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26 Revista sala preta | Vol. 17 | n. 2 | 2017
Paulo Maciel
A cultura dramática do século XIX no
Brasil vista do acervo da Fundação
Biblioteca Nacional
The dramatic culture of the 19th century in Brazil
seen from the collection of the National Library
Foundation
Paulo Maciel
Paulo Maciel
Professor adjunto do Departamento de Artes
Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto.
DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v17i2p26-40
sala preta Em pauta
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A cultura dramática do século XIX no Brasil
Resumo
Este artigo apresenta alguns resultados da pesquisa sobre a biblio teca
dramática 1800-1900, sob guarda da Fundação Biblioteca Nacional, de-
senvolvida entre 2015 e 2017, que resultou num mapeamento geral dos
repertórios bibliográcos disponíveis ou em circulação no Brasil do sé-
culo XIX. Para tanto, foram levantados os registros de peças teatrais do
século XIX, mais os itens localizados em catálogos de livrarias e biblio-
tecas do mesmo período. A partir da quanticação do acervo, nosso
objetivo principal foi a reconstituição da cultura dramática do passado,
partindo do reconhecimento da extensão e da forma mais geral de seu
território durante o percurso de um século. Aqui não examinamos obras
dramáticas, mas dados da cultura dramática no Brasil do século XIX.
Palavras-chave: Cultura dramática, Teatro brasileiro, Brasil, Século XIX.
Abstract
This article presents some results of the research on the dramatic library
1800-1900 under custody of the National Library Foundation, developed
between 2015 and 2017, which resulted in a general mapping of the
bibliographic repertoires available or in circulation in 19th century in
Brazil. In order to do so, the records of theatrical plays of the 19th century
were collected, as well as items located in catalogs of bookshops and
libraries of the same period. From the quantication of the collection,
our main objective was the reconstitution of the dramatic culture of the
past, starting from the recognition of its extension and the more general
form of its territory during the course of a century. Here I do not examine
dramatic works, but data of dramatic culture in 19th century in Brazil.
Keywords: Dramatic culture, Brazilian theater, Brazil, 19th century.
Introdução
Na ausência de dados sistemáticos a respeito da produção dramática do
século XIX no Brasil, nossa tarefa principal consistiu na reunião e organi zação
dos dados sobre os repertórios bibliográcos disponíveis. Mapeamos as in-
formações sobre título, subtítulo, autor, cidade, data e local da publicação,
entre demais elementos de interesse do projeto. Reunimos um conjunto de
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1871 registros acerca da biblioteca dramática do século XIX sem contabilizar
os itens informados pelos catálogos consultados e os sem data precisa. Esse
universo numérico permitiu colocar em novo contexto as velhas questões da
historiograa. Em nosso itinerário em busca da cultura dramática disponível
no acervo, nos deparamos com indícios da sua estreita relação com o Império
brasileiro (1822-1889), cujos vínculos transcendem os já analisados pela lite-
ratura especializada, em torno dos temas e das formas dramáticas dos textos,
pois sinalizam para o papel do Estado como agente interessado em deter-
minar as suas fronteiras como se fossem as mesmas estabelecidas mais am-
plamente pelos tratados de amizade e comércio.
Esse projeto dramático podemos vislumbrar não somente por meio dos
aparelhos e das ações dos censores da Mesa do Desembargo do Paço e,
posteriormente, do Conservatório Dramático, como também divisamos seu
alcance através das dedicatórias ao imperador e à imperatriz informadas por
alguns dos itens bibliográcos das coleções particulares que reunimos no
levantamento por meio dos ex-libris. Expandir o alcance e os vínculos da cul-
tura dramática com o Brasil do século XIX signicou também compreender o
que os registros diziam sobre o sistema de classicação e de indexação das
peças em termos de gênero dramático, prática de escrita e também da sua
localização em campos de saber, conforme o mapa geral do acervo.
No começo da pesquisa, o principal interesse residia no levantamento
dos itens ou de indícios de uma dramaturgia brasileira que fosse distinta da-
quela informada pela historiograa do teatro brasileiro do século XIX. Ao me
deparar, porém, com o acervo, a própria noção de “dramaturgia brasileira”
precisou ser revista; não era mais possível pensar a questão independente
das demais relações mantidas pela dramaturgia com o mercado, o estado e a
sociedade, pois do contrário perderíamos de vista sua dinâmica mais ampla
e seus conitos interno e externo em torno de distintos projetos de teatro e
nação em pauta naquele momento.
Por um mapa da cultura dramática no Brasil do século XIX
Nosso trajeto em busca da cultura dramática em circulação no Brasil
do século XIX nos levou à reconstrução dos repertórios bibliográcos que
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A cultura dramática do século XIX no Brasil
estariam disponíveis em bibliotecas particulares e públicas, nas livrarias e
no comércio de livros em geral. A partir do processamento, leitura e aná-
lise dos registros muitas questões vieram à tona a respeito dos atores envol-
vidos na produção, recepção e circulação das peças teatrais, dos sistemas de
classicação por gênero dramático e segundo algumas estantes do conheci-
mento, como por exemplo, drama, teatro, literatura e belas-letras. Por outro
lado,como alguns itens bibliográcos informam local, data e ocasião da ence-
nação ou representação da peça, não podemos perder de vista os caminhos
percorridos pela cultura dramática na cena teatral. Mas a encenação não é o
único nem o principal destino dos impressos teatrais que, no século XIX, liber-
taram o texto teatral do suporte das quatro paredes do palco. A quanticação
da cultura dramática também permitiu a identicação de uma biblioteca dra-
mática mais vasta e ampla abarcando distintos lugares e períodos da história
do teatro que coexistiam naquele momento.
Pela primeira vez na história do teatro vemos reunidas peças de dis-
tintas e variadas épocas num mesmo contexto. Sendo assim, as bibliotecas
dramáticas expressavam um projeto enciclopédico que abarcaria desde os
gregos aos autores mais recentes. Uma biblioteca maior não difere de uma
menor apenas pelo número de títulos que comporta, mas devido à extensão
territorial que abrange de um dado objeto, à amplitude do conhecimento e da
experiência que seu universo ou seu repertório comportam e podem oferecer
aos leitores.
A ambição das bibliotecas dramáticas do século XIX (Gráco 1) apa-
rece no desejo de arquivar todas as peças que, uma vez reunidas, ilustrariam
a história do teatro ocidental, o que, por seu turno, levou à constituição de
um acervo imenso além de inspirar as “‘bibliotecas sem paredes’ que são os
catálogos, as coletâneas e as coleções que se pretendem paliativos à impos-
sibilidade da universalidade, oferecendo ao leitor inventários e antologias”
(CHARTIER, 1999, p. 117). Universalidade que algumas das coleções particu-
lares e públicas identicadas no mapeamento pareciam almejar ao reunirem
em suas estantes toda a história do teatro.
Os acervos das bibliotecas podem ter as mais diversas origens e sua
formação pode envolver diferentes ordens de atores, regulamentos e proces-
sos, ou seja, um sistema de ações e decisões que interferem na saída do
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acervo de partida e no recebimento pelo acervo de chegada dependendo da
forma pela qual ele originou essa relação, sendo estas ações de compra, doa-
ção e permuta e, para as bibliotecas nacionais, acrescentando-se o depósito
legal (PINHEIRO, 2011, p. 4 apud ISMAEL, 2016, p. 13). O que deve ser obser-
vado nesses processos de aquisição são os mecanismos de transformação
do acervo privado em público e os agentes envolvidos que, por diferentes
motivos, tornam-se responsáveis pela seleção do que deve ser arquivado do
passado.
Gráco 1 – Bibliotecas de origem
Fonte: Acervo de peças teatrais da Fundação Biblioteca Nacional, agosto de 2017
O mapeamento do acervo de peças somado à consulta aos catálogos
de livrarias e bibliotecas públicas tornou possível a percepção da sobrevi-
vência das peças com relação aos seus contextos de origem que, assim, con-
testam ou relativizam seus antigos pertencimentos e não se xam num único
ponto da história do teatro ou do drama. Por outro lado, os dados coletados
trazem fortes indícios de uma rede ampla de agentes envolvidos com o mer-
cado e a circulação das peças manuscritas e impressas, como por exemplo,
editores, livreiros, colecionadores, bibliotecários, tipógrafos, censores, tradu-
tores, adaptadores, e também autores, atores, atrizes, teatros e companhias,
que através de negociações, acordos e conitos, deniam os limites e os
possíveis da cultura dramática naquele contexto. Tomar separadamente as
1800
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1809
1810
-
1819
1820
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1829
1830
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1839
1840
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1849
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1869
1870
-
1879
1880
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1889
1890
-
1900
Coll. Thereza Chrisna 1 2 3 18
Col. B. Ooni 4 1 3 3 8 4 1
Carimbo Col. F. R. Paz 4 4 11 7 4
Coleção J. A. Marques 2 7 6 14 1 1 4 1 2
Coleção D. Thereza Crisna
Maria 30 19
Coll. Salvador de Mendonça 2 2 1 11 9 15 14 37 1
Coll. V. de Taunay 1 18 15 11 77
Outras Bibliotecas 6 5 4 20 20 16 8 20 15 16
Coleção Maria de Castro 1 2 8 73 168 48
0
50
100
150
200
250
Número de obras
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peças escritas, as publicadas e as encenadas é deixar de observar o circuito
maior do mercado dramático informado pelos registros dramáticos do Brasil
no século XIX.
Nossa história das peças teatrais no Brasil do período investigado neste
artigo começa pela fundação da Impressão Régia do Rio de Janeiro (1808),
pela chegada da Real Biblioteca portuguesa (1811) e pela criação do Real
Teatro D. João (1813). Essas são as primeiras instituições responsáveis pela
circulação da cultura dramática, que começa a ser delimitada antes mesmo
de sua chegada ao palco em 1837 com a encenação de Antônio José, o poeta
e a inquisição, de Antônio Gonçalves de Magalhães, pela companhia nacional
fundada e dirigida pelo ator João Caetano. As três iniciativas ajudaram a de-
nir o território do repertorio dramático, inclusive para as companhias teatrais
prossionais do começo do século XIX que funcionavam à base de coletânea
de textos segundo os pers dramáticos adotados.
Após a chegada da corte portuguesa, em 1808, tornou-se fundamental
a instalação de uma tipograa, estabelecimento que até então era proibido
por decreto régio de existir na Colônia, para a publicação de éditos, portarias
e outras formas de impressos governamentais e administrativos. Para tanto,
em 13 de maio de 1808, o príncipe regente baixou uma portaria para a criação
do equipamento:
Tendo-Me constado, que os Prélos, que se achão nesta Capital, erão os
destinados para a Secretaria de Estado dos Negocios Estrangeiros, e da
Guerra, e Attendendo á necessidade, que ha da Officina de Impressão
nestes Meus Estados: Sou servido, que a Caza, onde elles se estabele-
cêrão, sirva interinamente de Impressão Regia, onde se imprimão exclu-
sivamente toda a Legislação, e Papeis Diplomáticos, que emanarem de
qualquer Repartição do Meu Real Serviço; e se possão imprimir todas, e
quaisquer outras Obras […]. Com a Rubrica do PRINCIPE REGENTE,
N. S. (grifo no original)
A Impressão ocupou o pavimento térreo da casa nº 44 da Rua do Pas-
seio, no Rio de Janeiro, residência do Conde da Barca, e mais tarde foi trans-
ferida para a Rua dos Barbonos, atualmente Evaristo da Veiga, esquina da
Rua das Marrecas. No ano seguinte, a tipograa voltou para a mesma rua
de seu antigo endereço. Logo após, foi transferida para a Academia de Belas
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Artes e, em seguida, para o prédio da Cadeia Velha. Desse passado de mu-
danças, a biblioteca dramática da FBN, no período de 1800 a 1900, possui
onze títulos saídos dos prelos da antiga tipograa.
A Real Biblioteca foi fundada por decreto régio em 29 de outubro de
1810, mas abriu as portas ao público apenas em 1814 e, somente três anos
após a Independência, se tornou patrimônio do Brasil mediante a Convenção
Adicional ao Tratado de Paz e Amizade celebrada com Portugal e, ndo o
acordo, a instituição passou a ser chamada de Biblioteca Imperial e Pública
da Corte. Além dessa biblioteca imperial levantamos dados das coleções da
Biblioteca Fluminense, da Biblioteca Nacional e Pública da Corte, da Biblio-
teca Pública da Capital do Império.
Após processar os dados totais da pesquisa, percebi a convivência de
peças teatrais de gêneros e períodos distintos, mas tendo pelo menos uma
linha de demarcação no território dramático do século XIX: de um lado, um
conjunto de autores, títulos e gêneros representativo do chamado “antigo regi-
me dramático”, por outro lado, um conjunto que identicaremos como o “novo
regime dramático”. Essa distinção não signica exclusão ou superação de um
pelo outro, mas um traço dominante nos repertórios bibliográcos, pois ocorre
antes de transformações, apropriações, interferências e coexistências entre
as formas do velho e do novo regime, conforme os dados revelam.
O que chamamos de “novo regime dramático” corresponderia as formas
novas que surgem da luta contra o “antigo regime dramático” e o domínio dos
gêneros tradicionais da tragédia e da comedia clássicas, como também das
formas populares e cômicas, perpetradas desde o nal do século XVIII por
Denis Diderot (1713-1784) em nome do “gênero sério” em suas Conversas
com o lho natural (1757). Posteriormente, essa luta ganharia também a for-
ma do drama romântico defendido por Victor-Marie Hugo (1802-1885) em seu
conhecido Prefácio ao Cronwell (2007). Em 1830, esse combate é acirrado
com a “batalha do Hernani”, após a estreia da peça de mesmo título, com
partidos contra ou a favor da peça que foi considerada de “mal gosto” por seu
tema, estilo e composição, em razão da violação das regras clássicas e tam-
bém da sua exigência de decoro. Por último, esse novo regime incorporou em
termos de gêneros o vaudeville reformado de Éugene Scribe (1791-1861) e a
opera bufa surgida com Orfeu no inferno, de Jacques Offenbach (1819-1880).
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Assim, ele corresponderia a um conjunto de formas novecentistas desdo-
bradas do “drama burguês” mesmo no caso do drama romântico, que,a prin-
cípio, se posicionaria contra o burguês. Mas essa luta não acabou com amor-
te dos velhos gêneros, segundo sugerem os dados de gêneros, mas em sua
transguração ou transformação pela sobrevivência através das peças ou dos
textos teatrais. Entretanto, a distinção se mostra pertinente quando reconhe-
cemos a dinâmica dos gêneros dramáticos segundo o desenvolvimento da
cultura dramática apresentado pelo quadro geral do acervo, que nos mostra
um crescimento do repertório e do espectro dramático após os anos de 1830.
Gráco 2 – Dados gerais (obras raras, obras gerais, manuscritos)
do período 1800-1900
Fonte: Acervo de peças teatrais da Fundação Biblioteca Nacional, agosto de 2017
O Gráco 2 mostra um aumento signicativo no número de peças publi-
cadas na década de 1840, sobretudo no Rio de Janeiro, que supera Lisboa e
Paris e cujos indícios que dispomos salientam, antes de tudo, o aparecimento
de inúmeras tipograas e casas editoras particulares envolvidas no mercado
das peças teatrais. Mas não podemos entender esse crescimento desvincu-
lado do surgimento de teatros e companhias particulares no mesmo perío-
do, cujos efeitos conjugados me parecem explicar melhor a curva acentuada
da produção impressa teatral nacional, especialmente carioca, por mais três
décadas.
30 45 57 76
188
211
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413
249
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Esse ritmo do mercado editorial dramático, que chega a ser vertiginoso
de fato nos anos de 1860 e 1870, foi observado pela literatura especializada,
no âmbito da produção impressa, como um todo:
O tema da crise do livro ligada à superprodução aparece desde a segun-
da revolução industrial do livro, no século XIX, a dos anos de 1860-1870,
quando se abandona a composição manual de Gutemberg para passar
à era do monotipo e depois à do linotipo. O aumento das tiragens, o
crescimento da produção impressa, sem falar da produção do jornal e a
multiplicação de periódicos e revistas, acompanham esta mutação téc-
nica (CHARTIER, 1999, p. 126).
O aumento de produção das publicações teatrais num primeiro momen-
to favoreceu as tipograas e as casas editoras localizadas no Rio de Ja neiro,
que parecem ter se beneciado também das melhorias nos sistemas de trans-
porte e de comunicação, implementando as viagens, o comércio e os deslo-
camentos entre a corte do Segundo Reinado e as demais cidades brasileiras,
sul-americanas e europeias, conforme os indícios do acervo sobre o alcance
do mercado dramático a partir da segunda metade do século XIX.
Gráco 3 – Casas editoriais por locais de publicação
Fonte: Acervo de peças teatrais da Fundação Biblioteca Nacional, agosto de 2017
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A cultura dramática do século XIX no Brasil
Rio de Janeiro (476 registros), Paris (265 registros) e Lisboa (138 regis-
tros) formavam a principal rota de distribuição e circulação da cultura dramá-
tica identicada a partir dos registros do acervo, mas é preciso observar que a
posição que cada uma delas ocupa se modica ao longo do período. Nas três
primeiras décadas, era Lisboa que concentrava o maior contingente, depois
dos anos de 1840, é o Rio de Janeiro a cidade que assume a liderança e se
mantem nela por quatro décadas. No nal do século, o quadro sofre uma nova
mudança, e Paris passa a ocupar o primeiro lugar. Por outro lado, a presença
crescente de Milão (59 títulos), Londres (42 registros) e Madri (29 registros)
observada pelos dados se deve antes de tudo aos itens pertentes às coleções
completas editadas em vários volumes ou em diferentes séries de um mesmo
autor (obras completas ou teatros completos) ou de um mesmo universo dra-
mático (por exemplo, comédias).
No momento em que o mercado das peças teatrais do Segundo Rei-
nado parece chegar ao pico, alguns gêneros são privilegiados (ópera cômi-
ca), e outros praticamente perdem visibilidade (tragédia). Podemos interpre-
tar esse movimento lembrando a observação de Franco Moretti, a respeito
do mer cado romanesco, de que “se o tamanho do mercado torna a seleção
inevitável, portanto (anal de contas, nenhum mercado é grande o suciente
para todos os romances do século XIX), sua direção é determinada por forças
culturais especícas” (MORETTI, 2003, p. 191). Sendo assim, o aumento no
número de tipograas deve ser pensado também do ponto de vista do “regime
dramático” que elas ajudaram a constituir e a consolidar no século XIX. Mes-
mo que depois tenham achado o gurino apertado demais.
Em alguns momentos, o mercado pode se mostrar mesmo limitado de-
mais em sua oferta de gêneros para um público que anseia por novas expe-
riências dramáticas e assim passa as críticas ao repertório existente, como
por exemplo, o caso do empreendimento ou projeto editorial do Archivo Thea-
tral português que passa a ser publicado em Lisboa entre 1838 e 1845. A
coleção foi incentivada e patrocinada pela “sociedade para a publicação de
bons dramas” em colaboração com a Tipograa Carvalhense e seu impacto
e alcance podem ser medidos pela duração e regularidade da publicação,
que contava com o lançamento de uma tradução por mês e cujo repertório
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acompanhava os sucessos de palco das companhias francesas nos teatros
da Rua dos Condes e do Salitre:
Durante cerca de 2 anos e quatro meses, a sociedade lisboeta acor-
ria ao agora apelidado Teatro Francês para assistir, em língua francesa,
às peças do repertório de uma companhia vinda de Paris, deixando-se
sedu zir, sobretudo, pela novidade do drama romântico, do melodrama
e do vaudeville importado dos palcos dos teatros de boulevard. Nestas
condições, era legítimo que se preservasse, no mundo editorial, aquilo
que tinha sido o impulso dado no mundo do espetáculo (SANTOS, 2011,
p. 120).
Na década de 1840, a coleção fez circular diversos títulos franceses
através de traduções e adaptações tomados ao repertório dos teatros Gaité,
Porte Saint-Martin e o Ódeon (Ibid., p. 121). O objetivo mais amplo era di-
vulgar junto ao público lisboeta o repertório francês que dominava o cenário
teatral europeu e era considerado símbolo do cosmopolitismo, da civilidade e
da novidade da cena parisiense. Assim, a eminente sociedade buscava em-
preender através de seu projeto editorial a renovação da cena portuguesa,
substituindo o antigo regime teatral português pelo novo regime dramático do
palco francês.
O signicado do repertório francês no contexto de emergência dos tea-
tros nacionais é ambíguo; de um lado, reivindicado como meio de combate
ao antigo regime teatral português e eixo em torno do qual erigir uma nova
cena nacional, de outro lado, visto como obstáculo justamente a sua consti-
tuição, conforme observou Jean-Claude Yon: “a difusão do teatro estrangeiro
não pode ser estudada e apreendida simplesmente pelo prisma das noções
de inuência e dominação como raciocinaram os nacionalista de 1900” (2007,
p.142, tradução minha). Neste contexto, as traduções pareciam destinadas
pela “sociedade para publicação dos bons dramas” ao papel de agentes da
renovação do teatro português. Uma década depois, o Archivo Theatral foi
publicado no Rio de Janeiro e, segundo os dados que dispomos, sob a res-
ponsabilidade da Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e
Companhia.
A curva de crescimento das publicações acompanha também a mul-
tiplicação das práticas de escrita e o aparecimento de novas denições de
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A cultura dramática do século XIX no Brasil
gênero dramático atribuídas às peças no mercado em expansão dos impres-
sos teatrais, conforme observamos nos grácos IV e V, que expressam uma
situação geral na qual se torna impossível classicar as peças teatrais apenas
em termos dos gêneros dramáticos tradicionais. Talvez por isso a diculdade
em distribuir as peças segundo uma classicação mais simples e estável num
terreno que parece disperso e móvel.
O aumento do mercado dramático visualizado a partir dos dados levou,
de um lado, à concentração numa trajetória já conhecida pela historiograa
que, em geral, também vemos delinear-se na seleção editorial do nicho de
obras completas e teatros completos e, de outro lado, à dispersão, multipli-
cação e variedade do repertório disponível no mercado e ao alcance de um
público que, a princípio, parecia mais interessado em títulos avulsos e de gê-
neros distintos que nos eixos modelares do “novo regime dramático” europeu
daquele período. Dessa maneira, são as suas franjas, as margens, que suge-
rem atalhos, linhas de fuga, outros roteiros e viagens pelo acervo dramático
da instituição e questões velhas para serem investigadas em novas bases.
Gráco 4 – Gênero do texto
Fonte: Acervo de peças teatrais da Fundação Biblioteca Nacional, agosto de 2017
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O Gráco 4 questiona a tese da decadência do teatro brasileiro no nal
do século XIX em função do ocaso do drama e da tragédia em proveito dos
sucessos ligeiros (CAFEZEIRO, 1996; MAGALDI, 1962; PRADO, 1999), os da-
dos mostram que essa queda nos números da produção dramática era geral e,
também, salientam que outros fatores estariam determinando esse recuo dos
dois gêneros, já que a baixa coincide com a Proclamação da República (1889).
A pequena trajetória dos impressos teatrais no Brasil do século XIX, que co-
meçou com a chegada da corte portuguesa em 1808, terminaria com a reação
republicana ao repertório imperial construído em torno da casa dos Bragança?
A maior ramicação do mercado dramático (grácos 4 e 5) levou também
ao aparecimento ou à consolidação de distintas formas da escrita dramática
de meados para ns do século XIX. O total dos registros que nos informam
sobre as práticas da escrita e tradução teatral entre 1800-1900 é de 358, por-
tanto, corresponde a menos de 50% do conjunto geral do acervo. Os títulos
identicados pelos registros como tradução formam a maioria das entradas
encontradas, somando algo em torno de 165 volumes, mais as 10 peças que
nasceram da tradução livre. Em seguida, os registros de originais somando
94 volumes. Mais os itens identicados como “versão de” contemplados com
17 registros, “imitação de” com 13 registros, “arranjada de” com 8 registros,
“parodia de” com 6 registros, “acomodação de” com 5 registros, “adaptação
de”, com 3 registros e, nalmente, as de menor incidência que dispomos: “re-
dução de” e “coordenação de”, com 2 registros cada e “imitação livre de” com
apenas 1 item.
O Gráco 5 esclarece que não temos como pensar a biblioteca dramá tica
do Brasil do século XIX independente desse universo mais amplo informado
pelos diversos meios de escrita da cultura dramática à disposição inclusive
dos candidatos a dramaturgos naquele contexto. Essas práticas de escrita
oferecem uma pista para entendermos a diluição das formas mais canô nicas
do drama em quadros e cenas cada vez mais numerosa e, por outro lado,
sinalizam uma rua de mão dupla. Em maior ou menor grau, cada uma delas
pode ser aproximada da noção de paródia de Linda Hutcheon (1985, p.89),
ou seja, como práticas de escrita marcadas pela repetição com diferença,
mas para vericar o alcance dessas práticas tradutórias seria preciso passar
do universo dos números ao dos textos.
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A cultura dramática do século XIX no Brasil
Gráco 5 – Originais e práticas tradutórias
Fonte: Acervo de peças teatrais da Fundação Biblioteca Nacional, agosto de 2017
Considerações
Para nalizarmos esse curto percurso pelo mapa geral do acervo, é pre-
ciso observar que os dados levantados pressupõem outros critérios de maior
ou menor, de mais ou menos importância. Conforme o número de edições e
reescritas em torno de um mesmo título, podemos medir o renovado interesse
dos leitores-espectadores por uma obra ou um autor. No caso especíco do
repertório do teatro brasileiro do século XIX, os dados informam uma seleção
distinta dos melhores textos de autores brasileiros eleitos pela literatura espe-
cializada (CAFEZEIRO, 1996; MAGALDI, 1962; PRADO, 1999). Isso não é
um problema até o momento em que os tomamos como as principais fontes
de acesso e estudo do passado dramático do teatro brasileiro. Neste sentido,
a quanticação da cultura dramática disponível no Brasil do século XIX nos
ajuda a entender melhor inclusive as escolhas individuais. O mapa do acervo
não visa diminuir o apreço pelas raridades também encontradas na biblioteca
dramática da instituição, como por exemplo, as primeiras e segundas edições
de diversas obras de autores brasileiros.
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Recebido em 16/10/2017
Aprovado em 21/10/2017
Publicado em 26/12/2017