas, continua por demais
atrelada à condição de objeto de culto relacionada sempre à noção de valor via certificados emitidos
por segmentos como as academias e universidades, que valorizam o estético em detrimento do social,
ainda desejando uma ética dentro do paradigma iluminista da universalização dos direitos e dos
gostos. Daí a necessidade de uma produção literária que descolonize o estabelecimento de normas e
regras sobre o fazer literário, que desautomatize o modo de produção ordenado como esteticamente
viável ou perfeito, que misture os gêneros, que crie textos terroristas, e, que, conjuntamente, critique
as normas reguladoras da sexualidade reprodutiva. Textos queer poderão contribuir para novas
abordagens dentro da cultura para a produção de olhares sobre as ditas sexualidades divergentes.
Portanto, não basta tratar da temática dessas sexualidades, mas de (re)escrever, rasurando o código, no
qual enunciado e enunciação se complementem e sejam divergentes do que está estabelecido como
código literário ordenado: abertura da literatura canônica = abertura do ânus.
Trevisan faz seu livro, é certo que dentro de um modo de produção muito utilizado nos anos
1980, com a fragmentação da narrativa, a alteração do modo de narrar, a montagem
cinematográfica, a revisão da história e tudo o mais a que tem direito, mas ainda assim com a
alteração, a ambiguização da linguagem literária de modo a proceder a uma literatura queer avant la
letre. Desse modo ele desestabiliza o código, produzindo um texto que não se sabe para onde vai,
que não é romance conforme o gênero se estabelece no século XIX, e ainda continua ordenado no
século XXI, mas que também não é ensaio, nem outro gênero reconhecível e fácil de ser
classificado, do mesmo modo aproveitando a temática homoerótica e encaminhando-se para muito
além da mera história de amor homoerótico. Na narrativa, o leitor se depara com diversas cartas do
escritor, sem saber ao certo se são cartas do narrador, que tem o mesmo nome do escritor, ou se são
missivas do escritor, sujeito empírico. Em uma delas, datada de 29 de setembro de 1977, e escrita
em São Paulo, lê-se o seguinte:
Instigante conversa com R. Sobre meu romance. Eu me sentia entusiasmado ao extremo:
acho que retomaria o projeto amanhã mesmo de modo definitivo, caso não estivesse tão
sem grana e tão desesperado à procura de uma casa para trabalhar sossegado. Contei a R.
que pretendo estruturar o romance utilizando uma perspectiva anti-dramática ou de
dramaticidade diluída, para evitar o quanto possível um tom catedrático e me contentar
com o lixo, o acidental. O romance seria a negação de si mesmo, ou melhor, a “frustação”
(sic) de si mesmo, pois na realidade nunca aconteceria o romance prometido pelo escritor-
personagem, e certamente aguardado pelo leitor. Eu lhe disse que pensava fazer as partes
bem diferenciadas, de um ponto de vista da estrutura narrativa e mesmo de linguagem. O
personagem de tia Lena seria inacabado no sentido de não estar totalmente proposto
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assim como seu drama seria reticente, ambíguo. Em contraposição, sua loucura não
decifrada sofreria quase um processo de projeção sobre o Escritor-personagem, na
primeira parte: ele refletiria aspectos da loucura, ao buscar notícias da louca. Aliás, eu
devia ter a coragem de deixar o romance realmente inacabado, se quisesse levar adiante
minhas propostas quanto à relatividade ou mesmo inexistência de verdades literárias.
Nesse sentido, deverei fazer evoluções em torno da loucura, sem pretensão de explicá-la.
Quero expor à luz do sol minha própria fragilidade, ao escrever. (TREVISAN, 1984, p.182
itálico do autor)
Como Hocquenghem em seu Desejo homossexual o ânus no romance de João Silvério
Trevisan se abre de modo a que o personagem narrador e seu amado declarem-se inteiramente como
escória, como seres anormais que não pretendem se enquadrar na norma do desejo heterossexual,
bem como o escritor do romance dentro do romance, em seu eterno dilema de agradar ao público ou
não, opta por uma verdade da narrativa e abraça a causa da loucura e da sexualidade desabrida,
excessiva, produzindo assim um texto feito de outros textos, que guina à direita e à esquerda, que se
recusa a dizer se é isto ou aquilo, declinando de assumir um lugar previamente estabelecido. Desse
modo o texto de Trevisan produz seu terrorismo mesmo dentro das limitadas condições dadas à
literatura para isso. Expõe-se a fragilidade da escrita, a dificuldade de se fechar em torno de
questões como a loucura ou qualquer verdade possível. Essa síntese do romance é importante, pois
ela estabelece a relação que o autor ou o narrador-personagem quer com sua produção, algo
inacabado, que se produz em paralelo e não como um texto definitivo, pronto, fechado. Texto
instável tanto quanto o código que se rasura, aberto ao acidental e ao lixo, tanto quanto a
sexualidade e o desejo que se impõem ao narrador em sua saga. No Brasil dos anos 1980 isso era
flertar por demais com a marginalidade, era ir na contramão do discurso literário vencedor feito
pelo romance policial ou romance reportagem. O modo de introduzir o individual, o pessoal como
político está muito além das autobiografias de exilados que voltavam ao país por conta da anistia
política. Trevisan se nega ao mercado, à produção literária, o que lhe custa muito até hoje. Ele, autor
ganhador de prêmios, mas sempre na labuta para arrecadar algum dinheiro para a sobrevivência.
A produção terrorista também se na produção de algumas cenas de relações sexuais
homoeróticas na narrativa, demonstrando que o narrador deseja romper a barreira das cenas sexuais
representadas na literatura dita séria. Em primeiro lugar seu texto não pretende ser mais um texto de
literatura erótica, conforme afirmei, ele desafia a questão dos gêneros, alternando em sua
narrativa diversos modos de produção literária. Com o erotismo não é diferente, pois as cenas que
poderiam ser tomadas como pornográficas são revestidas de metáforas, metonímias e imagens que
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não obrigatoriamente transformam o texto em pornográfico, embora apontem diretamente para o
desejo sexual que pulsa nos personagens, representando a relação erótica, encenada das mais
diversas formas. O texto não se interessa em discutir os limites entre erotismo e pornografia,
inexistindo, portanto, fronteiras. Passemos à leitura do primeiro fragmento:
Flash-back. Deslizo num travelling melancólico para a sala de repouso. Não corte,
quando o deslizar invade o escuro. Meu diafragma procura se readaptar. Adapta-se apenas às
formas, não às cores. No escuro, pressinto um único volume que se alonga, ali estendido, na
entrega. Quem sabe, em movimento interior: enriqueça-se o plano. Inicialmente, tempo
morto, plano longo. Câmera agora à deriva. O escuro é povoado de pequenos silêncios e
ruídos: montagem sonora dentro do plano informe. Mas não perco de vista esse volume
humano que habita a sauna. Nem a câmera (ou canal) consegue externar o desejo bloqueado
dentro de mim, por culpa do desequilíbrio ecológico entre paradoxos tornados categorias.
Estendo a mão, a mesma da câmera. Uso apenas os olhos da lente com milímetros de
profundidade. Há foco? Ninguém sabe. Tenho apenas uma idéia, fixa na cabeça. Estendo a
mão no escuro. Corte. Estendo meus dedos invisíveis (na película), sem saber até onde irá a
profundidade da sombra. Corte. Encontra-se pele com pele: a câmera-mão. Apalpo ossos.
Pressinto respirações. Palpita-se entre meus dedos fechados, que desejam esganar o roliço
arrebatado, as reentrâncias por onde oscilo e subo, eu-câmera. Nada exijo. Desejo. O plano
flui. (TREVISAN, 1984, p.36)
Nessa cena é possível perceber que o encontro sexual se em um ambiente de
homossociabilidade masculina: a sauna. Lugar onde os desejos sexuais podem ser satisfeitos sem o
perigo iminente de ser encontrado por outro gestor da sexualidade alheia conforme as normas da
sociedade patriarcal e heteronormativa. Na sauna todos os desejos podem se realizar. Sem censura.
No entanto o narrador toma o discurso cinematográfico como modo de fazer o percurso de seu desejo.
Assim o corpo do narrador passa a ser sua câmera subjetiva que passeia pelo escuro e encontra o outro
de seu desejo. Desejo anônimo, volume humano. A relação é dada pela série de cortes e planos
sequência que uma câmera cinematográfica pode fazer. A linguagem técnica dominada por João
Silvério Trevisan que também é cineasta se encaminha para o outro. Sem foco? Para que foco se há
desejo? O toque finalmente; o encontro tem seu ápice na masturbação, pois o narrador retém em sua
mão o pênis do outro a partir da ação de seus dedos desejosos “de esganar o roliço arrebatado”.
O Cinema Novo é chamado à narrativa por meio da ideia fixa na cabeça do narrador-câmera
que se deixa levar pelo desejo. Ele nada exige, deseja apenas. O desejo, que, embora tenha nome
nunca está onde se pensa que está, como o próprio texto de Trevisan, em constante deslocamento
entre ser literatura e biografia, entre o ensaio e o romance, entre o cinema e a literatura, entre a cena
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sexual explícita e a metáfora cinematográfica, entre a confissão e universalização de seu próprio gozo,
entre o hedonismo e o sofrimento. Nesse ponto o vocabulário metafórico não sai de si, nem esbarra na
explicitação, mas acaba por fazer fluir o gozo do personagem que nada exige senão a satisfação de seu
desejo, sua ideia fixa. Desse modo a narrativa produz não a satisfação dos desejos sexuais do
narrador, como também da própria narrativa, ao exacerbar sua sexualidade tornando a economia da
narrativa, para usar um termo caro a Bataille, nada produtiva, pois não é um sentido exemplar o que é
produzido, mas o prazer pelo prazer, exibindo sua parte maldita. É do desperdício que se trata, não
mais do sexo para a procriação ou da literatura como medida ordenada de análise do mundo, mas do
uso de expressões do cinema, do discurso do cinema para produzir literatura. Texto que se recusa a
entrar no padrão de adequação de linguagem ao qual o texto literário deve ser colocado para poder
existir. Terrorismo anal, abertura da literatura para outros discursos, outros espaços, apresentação de
modos diversificados de relações sexuais, desordenação da cultura.
Em uma síntese da narrativa, o próprio texto parece se autoexplicar via teorização sobre
como o erotismo se faz:
Na cama, fiquei me perguntando como minha tia faria para ter sexo, que direito lhe davam
de transar essa força por onde perpassa a vida, ou melhor, esse único momento de nossas
vidas onde ainda nos permitimos uma espécie de loucura, transe, êxtase quando nos
encontramos indistintamente com a parte amaldiçoada de cada um de nós. (TREVISAN,
1984, p.283 itálico do autor)
Note-se que o narrador se encontra na cama onde insiste em pensar na sexualidade da tia,
que ficara louca, provavelmente, devido à repressão dos desejos, perpetrada por sua família
patriarcal. Nesse ponto, o narrador percebe que as pulsões sexuais negadas têm a ver com o
erotismo do qual fala Bataille. A quantidade de expressões utilizadas pelo narrador es
diretamente ligada ao texto do filósofo francês, como as ideias de êxtase, transe e a parte
amaldiçoada. Como essa sexualidade foi negada à tia, o narrador teme que lhe seja negada a ele
também, embora saiba que o problema não é mais a negação da sexualidade, mas a sua liberdade
em viver e experienciar esta sexualidade sem barreiras.
Em outra longa sequência de relação sexual chegamos aos seguintes trechos que apresentam
não mais uma relação sexual anônima, mas o encontro entre o narrador e seu objeto de afeto, Pepo:
Pepo procurou, sôfrego de saudade, e encontrou minha rosinha, por onde meteu o nariz e
língua ferozes, cujos apetites carnívoros me faziam gemer, aos solavancos. Quem não grita,
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não estremece e não agita quando tem suas portas (ainda que de bronze) atacadas? E
também eu jamais fora fustigado por um braço único: com o rosto franzido de êxtase, espiei
cada gesto da difícil tarefa de pincelar o dedo (não frouxo, mas certeiro) no creme, e com a
única mão dividir fraternalmente o creme entre o olho bronzeado e a massa pênica,
untando, untando até uniformizar o desejo, pela mão única. Diga-se uniformizar, não
apaziguar.
- Neste mesmo oco onde introduzi treponemas, não é?
Dito isso, depositou-se de uma vez, por minha fortaleza adentro. E eu não reclamei da
súbita invasão: pedi mais, mesmo porque aguardara ansioso. Foi tudo o que eu soube tirar
do fundo da garganta: quais fonemas suplicantes.
- Mete mais, pelo amor de Deus. E não tira nunca. (TREVISAN, 1984, p.53-54)
As palavras são utilizadas de modo a marcar a diferença entre a cena anônima na sauna e a
cena com o amante, agora reconhecido. Os verbos são mais potentes e indicam ações concretas a
partir de uma gradação que vai de “procurou”, “encontrou” e “meteu”, todos em pretérito perfeito,
demonstrando a atividade do amante. O verbo “meter” se complementa com o adjetivo “ferozes”
ligados ao nariz e à língua do amante. Tanto a língua quanto o nariz são objetos fálicos. Ações diretas,
que apontam para o sexo explícito. Não mais a câmera, que mesmo subjetiva, é impessoal. Agora o
narrador se encontra em pleno movimento, ele continua a olhar o ato que o seu amante faz com ele.
Seu ânus, sua rosa, expressão utilizada carinhosamente como diminutivo, é levado ao delírio com o
jogo do amante de untar o pênis e o ânus para a penetração. Nesse caminho o olho e o pênis são
colocados conjuntamente, como órgãos semelhantes, pois o movimento vai de um a outro, assim, em
termos expressivos se transformam em mesma coisa: não um órgão da visão e outro sexual, mas dois
órgãos sexuais. Assim como o cu é tratado como “olho bronzeado”. O jogo linguístico do narrador
iguala todas as expressões e órgãos sexuais, levando a cabo a tarefa queer de se pensar o corpo inteiro
como órgão sexual. Assim, o pênis, o olho que olha, a mão que escreve para narrar e o olho do cu são
uma e só mesma coisa, espaços de prazer, de subversão da cultura, subversão da ordem e até mesmo
subversão dos afetos. O ânus tratado como porta e logo depois como fortaleza é invadido e o narrador
grita, estremece e se agita, e, ao invés de oferecer resistência, quer mais que o invasor permaneça, e
pede pelo amor de deus, para que o outro continue eternamente dentro dele. Na hora do sexo, deus é
chamado a participar do intercurso sexual, o que implica em mais uma mostra clara de subversão, pois
afinal de contas, é o mesmo deus cujo culto não recomenda esse tipo de relação sexual, vista apenas
como pecado, pois o intercurso sexual, na visão cristã, interessa apenas para procriação. Modo
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Periódicus, Salvador, n. 6, v. 1, nov.2016-abr. 2017 Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidades
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produtivista de entendimento e aceitação do sexo, este apresenta-se como um grande da cultura
ocidental, que cisma em ver o sexo como algo ruim ou demoníaco, mas ao mesmo tempo necessário à
perpetuação da espécie. A insistência da narrativa na subversão de todos os discursos demonstra o
interesse do narrador/autor em abrir o ânus para fazer fluir o prazer. Na mesma sequência sexual, o
narrador continua:
Onde se esfrega couro no couro para tirar fogo? No leito, por exemplo, que é cama e
colchão barato quando se deseja apenas que a tora afunde e amasse a lama, plantando
alicerces. Confundi as cores. Daltônico e ainda mais, porque se embaralhavam de vez: o
vermelho da bandeira brasileira mas também o verde do céu. E as palavras: pobre literatura
feita de palavras, porque então as palavras destroçavam-se em sons de cavernas
pequenas, grandes ou em expansão. Exprimia-se o nariz, o ouvido, a garganta, a boca, o
sovaco, o vão das coxas, o rabo profundo. Todos os meus poros aliás politonavam.
(TREVISAN, 1984, p.54)
Nessa sequência verifica-se a provocação do narrador para com seu leitor em uma pergunta
retórica, ligando a questão do sexo ao fogo, esfregando couro com couro. Lugar onde a lama se faz
alicerce. A produção do prazer a partir das diversas possibilidades do corpo em partes que a
princípio o são levadas em consideração quando se trata do sexo sempre pensado e descrito
binariamente. No trecho citado, o nariz, o ouvido, a garganta, a boca, as axilas, as coxas, o rabo são
as reentrâncias que emitem sons, pois todo o seu corpo politona. Novamente a ideia de que o corpo
inteiro é um órgão sexual, aquilo que só será alcançado quando se abrir o ânus em seu sentido mais
lato. De acordo com Beatriz Preciado:
O sexo é uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas
em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino),
fazendo coincidir certos afectos com determinados órgãos, certas sensações com
determinadas reações anatômicas. (PRECIADO, 2014, p.25)
Desse modo, Trevisan, na corrente da revolução anal dos anos 1960 em diante, seguindo
Marcuse e Bataille, reorganizava ou desorganizava as relações sexuais de seus personagens
visando uma amplitude dos órgãos sexuais. Não apenas pênis e vagina, mas um corpo erótico
inteiro. Ao mesmo tempo o narrador diz ter sua visão reduzida ao tornar-se daltônico e confundir o
amarelo da bandeira com o vermelho e o azul com o verde, tudo se encaminhando para a sinestesia
de uma relação sexual prazerosa com seu objeto de afeto. Ainda a relação sexual serve para que o
narrador analise o fazer literário que nunca conta do processo real das coisas. A palavra não
recobre o real, embora aponte para a referencialidade deste, representando sempre o que não há, o
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que não se faz. A palavra que se perde em meio aos sons advindos de todas as partes do corpo. A
palavra que não vale nada quando se trata de desejo. Aquilo que não é classificável, inteligível ou
escrito. Incompleto, instável, desordenado. Ou que mesmo que se faça com palavras, estas não
podem detê-lo ou circunscrevê-lo em algo ordenado. Nessa cena não há espaço para a tecnologia do
sexo ligada à ordenação da cultura ocidental, há o desejo, o prazer com o sexo. Em sua tentativa de
dizer do seu desejo, o narrador continuará a sequência forte, marcada agora pela sua malignidade:
Eu inteiro prestei um irresistível tributo ao Mal, quando senti suas lavas me dilacerando. E
fui avisado pelos urros, pelo calor. Nessa hora, chamei meu vulcão e pedi misericórdia:
fazei desabar sobre mim todo esse Mal. E chover em Sodoma. Chovem, em câmera
inesperada e lenta, pingos elásticos, longos. Talvez cusparadas pegajosas ou sementes do
céu. Sobre minha cabeça, bendito seja o Mal. Explosões, destruição, ferocidade, pedras que
voam dentro de mim, coices. Eu atravesso o espaço, como um destroço de mim mesmo e
acabo por desabar longe, em minha cama, deixando marcas de sangue na parede caiada,
unhas que se cravam já no final do sabá. (TREVISAN, 1984, p.54-55)
Todo o mal de que fala Bataille em A parte maldita, O erotismo, A literatura e o mal parece
ser conjurado na prece final do narrador. Se ele abre a sequência dizendo ter prestado um tributo ao
mal, tudo nos levará para a semântica do que seja representado como da ordem do maléfico, da
maldição, da parte amaldiçoada como frisa o narrador em trecho anteriormente citado. É desse
desperdício que vive esse narrador, não seu sexo não corrobora para a organização da cultura,
mas seu ânus assim como sua literatura estão abertos para a improdutividade.
Note-se o que fala Bataille sobre o erotismo:
O que desde o princípio é sensível no erotismo é o abalo, provocado por uma desordem
pletórica, de uma ordem expressiva de uma realidade parcimoniosa, de uma realidade
fechada. A sexualidade do animal põe em jogo essa mesma desordem pletórica, mas sem
nenhuma resistência, sem nenhuma barreira. [...] O animal morre, senão, passada a
desordem, a descontinuidade permaneceria intacta. Na vida humana, ao contrário, a
violência sexual abre uma ferida. Raramente a ferida se fecha sozinha: é preciso fechá-la.
Mesmo sem uma constante atenção, que a angústia cria, ela não pode permanecer fechada.
A angústia elementar ligada à desordem sexual é significativa da morte. A violência dessa
desordem, quando o ser que a experimenta tem o conhecimento da morte, reabre nele o
abismo que a morte lhe revelou. (BATAILLE, 1987, p.97-98)
Atente-se para o quanto esse trecho de Bataille parece perpassar toda a sequência que vimos
até aqui. Desse modo as lavas de vulcões, os gritos, os gemidos, Sodoma, são trazidos ao discurso
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para encenar o gozo final no qual explosões, destruição e ferocidades se equivalem, marcando o
gozo queer, improdutivo, animalesco, destruidor da noção de ordem. O ânus aberto, o terrorismo
anal completo ao final do sabá. A referência ao sabá não é gratuita, pois é por meio da conjuração
do mal produzido pelas bruxas que o malefício se dá. Tomando como mal tudo o que a civilização
ocidental legou à lata de lixo, varreu para debaixo do tapete, transformou em tabu, a sexualidade
dita desviante, aquela que foi vilipendiada, reprimida violentamente, assume neste trecho de
Trevisan status de vedete. A violência do gozo irrompe em forma de sementes caídas do céu em
meio a um modo de subverter mais uma vez o discurso bíblico para a valorização do gozo
homoerótico, gozo livre. Assim, Vagas notícias de Melinha Marchiotti produz terrorismo anal em
sua improdutividade, em sua desordenação, em sua subversão das normas e regras estabelecidas
Referências
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L&PM, 1987.
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cruz de Tenerife: Melusina, 2009
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editores, 1968.
PRECIADO, Beatriz. “Terror anal” (Posfácio). In: HOCQUENGHEM, Gui. El deseo
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133-170.
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N1 edições, 2014.
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Tradução de Antônio Carlos Viana
  • Georges Battaille
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