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Gênero e esteriotipação em Sergio Y. vai à América: Cecilia Coutts em foco

Authors:

Abstract

Materializamos neste ensaio uma leitura da representação da personagem Cecilia Coutts no romance Sergio Y. vai à América, uma narrativa de autoria de Alexandre Vidal Porto, lançada em 2014. Cecilia Coutts ganha nosso interesse na medida em que foi construída em primeiro grau pelo narrador, o psiquiatra Armando, cuja vaidade foi ferida pela percepção da impossibilidade da onipotência da análise clínica, dado a realidade suscetível da trapaça da linguagem – como já havia observado Barthes (1989). O olhar masculino psicologizante, presente na estruturação das personagens, objetifica Cecilia em razão de que a anula enquanto profissional ao se deter na descrição do seu corpo sensual, que distrai e desconcerta o psicólogo, conforme assegura o narrador. É sobre a construção desta imagem sexualizada oriunda da impossibilidade de domínio, por parte do narrador-personagem, sobre esta profissional de sucesso que nos deteremos nesta análise
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Ensaios
Exceto onde especicado diferentemente, a matéria publicada neste periódico é licenciada
sob forma de uma licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
http://dx.doi.org/10.15448/1983-4276.2017.2.23713
Gênero e esteriotipação em Sergio Y. vai à América:
Cecilia Coutts em foco
Gender and stereotype in Sergio Y. vai à America: Cecilia Coutts in focus
Tânia Regina OliveiRa RamOs
maRina siqueiRa DRey
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo: Materializamos neste ensaio uma leitura da representação da personagem Cecilia
Coutts no romance Sergio Y. vai à América, uma narrativa de autoria de Alexandre Vidal Porto,
lançada em 2014. Cecilia Coutts ganha nosso interesse na medida em que foi construída em
primeiro grau pelo narrador, o psiquiatra Armando, cuja vaidade foi ferida pela percepção
da impossibilidade da onipotência da análise clínica, dado a realidade suscetível da trapaça
da linguagem – como já havia observado Barthes (1989). O olhar masculino psicologizante,
presente na estruturação das personagens, objetica Cecilia em razão de que a anula enquanto
prossional ao se deter na descrição do seu corpo sensual, que distrai e desconcerta o psicólogo,
conforme assegura o narrador. É sobre a construção desta imagem sexualizada oriunda da
impossibilidade de domínio, por parte do narrador-personagem, sobre esta prossional de
sucesso que nos deteremos nesta análise.
Palavras-chave: Sergio Y. vai à América; Gênero; Transexualidade; Mulher; Literatura contemporânea
Abstract: In this essay we materialize a reading of the representation of the character Cecilia
Coutts in the novel Sergio Y. vai à America, an narrative written by Alexandre Vidal Porto,
launched in 2014. Cecilia Coutts wins our interest by the fact that she was built in rst degree by
the narrator, the psychiatrist Armando, whose vanity was hurt by the perception of the inability
of the omnipotence of clinical analysis, given the likely reality of the language’ cheating
as already noted Barthes (1989). The psychologizing male gaze, present in the structure of
the characters, objecties Cecilia, focusing in the description of her sensual body, a body
which distracts and disturbs the psychologist, as assures the narrator, thus, nullifying her as
professional. It’s on the building of this sexualized image originated by the impossibility of the
domain of this successful professional by the narrator – character, that we will concentrate in
this analysis.
Keywords: Sergio Y. vai à América; gender; Transgenderism; Woman; Contemporary literature
Introdução
Para interpretar o romance Sergio Y. vai à América
e reetir sobre aquilo que se considerou uma imagem
objeticadora da psiquiatra Cecilia Coutts, este ensaio
foi dividido em três partes. Coube à primeira a reexão
acerca da literatura brasileira contemporânea a m de
examinar a conjuntura em que está inserido o romance
em questão. Para isso, apropriamo-nos de alguns dos
postulados de Beatriz Resende (2004, 2008) e de Karl
Eric Schollhammer (2009, 2012) por acreditarmos que
as investigações empreendidas por estes pesquisadores
apresentam interessantes considerações a respeito da
literatura brasileira atual.
Em seguida, ocupamo-nos em abordar o romance
de maneira geral, na medida em que identicamos
a importância de contextualizar o recorte a que nos
dispomos, dado a ausência de fortuna crítica em torno
desta narrativa. Ainda, com intuito de tocar àquilo que
foi identicado como “novo realismo” na literatura
contemporânea, procuramos traçar um paralelo entre
a temática do livro com uma demanda social bastante
emergente: a discussão de identidade de gênero. Assim,
apresenta-se algumas considerações no tocante ao Projeto
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de Lei de Identidade de Gênero (2013), de autoria dos
deputados Érika Kokay e Jean Wyllys.
Em um terceiro momento, partimos para uma
leitura mais afunilada do romance; esta se dedica à
representação da personagem Cecilia Coutts. Em vista
disso, foram resgatadas considerações da professora
e pesquisadora Regina Dalcastàgne (2010, 2012) em
razão de que acreditamos que os resultados quantitativos
de sua pesquisa são signicativos para as reexões que
dizem às minorias na literatura atual. Seguidamente,
examinamos a realização da personagem supracitada
para, nalmente, nas Considerações Finais deste trabalho,
organizar uma síntese das reexões alcançadas.
1 Desenvolvimento
1.1 Do lugar de enunciação desta literatura
É pela fertilidade, qualidade e multiplicidade que
a literatura brasileira contemporânea desperta interesse,
assegura a crítica, professora e pesquisadora Beatriz
Resende (2008). Segundo ela, novas editoras e novos
escritores aparecem dia a dia, o que justicaria a quantidade
abundante de publicações que se tem atualmente.
Isso porque esses novos sujeitos não aguardam o aval
das clássicas instâncias de autoridade, a academia e o
mercado, para publicarem. No entanto, engana-se quem
intui que a profusão de obras resulta em uma produção
desprovida de cuidado, pelo contrário, “Em praticamente
todos os textos de autores que estão surgindo revela-se, ao
lado da experimentação inovadora, a escrita cuidadosa, o
conhecimento das muitas possibilidades de nossa sintaxe
e uma erudição inesperada [...]” (RESENDE, 2008, p. 17).
Soma-se a estas questões a realidade heterogênea desta
produção, característica que “[...] se revela na linguagem,
nos formatos, na relação que se busca com o leitor [...]”
(RESENDE, 2004, p. 18).
Nesta conjuntura, um evidente e relevante deslo-
camento ca posto, atenta a autora, o de que a escrita
contemporânea estabelece
[...] formas de ruptura com heranças ou patrimônios
reais e simbólicos que temos carregado, com tradições
culturais tributárias de idealizações interessadas
em buscar legitimação pela aproximação aos
modelos canônicos, próximas a reconhecimentos de
subalternidade construídos por valores eurocêntricos
que organizam nosso passado cultural (RESENDE,
2014, p. 13).
Dessa forma, abandona-se o método tradicional de
buscar “o melhor” da literatura europeia para se elaborar
outra arte que não eco daquela vanguarda. Assim, essa
literatura passa a ser mais democrática, convergindo com
uma dinâmica global, em vez de se circunscrever a uma
tradição restrita.
Mesmo nessa possibilidade aberta e heterogênea de
produção, Beatriz Resende não deixa de identicar uma
constante:
A ruptura com a tradição realista da literatura, não pelo
uso de recursos ou formatos próprios da cção não
realista como o absurdo ou o real-imaginário latino-
americano, mas pela apropriação do real pelo ccional
de formas diversas, com a escrita literária rasurando
a realidade que, no entanto, a incorpora (RESENDE,
2014, p. 14).
Esta recorrência também é observada por outros
teóricos que se debruçam sobre a escrita contemporânea,
a exemplo do professor e pesquisador Karl Eric
Schollhammer, quando defende que a literatura atual
inscreve um novo realismo expresso
[...] pela vontade de relacionar a literatura e a arte
com a realidade social e cultural da qual emerge,
incorporando essa realidade esteticamente dentro da
obra e situando a própria produção artística como
força transformadora. Estamos falando de um tipo de
realismo que conjuga as ambições de ser “referencial”,
sem necessariamente ser representativo, e ser, si-
multaneamente, “engajado”, sem necessariamente
subscrever nenhum programa político ou pretender
transmitir de forma coercitiva conteúdos ideológicos
prévios (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 54).
Assim, esta proposta deixa para trás a imagem do
realismo histórico, que se aproxima de uma alegoria
pictórica do visível, para registrar formas de realismo
que buscam visualidades. Isto é, no lugar de reivindicar
verossimilhança por meio de abundâncias descritivas,
passa-se a valorizar a presença performática e transfor-
madora da linguagem.
Este movimento pode ser compreendido pelo
sentimento de anacronia, para usar os termos de Giorgio
Agambem (2009), experimentado por aquele que é
contemporâneo. Anacronia, vale ressaltar, não em uma
perspectiva vulgar, no sentido de “dar as costas” para o seu
tempo e se deixar tomar por outro, mas em uma proposta
em que o eu, no meu próprio tempo, toma consciência
dos outros; é por isso que o contemporâneo é capaz de
captá-lo, o tempo, por reconhecer nele uma defasagem,
uma diferença. Nas palavras de Agambem (2009, p. 59,
grifos do autor): “A contemporaneidade, portanto, é
uma singular relação com o próprio tempo, que adere
a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este
adere através de uma dissociação e um anacronismo.”
A este respeito, Shollhammer (2012, p. 19) defende que
204 Ramos, T. R. O., Drey, M. S.
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O escritor contemporâneo parece ser motivado por
uma grande urgência. A urgência de se relacionar
com a realidade histórica, mesmo reconhecendo a
impossibilidade de captá-la na sua especicidade
atual, em seu presente. Daí que os escritores se
sentem anacrônicos em relação ao presente, e passam
a aceitar que sua “realidade” mais real só poderá ser
reetida na margem e nunca enxergada de frente ou
capturada diretamente. A crítica da literatura brasileira
contemporânea ressalta insistentemente o traço da
presenticação na produção atual. Expressa-se no
imediatismo de seu próprio processo criativo, na
facilidade de chegar da escrita à publicação por via da
divulgação digital que muitas vezes antecipa a chegada
ao papel. A prosa gira em torno de temas próximos no
tempo e no espaço, daquilo que nos acontece agora,
da experiência de pessoas e de grupos da atualidade
com traços fortemente biográcos ou autobiográcos.
Mas a procura do presente também é percebida na
ansiedade de articular e de intervir de modo efetivo
sobre uma realidade presente conturbada.
Fica posto, em vista disso, que a literatura con-
temporânea não poderia abdicar de pautas atuais e
pertencentes à sociedade moderna, dado a possibilidade
do contemporâneo de captar seu tempo, justamente pela
defasagem, pela diferença, pelo supracitado anacronismo.
Por conseguinte, engajamento e intimismo entrelaçam-se
em prol de narrativas heterogêneas que se dispõem a
problematizar temáticas comuns a esta presenticação.
É nessa conjuntura que se inscreve o romance Sergio
Y vai à América quando se dispõe a contar a história de um
psiquiatra que retorna, por intermédio da memória, a um
antigo caso clínico que, bem verdade, nunca o abandonou.
Exílio, relação de gênero, felicidade, testemunho, poder
monetário e identidade sexual imbricam-se nesta narrativa
que responde, impreterivelmente, ao século XXI.
1.2 Do romance
Arriscamos armar que se anuncia na capa a mais
objetiva síntese deste romance, que desde o título destaca
um personagem crucial para o desenrolar do enredo, a
julgar pela exteriorização do nome: Sergio. Todavia, a
proteção à identidade deste sujeito, sugerida pelo “Y.” do
sobrenome, insinua uma ambientação de segredo, como
uma marca que registra a impossibilidade do leitor em
acessá-lo senão aceitando o convite da narrativa, íntimo
e privado, uma vez que este encontro se dará entre o
leitor e a obra. Esse registro, portanto, resume um pacto
de sigilo que, posteriormente, quando na leitura, será
identicado na relação entre médico e paciente. Junta-se
a isso, o trocadilho imperdível que a inicial do sobrenome
permite ao associar o conceito dos cromossomos sexuais Y
e X à transexualiade discutida na obra, um corpo nasce Y
enquanto a identidade do seu sujeito é X. Ainda, há o fato
do personagem ir à América, e não à Nova York, quer dizer,
apenas na “terra prometida” encontra-se a felicidade; o
sonho americano vive. Para nalizar, dois nomes próprios:
a logomarca da Companhia Das Letras registra o espaço
de prestígio através do qual o autor, o diplomata Alexandre
Vidal Porto, irá se enunciar. Está mapeado o romance.
Ao seguir narrativa adentro, todavia, ca claro
que para cada rota proposta outros tantos caminhos
existirão, pois o narrador, a contar setenta anos de idade,
revela a história com base no instrumento da memória,
reconhecendo que esta “[...] apaga e seleciona.” (PORTO,
2014, p. 67). Assim, fragmento e lacuna são reivindicados
por via da fabulação, uma vez que a memória requer uma
participação emocional àquilo que se deu no passado,
sendo, por isso, parcial, incompleta e tendenciosa, pois
ela “[...] faz com que os dados caibam em esquemas
conceituais, recongura sempre o passado tendo por base
as exigências do presente.” (ROSSI, 2010, p. 28).
Sob esta condição, o leitor é convidado a compartilhar
os desdobramentos que Sergio Y. desencadeou na vida do
experiente e renomado psiquiatra, Armando, cuja vaidade
foi ferida pelo abandono do paciente sem, antes disso,
ter notado sua disforia sexual; realidade que conheceu
apenas quando na morte de Sergio, que se revelou,
portanto, Sandra. É diante deste fracasso prossional que
o psiquiatra, inconformado, sai em busca da narrativa de
vida daquele paciente e, posteriormente, dá-se ao direito
de compartilhar esta história com a justicativa de que,
com isso, buscava se tornar “[...] um médico melhor e um
ser humano mais íntegro.” (PORTO, 2014, p. 17).
O romance em questão é o segundo livro de Alexandre
Vidal Porto, que em 2005 publicou Matias na Cidade,
pela Editora Record. Sergio Y. vai à América ganhou
destaque pela primeira vez em 2012 quando foi vencedor
do Prêmio Paraná de Literatura daquele ano, concurso
que objetiva a seleção de livros inéditos “[...] que não
tenham sido objeto de qualquer tipo de apresentação,
veiculação ou publicação parcial ou integral antes da
inscrição no Concurso até a divulgação do resultado e
entrega dos prêmios.” (EDITAL PRÊMIO PARANÁ DE
LITERATURA, 2012). Com isso, diante da visibilidade
do Prêmio Manoel Carlos Karam, denominação da
condecoração destinada à primeira colocação na categoria
romance, Alexandre assinou contrato com a Companhia
das Letras e, em 2014, publicou a narrativa.
A obra conta com 181 páginas nas quais 21 capítulos
se dividem. Curtos e não numerados, norteiam o leitor
pelos títulos dúbios que, por um lado, permitem o
acesso geral do conteúdo que ali se materializa e, por
outro, cria uma espécie de jogo com os sentidos móveis
dos vocábulos, de forma que a interpretação, portanto,
oscila entre a realidade conotativa e denotativa da língua.
Exemplicamos esta questão com o primeiro capítulo, no
qual a ambiguidade é construída com auxílio do layout
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da folha, que contém o título no topo do anverso: “Tudo
o que você precisa saber sobre mim”, seguido de uma
página em branco. Somente na folha seguinte o narrador
inicia o relato acerca de si, cujo discurso ele mesmo
organiza, vale lembrar.
Dessa forma, o “tudo” que o leitor deve saber será
mediado pelo narrador, conforme suas pretensões. Quer
dizer, o título na página em branco pode sugerir que o
leitor não terá acesso ao que realmente seria pertinente
tomar conhecimento. Parece-nos possível ainda, em outra
aproximação, relacionar o silêncio à psiquiatria como se
fosse uma pausa de um sujeito para organizar a fala, no
caso, a do próprio narrador que se coloca no divã na busca
por compreensão e superação daquilo que se congurou
como um trauma para sua vida, inesperado e decisivo
para um prossional renomado de 70 anos. O movimento,
portanto, é previsto pela análise clínica de orientação
psicanalítica – não por acaso, corrente teórica na qual o
personagem se inscreve – que reconhece a fala do sujeito
sobre o outro como uma fala de si mesmo, isto é, quando
o sujeito fala do outro ele está falando de si.
O foco narrativo em primeira pessoa, cadenciado
e envolvente, conquista pelo caráter confessional que o
relato detém, fazendo do leitor quase um amigo a quem
o narrador cona um segredo. O romance, a nosso juízo,
é um típico caso de “escrita cuidadosa” que conhece
as “muitas possibilidades de nossa sintaxe”, para usar
os termos de Beatriz Resende (2008, p. 18). Alexandre
Vidal Porto faz jus à condição de diplomata que, do lugar
de erudição de onde fala, tem consciência exata dos
meandros da linguagem.
A obra também se insere no rol de narrativas que
trabalham com a noção do novo realismo, sobre o qual fala
Karl Eric Schollhammer (2009, p. 53-54), na medida em
que não se perde na proposta do “[...] realismo tradicional
e ingênuo em busca da ilusão de realidade.” e nem em
“[...] um realismo propriamente representativo” ao trazer
para o enredo o tema da transexualidade, ainda tão
caro e deturpado no país. Exemplo disso é a repercussão
que o Projeto de Lei de Identidade de Gênero (PL
5002/2013) ou Lei João Nery1, de autoria dos deputados
e Érika Kokay (PT/DF) e Jean Wyllys (PSOL/RJ),
vem recebendo. O projeto, que dispõe sobre o direito à
identidade de gênero e altera o artigo nº 58 da Lei 6.015
de 1973, dentre outras medidas, decreta:
Artigo 3º Toda pessoa poderá solicitar a reticação
registral de sexo e a mudança do prenome e da
imagem registradas na documentação pessoal, sempre
que não coincidam com a sua identidade de gênero
auto-percebida.
1 O Projeto foi assim nomeado em homenagem a João W. Nery primeiro
trans a ser operado no Brasil.
Artigo 4º Toda pessoa que solicitar a reticação
registral de sexo e a mudança do prenome e da
imagem, em virtude da presente lei, deverá observar
os seguintes requisitos: I – ser maior de dezoito (18)
anos; II – apresentar ao cartório que corresponda uma
solicitação escrita, na qual deverá manifestar que, de
acordo com a presente lei, requer a reticação registral
da certidão de nascimento e a emissão de uma nova
carteira de identidade, conservando o número original;
III – expressar o/s novo/s prenome/s escolhido/s para
que sejam inscritos. [...]
Artigo 5º Com relação às pessoas que ainda não
tenham dezoito (18) anos de idade, a solicitação do
trâmite a que se refere o artigo 4º deverá ser efetuada
através de seus representantes legais e com a expressa
conformidade de vontade da criança ou adolescente,
levando em consideração os princípios de capacidade
progressiva e interesse superior da criança, de acordo
com o Estatuto da Criança e do Adolescente (KOKAY;
WILLYS, 2013, p. 01).
Segundo seus redatores, este projeto baseia-se na
Lei 26.743 da Argentina, a mais signicativa e avançada
no mundo em termos de identidade de gênero “[...]
que reete os debates políticos, jurídicos, losócos e
éticos travados a respeito do assunto nos últimos anos”
(KOKAY; WILLYS, 2013, p. 12). Em vigor desde o ano
de 2012, foi aprovada por unanimidade no Senado e pela
maioria na Câmara dos Deputados. Tendo, ainda, o apoio
da presidenta Cristina Kirchner. No Brasil, entretanto, vem
sendo alvo de deturpações e simplicações que apavoram
os desavisados e alimentam os discursos de intolerância
dos fundamentalistas que chegaram a alegar, conforme
relata o deputado Jean Wyllys em sua página ocial na
internet <http://jeanwyllys.com.br>, que o projeto tinha
a intenção de obrigar as crianças a mudarem de sexo, ou
que os pais, a partir dela, poderiam obrigar seus lhos a
fazerem esta mudança.
Em justicativa ao Projeto os deputados argumentam:
Travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais
não têm como se esconder em armários a partir de
certa idade. Por isso, na maioria dos casos, mulheres
e homens trans são expulsos de casa, da escola, da
família, do bairro, até da cidade. A visibilidade é
obrigatória para aquele cuja identidade sexual está
inscrita no corpo como um estigma que não se pode
ocultar sob qualquer disfarce. E o preconceito e a
violência que sofrem é muito maior. Porém, de todas as
invisibilidades a que eles e elas parecem condenados,
a invisibilidade legal parece ser o ponto de partida.
[...]
Falamos de pessoas que se sentem, vivem, se
comportam e são percebidas pelos outros como
homens ou como mulheres, mas cuja identidade de
gênero é negada pelo Estado, que reserva para si a
exclusiva autoridade de determinar os limites exatos
206 Ramos, T. R. O., Drey, M. S.
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entre a masculinidade e a feminidade e os critérios
para decidir quem ca de um lado e quem do outro,
como se isso fosse possível. Travestis, transexuais e
transgêneros sofrem cada dia o absurdo da lei que lhes
nega o direito a ser quem são. E andam pelo mundo
com sua identidade ocialmente não reconhecida,
como se, das profundezas da história dos nossos
antepassados losócos gregos, Crátilo voltasse a
falar para Hermógenes: “Tu não és Hermógenes, ainda
que todo o mundo te chame desse modo” (KOKAY;
WILLYS, 2013, p. 06-07).
Ciente desta realidade marginal, Alexandre Vidal
Porto concebe Sandra fora do país. Mais do que isso,
estrutura seu romance de forma que o mote do enredo seja
a transexual, mas que, efetivamente, a própria narração
de Armando seja o objeto central no livro. Quer dizer,
nem na obra, a realidade trans pode ser lida no centro,
nesse sentido, parece-nos possível identicar a construção
de uma dupla negação, intencionando demarcar que não
basta a visibilidade, ela precisa estar acompanhada da
legitimidade para que possa fazer a diferença.
É com essa sensibilidade que o novo realismo quer se
fazer na obra, o impacto transformativo não existe pela via
da hostilidade física a qual Sandra poderia ter sido exposta
nas ruas violentas e transfóbicas de São Paulo. Ele existe,
por exemplo, nas declarações dos pais da jovem que, ricos
e instruídos, se veem inconformados com a identidade
de gênero da lha: “Eu gerei duas monstruosidades: um
anencéfalo e um transexual.” (PORTO, 2013, p. 155),
declarou o pai de Sandra a Armando. “Quando soube da
sua transexualidade, meu primeiro pensamento foi de
fracasso. Eu gerava coisas imperfeitas, incompletas. Meu
ventre não era profícuo. Era mal-acabado, sub-humano,
pensei.” (PORTO, 2013, p. 174), revelou a mãe de Sandra,
que para os pais volta a ser Sérgio depois da morte –
prova explícita de que os antepassados não precisam vir
tão das profundezas do tempo, como satirizou o texto do
Deputado Jean Wyllys e da Deputada Érika Kokay, para
nos dizer quem somos.
1.3 Dos desdobramentos até Cecilia
A armação anteriormente feita de que a história
de Sergio/Sandra serve como motivação para que o
narrador teça uma narrativa sobre si e se faça, ele mesmo,
o eixo central do romance, vira alegoria para a fala da
pesquisadora e professora Regina Dalcastàgne (2010,
2012) acerca da representação das minorias na literatura,
quando diz que
O silêncio dos grupos marginalizados – entendidos
em sentido amplo como todos aqueles que vivenciam
uma identidade coletiva que recebe valoração negativa
da cultura dominante, sejam denidos por gênero,
etnia e cor, orientação sexual, posição nas relações de
produção, condição física ou outro critério – é coberto
por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que buscam
falar em nome desses grupos [...]. (DALCASTAGNÈ,
2010, p. 42).
A alegação da pesquisadora diz respeito à autoria,
evidentemente, o que também se encaixa no caso do ro-
mance em questão, já que Alexandre Vidal Porto fala
sobre o lugar da transexualidade e não do lugar da transe-
xualidade; mas, insistimos, ainda, em tomar a declaração
de Regina Dalcastàgne de forma metafórica para assinalar
uma segunda sobreposição de vozes, por assim dizer, qual
seja a de que o romance faz uso de outro personagem para
narrar a experiência da transexualidade, em vez da transe-
xual falar, ela mesma, de si. Ou seja, este sujeito não se
enuncia diretamente, pois alguém toma a sua voz, espe-
culando a respeito de sua vida, diculdades e felicidades,
é Armando que se torna mediador deste lugar de existir.
A consideração a respeito da representação dos
grupos marginalizados na literatura brasileira foi tecida
pela pesquisadora após o resultado de uma investigação
que empreendeu na Universidade de Brasília devido à
motivação do que identicou como um “[...] sentimento
de desconforto causado pela constatação da ausência de
dois grandes grupos em nossos romances: dos pobres
e dos negros.” (DALCASTÀGNE, 2012, p. 147). Para
investigar esta invisibilidade, a pesquisadora se propôs
a mapear o romance brasileiro contemporâneo cujas
obras foram publicadas, de 1990 a 2004, pelas editoras
Companhia das Letras, Record e Rocco, recorte editorial
que se justicou pelo fato destas gurarem como
“[...] editoras centrais no campo literário do período.”
(DALCASTÀGNE, 2012, p. 151).
É evidente que pesquisas como esta abrem
precedente para diversos questionamentos, na medida
em que as investigações literárias dicilmente recorrem
a métodos quantitativos, pois a literatura comporta um
mundo sem m de variáveis que, ignoradas, podem
resultar em uma simplicação que descaracterizaria sua
produção. Entretanto, nossa intenção é a de dar luz a certas
regularidades que se fazem relevantes para o contexto
em que vivemos e, nesse sentido, não se pode ignorar,
por exemplo, o fato da pesquisa supracitada identicar
81% das personagens como heterossexuais, 79,8% como
brancas e, ainda, 71,1% dos protagonista sendo homens.
É pertinente, ainda, contextualizar esta investigação
no que toca às pretensões de Regina Dalcastàgne (2012,
p. 149), que além de pesquisadora foi coordenadora do
projeto. Diz ela:
[...] a pesquisa não comunga de nenhuma noção
ingênua da mimese literária – que a literatura deve
servir como espelho da realidade, deve ser o retrato el
do mundo circundante ou algo semelhante. O problema
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que se aponta não é o de uma imitação imperfeita
do mundo, mas a invisibilização de grupos sociais
inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas
sociais. A literatura é um artefato humano e, como
todos os outros, participa de jogos de força dentro da
sociedade. Essa invisibilização e esse silenciamento
são politicamente relevantes, além de serem uma
indicação do caráter excludente de nossa sociedade
(e, dentro dela, de nosso campo literário).
É, portanto, considerando esta realidade que
reconhece a literatura em um contexto histórico, situado
e datado que insistimos em admitir a relevância desta
investigação quando reivindicamos um dos resultados
da pesquisa em questão para discorrermos acerca de
nossa leitura da personagem Cecilia Coutts. Nele, então,
conclui-se que “[...] a narrativa brasileira contemporânea
‘moderniza’ estereótipos de gênero, em vez de romper
com eles.” (DALCASTÀGNE, 2010, p. 62). Esta
consideração está ciente de que a condição feminina é
múltipla, no sentido de que existem variáveis como classe
social, cor, prossão, orientação sexual, contexto cultural
e idade, por exemplo, que contribuem para estabelecer
distanciamentos relevantes entre as mulheres. Ou, nas
palavras de Judith Butler (2003, p. 20), “[...] se alguém
‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse
alguém é [...].”
No entanto, é exatamente à frente desta hetero-
geneidade que se edica a armativa de Regina
Dalcastàgne, uma vez que a avaliação foi cumprida
diante dos modelos socialmente estabilizados os quais
ignoram a pluralidade do ser mulher em prol de discursos
que reverberam padrões historicamente construídos,
subordinados a construtos machistas que negam a
autonomia e a multiplicidade da mulher. Assim, nesse
contexto, por exemplo, são identicadas as mulheres
para casar, as mulheres para se divertir e assim por
diante, como se a liberdade sexual de cada uma servisse
de medida para se identicar aquelas dignas, ou não, do
amparo do sujeito soberano masculino.
Em vista disso, estereotipar, acima de tudo, é uma
armação de controle sobre o corpo da mulher e, por isso,
uma ação política. Nela, o corpo feminino é tomado como
um território no qual ininterruptas disputas são travadas
e distintos discursos reclamados, como se ele, o corpo,
fosse uma porção de terra recém descoberta pela qual
diferentes países guerrilham.
Esses discursos ganham respaldo na medida em
que se formam em lugares legítimos de enunciação, a
exemplo dos universos jurídico/legal, médico, econômico
e midiático. A grande questão é que, em sua maioria, esses
espaços são ocupados em maior número por homens, o
que signica que as normatizações de distintos padrões,
como o sexual, o emocional e o intelectual serão me-
diadas pelo ltro social deste lugar de fala, o do homem.
Dessa forma, não importa o quão solidários com a rea-
lidade feminina eles sejam, pois nunca estarão neste
papel social e, por isso, nunca serão tocados por
esta experiência. No caso especíco, por mais que
Alexandre Vidal Porto integre um grupo marginalizado
pela sociedade, os dos homossexuais, e, dessa forma,
compreenda o sentimento de estigma, continuará
ocupando o papel de homem (branco, culto e bem
sucedido, diga-se de passagem).
Na esfera ccional, a representação de Cecilia
Coutts vem do lugar de um psiquiatra de renome que
se apresenta como “[...] um dos melhores médicos
desta cidade.” (PORTO, 2014, p. 11). “Esta cidade” é
São Paulo, local em que reside e trabalha Armando.
Viúvo, tem uma lha, Mariana, que mora em Chicago
e é casada com um norte-americano. O psiquiatra,
por conseguinte, vive sozinho em um apartamento de
quatro quartos no rico bairro Higienópolis; por mais
que mencione a vontade em ir morar na casa da praia,
não fossem os pacientes, pois “Médico sem paciente é
ninguém.” (PORTO, 2014, p. 15), concorda o narrador
com a frase que o pai, e também médico, dizia quando
estava vivo.
Armando, ainda, não perde a chance de informar
o leitor a respeito de sua distinção intelectual, notada
desde a juventude quando concluiu a graduação e foi
aceito em um hospital fora do país e de renome: “[...] por
conselho de um professor meu na USP, candidatei-me
a uma vaga de residente no Mount Sinai Hospital, em
Nova York. Nessa época, era muito raro que aceitassem
estrangeiros. Para a surpresa de alguns, mas não de
todos, me aceitaram.” (PORTO, 2014, p. 83).
Com informações desta ordem, o leitor vai
apreendendo o discurso do narrador e, no curso do
romance, sente-se compartilhando Nova York ao lado
dele, de forma que a narrativa engendra realizações
verossímeis no tocante às cidades norte e sul americanas
sem, todavia, perder-se em descritivismos assépticos e
miméticos. Dessa maneira, o realismo dos lugares é
construído através dos pequenos gestos de intimidade,
reconhecidos nos sujeitos pertencentes àqueles lugares,
no caso, Nova York e São Paulo.
Ao longo da narrativa, o leitor ainda se depara com
distintas passagens em que o narrador reconhece sua
vaidade, tanto abertamente quando, por exemplo, declara:
“Orgulho-me do reconhecimento que me concedem.
Sou vaidoso, mas isso não me incomoda. Sempre achei
a modéstia uma qualidade superestimada.” (PORTO,
2014, p. 12), quanto nas entrelinhas, como quando
revela que ao ser abandonado por um paciente sentia
“[...] uma infelicidade profunda: infantil e injusticável.
Algo semelhante à impotência que sente uma criança ao
208 Ramos, T. R. O., Drey, M. S.
Navegações
, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 202-210, jul.-dez. 2017
descobrir que seu brinquedo favorito foi quebrado por
outra criança mais nova, sem que nada se possa fazer a
respeito.” (PORTO, 2014, p. 16).
Nesta revelação, parece-nos impossível não
reconhecer uma signicação dúbia, já que, por um lado,
o narrador estaria admitindo, de maneira geral, não
conseguir lidar com o desinteresse dos pacientes quando
estes ainda são objetos de sua curiosidade e, por outro
lado, indicaria uma referência direta ao caso de Sergio Y.
Ambas as considerações parecem-nos plausíveis em razão
de que aquela se torna compreensível diante de um lugar
de fala de um prossional que faz questão de se incluir
no rol dos melhores da cidade, como se a inconformação
quisesse dizer: “você sabe com quem está falando?”. E
esta, por sua vez, dedica-se a registrar, nas entrelinhas,
o caso de Sergio Y., pois: i) o paciente suspendeu as
consultas com Armando; ii) Sergio passou a se consultar
com outra psiquiatra, Cecilia Coutts; iii) Cecilia é mais
nova que Armando; iv) Armando cou obcecado pelo
caso; e v) Sergio morreu.
Quer dizer, devido à xação de Armando por Sergio,
o paciente pode ser lido como o seu “brinquedo favorito”,
o qual foi “quebrado” por Cecilia, “a criança mais nova”,
devido à simplicidade com que ela lidou com o caso,
isto é, metaforicamente, a médica quebra a magia ao
não encontrar problemas no caso da transexualidade em
questão, tão caro para o narrador que não pode fazer nada
em virtude de seu paciente-mistério estar morto. Morto,
aliás, antes mesmo de ser empurrado pela janela, morto
desde que decidiu ir à Nova York assumir Sandra, a qual o
narrador raramente se dirige, pois reforça para o leitor sua
diculdade em admiti-la. Assim, ao longo do romance,
delineia uma identidade masculina para a personagem,
reforçada com o nome biológico e com os pronomes no
masculino.
Cecilia ganha vida no relato do psiquiatra quando
este começa uma jornada obsessiva atrás da narrativa
existencial do ex-paciente, empreitada motivada pela
revelação de que ele havia morrido dois anos após se
assumir como Sandra. Dessa forma, em um contexto que
ultrapassa a barreira da razoabilidade entre curiosidade e
xação, Armando telefona à mãe da recém-morta a m
de colher informações para compreender este caso não
diagnosticado. Deste telefonema, consegue o e-mail da
psiquiatra a qual Sandra recorreu quando passou a viver
em Nova York.
Com 30 anos a menos que Armando, Cecilia é uma
terapeuta bem sucedida, conclusão que o leitor chega
após reunir os farrapos de informação deixados pelo
narrador acerca desta carreira sólida, a exemplo do amplo
consultório em um bairro de status na cidade, da agenda
cheia e dos congressos em que participa. Indício velado da
consciência desta competência, ainda, é o temor relatado
pelo narrador diante da possibilidade do encontro pessoal
com a médica:
Posterguei esse dever quanto pude. Três dias antes
de minha partida, no entanto, escrevi-lhe um e-mail
apresentando-me e perguntando se, durante o curto
período que eu passaria em Nova York, ela estaria
disponível para uma conversa rápida sobre um ex-
paciente em comum.
Ao procura-la, dava início ao cumprimento de meu
dever prossional. No fundo, porém, esperava que a
pouca antecedência do pedido inviabilizasse qualquer
possível encontro.
A despeito de minha esperança, na manhã seguinte
ao envio de minha consulta, encontrei a seguinte
mensagem de Cecilia Coutts na minha caixa de
entrada:
Caro Dr. Armando2,
Teria prazer em encontrá-lo para um café. O senhor
poderia vir ao meu consultório nesta quinta-feira, às
dez horas da manhã?
Cordialmente,
C. Coutts
Médica Ph. D.
73, Barrow Street, NY, NY – 10014
O tom amistoso de sua mensagem me intrigou. Que
tipo de mulher ela seria? (PORTO, 2014, p. 89-90).
Salienta-se a preocupação do narrador em registrar
dúvida frente ao tipo de mulher, e não de médica,
que Cecilia seria. Mais do que isso, chama atenção a
suposta motivação que resultou nesta indagação: o tom
amistoso da psiquiatra. Aliado à declaração anterior de
que aguardava uma recusa diante do apertado prazo
para o encontro, este comentário parece participar a uma
proposta de desacreditar a médica, em razão de que sugere
uma simpatia, presumidamente, não correspondente a
uma psiquiatra “de respeito”, insinuação praticada por
um dos melhores médicos de um grande centro, registra-
se nas entrelinhas para o leitor. Assim, o narrador começa
a construir uma imagem que questiona as atitudes sociais
da médica, por assim dizer, embutindo na interpretação
do leitor certa maledicência quanto ao comportamento
de Cecilia.
A primeira consideração tecida pelo narrador sobre o
a reunião prossional com a médica arma:
Cecilia Coutts era muito mais atraente do que eu
havia imaginado. Seus lábios eram nos e seu sorriso
parecia sincero. Media cerca de 1,70 metro e tinha
cabelos pretos e lisos que faziam moldura ao seu rosto
2 Dear Dr. Armando,
I would be glad to meet you for coffe. Could you come to my ofce this
coming thursday, at 10 a.m.?
Best regards, C. Coutts, M.D., Ph.D. 73 Barrow Street, NY, NY – 10014.
Gênero e esteriotipação em Sergio Y. vai à América 209
Navegações
, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 202-210, jul.-dez. 2017
de traços bonitos. Devia ter cerca de quarenta anos,
o que igualmente me surpreendeu. Talvez achasse
que, por dividirmos o mesmo paciente, dividiríamos
a mesma idade também. Recebeu-me com um aperto
de mão. Provavelmente por causa do dia de calor
que se anunciava, vestia uma camiseta sem manga
e – impossível não notar – não usava sutiã (PORTO,
2014, p. 103).
O início do relato indica que o imaginário do corpo
da terapeuta existia antes mesmo de Armando conhecê-la
pessoalmente – “Cecilia Coutts era muito mais atraente
do que eu havia imaginado.” Dessa forma, a menção
aos seios da psiquiatra faz parte de um conjunto de
idealizações que o personagem-narrador parece construir
previamente: o rosto, o corpo, a altura, a idade, o peso, a
beleza etc. Assim, a justicativa de ser “impossível não
notar” a blusa sem sutiã cairia por terra, no sentido de
parecer acidental, como se ele não tivesse intenção de
reparar neste fato. Mais ainda, como se a própria Cecilia
quisesse que esta percepção acontecesse, a considerar
a justicativa do narrador, entre travessões, indicando
quase uma imposição da médica em destacar o seu corpo.
Tal consideração endossa o imaginário comum
da mulher que pede para ser vista, que provoca o sexo
oposto para seduzi-lo; concepção que faz parte de uma
construção histórica na qual o corpo feminino é sujeitado
ao olhar masculino e manipulado de forma a inferiorizar
a imagem da mulher, na medida em que se edica um
discurso no qual seu lugar é o de objeto. A respeito do
corpo das mulheres Bourdieu (1999, p. 82) comenta que
se faz crer que “[...] elas existem primeiro pelo e para, o
olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos,
atraentes e disponíveis.”
É curioso que o narrador recorre aos aspectos físicos
da psiquiatra quando ela se manifesta com propriedade
e segurança prossional acerca da identidade de gênero
da paciente em questão, como quando Cecilia fala da
transexualidade de Sandra, declarando que ela era “[...]
um caso inequívoco de disforia sexual” (PORTO, 2014,
p. 104, grifo nosso) e o narrador dispara: “[...] mas meus
olhos me traíam. Contra minha vontade, insistiam em
voltar à marca dos mamilos da dra. Coutts através da sua
camiseta branca sem mangas.” (PORTO, 2014, p. 108).
Ou quando retorna pela última vez ao consultório da
psiquiatra e registra para o leitor: “Coutts usava uma
camiseta idêntica à do dia anterior, só que de outra cor.
Seus mamilos continuavam no mesmo lugar, marcando a
malha vermelha.” (PORTO, 2014, p. 112).
Assim, parece-nos que a insistência em demarcar
a perturbação de Armando frente ao corpo de Cecilia
registra uma tentativa de se deslocar a questão central
do encontro: Armando foi buscar em Cecilia as respostas
para sua falha prossional, e não ao contrário. Em
vista disso, se for para determinar um sujeito que está
subordinado à competência prossional de outro, este
alguém é Armando, que apenas no nal da carreira deu-
se conta da impossibilidade da onipotência da análise
clínica, uma vez que a linguagem não consegue apreender
a totalidade do sujeito.
No entanto, o narrador engendra uma descrição que
se congura como uma violência simbólica, nos termos
de Bourdieu (1999), uma vez que constrange moralmente
a representação da psiquiatra ao ignorar sua competência
intelectual em prol de uma construção que a reduz a
um corpo objeticado de mulher sensual, insinuando
que o respaldo prossional da médica seja oriundo de
seus atributos físicos que desconcertam competentes
prossionais como ele, impedindo-os de competir de
igual forma com ela, em razão da distração que esta causa.
Esta hipersexualização do corpo de Cecilia registra
uma ruptura no ritmo da narrativa que responde à
tentativa do vaidoso médico em não admitir o sucesso
prossional da terapeuta com Sandra, de forma que ele
foca suas impressões no corpo da médica para desviar de
si a falha em diagnosticar a paciente em comum. Isto é,
imediatamente antes da entrada no consultório, Armando
se mostrou obcecado em seguir os passos de Sandra: “Seu
dedo tocara o mesmo botão do interfone que eu tocaria.
Sua mão tomara a mesma maçaneta de latão que minha
mão tomava [...]” (PORTO, 2014, p. 100). No entanto,
quando está na presença de Cecilia, vê-se diante do sujeito
que compreenderá, melhor do que ninguém, a trapaça, o
logro e o jogo, para usar as palavras de Barthes (1989),
da linguagem. Assim, Armando se viu deslocado do papel
de Deus que atribuía a si mesmo, pois cou diante de uma
encenação da linguagem que não deu conta de interpretar.
Dessa forma, frente à impossibilidade de demonstrar
conhecimento de causa do caso de Sergio/Sandra acaba
por reivindicar o lugar-comum da mulher sedutora.
Nessa altura, precavido é o leitor que trouxe à mente
Dom Casmurro e colocou em xeque as declarações deste
narrador desde o início do romance. Quer dizer, ousamos
pensar que o narrador construído por Alexandre Vidal
Porto aproxima-se daquele famoso, já casmurro, Bento
Santiago, quando caminha pelas linhas sugestivas de seu
testemunho em favor de uma verdade que pode ser
lida a partir de sua enunciação. Armando e Bento são
vaidosos e discretos. Ambos propõem suas narrativas
em razão de um revés da vida, o de Bento Santiago é
a hipotética traição de Capitu e o de Armando é o caso
não diagnosticado de Sergio. Cada um, a sua maneira,
advoga em favor de fatos, mas que parecem, antes de
tudo, móveis, “fatos móveis”, para convencer o leitor de
suas humildes condições que, no fundo, registram uma
insolência e petulância que evidencia a não superação
dos ocorridos nos dois casos: Bento não aguenta a
210 Ramos, T. R. O., Drey, M. S.
Navegações
, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 202-210, jul.-dez. 2017
esposa feminista. Machista, não consegue seguir ao lado
de uma mulher decidida e insubordinada. Armando, por
sua vez, foi pego na encenação da linguagem, no jogo em
que se vê rei, mas é peão. No entanto, ao se fazer narrador
de sua história se mostra articulado, um verdadeiro
armador.
Considerações nais
Procuramos apresentar neste trabalho proposições
que justicassem a máxima de que a literatura brasileira
contemporânea edica-se a partir de uma materialidade
que foge a sistematizações e, por isso mesmo, aponta para
uma nova estética que não quer ser fechada, uniforme. A
respeito desta característica de abertura, Beatriz Resende
assegura que essa heterogeneidade vem a ser um ponto
digno de observação nesta literatura peculiarmente fértil
e de qualidade.
O pesquisador Karl Eric Schollhammer, por sua
vez, identica nesta produção atual uma recorrência
que denominou de o “novo realismo”, na medida em
que esta literatura contemporânea parece abdicar da
imagem do realismo histórico, que se aproxima de uma
alegoria pictórica do visível, para registrar formas de
realismo que passam a valorizar a presença performática
e transformadora da linguagem.
Neste contexto profícuo, todavia, Regina Dal-
castègne aponta para o fato de que a representação da
condição feminina ainda mostra que esta produção atual
mantém estereótipos de gênero, modernizando-os em vez
de abdicar deles. Conforme, portanto, foi demonstrado
na representação da personagem Cecilia Coutts, uma
psiquiatra de sucesso que manteve o papel da mulher
sensual que desestabiliza o seu entorno devido a sua
condição física.
No caso especíco, portanto, é plausível considerar
que a representação da personagem Cecilia Coutts está
concatenada à sua insubordinação intelectual a Armando,
dado a segurança prossional com que lidou com o caso-
fracasso do vaidoso colega de prossão. Assim, diante
da impossibilidade de domínio de Cecilia, uma vez que a
linguagem instaura uma relação direta de poder, Armando
deixou em segundo plano a erudição da terapeuta em
prol de uma narração que privilegiou o transtorno que,
segundo ele, a condição física dela desencadeou.
Dessa forma, a narrativa continua perpetuando o
estereótipo da mulher sensual e integra, em vista disso, o
rol de romances que apenas modernizam, mas continuam
reforçando o lugar-comum do gênero, servindo de
exemplo, ainda, às considerações da professora e
pesquisadora Susana Bornéo Funck (2003, p. 476) quando
diz que as representações das mulheres não têm uma “[...]
real liberação da sensualidade, uma vez que a mulher é
idealizada e que a construção cultural do desejo masculino
traz embutida a noção de conquista e dominação”.
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Recebido: 18 de abril de 2016
Aprovado: 15 de outubro de 2017
Contato: taniareginaoliveiraramos@gmail.com
(Tânia Regina Oliveira Ramos)
marinasikeira@hotmail.com
(Marina Siqueira Drey)
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Book
Ficção brasileira contemporânea, de Karl Erik Schøllhammer, aborda a produção ficcional no Brasil das últimas três décadas até chegar à produção recente, que tem sido chamada de “Geração 00”. Como fruto da análise, o autor levanta várias questões pertinentes para a compreensão das mudanças pelas quais a literatura brasileira passa já há alguns anos. Bernardo Carvalho, Rubem Fonseca, Nélida Piñon, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Adriana Lisboa, João Gilberto Noll, André Sant’Ana, Silviano Santiago e Cristóvão Tezza tiveram sua obras estudadas pelo autor. O livro faz parte da Coleção Contemporânea, organizada por Evando Nascimento. “A tentativa aqui será flagrar o que acontece de significativo na ficção brasileira atual, de maneira a enxergar as continuidades e, principalmente, as rupturas produzidas pelos escritores contemporâneos”, explica Karl Erik Schøllhammer. O conceito de contemporaneidade é alvo de reflexão e comparado com termos recorrentes associados ao seu significado, como presente, moderno, pós-moderno, entre outros. O autor analisa de forma conjunta e individual as diversas obras de ficção e as contextualiza com a realidade brasileira. A inserção destas obras no mundo globalizado também é pensada pelo crítico literário. Outra contribuição para o debate sobre as inovações da atual literatura brasileira são as reflexões sobre os estilos mais utilizados nos últimos anos, como o naturalismo, o hiper-realismo, o miniconto, e seus principais expoentes. Com estes escritos, o autor acredita que a obra possa servir de referência nos estudos críticos literários realizados no Brasil.
  • Giorgio Agambem
  • Que É O Contemporâneo
AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius N. Honesko. Chapecó: Argos, 2009. p. 55-73.
Leyla Perrone-Moisés
  • Roland Barthes
  • Aula
  • Trad
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989.
Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade
  • Judith Butler
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Refazendo nós: ensaio sobre mulher e literatura. Florianópolis: Editora Mulheres
  • Susana O Bornéo
  • Jogo Da Representação
FUNCK, Susana Bornéo. O jogo da representação. In: BRANDÃO, Izabel; MUZART, Zahidé (Org.). Refazendo nós: ensaio sobre mulher e literatura. Florianópolis: Editora Mulheres, 2003. p. 475-481.
Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional
  • Beatriz Resende
RESENDE, Beatriz. A literatura brasileira na era da multiplicidade. In: RESENDE, Beatriz (Org.). Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008. p. 15-40.