ArticlePDF Available

Uso Estratégico de Princípios Fundamentais na Empresa: Análise do Caso Apple à Luz do Direito Brasileiro

Authors:

Abstract

O artigo trata da possibilidade ou não de uma companhia se negar a atender pedido de autoridade policial brasileira, para desenvolver software que elimine a criptografia de segurança de seus produtos, mesmo diante da investigação de um ato terrorista, tal como ocorreu com a Apple nos Estados Unidos. No Brasil, a partir de uma análise princípiológica, não há que se falar na imposição do princípio fundamental da liberdade individual e do sigilo dos dados pessoais, haja vista a evidente violação de outros princípios fundamentais que visam proteger e garantir a eficácia de valores e bens jurídicos mais relevantes.
XXV ENCONTRO NACIONAL DO
CONPEDI - BRASÍLIA/DF
EFICÁCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES DO TRABALHO, SOCIAIS E
EMPRESARIAIS II
LUIZ EDUARDO GUNTHER
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE
PAULLA CHRISTIANNE DA COSTA NEWTON
Copyright © 2016 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduão em Direito
Todos os direitos reservados e protegidos.
Nenhuma parte destes anais poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados
sem prévia autorização dos editores.
Diretoria CONPEDI
Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa UNICAP
Vice-presidente Sul - Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet PUC - RS
Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim UCAM
Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Maria dos Remédios Fontes Silva UFRN
Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes IDP
Secretário Executivo - Prof. Dr. Orides Mezzaroba UFSC
Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto Mackenzie
Representante Discente Doutoranda Vivian de Almeida Gregori Torres USP
Conselho Fiscal:
Prof. Msc. Caio Augusto Souza Lara ESDH
Prof. Dr. José Querino Tavares Neto UFG/PUC PR
Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches UNINOVE
Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva UFS (suplente)
Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas UFG (suplente)
Secretarias:
Relações Institucionais Ministro José Barroso Filho IDP
Prof. Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho UPF
Educação Jurídica Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues IMED/ABEDi
Eventos Prof. Dr. Antônio Carlos Diniz Murta FUMEC
Prof. Dr. Jose Luiz Quadros de Magalhaes UFMG
Profa. Dra. Monica Herman Salem Caggiano USP
Prof. Dr. Valter Moura do Carmo UNIMAR
Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr UNICURITIBA
E27
Eficácia de direitos fundamentais nas relações do trabalho, sociais e empresariais II [Recurso eletnico on-line]
organização CONPEDI/UnB/UCB/IDP/UDF;
Coordenadores: Luiz Eduardo Gunther, Marco Antônio César Villatore, Paulla Christianne Da Costa Newton
Florianópolis: CONPEDI, 2016.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-5505-188-3
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: DIREITO E DESIGUALDADES: Diagnósticos e Perspectivas para um Brasil Justo.
1. Direito Estudo e ensino (Pós-graduação) Brasil Encontros. 2. Eficácia de Direitos Fundamentais.
3. Relações de Trabalho. 4. Relações Sociais. 5. Relações Empresariais. I. Encontro Nacional do CONPEDI (25. :
2016 : Brasília, DF).
CDU: 34
________________________________________________________________________________________________
Florianópolis Santa Catarina
SC
www.conpedi.org.br
Comunicação – Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro – UNOESC
XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - BRASÍLIA/DF
EFICÁCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DO
TRABALHO, SOCIAIS E EMPRESARIAIS II
Apresentação
A Coordenação do Grupo de Trabalho EFICÁCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES DO TRABALHO, SOCIAIS E EMPRESARIAIS II, do Conselho Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI, sente-se honrada por apresentar essa
coletânea de artigos, fruto das pesquisas e dos debates que serão realizados no âmbito do
XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, cujo tema é DIREITO E
DESIGUALDADES: Diagnósticos e perspectivas para um Brasil justo.
O evento que será realizado na Capital Federal, desenvolverá suas atividades em três
Instituições de Ensino Superior: Curso de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado, da UNB - Universidade de Brasília; Universidade Católica de Brasília – UCB; e
Centro Universitário do Distrito Federal UDF, e com o Instituto Brasiliense do Direito
Público – IDP, no período de 06 a 09 de julho de 2016.
Dentre os inúmeros trabalhos encaminhados, provenientes de todas as regiões do País,
dezoito artigos foram aprovados e selecionados para a nossa Coordenação, com temas
ligados ao Direito Econômico, ao Direito Empresarial, ao Direito do Trabalho e ao Direito
Ambiental.
O CONPEDI, desde 2005, fomenta o debate nas áreas do Direito Econômico em grupos de
trabalho específicos, como aqueles voltados às relações de consumo e desenvolvimento, além
de investigar a relação entre Direito Econômico, modernidade e análise econômica do
Direito, e temas correlatos.
Não remanescem dúvidas de que a contribuição acadêmica dos pesquisadores participantes
do Grupo de Trabalho EFICÁCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
DO TRABALHO, SOCIAIS E EMPRESARIAIS II é essencial para movimentar os debates
social, econômico, ambiental, político e jurídico, revigorando a participação democrática.
Aproveitamos para, mais uma vez, tecer sinceros parabéns aos autores e, ainda, registrar
nosso propósito de instauração de debates impulsionados pelos trabalhos que serão expostos
no Congresso que se avizinha.
Brasília, julho de 2016.
Coordenadores do Grupo de Trabalho
Luiz Eduardo Gunther
Marco Antônio César Villatore
Paulla Christianne Da Costa Newton
1 Doutor, Mestre e Especialista em Direito Empresarial/Comercial pela UFMG, Professor Adjunto da
Universidade FUMEC – BH – MG, Designer de ideias
2 Mestre e Doutorando em Teoria do Direito pela PUC-MG Professor e Coordenador Adjunto do Curso de
Direito da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana (FASEH). Advogado.
1
2
USO ESTRATÉGICO DE PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS NA EMPRESA:
ANÁLISE DO CASO APPLE À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO
STRATEGIC USE OF FUNDAMENTAL PRINCIPLES IN THE COMPANY: APPLE
CASE ANALYSIS UNDER THE BRAZILIAN LAW
Frederico de Andrade Gabrich 1
Tiago Lopes Mosci 2
Resumo
O artigo trata da possibilidade ou não de uma companhia se negar a atender pedido de
autoridade policial brasileira, para desenvolver software que elimine a criptografia de
segurança de seus produtos, mesmo diante da investigação de um ato terrorista, tal como
ocorreu com a Apple nos Estados Unidos. No Brasil, a partir de uma análise princípiológica,
não há que se falar na imposição do princípio fundamental da liberdade individual e do sigilo
dos dados pessoais, haja vista a evidente violação de outros princípios fundamentais que
visam proteger e garantir a eficácia de valores e bens jurídicos mais relevantes.
Palavras-chave: Princípios fundamentais, Empresa, Terrorismo
Abstract/Resumen/Résumé
The article deals with whether or not a company refuses to comply with a request of
Brazilian police, to develop software that eliminates the security encryption of their products,
even before the investigation of a terrorist act, as happened with Apple in the United United.
In Brazil, from a principled analysis, there is not mentioned in the imposition of the
fundamental principle of individual freedom and confidentiality of personal data, given the
apparent violation of other fundamental principles aimed at protecting and ensuring the
effectiveness of assets more relevant.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Fundamental principles, Company, Terrorism
1
2
187
1. INTRODUÇÃO
O direito nasce no fato. Por isso, muitos problemas jurídicos também surgem a partir
da análise da realidade factual.
A base fundamental do problema desta pesquisa ocorreu nos EUA, quando a Apple se
negou a atender pedido expresso do FBI (Federal Bureau of Investigation), para criar um
programa que permitisse ou facilitasse a violação do sistema de criptografia que protegia os
dados pessoais registrados nos smartphones fabricados por ela (iPhone), para facilitação das
investigações policiais relacionadas com um ataque terrorista ocorrido em San Bernardino, na
Califórnia, em dezembro de 2015. No caso concreto, a companhia se negou a atender a tal
solicitação com o argumento de que haveria violação do princípio fundamental de liberdade
dos seus clientes e do sigilo dos dados pessoais de seus clientes. Além disso, segundo a
empresa, o desenvolvimento de um software que rompesse o sistema de criptografia e
ajudasse o FBI nas investigações, poderia deixar os seus produtos e a intimidade de seus
clientes mais vulneráveis a hackers, criminosos cibernéticos e governos inescrupulosos.
Nos Estados Unidos a questão não é absolutamente nova e já foi objeto de alguns
julgados, dos quais destaca-se o caso Bernstein versus Departamento de Justiça, ocorrido em
1999 e por meio do qual foi decidido que os programas de computador devem ser protegidos
naquele país pelo princípio da liberdade de expressão, determinado expressamente pela
primeira emenda da Constituição Americana.
Do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, o problema que se propõe
analisar por meio da presente pesquisa é se uma companhia brasileira ou estrangeira, que atue
no Brasil, pode ou não se negar a atender pedido similar, realizado por autoridade pública,
com fundamento nas normas jurídicas (princípios e regras) estabelecidas em nosso sistema
normativo.
A pesquisa utiliza o método dedutivo e tem como pressupostos científicos ou marcos
teóricos a normatividade contemporânea, a dimensão normativa do princípio da boa-fé, bem
como a existência, a validade e eficácia do princípio da informação.
2. OS PRINCÍPIOS NA ESTRATÉGIA EMPRESARIAL
Como foi bem observado por GABRICH (2010), amparado em DWORKIN (2002), o
sistema jurídico é composto por normas que se subdividem em princípios e em regras. A
188
norma jurídica deve ser compreendida como gênero, do qual princípios e regras são espécies.
Mas, apesar da generalidade comum aos princípios e às regras, e de os primeiros, em alguns
casos, serem desprovidos de conteúdo linguístico expresso (como acontece no caso dos
princípios jurídicos implícitos), ambos possuem caráter normativo, impositivo e obrigatório,
pelo que o descumprimento de um comando proveniente de um princípio ou de uma regra,
estabelecido no ordenamento jurídico por intermédio de uma fonte do direito (lei,
jurisprudência, costume, contrato, ato administrativo), determina a prática de um ato ilícito, o
que pode levar à sua anulação e/ou ao pagamento de indenizações às pessoas lesadas, na
perfeita medida dos danos potenciais e/ou efetivos causados pela prática do ilícito (artigo 927
do Código Civil brasileiro). Essa realidade decorre de um sistema jurídico principiológico
estabelecido no Brasil desde a Constituição de 1988 e reforçado por leis posteriores marcadas
também por princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que convivem
atualmente com as regras na organização da vida em sociedade.
Segundo Dworkin (2002, p. 39), princípios e regras são padrões jurídicos (normas
jurídicas) que apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica (de fazer ou
não fazer alguma coisa) em circunstâncias particulares e específicas. De acordo com
Dworkin, a distinção entre princípios jurídicos e regras é de natureza lógica e refere-se ao tipo
de orientação que oferecem.
Assim, as regras determinam os padrões de conduta que devem ser seguidos ou
omitidos e também podem estabelecer a sanção respectiva pelo não-cumprimento das
mesmas. Por isso, as regras são aplicáveis por completo ou não são aplicáveis, desde que o
suporte fático e hipotético das mesmas se verifique (ou não) em uma situação concreta. Uma
regra pode ter exceções, desde que elas sejam expressamente discriminadas no conteúdo da
própria regra; a enumeração de todas as possíveis exceções de uma regra é absolutamente
fundamental para a sua precisão e a completude. Por isso, teoricamente, quanto mais exceções
forem discriminadas pela regra, mais completo será o seu enunciado (DWORKIN, 2002, p.
40).
No que diz respeito aos princípios, contudo, mesmo aqueles que mais se assemelham
às regras geralmente não estabelecem, direta e objetivamente, padrões de conduta (ação ou
omissão) que devem ser observados pelas pessoas submetidas ao ordenamento jurídico, do
tipo “se A fizer B, A deve ser C”. Por isso, os princípios não apresentam consequências
jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições fáticas ou jurídicas acontecem
(DWORKIN, 2002, p. 40).
Dessa maneira, segundo Dworkin:
189
(...) Um princípio como “Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios
delitos” não pretende [nem mesmo] estabelecer condições que tornem sua aplicação
necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa
direção, mas [ainda assim] necessita de uma decisão particular. Se um homem
recebeu ou está na iminência de receber alguma coisa como resultado direto de um
ato ilícito que tenha praticado para obtê-la, então essa é uma razão que o direito
levará em consideração ao decidir se ele deve mantê-la. Pode haver outros princípios
ou outras políticas que argumentem em outra direção por exemplo, uma política
que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que limite a
punição ao que foi estipulado pelo Poder Legislativo. Se assim for, nosso princípio
pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de um princípio de
nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas condições em contrário
estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo.
(DWORKIN, 2002, p. 41-42).
Assim, um princípio pode, no caso concreto, não ser aplicado pelo juiz, sem que isso
signifique que este princípio, excepcional e casualmente não aplicado, seja contrário à lógica
do sistema jurídico no qual ele está inserido. Isso acontecerá sempre que um determinado
caso concreto permitir a aplicação de dois ou mais princípios que integrem o ordenamento
jurídico e apontem em direções diferentes. Nesses casos, um princípio cederá a outro que
melhor se adeque à situação de fato, mas conservará o seu status de norma jurídica e poderá
ser aplicado em outras situações às quais for mais adequado. Deste modo, os princípios m
uma dimensão de peso que as regras não possuem, e sua aplicação será sempre precedida de
um exercício de ponderação.
Isso, contudo, não permite concluir que alguns princípios têm importância relativa, por
estabelecerem apenas direção programática, nem muito menos que, quando o caso concreto
não é acobertado por uma regra clara e objetiva, o juiz deve exercer o seu poder discricionário
para decidi-lo por meio da criação de um novo padrão jurídico-normativo de conduta.
De fato, quando um determinado princípio não estabelece objetivamente um padrão de
conduta ou um “dever-ser” claro e indiscutível, cabe à doutrina e à jurisprudência integrar o
Direito, ou seja, fixar tais bitolas normativas, conforme os valores socialmente aceitos e
inseridos na ordem jurídica por esse princípio. Daí, inclusive, o motivo pelo qual a doutrina é
também considerada como fonte formal indireta do Direito.1
1 Nesse sentido, segundo Bergel, “As fontes do direito também se entendem como ‘modos de formação das
normas jurídicas, ou seja, procedimentos e atos pelos quais essas normas atingem a existência jurídica, inserem-
se no direito positivo e adquirem validade’. São então as fontes formais do direito, cujo ‘pequeno número
implica que se encontrem em todas as ordens jurídicas e se prestem à sistematização’. É unicamente dessas
fontes formais que trataremos neste capítulo. Embora a importância e a autoridade respectivas delas variem
conforme os sistemas políticos, as épocas e os países, podemos agrupar entre essas fontes a lei, o costume, a
jurisprudência e a doutrina. Em geral contrapõem-se as ‘fontes escritas’, como a lei, às ‘fontes não-escritas’,
como o costume, ou as ‘fontes diretas’, como a lei e o costume, às ‘indiretas’, como a doutrina e a jurisprudência
(...)” (BERGEL, 2001. p. 54).
190
Além de tudo isso, na hermenêutica contemporânea, é fundamental reconhecer a
existência de princípios fundamentais, gerais e específicos, que estabelecem comandos
normativos e que também orientam a interpretação e a aplicação das regras jurídicas
estabelecidas no ordenamento para regulação da vida social.
De acordo com esse sistema de hierarquização, os princípios fundamentais por vezes
são assim identificados pela Constituição, porquanto prevalecem sobre a autoridade do
legislador, do juiz e de qualquer intérprete do Direito.2 Contudo, não há como discutir a
possibilidade, teórica e prática, da existência de princípios fundamentais implícitos e não
declarados expressamente pelo texto normativo de uma determinada Constituição. Por isso,
independentemente da previsão constitucional, consideram-se como fundamentais aqueles
princípios básicos, essenciais, absolutamente necessários à organização social e estruturantes
de todo o ordenamento jurídico, em todas as situações concretas, normalmente vinculados, no
mundo ocidental, cristão e democrático, aos princípios (ideais) de justiça, liberdade, igualdade
e fraternidade.
Hierarquicamente, os princípios jurídicos fundamentais existem para garantir a
inserção e a concreção de valores mais importantes, mais relevantes e mais caros à sociedade
submetida a um determinado ordenamento. Por isso, pode-se concluir que todo princípio
fundamental é também geral, mas nem todo princípio geral é um princípio fundamental.
Não obstante, segundo BOTREL (2009), especificamente em relação à organização e
ao funcionamento da empresa, esta, em suas diversas relações, submete-se também a diversos
direitos e princípios fundamentais, o que pode ser constatado muito além dos princípios da
livre iniciativa, da propriedade privada e de sua função social (artigo 170 da Constituição da
República), a partir de diversos centros de direitos fundamentais relacionados à sua
organização, tais como os trabalhadores (artigos 1o, 7o a 11 da Constituição brasileira: valor
social do trabalho, liberdade de associação sindical, liberdade de organização do trabalho,
direito de greve, proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa etc), os
financiadores, os consumidores (artigo 5o, inciso XXXII, da Constituição: cláusula geral de
proteção do consumidor), os concorrentes (artigo 170, inciso IV, da Constituição: princípio da
livre concorrência), os sócios (artigo 5o, inciso XX, da Constituição: princípio da liberdade de
associação), o meio ambiente (artigos 170, inciso VI, e 225 da Constituição).
2 Essa conceituação específica dos princípios fundamentais é estabelecida por Jean-Louis Bergel, com
fundamento em decisões proferidas pelo Conselho Constitucional francês. (BERGEL, 2001. p. 113)
191
Todavia, considerando-se o sistema de classificação principiológica, as pessoas (e as
empresas) estão submetidas não apenas a princípios fundamentais, mas também a princípios
gerais e específicos. Nesse sentido, os princípios gerais são aqueles que vão além dos limites
de atuação estabelecidos pelos diferentes ramos do Direito (BERGEL, 2001. p. 110). Assim,
os princípios gerais estabelecem padrões jurídicos aplicáveis a diversas situações, tratadas e
reguladas pelas normas agrupadas (didaticamente) nos diversos ramos do Direito. Contudo, os
princípios gerais estão situados, em uma escala de normas, acima dos atos judiciais e dos atos
administrativos de grau mais elevado (BERGEL, 2001. p. 116), mas nem sempre submetem o
legislador infraconstitucional, pelo que, se eles não tiverem sido estabelecidos em
consonância com os princípios fundamentais e/ou não tiverem sido expressamente declarados
na Constituição, podem ser introduzidos, modificados ou derrogados pela legislação ordinária
e por outras fontes de caráter infraconstitucional.
De qualquer maneira, os princípios gerais do Direito possuem dupla importância
funcional. Em primeiro lugar, constituem a base de toda a construção jurídica, visto que os
princípios específicos e as regras que estão a eles submetidas não podem evoluir validamente
no sistema, senão consoante os comandos normativos mais genéricos e importantes
estabelecidos pelos princípios gerais. Daí, também, o motivo pelo qual estes desempenham
um importante e fundamental papel na interpretação da lei, uma vez que o juiz e o intérprete a
eles se referem, para determinar o sentido dos textos legais obscuros, ambíguos ou omissos
(BERGEL, 2001. p. 118-121).3 Em segundo lugar, os princípios gerais possuem uma função
técnica, pois a conjugação desses princípios no seio de uma determinada situação fática ou de
uma dada matéria jurídica é que determina a norma jurídica, o “dever-ser”, que deverá ser
observado na regulação da vida social.
Ainda nessa linha de raciocínio de classificação e hierarquização, os princípios
específicos estabelecem orientação, ordenação, fundamentação e normalização de um único
ramo do Direito, ou de uma matéria específica de um desses ramos. Entre os princípios
específicos relativos à organização da atividade empresarial podem ser destacados, dentre
outros: o princípio de proteção ao acionista minoritário, próprio da organização jurídica das
sociedades anônimas; os princípios da veracidade e da novidade, específicos da formação e da
utilização dos nomes empresariais; o princípio da preservação da empresa, relativo à falência
e às recuperações (judicial e extrajudicial).
3 Nesse sentido, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro estabelece em seu artigo 4º que “Quando a
lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
192
De qualquer forma, os princípios serão mais ou menos importantes conforme o peso e
a importância dos bens e dos valores que eles procuram inserir ou proteger na ordem jurídica.
Dessa maneira, ressalte-se, se hipoteticamente houver concorrência entre princípios (na
estruturação jurídica de um objetivo empresarial ou na solução de um eventual conflito),
prevalecerá aquele que assegura a concreção do valor mais fundamental para a sociedade, mas
sempre conforme as especificidades do caso concreto.
Por todas essas razões, a estruturação jurídica e estratégica de uma empresa que atue
no Brasil nos tempos atuais, pensada e desenvolvida para permitir a realização mais eficiente
possível dos seus objetivos administrativos, organizacionais, mercadológicos e negociais da
empresa e de todas as pessoas a ela relacionadas (Análise Estratégica do Direito), deve ser
estabelecida com a devida consideração dos princípios (explícitos e implícitos) e das regras
relacionadas não apenas com a empresa e com a sua atividade negocial direta, mas, também,
com todos os seus stakeholders”, tais como, sócios, empregados, fornecedores,
consumidores, comunidade na qual a empresa funciona ou atua.
Em um sistema jurídico pluralista, democrático e aberto, como o brasileiro, não há,
portanto, como desconsiderar os princípios, as regras e as cláusulas gerais para a devida
organização e estruturação da empresa contemporânea. Não há, portanto, no sistema jurídico
brasileiro, como desconsiderar os comandos normativos decorrentes dos princípios jurídicos –
fundamentais, gerais e específicos.
Ocorre, todavia, que, na prática, muitas empresas não desenvolvem uma atividade
jurídica estratégica, capaz de permitir a melhor estruturação jurídica de seus objetivos
empresariais e, quando realizam tal atividade, observam apenas uma lógica jurídica
absolutamente legalista, baseada quase que totalmente no princípio da legalidade estrita,
segundo o qual, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude
de lei (artigo 5o, inciso II, da Constituição).
GABRICH (2010) observa, contudo, que o princípio da legalidade precisa ser
compreendido atualmente, na empresa ou fora dela, em outra dimensão, consentânea com a
hermenêutica contemporânea, que o considera não apenas como um princípio que impõe
somente o respeito à lei stricto sensu (lei formal), votada e aprovada pelo Congresso
Nacional, mas o respeito às normas jurídicas, nas quais estão inseridos, como espécies do
gênero ‘norma jurídica’, os princípios. De fato, a lei é apenas uma das diversas fontes do
Direito. No sistema jurídico brasileiro a lei é a fonte primária e principal do Direito, mas não
é a única, pois as normas jurídicas também são estabelecidas pelos costumes, pela
jurisprudência, pelos atos administrativos, pelos contratos, pela doutrina. Não há sentido,
193
portanto, em estabelecer a obrigatoriedade da conformação da conduta das pessoas ao Direito,
submetendo-as somente a uma das diversas fontes pelas quais as normas jurídicas são
estabelecidas para determinarem a organização da vida social. Daí, então, o motivo pelo qual
o princípio da legalidade, nesse segundo sentido, deve ser mais corretamente chamado de
‘princípio da juridicidade’ ou ‘princípio da normatividade’, que impõe, simplesmente, a
conformação do fazer ou do deixar de fazer às normas jurídicas identificadas no sistema, por
meio da interpretação de princípios e regras. De acordo com o “princípio da normatividade”,
portanto, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de
norma jurídica (princípio e/ou regra) existente (declarada em uma fonte do direito), válida
(que não foi invalidada por outra norma jurídica mais nova, mais específica ou que foi
estabelecida por fonte hierarquicamente mais relevante) e eficaz (observada realmente pelas
pessoas na organização da vida social).
Assim, para a imposição do caráter normativo-impositivo-coercitivo dos princípios
jurídicos, inclusive e principalmente na formatação das estratégias jurídicas empresariais, a
legalidade tem que ser considerada em seu sentido mais amplo e genérico, que determina a
conformação dos atos e fatos jurídicos ao Direito (às normas jurídicas e não somente à lei
formal), como condição indispensável de validade e eficácia. Se assim não for, não como
reconhecer a existência, a validade e a eficácia normativo-impositiva dos princípios jurídicos
em geral, e dos princípios implícitos (não expressamente declarados pela lei), em particular,
como o princípio da boa-fé, ou o princípio que proíbe o enriquecimento sem causa.4
3. PRINCÍPIOS DA LIBERDADE, DA BOA-FÉ E DA INFORMAÇÃO
Como foi esclarecido acima, a existência e a validade de um princípio específico ou de
um princípio geral, decorre da identificação de um direito ou de um princípio fundamental
correspondente.
Segundo GABRICH (2010), a informação não é somente um direito ou um dever, mas
um princípio geral que decorre do princípio também geral da boa- e, ambos, do princípio
fundamental de liberdade. Por isso, qualquer situação que tenha relação direta ou indireta com
4 No Brasil, somente após a promulgação e a vigência do Código Civil de 2002 Lei n. 10.406, de 10 de janeiro
de 2002 , o princípio que veda o enriquecimento sem causa passou a ser objeto de regra específica que o
explicita, por meio do disposto no artigo 884, que estabelece: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa
de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”.
194
o acesso às informações, na empresa ou fora dela, deve ser analisada e interpretada a partir da
bitola normativa determinada pelo princípio fundamental de liberdade.
Nesse sentido, relativamente ao princípio fundamental de liberdade, GABRICH
ressalta o seguinte:
A liberdade é um valor fundamental, estruturante e caro ao ser humano civilizado.
Por isso, a vontade geral dos cidadãos de diversos países elege a liberdade como
princípio jurídico fundamental, determinando-a explicitamente nos ordenamentos
jurídicos, na maior esfera hierárquica, de maneira a submeter todos os poderes
estatais, inclusive o próprio legislador, ao seu comando genérico. (GABRICH, 2010.
p. 70).
Nesse sentido, convém observar que, na Constituição brasileira, do princípio
fundamental e genérico de liberdade, estabelecido no preâmbulo da Carta Magna, decorrem
inúmeros outros princípios fundamentais e gerais vinculados ao valor supremo da liberdade,
tais como: o princípio da liberdade de expressão, de crença religiosa, de locomoção, de
associação, de trabalho, da boa-fé, da informação etc.
Cabe ao jurista, contudo, por meio de interpretação, ir do texto da norma (do
enunciado da norma) para uma norma jurídica concreta, com conteúdo e sentido capazes de
reger os casos concretos da prática, para estruturar, da maneira mais eficiente possível, os
objetivos das pessoas, para que seja determinada a maior felicidade possível,
preferencialmente sem a existência de conflitos, de maneira a atribuir eficácia jurídico-
normativa à liberdade.
Não obstante, do princípio fundamental da liberdade decorre o princípio geral da boa-
fé, tanto em sua acepção subjetiva (estado psicológico e interno de ignorância do sujeito
relativamente àquilo que é ilícito ou injusto), quanto em sua acepção objetiva (bitola de um
comportamento ético e moral nas relações tratadas pelo Direito).
Para MENEZES CORDEIRO (1997) e MARTINS-COSTA (1999), da boa-fé objetiva
decorrem diversos deveres conexos, dentre os quais destacam-se o dever de lealdade, o dever
de cuidado e diligência e o dever de informação.
Contudo, GABRICH (2010) demonstra que a informação é um princípio geral
independente do princípio da boa-fé, cuja existência é expressamente declarada pela
Constituição (artigo 5o, incisos XIV, XXXIII e LXXII) e por inúmeras regras jurídicas
estabelecidas no ordenamento brasileiro.
Nesse sentido, GABRICH (2010) também explicita a validade do princípio da
informação, já que o mesmo não foi revogado ou derrogado por nenhuma outra norma
existente no ordenamento pátrio.
195
Finalmente, o mesmo autor comprova a eficácia do princípio da informação, uma vez
que este tem relação direta e sistemática com a regulação de diversos momentos da vida em
sociedade, nos quais existe tanto o direito, quanto o dever de prestar e/ou de receber
informações, mas também o direito/dever de dar transparência ou publicidade às informações.
De fato, a eficácia do princípio da informação no ordenamento jurídico nacional pode
ser constatada, principalmente, pela série de fatos jurídicos sobre os quais ele incide,
produzindo efeitos concretos na regulação da vida social. Em um ambiente amplamente
marcado pela liberdade de expressão e de comunicação, como atualmente acontece no Brasil,
a eficácia do princípio da informação muitas vezes passa despercebida, mas é justamente um
dos principais fundamentos da ordem verdadeiramente pluralista e democrática. Na verdade,
só existe democracia porque há informação e liberdade.
Contudo, é importante observar que, em alguns casos concretos, o mesmo princípio
que determina o direito/dever (amplo) de informação, determina o direito/dever de sigilo,
especialmente nos casos em que necessidade de garantia da intimidade ou da liberdade
individual da pessoa, e também do bem comum ou do interesse público.
Nesse sentido, segundo GABRICH:
De fato, o “dever-ser” contido na norma prevista no princípio da informação é
positivo e direto quando determina a divulgação de informações às partes
interessadas e quando impõe as obrigações de publicidade e de registro; sendo, por
outro lado, negativo e indireto quando determina o dever de sigilo, que geralmente é
estabelecido para proteção de direito e garantia individual do cidadão ou para a
proteção de interesses coletivos, e não para negação do dever de informar.
(GABRICH, 2010. p. 189).
4. O CASO APPLE À LUZ DO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
A partir de tudo que foi demonstrado acima, cabe agora analisar quais são as normas
jurídicas aplicáveis a uma situação similar àquela ocorrida com a Apple nos Estados Unidos,
caso venha a ocorrer no território brasileiro.
Como restou demonstrato antes e vale repetir, a Apple se negou a atender pedido
expresso do FBI (Federal Bureau of Investigation), para criar um programa que permitisse ou
facilitasse a violação do sistema de criptografia que protegia os dados pessoais registrados nos
smartphones fabricados por ela (iPhone), para facilitação das investigações policiais
relacionadas com um ataque terrorista ocorrido em San Bernardino, na Califórnia, em
dezembro de 2015.
196
No caso concreto, de fato, a companhia se negou a atender a tal solicitação com o
argumento de que haveria violação do princípio fundamental de liberdade dos seus clientes.
Além disso, segundo a empresa, o desenvolvimento de um software que rompesse o sistema
de criptografia e ajudasse o FBI nas investigações, poderia deixar os seus produtos e a
intimidade de seus clientes mais vulneráveis à prática de atos ilícitos por hackers. O
desenrolar do fato real levou o FBI a desenvolver, ele próprio, um programa que aquele órgão
americano alega permitir romper com a criptografia do smartphone fabricado pela Apple.
Isso, entretanto, não prejudica a análise da situação fática no território nacional.
Cabe analisar, então, se uma companhia brasileira ou estrangeira, que atue no Brasil,
pode ou não se negar a atender pedido similar, realizado por autoridade pública, com
fundamento nas normas jurídicas (princípios e regras) estabelecidas em nosso sistema
normativo.
De fato, se a mesma hipótese ocorrer no Brasil, e uma companhia se negar a atender
pedido formal de uma autoridade policial no âmbito de um inquérito, em tese, incidirá
diretamente a regra penal relativa ao crime de desobediência, previsto no artigo 330 do
Código Penal, nos seguintes termos:
Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
O crime de Desobediência é um delito de ação penal pública incondicionada, cujo
sujeito ativo do tipo penal é um particular que se nega dolosamente a atender a uma ordem
expressa e lícita proferida por funcionário público no exercício regular de suas atribuições
profissionais, tal como ocorre quando um policial solicita, nos limites de um inquérito aberto
para apuração de ato ilícito, dado ou informação relevante ou necessária para a apuração da
prática ou da autoria de um ilícito penal.
Nesse sentido, segundo DELMANTO:
O núcleo do tipo é desobecer, que tem o sentido de não cumprir, faltar à obediência,
não atender. Pune-se a conduta de quem desobedece a ordem legal de funcionário
público. É necessário, pois, que: a. Trate-se de “ordem”. Não basta que seja um
pedido ou solicitação, sendo mister a efetiva ordem para fazer ou deixar de fazer
alguma coisa. A ordem deve ser dirigida direta e expressamente ao agente, exigindo-
se que este tenha conhecimento inequívoco dela. b. Seja ordem “legal”. É
indispensável a sua legalidade, substancial e formal. A ordem pode até ser injusta,
mas não pode ser ilegal. c. Seja ordem de “funcionário público”. É necessária a
competência funcional deste para expedir ou executar a ordem. Além disso, para a
tipificação da desobediência é indispensável que o destinatário da ordem tenha o
dever jurídico de obedecê-la, a obrigação de acatá-la. De outro lado, se a lei cominar
penalidade administrativa ou civil à desobediência da ordem, “não se deverá
197
reconhecer o crime em exame, salvo se a dita lei reservar expressamente a
cumulativa aplicação do art. 330” (Hungria, Comentários ao CP, 1959, IX/420).
(DELMANTO, 1986. p. 504).
Contudo, segundo DAMÁSIO DE JESUS:
É imprescindível que o destinatário da ordem tenha o dever jurídico de agir ou
deixar de agir. Nesse sentido: JTACrimSP, 74:110; RTJ, 103:139; RT, 562:397. Não
há desobediência se o ordenamento jurídico não lhe impõe o dever de acatar o
conteúdo da ordem (JESUS, 1989. p. 232)
Não obstante, de acordo com FRAGOSO, no caso do crime de desobediência, o:
Objeto da tutela penal é a administração pública, no particular aspecto do
cumprimento de determinações legais emanadas de funcionários públicos. Atenta à
gravidade da sanção penal, é esta, sem dúvida, uma disposição perigosa e
autoritária. Já dizia Carrara que, em princípio, é muito discutível (salvo absoluta
necessidade de justiça), que possa reconhecer-se um verdadeiro delito na simples
desobediência a uma ordem que nos causa dano e dor. O conteúdo do fato é de
caráter nitidamente contravencional. (FRAGOSO, 1986. p. 457-458).
No caso específico do fato ocorrido com a Apple nos Estados Unidos, se o mesmo
ocorrer no Brasil, com fundamento na interpretação do conteúdo normativo da regra em
questão, uma das defesas possíveis da companhia, para se negar a atender pedido formal da
autoridade policial e não desenvolver programa que elimine o sistema de criptografia dos
dados armazenados nos smartphones de sua fabricação, pode ser o argumento de que, como a
empresa não praticou nenhum ato ilícito, ela não tem a obrigação legal de fazer relativa ao
desenvolvimento de um novo software, o que elimina a caracterização do tipo previsto no
artigo 330 do Código Penal brasileiro, também com o amparo no princípio da legalidade
(estrita) e no dogma de direito penal segundo o qual não crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Mas o Direito é essencialmente dialético, e outra solução de argumentação pode ser
desenvolvida, a partir do caráter normativo e impositivo dos princípios fundamentais na
empresa.
Nesse sentido, é fundamental observar que o caso específico da Apple nos Estados
Unidos tem relação direta com a investigação das relações eventualmente existentes entre
autores de um ato terrorista específico, com possível relação com outras pessoas e células
criminosas, que poderia ser comprovada e elucidada a partir de registros pessoais
criptografados nos celulares usados pelos terroristas. Sendo assim, se o mesmo fato algum dia
198
vier a ocorrer no Brasil, deverá ser antes de tudo considerada a tipificação penal do terrorismo
no território nacional.
Dessa maneira, o terrorismo é tipificado como crime, no Brasil, no artigo 20 da Lei n.
7.170, de 14/12/1983, que aprovou a lei de segurança nacional, e que foi recepcionada pela
Constituição de 1988:
Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere
privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de
terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à
manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o
dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.
Como se não bastasse, em virtude do disposto no artigo 2o da Lei n. 8.072, de
25/07/1990, o terrorismo também é considerado no Brasil um crime hediondo, pelo que é
insuscetível de anistia, graça ou indulto, bem como é um crime inafiançável.
Além disso, o artigo 8o da Lei n. 8.072/90 estabelece o seguinte relativamente ao
crime de terrorismo praticado por meio de uma associação criminosa:
Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no artigo 288 do Código
Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.
Logo, por tratar-se de crime gravíssimo e hediondo, havendo qualquer caso de
terrorismo no Brasil, a investigação da autoria e a interpretação das normas incidentes no caso
concreto deverá ser realizada, principalmente, à luz do princípio da supremacia do interesse
público, do bem comum e da dignidade da pessoa humana, que normalmente são
sumariamente violados quando um ato terrorista é praticado indiscriminada e
injustificadamente contra civis indefesos, como aconteceu no caso em análise nos Estados
Unidos.
No que respeita ao valor supremo da dignidade da pessoa humana, que orienta todo o
ordenamento jurídico e democrático brasileiro, a partir do disposto no artigo 1o, inciso III, da
Constituição nacional, SILVA esclarece, que:
a dignidade pessoa humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos
fundamentais do homem, em todas as suas dimensões, e, como a democracia é o
único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa
dignificar o homem, é ela que se revela como o seu valor supremo, o valor que a
dimensiona e humaniza. (SILVA, 1998. p. 94).
199
Dessa maneira, somente a partir do paradigma da dignidade da pessoa humana
quaisquer fatos e atos jurídicos podem ser submetidos à norma e interpretados na ciência do
Direito. O que, sem dúvida, deve ser potencializado quando se trata da prática de um crime
contra a humanidade, como é o caso do terrorismo. Não há, portanto, princípio ou regra
jurídica que possam abdicar de tal perspectiva humanista no Brasil.
Além disso, como se não bastasse, especificamente sobre o princípio da supremacia do
interesse público, BANDEIRA DE MELLO afirma o seguinte:
“Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama
a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do
particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste
último”. (BANDEIRA DE MELLO, 1997. P. 29).
Ocorre, todavia, que nem todos os autores reconhecem a existência ou o caráter
absoluto do princípio da supremacia do interesse público. De acordo com esse entendimento,
o interesse público somente pode prevalecer sobre o particular quando os valores e os bens
jurídicos a serem protegidos no caso concreto merecem de fato maior significação e proteção
normativa.
Nesse sentido, segundo ÁVILA:
O esclarecimento dos fatos na fiscalização de tributos, a determinação dos meios
empregados pela administração, a ponderação dos interesses envolvidos, pela
administração ou pelo Poder Judiciário, a limitação da esfera privada dos cidadãos
(ou cidadãos contribuintes), a preservação do sigilo, etc. são, todos esses casos,
exemplos de atividades administrativas que não podem ser ponderadas em favor do
interesse público e em detrimento dos interesses privados envolvidos. A ponderação
deve, primeiro, determinar quais os bens jurídicos envolvidos e as normas a eles
aplicáveis e, segundo, procurar preservar e proteger, ao máximo, esses mesmos
bens. Caminho bem diverso, portanto, do que direcionar, de antemão, a
interpretação das regras administrativas em favor do interesse público, o que quer
que isso possa vir a significar.
Não se está a negar a importância jurídica do interesse público. Há referências
positivas em relação a ele. O que deve ficar claro, porém, é que, mesmo nos casos
em que ele legitima uma atuação estatal restritiva específica, deve haver uma
ponderação relativamente aos interesses privados e à medida de sua restrição. É essa
ponderação para atribuir máxima realização aos direitos envolvidos o critério
decisivo para a atuação administrativa. E antes que esse critério seja delimitado, não
há cogitar sobre a referida supremacia do interesse público sobre o particular.
(ÁVILA, 2007. p. 29).
Configura-se, portanto, na hipótese deste artigo, um caso típico de colisão de
princípios válidos do Direito Brasileiro: de um lado, o princípio da liberdade individual a
amparar a empresa em sua recusa de fornecer as informações e desenvolver os sistemas
200
requeridos pelas autoridades; de outro, o princípio da supremacia do interesse público a negar
à empresa o direito de recusa. A aplicação de um princípio resultará, logicamente, na negativa
de vigência ao princípio colidente neste caso concreto. A questão é saber qual princípio
deverá ser privilegiado e qual deverá ser preterido.
Essa tem sido uma das mais importantes questões no âmbito da filosofia do Direito
contemporânea, especialmente após as publicações da teoria do direito como integridade, de
Dworkin (2003), e da teoria dos direitos fundamentais, de Alexy (2008). Na esteira da teoria
de Dworkin, a escolha deverá recair sobre o princípio que melhor efetiva a tradição jurídica
ou a moral institucional de nossa comunidade jurídica. Alexy, por sua vez, propõe que deve
prevalecer o princípio cuja aplicação acarreta uma lesão menor aos bens jurídicos protegidos
pelo princípio colidente. Assim, se a prevalência da liberdade acarretar uma lesão maior ao
interesse público, do que a prevalência do interesse público acarretaria à liberdade caso esta
prevalecesse, deverá ser efetivado o princípio da supremacia do interesse público.
Assim, no caso em análise, considerando o valor da dignidade da pessoa humana em
caso de terrorimo, parece-nos que deve prevalecer a supremacia do interesse público para
garantir o acesso às informações privadas gravadas em um smartphone usado por um
terrorista, que os valores e os bens jurídicos protegidos, relativos à segurança e à saúde
públicas impõem a prevalência do acesso às informações privadas pela polícia, em
investigação específica de ato terrorista.
Por esse motivo, no Brasil, a partir de uma análise princípiológica, em caso similar
àquele ocorrido nos Estados Unidos, não que se falar na imposição do princípio
fundamental da liberdade individual e do sigilo dos dados dos proprietários dos equipamentos
eletrônicos, haja vista a evidente violação de outros princípios que, no caso concreto, visam
proteger e garantir a eficácia de valores e bens jurídicos mais relevantes e mais caros à
sociedade brasileira, tais como a segurança e o bem estar da maioria da população, consoante
o disposto no preâmbulo da Constituição Federal.
Assim, em princípio, caso a mesma hipótese fática ocorresse no Brasil, a estratégia de
argumentação e de defesa da companhia, para não atender a pedido da autoridade policial de
criação de um software que permitisse o rompimento da criptografia dos aparelhos telefônicos
usados por terroristas, não poderia basear-se no princípio fundamental de liberdade e de
privacidade das pessoas, tal como, em um primeiro momento, ocorreu nos Estados Unidos.
De acordo com uma argumentação principiológica, poder-se-á, então, em nome do
princípio da supremacia do interesse público e do bem comum, ser defendida a tese de que a
companhia tem o dever normativo de atender ao pedido formal da autoridade policial, para
201
romper com o sistema de criptografia dos smartphones fabricados por ela, desde que a ordem
seja expedida expressamente por funcionário público, preferencialmente por meio de uma
ordem judicial específica, respeitados também os princípios do contraditório, da ampla defesa
e do devido processo legal.
5. CONCLUSÕES
Como o Direito é fato, valor, norma e interpretação, ele nasce sempre no fato. Por
isso, é a partir da análise do fato concreto, dos valores e dos bens jurídicos que pontual e
especificamente merecem maior ou menor proteção normativa, que se deve realizar a
interpretação sistemática, finalística e teleológica.
O problema proposto neste artigo desde a introdução diz respeito à possibilidade ou à
impossibilidade de uma companhia que atue no Brasil se negar a atender pedido de autoridade
policial para desenvolver produto ou serviço que comprometa a segurança dos bens por ela
oferecidos ao mercado, mesmo diante da investigação de um ato terrorista, com fundamento
no princípio de liberdade de expressão e do correspondente sigilo das informações pessoais,
tal como ocorreu com a Apple recentemente nos Estados Unidos.
No Brasil, como restou demonstrado, o sistema normativo permite, em uma análise
pontual, apressada e assistemática, a defesa da tese de que a companhia pode se negar a
atender pedido de autoridade pública, sem que isso caracterize necessariamente crime de
desobediência, a partir da inteligência completa do disposto especificamente no tipo previsto
no artigo 330 do Código Penal.
A melhor interpretação jurídica do caso entretanto, deve ser realizada, caso ocorra no
Brasil, primeiro, a partir da identificação e da ponderação dos valores e dos bens jurídicos que
merecem proteção em casos similares, em que a prática de um ato terrorista contra um
número indefinido de pessoas inocentes. Em segundo lugar, devem ser considerados os
princípios fundamentais que orientam a atuação empresarial e a sua relação com todos os seus
stakeholders (sócios, empregados, fornecedores, consumidores, Estado, comunidade na qual a
empresa está envolvida) em um caso como aquele ocorrido nos Estados Unidos, tais como os
princípios do bem comum, da dignidade da pessoa humana, da supremacia do interesse
público. Além disso, deve ser considerado o princípio de liberdade, que também admite,
casual e esporadicamente, dependendo dos bens jurídicos e valores envolvidos no caso
concreto, a superação do direito de sigilo relativamente aos dados pessoais.
202
Daí, então, os motivos pelos quais, em casos muito específicos, uma companhia que
atue no Brasil pode vir a ser obrigada a desenvolver um software voltado para a superação dos
sistemas de segurança criados por ela mesma para os seus produtos, sem qualquer violação à
ordem jurídica e normativa nacional.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado. Número 11, set/out/nov. 2007.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo, 9. ed., São Paulo,
Malheiros, 1997, pág. 29.
BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional: uma proposta de leitura constitucional do
direito societário. São Paulo: Editora Atlas, 2009.
BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 02
jan. 2016.
BRASIL. Lei n. 7.171, de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança
nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e outras
providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm >.
Acesso em: 30 de mar. 2016.
BRASIL. Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos
do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072.htm >. Acesso em: 30 de mar. 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm >. Acesso em: 30 de
mar. 2016.
203
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa no Direito Civil. Coimbra:
Livraria Almedina, 1997.
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 1986.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DWORKIN, Ronal. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA.
https://epic.org/crypto/export_controls/bernstein_decision_9_cir.html>. Acesso em: 27 mar.
2016.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
GABRICH, Frederico de Andrade. Análise Estratégica do Direito. Belo Horizonte:
Universidade Fumec, 2010.
GABRICH, Frederico de Andrade. O Princípio da Informação. Belo Horizonte: Universidade
Fumec, 2010.
JESUS, Damásio E. De. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 1989.
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1999.
SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia.
Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 212: 89-94, abr./jun. 1998.
204
ResearchGate has not been able to resolve any citations for this publication.
Article
1. Fundamento constitucional - 2. Pessoa humana - 3. Dignidade - 4. Proteção constitucional da dignidade humana - 5. Natureza da dignidade tutelada - 6. Conclusão.
Article
Divulgação dos SUMÁRIOS das obras recentemente incorporadas ao acervo da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva do STJ. Em respeito à lei de Direitos Autorais, não disponibilizamos a obra na íntegra. STJ00081990 347.7:342(81) B749d
Article
Divulgação dos SUMÁRIOS das obras recentemente incorporadas ao acervo da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva do STJ. Em respeito à lei de Direitos Autorais, não disponibilizamos a obra na íntegra. STJ00080041 342.7 A384t
Article
Divulgação dos SUMÁRIOS das obras recentemente incorporadas ao acervo da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva do STJ. Em respeito à lei de Direitos Autorais, não disponibilizamos a obra na íntegra. STJ00079893 35(81) M527c 26.ed STJ00083369 35(81) M527c 27.ed.
os motivos pelos quais, em casos muito específicos, uma companhia que atue no Brasil pode vir a ser obrigada a desenvolver um software voltado para a superação dos sistemas de segurança criados por ela mesma para os seus produtos, sem qualquer violação à ordem jurídica e normativa nacional
  • Então Daí
Daí, então, os motivos pelos quais, em casos muito específicos, uma companhia que atue no Brasil pode vir a ser obrigada a desenvolver um software voltado para a superação dos sistemas de segurança criados por ela mesma para os seus produtos, sem qualquer violação à ordem jurídica e normativa nacional.
Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Disponível em: < http
  • Brasil Lei N
BRASIL. Lei n. 7.171, de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm >.
Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: < http
  • Brasil Lei N
BRASIL. Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072.htm >. Acesso em: 30 de mar. 2016.
Disponível em: < http
  • Brasil Constituição Da República
  • Federativa
  • Brasil De
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm >. Acesso em: 30 de mar. 2016.
Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Livraria Almedina
  • Antônio Cordeiro
  • Manuel Da Rocha E Menezes
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.
Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar
  • Celso Delmanto
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 1986.