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ARTIGO E ENSAIO
Tania Galli Fonseca
Estranha Beleza e a
Beleza do Estranho1
Resumo
Procuramos traçar algumas notas a respeito do percurso do artista Luiz Gonzaga,
desde nossa recepção à exposição de suas obras no evento Percurso do
Artista realizado em 2014. Buscamos associar vida e obra sem a preocupação
de coletar dados biográcos detalhados e cronológicos, mais ao modo de um
biografema, como nos diz Barthes, uma vez que dicilmente a biograa de um
homem poderá vir a ser totalmente apreendida. O percurso do artista revela-se
como sua pulsão criadora e narrativa, destaca-se como expressão do fracasso
de suas realizações, uma vez que, mesmo satisfeito com sua última realização
ele se vê compelido a dizer mais uma vez, a buscar em suas inquietações
respostas que sabe serão sempre incompletas aos silêncios que povoam a
si e ao mundo. Dizer uma vida de artista seria armar, assim, esse amor ao
estranho por ele alimentado e que nda por se tornar seu próprio alimento.
Palavras-chave
Luiz Gonzaga; Vida e Obra de arte.
1. Trabalho apresentado no dia 21/
agosto/2014, na Sala Fahrion/UFRGS,
Mesa redonda a respeito do PERCURSO
DO ARTISTA- LUIS GONZAGA, com
curadoria da profa. Dra. Blanca Brites/
IA-UFRGS.
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PT
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BELEZA EMUDECIDA E PACIENTE COMO ESPERA E PROMESSA
Há anos convivo com vultuosas esculturas de Gonzaga. Elas ocupam espa-
ços de minha casa e compõem-na com uma coleção variada de uma pequena
multidão de obras de artistas. Como presenças mudas no cotidiano da família
recebem olhares curiosos de algum visitante que nos chega. Nessas ocasiões,
também nos xamos a olhá-las de modo lento, por vezes as tocamos e as acari-
ciamos, retendo em nós sua bela textura e cores, mais uma e mais outra vez. O
calor de nossa respiração as suspende em uma aura. Por nosso olhar captu-
rado, somos novamente, nesses momentos, arrastados pela estranha beleza de
tais guras, para o longínquo que as envolve, para duração que delas emana. O
que se vê, também nos olha, lançando-nos disparos silenciosos e atmosféricos
que reanimam nosso encantamento e revelam surpresas reservadas em sua
materialidade. Mudas e imóveis, as grandes guras de Gonzaga saltam sobre
nossos passos como que à espera de seu desencantamento. Aguardam, pacien-
tes, sua nova aurora, respeitam a noite que lhes impomos no dia-a-dia pelas
correrias de um tempo que nos aige. Imponentes e dignas, elas se postam na
casa como reservatórios de afetos e percepções alargadas. Contemplam-nos
em nossa faina diária, à espera, quem sabe, de que, em algum momento, algo
nos desviará para o seu encontro em que, como à beira de um rio, nos inclina-
remos para beber água pura e refrescar o cansaço das repetições dos dias. No
mais das vezes, nosso desvio em sua direção se dá sem palavras, como em uma
oração. Com um toque, com um olhar, com um gesto sem palavras constata-
mos, alegres, que elas estão perto de nós. Nós as amamos por sua presença,
por estarem conosco em nosso dia-a-dia. Elas não funcionam como ornamen-
tos, aderem a nós como uma espécie de vida contagiante que possui a potên-
cia de expandir a nossa própria. Como se tivessem sido feitas para momentos
especiais, como se sua função fosse a de tornar especial o nosso próprio tempo
vivido, elas não se deixam banalizar. Inapagáveis, mesmo que por vezes habi-
tantes da noite de nosso olhar apressado, elas ali estão e se colocam como
dispositivos de nossa memória, de nossa imaginação, de nossos devaneios e
de nossa sensibilidade.
Falar algo sobre a obra de Gonzaga torna-se importante, pois, tal como
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aqueles momentos de lentidão pensativa e sensível que roubo de meus dias
apressados, nessa oportunidade eu encontro a ocasião de também vir a expres-
sar em palavras aquilo que em mim é mobilizado pelas obras desse querido
colega, Professor e Artista.
UMA ESTRANHA BELEZA
A biograa de um homem dicilmente poderá vir a ser totalmente revelada.
Não por seus segredos, sequer pelo conjunto total de suas ações. Sempre
parcial, apenas depreende-se de uma vida aquilo que ela produz como sua obra
que, aqui, não signica apontar quantitativamente o que foi produzido e sim,
reconhecer como obra somente aquilo que porta o que se pode chamar de dura-
ção. Ou seja, torna-se a obra de um autor aquilo mesmo que brota de seu silên-
cio e que, como linguagem incessante, produz no mundo dos receptores mais
e mais efeitos, reverberando versões, abrindo-lhe novos possíveis de interpre-
tação que escavam seus vazios que ainda resistem e insistem nas expressões
já efetuadas. Uma obra, nesse caso, também apaga o nome do próprio autor, à
medida que se oferece ao mundo como um longínquo a ser alcançado e tornado
impossível de alcançar a cada tentativa. Incessante e grande horizonte, sempre
recuante, a obra age como um contratempo, como um contra espaço, pois, ao
mesmo tempo em que se oferece às apreciações também se recusa à entrega
total. Resiste ao espaço-tempo presente para condensar em si algo de uma
atualidade complexa que se faz como jorro de um tempo cindido entre passado
e futuro. Ela pertence ao cristal do tempo, age a contrapelo de uma história
pessoal e atual, contrai em si multiplicidades formadas pelos acontecimentos de
Figura 01: GONZAGA, Luiz.
Processo Criativo do Artista. Porto
Alegre. Data: 23.set.2014. Foto
de Maciel Goelzer. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/ufrgs/noticias/
etapas-e-elementos-das-criacoes-
do-artista-plastico-luiz-gonzaga
Acesso em: set. 2017.
2. Luiz Gonzaga Mello Gomes
- Júlio de Castilhos, RS – 1940.
Escultor. Forma-se no curso de artes
plásticas da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, em 1966, aperfeiçoando-se
em escultura dois anos depois.
Durante esse período frequentou
o atelier de Christina Balbão. Em
1973, faz o curso de tapeçaria com
Yeddo Tietze no Centro de Artes da
Universidade Federal de Santa Maria.
Bolsista entre 1978 e 1979, na Escola
de Belas Artes de São Fernando,
Universidade Complutense de Madrid,
Espanha, onde fez especialização em
pintura mural. Atua, a partir de então,
como professor no Centro de Artes da
UFSM e, em 1985, transfere-se para o
Instituto de Artes da UFRGS. Participa
da IX e XXI Bienal Internacional de
São Paulo, 1967 e 1991; do XVI e XXII
Panorama de Arte Atual Brasileira, no
MAM, São Paulo, 1985 e 1991, e da
Arte Sul 89, no MARGS, Porto Alegre,
1989. Autor do monumento Sabedoria
no jardim da reitoria da UFSM, 1977;
do monumento ao Memorial dos
Mortos Desaparecidos Políticos,
no Parque Marinha do Brasil, Porto
Alegre, 1995, e do painel em relevo
na estação Ana Rosa do Metrô de
São Paulo.
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uma vida que é bem mais larga do que a existência dos homens mortais. Dizer
uma vida, com esse artigo indenido, signica apontar para as reservas de innito
no nito, para o ilimitado no limitado, signica a conança de que a obra provém
e é destinada à amplitude e à expansão de seus sentidos para muito além dos
possíveis que viemos atribuir-lhe. O percurso do artista revela, nesse sentido, sua
saga em direção a esse innito, revela-se como sua pulsão criadora e narrativa,
destaca-se como expressão do fracasso de suas realizações, uma vez que, mesmo
que satisfeito com sua última realização ou mesmo com o conjunto já produzido, o
artista se vê compelido a dizer mais uma vez, a fazer de outra maneira, a buscar em
suas inquietações, respostas que ele sabe serão sempre incompletas aos silêncios
que povoam a si e ao mundo. Dizer uma vida de artista seria armar, assim, esse
amor ao estranho por ele alimentado e que nda por se tornar seu próprio alimento.
Como um grande tradutor de afetos, o corpo do artista se faz ferramenta para operar
criações de novos mundos de imagens. Corpo-de-passagem de forças anônimas e
inumanas, o artista doa-se para sua obra, ela se avulta como um acontecimento
que se torna, ele próprio, o rio onde o artista se encontra mergulhado. Uma inversão,
então, acontece. Não mais é o homem e o rio, agora, é o rio no homem.
Gonzaga é um artista dessa linhagem. Produtor de um Fora do homem,
não se satisfaz em congurá-lo apenas como forma acabada. Procura, por sua
exploração sensível e intuitiva, o grande jogo do real, buscando nesse não apenas
aquilo que nos aparece como evidência. Gonzaga perscruta os caminhos do
avesso do homem, lançando-o para além do demasiado humano. Perfeito articu-
lador entre humano e inumano, esse artista nos lança a realidades transcenden-
tais. Fincando em nós a natureza antes de ser tornada humana, tece uma espé-
cie de narrativa da pré-história do homem, aponta, com suas mãos pensantes,
a complexidade de nossa constituição que, uma vez tendo se tornada humana,
esqueceu-se de suas multiplicidades animais, vegetais e minerais. O inumano
no homem é o que nos aponta a obra de Gonzaga que, como um narrador de
tempos ancestrais, funde-os para compor os tempos imemoriais de nossa espé-
cie. O não-homem no homem, tal como diria Blanchot, tal como lemos em Kafka.
Essas zonas de silêncio e, contudo, atuantes em nosso inconsciente primordial,
se tornam pulsantes para a obra de Gonzaga. Nesse sentido, não seria possível
deixar de lembrar aquele banho de rio a que ele, como ainda menino, se refere.
O lodo lamacento sob seus pés propiciou-lhe um acontecimento vital, o de sua
conexão com o caos criador. Desde então, ele se tornou o homem-rio, tendo o rio
e seu lodo assumido o comando de suas forças, querendo, em sua mudez, serem
tornados expressão. Gonzaga acorreu a esse chamado. Deu-lhe ouvidos e mais.
Dedicou sua vida ao mesmo. Espera e promessa, talvez, tenham sido as palavras
importantes que o impulsionaram. Sentiu seus pés em solo lamacento e de seu
3. BLANCHOT, Maurice. O livro por
vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
________, O espaço literário. Rio de
Janeiro: Rocco, 2011
4. KAFKA, Franz. A metarmofose.
São Paulo: Hedra, 2009.
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corpo envolto nas águas, sentiu que dali poderia surgir um
demiurgo, um criador de mundos, que não nos apressamos
em dizer surreais, mas fantásticos. As guras, saídas de
sua imaginação alagada e alargada e ainda lamacenta, nos
mostram o que aquele banho de rio apontou-lhe para uma
existência inteira: olhou, então, o mundo ao seu redor, espe-
cialmente para o da natureza, para as fases do dia, para a
seiva da terra, para as sementes e sua germinação, para
os curvos da natureza, dos corpos e dos aconchegos, para
a noite crispada por chifres, para o grande noturno, para o
orvalho, para os sons da oresta. Sentiu o aguilhão de seu
destino, o de fundir-se com essas matérias, o de problema-
tizá-las criticamente em suas gurações, o de tornar-se,
enm, uma espécie de mensageiro de um tempo esquecido
mas encarnado, encetou sua busca de um tempo perdido.
Como Proust, mas ao seu modo, Gonzaga tornou-se um
buscador daquilo que os processos de humanização zeram o próprio homem
esquecer de si próprio. Inventou imagens impregnadas dessa mensagem,
imagens de uma ausência operada pelo homem contra suas origens lamacen-
tas. Sua linguagem, sempre crítica, no entanto sempre foi também terna. Não há
gritos estridentes em suas formas, apenas uma germinação estranha brota das
mesmas, um contorno humano permite a ideia de um conteúdo animal e vege-
tal e ainda, a sua fantástica pequena mesa na qual se encontra pousada uma
pequena bigorna e da qual diz-se que se pode ouvir sons da natureza nua e cruel
onde se engendra a vida.
Suas guras têm verso e anverso. E ambos dife-
rem, como se nos mostrassem o direito e o avesso de
nossa visão, como se atestassem para o fato de que
somos duplos, mesmo quando queremos ser coeren-
tes e identitários. Em Gonzaga, encontramos imagens
que nos remetem ao político de nossa existência,
ao direito de ir e vir, que se traduzem em grandes e
sutis arcos de ferro postos no vazio do espaço. Sua
alusão aos ritos seminais e germinativos, ao desen-
volvimento da vida, não o impede de ver os próprios homens aprisionados em
grandes arcos de passagem.
Aliás, suas evocações ao mundo natural, sempre têm sua aparição em
contornos humanizados, indissociados da visão humana, do mundo humani-
zado, ao qual ele dispara, de forma transversal, suas echas. O ir e vir do homem
5. PROUST, Marcel. Em busca do
tempo perdido. O tempo redescoberto.
São Paulo: Globo, 1998.
Figura 02: GONZAGA, Luiz.
Os sons da floresta, em certos
momentos II. 1999. 1 Escultura
em bronze policromado, 94 x 72
x 39 cm. Fotografia: Pierre Yves
Refalo. Disponível em: http://www.
gonzagaartistaplastico.com.br/site.
asp?link=obras/1986_01.html_
Acesso em set.2017.
Figura 03: GONZAGA, Luiz.
Rito de passagem: o direito de
ir e vir. 2001. 1 Escultura em
bronze policromado, 32 x 53,5 x
23,5 cm. Fotografia: Pierre Yves
Refalo. Disponível em: http://www.
gonzagaartistaplastico.com.br/site.
asp?link=obras/1986_01.html_
Acesso em set.2017.
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refere-se ao postulado básico de sua obra: ir e vir no tempo, estar e não estar no
espaço, libertação das cadeias já signicadas, o homem, enm, traçado como
um por vir, como passagem, como devir.
Ler os signos do mundo de modo transcendental seria, ainda, o que temos
a dizer da obra de Gonzaga. Dizemos transcendental, porque não se trata de
uma busca transcendente-ideal ao mundo em que estamos afundados. Trata-
se, sim, de uma busca e de uma luta pela imanência, para fazer reuir aos rios
da existência humana o esquecimento daquilo que a funda e que também a
a-funda em um universo anônimo, impessoal e a-signicante. No mundo das
imagens de Gonzaga, vemos o mundo antes da linguagem, antes dos signica-
dos discursivos, temos o mundo dos signos da arte que extravasam as signi-
cações, as subjetivações e os juízos morais.
Nesse mundo de tais imagens, compartilhamos nossa existência como
matilha. Não se trata mais de um enunciado individual de um certo sujeito.
Agora, recua-se o nosso Eu a favor das quinze mil tribos que nos habitam, a
favor das potências anônimas que se tornaram nosso legado. Somos, com
Gonzaga, animais, vegetais e minerais, somos germinação de dias, de noites,
de crepúsculos e de auroras, somos a mesa onde se engendra a vida, somos a
passagem entre o ir e vir do que somos e do que estamos nos tornando, somos,
enm, também homem-rio, homem-semente, homem nem masculino nem femi-
nino. Somos potências de devir, reconciliados com nossas forças, apaziguados
em nossas conquistas, mas, sempre e sempre, ainda somos e seremos seres da
espera e da promessa. Uma aurora espera os homens, a cada um e a cada um
de seus tempos, a sua aurora. Devemos também mergulhar no rio da infância.
Figura 04: GONZAGA, Luiz. Série
fases do dia. 2002. Esculturas
em resina e ferro, 245 x 159 x 20
cm cada. Fotografia: Pierre Yves
Refalo. Disponível em: http://www.
gonzagaartistaplastico.com.br/site.
asp?link=obras/1986_01.html_
Acesso em set.2017.
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REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
_____, O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
GONZAGA, Luiz. Seminal. Museu de Arte do Rio Grande do Sul
Ado Malagoli/ Secretaria da Cultura/RS. 2002.
KAFKA, Franz. A metarmofose. São Paulo: Hedra, 2009.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. O tempo
redescoberto. São Paulo: Globo, 1998.
Tania Galli Fonseca
Professora Titular do Instituto de Psicologia da UFRGS,
docente e pesquisadora do Programa de Pós-Gradu-
ação em Psicologia Social e Institucional/UFRGS,
pesquisadora do CNPQ e autora de diversos livros e
coletâneas. Coordena o grupo de pesquisa Corpo, Arte
e Clínica (www.ufrgs.br/corpoarteclinica), e a Coleção
Cartograas, editada pelas editoras UFRGS e Sulina.
(*) texto submetido em 2017.
Como citar:
FONSECA, Tania Galli. Estranha Beleza e a Beleza do
Estranho. Porto Arte: Revista de Artes Visuais. Porto
Alegre: PPGAV-UFRGS, v. 22, n. 36, p.203-209, jan.-jun.
2017. ISSN 0103-7269 | e-ISSN 2179-8001