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ECONOMIA SOLIDÁRIA E EMPREENDEDORISMO SOCIAL EM PROL DO
DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE1
Ricardo Rohm, D.Sc.
Carine Morrot de Oliveira
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso
corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo
da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós
mesmos.”
Fernando Teixeira de Andrade
É nítido o avanço conquistado durante o século XX em diversas áreas do
conhecimento. Em média, as pessoas vivem mais tempo e inúmeras doenças, que em
outros tempos dizimaram populações, hoje são tratáveis. A Revolução Tecnológica
trouxe avanços nos setores de microeletrônica, computação e telecomunicações,
influenciando diretamente a extensão, o custo e a velocidade de circulação das
informações, bem como forçou a busca por novos processos produtivos e novos
modelos de gestão. Isso permitiu um alto grau de inovação e uma composição mais
eficiente do trabalho, do capital, dos conhecimentos gerados e dos recursos naturaisi.
Consequentemente, houveram aumentos de produtividade e lucratividade e a
organização do trabalho sofreu diversas modificações para a adaptação ao novo
paradigma global informacionalii. Em suma, o capitalismo trouxe avanços tecnológicos
positivos, pela conquista de uma produtividade crescente, pelos avanços na saúde, na
informação, no melhoramento de processos produtivos.
Ao mesmo tempo, mesmo com todo avanço, é nítida também a persistência –
inclusive o agravamento – de questões sociais como a pobreza, a fome, a violação de
direitos básicos de diversos grupos minoritários, entre eles, as mulheres, e da grave crise
ambiental atual que ameaça a sustentabilidade da vida no planetaiii. A consolidação do
neoliberalismo ocorrida juntamente com os avanços tecnológicos positivos e também a
1¹ Texto adaptado da monografia submetida à coordenação de curso de Administração da UFRJ como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de bacharel.
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consolidação das empresas privadas como modelos a serem seguidos por excelência e a
crença de que são os grandes responsáveis pelo progresso e riqueza das nações levou ao
enfraquecimento das instituições sociais, em especial, o Estado. O aspecto econômico,
alçado à categoria de valor supremo, transformou a sociedade de tal forma que
dissolveu os valores sociais e coletivosiv. Como aspectos negativos desse período pode-
se destacar: o pouco controle e regulamentação em áreas que afetam diretamente a vida
humana como a genética, as indústrias bélicas, de química fina ou a agroindústria.
Somado a outros efeitos colaterais como a concentração de renda e a sistemática
contração das liberdades dos indivíduos fica revelado que o modelo de desenvolvimento
capitalista não traz tantos benefícios para a maior parte da população do planetav. Sua
superação, portanto, é o ponto fundamental no processo de desenvolvimento da
humanidade.
Estudioso sobre a temática, Boaventura Sousa Santos indica que a alternativa se
encontra na construção de um novo padrão de relações locais, nacionais e
transnacionais, baseadas nos princípios da redistribuição (igualdade) e do
reconhecimento (diferença)vi. Amartya Sen, Nobel de economia, acredita e comprova
que, ao priorizar questões sociais, saúde e educação, cria-se a base para o aspecto
econômico de uma forma saudável. Para isso, é necessário que sejam eliminadas as
privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas
exercerem ponderadamente sua condição de livre agente. Pois é disto, de poder fazer
aquilo que se tem motivo para fazer, que deriva o desenvolvimento e a transformação de
realidadesvii.
Já existem diferentes iniciativas populares organizadas localmente e articuladas
em redes de solidariedade transnacional em todo o mundo como forma de resistência à
exclusão social, buscando espaço para a participação democrática, para a construção da
comunidade, para alternativas a formas dominantes de desenvolvimento e
conhecimentoviii. A seguir veremos relatos de iniciativas que estão usando “novas”
formas de gestão afim de transformar realidades e questionar os padrões de uma
economia que já não mais faz sentido.
“Novas” formas de gestão
As “novas” formas de gestão narradas a seguir, a saber, Economia Solidária e
Empreendedorismo Social, procuram resgatar os valores sociais e coletivos que foram
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se perdendo diante às investidas (neo)liberais, dentre os quais: igualitarismo (não
hierarquia), solidariedade, autogestão, tomada de decisão por consenso, coletividade e
compartilhamento. É importante grifar que esses tipos não são engessados, e seus
conceitos não são consensuais, existindo bastante confusão em relação à conceituação e
diferenciação de Economia Solidária e Empreendedorismo Socialix. Contudo, o foco
deste trabalho é demonstrar que independente de conceituações teóricas, é possível a
criação e a operação de um modelo bem menos agressivo do que o vigente. Uma das
principais diferenças percebidas nesta pesquisa entre Economia Solidária e
Empreendedorismo Social é o lucro. De modo geral, para este último, o lucro, quando
não abusivo, é positivo, sustentando e mantendo o negócio aquecido; enquanto que para
a Economia Solidária, é visto como desnecessário, uma vez que é o excedente após
pagamento de todos os dividendos (incluindo pró-labores e retorno aos acionistas).
Outra característica que distingue bem estes dois tipos é sua estrutura: no
Empreendedorismo Social, as organizações se assemelham a empresas privadas, muitas
vezes funcionando de forma hierárquica. Já na Economia Solidária, é possível perceber
uma maior variedade: associações, cooperativas, coletivos e grupos que podem
funcionar em rede e lideranças que se alternam de acordo com a situação.
Por fim, nota-se que cada organização que busca construir esse “novo” modo de
gestão possui uma experiência única, que contém uma mistura de características e
nuances que se diferenciam entre si, podendo apresentar também algumas contradições
como aspectos da economia de mercado, tão enraizados na cultura pós-moderna. No
entanto, apesar de tais contradições, um ponto crucial levado em consideração neste
trabalho são os arranjos produtivos autogestionários baseados na cooperação, a
concepção do mercado justo, o surgimento da socieconomia solidária e a formação de
redes associativas de desenvolvimento local sustentável e integrado, que sinalizam uma
terceira via como contraponto ao sistema econômico vigente.
Economia Solidária
Estudiosos sobre o tema afirmaram não haver um consenso a respeito da
definição de Economia Solidária (ES), que começou a ser estudada no final do século
XX, como forma de contornar as consequências áridas do sistema econômico e político
excludente. No entanto, é possível notar que o referido “surgimento” da ES é na verdade
muito anterior, tendo como marco nos anos 1990 apenas a invenção de seu conceito,
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começando assim a ser discutido na academia. No texto “A tomada de decisão que leva
em conta a sustentabilidade”x, é possível conhecer o modo de funcionamento do povo
Okanagan, uma tribo indígena norte-americana que traz muito o sentido da ES. O
conceito “en’owkin”, nada mais é do que um princípio norteador da autogestão desta
comunidade:
“O nosso modo tradicional de tomar decisões (...) envolve um processo
específico chamado en’owkin. Essa palavra provém da linguagem sofisticada do povo
okanagan e originou-se de uma filosofia desenvolvida para incentivar a cooperação
voluntária. As três sílabas que formam essa palavra na língua okanagan invocam a
imagem de um líquido sendo absorvido gota a gota pela cabeça (mente) – possibilitando
que se chegue ao entendimento por meio de um suave processo de integração.
Tradicionalmente, o povo okanagan recorria a esse processo quando a comunidade tinha
que fazer uma escolha. (...) um dos membros mais velhos solicita às pessoas (...) que
cada uma delas contribua (...) O que se segue não é tanto um debate como um processo
de esclarecimento, que incorpora informações do maior número possível de pessoas, por
mais irrelevantes, triviais ou controversas que possam parecer essas informações – uma
vez que, no en’owkin, nada é descartado ou visto com preconceito. O processo é
conduzido deliberadamente, num primeiro momento, não para a busca da solução.
Antes, ele busca informações concretas, investigando como a decisão pode afetar as
pessoas e as coisas tanto a longo quanto a curto prazo. A etapa seguinte do processo
desafia o grupo a sugerir possíveis soluções, sem esquecer de nenhum dos interesses
manifestados pelos outros”xi.
Na tradição desta tribo, os mais velhos desenvolvem os mais novos para terem a
percepção de um dos quatro prismas: “anciões”, “mães”, “pais” e “jovens”. Os
“anciões” são os representantes da terra, que têm a responsabilidade de questionar de
que maneira a decisão vai afetar a terra – e assim, os alimentos, a água, e as próximas
gerações. “Mães” são aqueles que se responsabilizam com o bem-estar familiar e com
as relações dentro da comunidade e dão conselhos importantes sobre política e sistemas
que funcionam com base nas relações humanas. Os “pais”, por sua vez, são os membros
que ficam responsáveis pela segurança, sustento e moradia, indicando estratégias
práticas, logística e ação. “Jovens” são aqueles que possuem um profundo potencial de
energia criativa e desejam mudanças que trarão um futuro melhor. Eles são responsáveis
por aplicar seu talento criativo e artístico em busca de inovações, novas formas de ver as
coisas. Não existe um protocolo rígido, mas é certo que cada membro exerça o papel
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que lhe seja mais natural, mais apropriado. “O objetivo do processo não é as pessoas
persuadirem a comunidade de que elas estão certas, (...) mas fazer com que cada
indivíduo entenda da maneira mais clara possível as razões por que as opiniões dos
outros são contrárias às suas. Cada pessoa é responsável por perceber as visões,
preocupações e razões das outras, já que é do interesse dela própria que a decisão atenda
a necessidade de toda a comunidade. Como esse processo não exige a concordância de
todos – pois isso raramente ocorre -, o resultado é cada um ser totalmente informado
durante o processo sobre o que vai acontecer e como cada pessoa vai contribuir. A ação
finalmente escolhida será a melhor possível para a comunidade, levando-se em
consideração tanto as suas necessidades sociais concretas a curto prazo quanto as suas
necessidades psicológicas e espirituais a longo prazo”xii.
A abordagem da democracia atual como “o poder da maioria” não é salutar pois
“institui a opressão da maioria, situação na qual sempre haverá conflito. (...) [Na
tradição okanagan], a voz da minoria é a voz mais importante a ser considerada, porque
é ela que mais provavelmente vai nos dizer que erros estamos cometendo, do que não
estamos cuidando, o que não estamos fazendo ou onde não estamos atuando com
responsabilidade. (...) Ao colocar em prática a vontade da maioria, muitas vezes criamos
uma grande disparidade e injustiça para a minoria, o que por sua vez, vai provocar
divisões, polaridades e dissensões constantes. Esse tipo de processo é na verdade um
modo de garantir a hostilidade e a divisão contínuas, cujos resultados serão atos de
agressão que podem desestabilizar toda a comunidade e criar insegurança, desconfiança
e preconceito. A verdadeira democracia não significa poder em termos numéricos, mas
colaboração enquanto um sistema organizado”xiii.
Não foram encontradas pesquisas que apontassem uma estimativa do surgimento
deste povo, mas sabe-se que as tribos americanas, de um modo geral, populavam a
América muito antes da chegada dos colonizadores europeus; portanto pode-se afirmar
que práticas de autogestão e a vida em comunidade baseada em valores solidários,
participativos e de igualdade datam de muito antes do que o final do século XX.
É importante notar que usar métricas de um determinado espaço-tempo para
categorizar, enquadrar e rotular práticas referentes a outro espaço-tempo tem
implicações que não são triviais. Da mesma forma que os gregos da Grécia Antiga não
se reconheceriam como homossexuais, os índios Okanagan não se considerariam
praticantes de ES, exatamente como ocorre até hoje: integrantes de organizações
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teoricamente ‘reconhecíveis’ como pertencentes à ES muitas vezes desconhecem do que
se trata.
Neste ponto é essencial registrar a importância da experimentação e da vivência
para compreender que as categorias, conceitos e classificações teóricas não conseguem
abarcar todas as possibilidades de práticas existentes no mundo real. Elas existem por
fins didáticos, para o entendimento de modelos, processos, práticas e afins. No mais, as
categorias nos levam a generalizar, padronizar, enquadrar – o que vai de encontro aos
valores e ideias buscadas neste trabalho. É preciso ter em mente, portanto, que cada
experiência, cada organização que envolve os valores e práticas aqui relacionados é
única, possuindo aspectos, nuances e até mesmo contradições singulares. Assim,
podemos compreender a ES “como um conceito-movimento que diz respeito a
iniciativas coletivas que buscam, em contínua tensão, valores como a solidariedade, o
igualitarismo e a autogestão, distintos daqueles capitalistas, ainda que as expressões e
sentidos destes próprios valores sejam diversos em suas múltiplas manifestações”xiv.
Com o intuito de ilustrar o funcionamento prático da Economia Solidária, a
seguir está descrita a iniciativa do Banco Palmas.
Banco Palmas
O Banco Palmas surgiu como consequência da mobilização comunitária dos
moradores do Conjunto das Palmeiras, periferia de Fortaleza. Removidos de suas casas
em uma favela à beira mar na cidade nos anos 1970 para especulação imobiliária, o
grupo de pessoas foi realocado numa região pantanosa e de difícil acesso, ausente de
qualquer infraestrutura. Diante daquela situação, em período de ditadura militar e,
portanto, sem poder reivindicar, a população local começou a se mobilizar. “Habitando
o inabitável” foi o tema de uma das primeiras reuniões do que veio a se tornar a
associação de moradores do bairro. Com as próprias mãos, os habitantes do Conjunto
das Palmeiras fizeram a urbanização do local: construíram o sistema de esgotamento, a
pavimentação de ruas, o sistema de transporte e mais o que fosse necessidade para a
comunidade - creches e até mesmo uma casa de partos, mais tarde fechada pelo
governo, “que não fornecia nenhuma assistência e ainda criava barreiras para as
soluções criadas pela ação comunitária”xv.
No fim dos anos 1990, com a urbanização concluída, parte da população do
Conjunto começou a se desfazer de suas casas para ir morar em outras favelas, por não
conseguir arcar com as despesas (IPTU, água, luz, entre outras). Para compreender a
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situação, até então entendida como falta de dinheiro, foi feito o Mapa da Produção e do
Consumo, um levantamento do consumo das famílias: marca e quantidade dos produtos
e local de compra. O resultado demonstrou que as 30 mil famílias do Conjunto das
Palmeiras consumiam por mês um montante de R$1,2 milhões com alimentação,
vestuário e produtos de higiene e beleza, tudo comprado fora do bairro. Assim, para
manter a riqueza produzida no próprio bairro, o Banco foi criado para conceder
microcrédito tanto para o consumo, tanto para financiar pequenos empreendimentos,
gerando postos de trabalho e rendaxvi.
A moeda social, o Palmas, lastreada e indexada ao real, é aceita em centenas de
empreendimentos no Conjunto das Palmeiras, de pontos de comércio, como mercearias,
ao posto de gasolina e até mesmo no transporte público. O modelo do Banco constitui-
se numa operação integrada de quatro produtos: (1) crédito em Palmas, que é
direcionado ao consumo, sem taxa de juros, sendo apenas cobrada uma taxa
administrativa; (2) crédito para a produção, feito em reais a taxas de juros bem baixas,
para que os empreendimentos possam comercializar fora do bairro para conseguir seus
insumos; (3) correspondente bancário, hoje, da Caixa Econômica Federal e (4) um forte
controle social sobre as atividades do Banco. O Instituto Palmas também possui
algumas iniciativas e projetos como: cursinho pré-vestibular, curso de formação de
consultores comunitários, ambos para garantir a formação dos moradores e a
perpetuidade do Banco; o projeto ELAS, voltado para a orientação e formação de
mulheres em risco social, beneficiárias do Bolsa Família e tomadoras de crédito do
Banco Palmas, objetivando sua inclusão socioprodutiva, financeira e bancária, além de
organizar feiras para a divulgação e comercialização da produção do bairro, entre outras
iniciativas.
Para ilustrar o impacto da iniciativa, de 2007 a 2009, o Banco Palmas realizou
mais de 3 mil operações de crédito, com um volume total emprestado de R$
4.126.712,79, trazendo benefícios para 2.500 famílias, mantendo e gerando novos
postos de trabalho e fazendo a gestão de quase 80 milhões de reaisxvii. A tabela abaixo
revela os indicadores das iniciativas relacionadas ao Instituto Palmas:
Figura 1 – O Banco Palmas em números
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Fonte: Instituto Palmas (2010)
Na obra “Banco Palmas: 15 anos resistindo e inovando” é possível perceber que
a iniciativa não só trouxe benefícios no aspecto financeiro, mas também no sentido
psicossocial, da inserção na vida em comunidade, do exercício da cidadania e na
condição de agente dos indivíduos – não só daqueles que são moradores do Conjunto
Palmeiras. Esta iniciativa foi pioneira e deixou um legado: hoje já são mais de 100
bancos comunitários no Brasil, em 19 estados, e organizados em rede. O Instituto
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Palmas dá apoio até para outros países interessados em implantar moedas sociais e
bancos comunitários adequadas às suas realidades.
A partir de 2015, a necessidade de modernização do sistema financeiro dos
bancos comunitários levou ao início da experimentação do E-Dinheiro, moeda social
eletrônica, operacionalizada por meio de aplicativo de celular e que tem toda a sua
gestão e administração passando pelo controle dos bancos comunitários.
Empreendedorismo Social
Assim como a Economia Solidária, o Empreendedorismo Social também tem
seu conceito sendo discutido na academia recentemente e pode ser entendido como uma
“inovação de estilo empresarial na solução de problemas e causas sociais, impactando
ações que geram, na prática, mais do que na teoria, a emancipação social, a inclusão
social e o empoderamento dos cidadãos por meio do estoque do capital social e ações
voltadas para o desenvolvimento integrado e sustentável”xviii.
O Empreendedorismo Social possui raízes teóricas ligadas à corrente do
empreendedorismo como estratégia de desenvolvimento local integrado e sustentável,
tendo uma finalidade multidimensional: não só econômica e social, mas também
cultural, ecológica e política, visando à qualidade de vida, o desenvolvimento humano,
indicando caminhos para as necessidades de transformação social e desenvolvimento
sustentávelxix. “As dimensões oportunidade, inovação, valores, desenvolvimento e outras
advindas das definições de empreendedorismo no campo empresarial se revestem de
significados com sentidos mais justos e humanos”xx.
O quadro abaixo demonstra as principais características do empreendedorismo
social e as diferenças quanto a conceitos com os quais pode ser confundido:
Figura 2 - Características do Empreendedorismo Social, Responsabilidade Social
Empresarial e Empreendedorismo Privado
Empreendedorismo
Privado
Responsabilidade Social
Empresarial
Empreendedorismo
Social
É individual É individual com possíveis
parcerias
É coletivo e integrado
Produz bens e serviços
para o mercado
Produz bens e serviços
para si e para a
Produz bens e serviços para
a comunidade, local e
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comunidade global
Tem foco no mercado Tem foco no mercado e
atende à comunidade
conforme sua missão
Tem foco na busca de
soluções para os problemas
sociais e necessidades da
comunidade
Sua medida de
desempenho é o lucro
Sua medida de
desempenho é o retorno
aos envolvidos no processo
stakeholders
Sua medida de desempenho
são o impacto e a
transformação social
Visa satisfazer
necessidades dos clientes e
ampliar as potencialidades
do negócio
Visa agregar valor
estratégico ao negócio e
atender expectativas do
mercado e da percepção da
sociedade/consumidores
Visa resgatar pessoas da
situação de risco social e a
promovê-las, e a gerar
capital social, inclusão e
emancipação social
Fonte: Oliveira (2004)
Dessa forma, pode-se depreender que o empreendedorismo social objetiva “criar
e sustentar o valor social, não apenas o privado”xxi. O despertar passa pela condição de
livre agente dos indivíduos. A percepção de que “o Estado, apesar de necessário,
imprescindível e fundamental, é tido como insuficiente para aportar energias novas a
fim de expandir e ampliar a mobilização dos mais diversos recursos e o mercado, com
sua lógica instrumental excludente, também não pode liderar o processo de
desenvolvimento sustentável”xxii, deve motivar a ação da sociedade civil como um todo,
com a finalidade de conjugar de esforços e construir novas possibilidades.
Para demonstrar o Empreendedorismo Social na prática, o próximo capítulo
expõe uma importante iniciativa: o Sistema B.
Sistema B
O Sistema B nasceu do desejo de três amigos de contribuírem ativamente para a
construção de uma nova realidade: equiparar a importância do social e do ambiental
elevando-os à categoria de importância que o lucro de curto prazo para o acionista tem
na atualidade, trazendo benefícios para todos e fazendo uso das ferramentas da empresa
privada para diminuir desigualdades, reconstruir comunidades, regenerar ecossistemas e
oferecer empregos que deem dignidade e propósitoxxiii.
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As chamadas Empresas B reconhecem o papel essencial do Estado e da
sociedade civil, mas entendem que a atuação de ambos não é suficiente para enfrentar
os desafios socioambientais globais atuais. A mudança do paradigma de “ser a maior
empresa do mundo” para “ser a melhor empresa para o mundo” é a principal ideia do
movimento que pode ser vista no modelo de gestão diferenciado de suas empresas. Ao
invés do lucro, a razão de existir das Empresas B é alguma meta socioambiental. Por
exemplo, a missão da Guayaki é restaurar 200 mil hectares da Mata Atlântica sul-
americana, criando mais de 1.000 postos de trabalho salário digno até 2020xxiv. A
empresa vende o chá-mate produzido na floresta regenerada em mais de dez mil pontos
nos Estados Unidos – ou seja: o retorno financeiro da empresa não é maior do que o
crescimento que a natureza pode suportarxxv.
Assim, as Empresas B podem ser entendidas como “uma ação inovadora voltada
para o campo social cujo processo se inicia com a observação de determinada situação-
problema local, para a qual se procura, em seguida, elaborar uma alternativa de
enfrentamento” (Oliveira, 2004, p. 15), prenunciando, no contexto atual, “a renovação
da intervenção social, das oportunidades do mercado de trabalho, da criação de formas
alternativas de produção econômica e de participação social e democrática” (Godói-de-
Sousa et al., 2011, p. 23).
O Sistema B, rede formada por Empresas B, é balizado por um processo de
certificação bienal que tem como base indicadores de práticas de gestão - e não de
resultados -, o que torna possível medir o sucesso das empresas pelo bem-estar que elas
constroem. Tal questionário, o “B Impact Assessment” pode ser encontrado online e é
possível que empresas interessadas façam testes. Em 2014, a Comunidade B contava
com 1104 empresas certificadas no mundo inteiro, sendo 125 na América do Sul e mais
de 160 outras em processo de certificação. No início de 2017 já são 2048 empresas no
mundo todo, onde 276 são sul-americanasxxvi. Sua missão é construir ecossistemas
favoráveis para um mercado que resolva problemas sociais e ambientais, fortalecendo as
Empresas B. Sua visão é colaborar para uma economia na qual o sucesso seja medido
pelo bem-estar das pessoas, da sociedade e da natureza.
É importante ressaltar que o Ecossistema B objetiva a longo prazo atuar como
articulador, facilitando o desenvolvimento de políticas públicas e legislações favoráveis
em cada país em que está presente, aumentando o fluxo de capital de impacto para a
Comunidade de Empresas B, contribuindo com o fortalecimento da indústria na região,
seja facilitando as oportunidades comerciais dentro da Comunidade B, seja
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impulsionando a inclusão de Empresas B na cadeia de valor de grandes compradores
tanto de setor público como privado. Em relação à academia, o Sistema B busca
promover a formação de talentos e o desenvolvimento de conhecimento empírico sobre
o tema, fazendo com que todos os atores relevantes para o mundo econômico conheçam
e valorizem o papel das Empresas B, além de empoderar pessoas-referência como porta-
vozes do movimento global.
Considerações Finais
O artigo buscou demonstrar o momento de transformação que atualmente se
vive, frisando as mudanças sociais, políticas e econômicas que urgem, e buscando
possíveis soluções no processo de fortalecimento do Empreendedorismo Social e da
Economia Solidária. Tais modelos reforçam que a condição de livre agente dos
indivíduos é ponto fundamental para o Desenvolvimento como Liberdade.
A partir dos exemplos expostos foi possível perceber que tanto o
Empreendedorismo Social como a Economia Solidária como o são catalisadores para a
transformação, e que a geração de valor econômico, ambiental e social é possível,
proporcionando inovação e desenvolvimento local, que pode ser entendido como “o
processo endógeno de mobilização das energias sociais em espaços de pequena escala,
que implementam mudanças capazes de elevar as oportunidades sociais, a viabilidade
econômica e as condições de vida da população”xxvii.
Dessa forma, fica demonstrado que é possível praticar o Desenvolvimento como
Liberdade proposto por Amartya Sen através de modelos de gestão como a Economia
Solidária e o Empreendedorismo Social. O estudo também visa estimular
desdobramentos como outras pesquisas a respeito desses modelos que se fazem
necessárias não só para disseminação e ampliação de suas práticas, mas para a análise
das consequências e demais impactos reais diretos e indiretos no desenvolvimento local
e regional sob a perspectiva não só da Administração, como da Economia, Assistência
Social, Políticas Públicas, do Desenvolvimento Estratégico e demais áreas que podem
se relacionar com a temática.
11
i DUPAS, Gilberto. Ética e poder na sociedade da informação: de como a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito do
progresso. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: UNESP, 2001.
ii FIORI, José Luís. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo. Boitempo Editorial. 2007.
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v FERREIRA, José Maria Carvalho. Da impossibilidade de superar a crise do capitalismo. Revista Utopia, 2008.
vi SOUSA, Boaventura. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006. Também publicado no
Brasil, São Paulo: Editora Cortez, 2006.
vii SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
viii SOUSA, Boaventura. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006. Também publicado no
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x ARMSTRONG, Jeannette. En’owkin: A tomada de decisões que leva em conta a sustentabilidade. In: Stone, M., Barlow, Z. (orgs.)
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Alfabetização Ecológica: A educação das crianças para um mundo sustentável. Cultrix, 2006.
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Curitiba, v.7, n.2, p. 9-18, jul./dez 2004.
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xx GODOI DE SOUSA, Edileusa.; GANDOLFI, Peterson.; GANDOLFI, Maria Raquel. Empreendedorismo Social no Brasil. Um
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xxi Dees apud GODOI DE SOUSA, Edileusa.; GANDOLFI, Peterson.; GANDOLFI, Maria Raquel. Empreendedorismo Social no
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