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Mulheres refugiadas em trânsito entre discriminações múltiplas: Uma síntese das vozes

Authors:
Mulheres
refugiadas
em trânsito entre
discriminações
múltiplas: Uma
síntese das vozes
ALEXANDRA ALVES LUÍS* | ALEXANDRA SILVA**
CHRISTINE AUER***  ROSANA ALBUQUERQUE****
* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar
de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, alexandraalvesluis@gmail.com
** Investigadora independente, alexandra.silva@plataformamulheres.org.pt
*** Investigadora independente, christine.auer@posteo.de
**** Universidade Aberta, Centro de Estudo das Migrações e das Relações Interculturais,
rosana.albuquerque@uab.pt
Em todas as sociedades, as mulheres, as raparigas e as meninas são alvo de
discriminações e de violência apenas porque são mulheres, raparigas ou
meninas. É, pois, expectável que, enquanto em fuga dos conflitos armados
e das perseguições, ao viajarem e se instalarem na Europa, enfrentem maior
risco de serem alvo de violência sexista. Não obstante, as políticas europeias
e nacionais não integram devidamente a dimensão de género; em particu-
lar, não são tidas em consideração as diferentes formas de violência que
mulheres, raparigas e meninas enfrentam em todas as fases da sua jornada
em direção à segurança e à paz.
No trajeto para os centros de acolhimento e nos próprios centros, estas
são violadas, violentadas e assediadas sexualmente por vários agressores;
para terem acesso a alimentos, alojamento e transporte, acabam por cair nas
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malhas do sistema da prostituição; enfrentam violência doméstica ainda em
maior escala; as meninas e as raparigas são vendidas para casamentos e tra-
ficadas para exploração sexual (EWL, 2016, p. 4). Acresce que a forma como
os centros de trânsito, receção e acolhimento são construídos, organizados
e equipados tem um impacto direto na sua proteção ou na sua desproteção
face à violência masculina.
Existe um enquadramento legal na União Europeia que concorre para
a proteção das mulheres, raparigas e meninas refugiadas e à procura de
asilo, fazendo referência, por exemplo, aos requisitos para a condução de
entrevistas pessoais
(1)
. Mais recentemente, a Convenção do Conselho da
Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a
Violência Doméstica, comummente designada por Convenção de Istambul,
apela para a adoção de
medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para desenvolver
processos de acolhimento que têm em conta o fator género e serviços de
apoio para os requerentes de asilo, bem como diretrizes baseadas no género
e processos de asilo que têm em conta o fator género, incluindo a atribuição
do estatuto de refugiado e o pedido de proteção internacional. (Alínea 3 do
Art. 60.º – Pedidos de asilo baseados no género).
Ao nível internacional, a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), através da
Recomendação Geral n.º 32 sobre as dimensões de género do estatuto de
refugiada, asilo, nacionalidade e apatridia de mulheres, foca particularmente
a responsabilidade que cabe aos Estados-Partes:
assegurar que as mulheres requerentes de asilo, as mulheres refugiadas, as
mulheres requerentes de nacionalidade e as mulheres apátridas que estejam
no seu território ou que se encontrem debaixo do seu controlo e jurisdição
efetiva, mesmo que não se encontrem no seu território, não ficam expostas a
violações dos seus direitos nos termos da Convenção, incluindo quando tais
violações são cometidas por particulares ou agentes não estatais.
1. Cf. Diretiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013.
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O que falta é, pois, agir em conformidade. O European Women’s Lobby
(EWL), de que a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres é a
entidade coordenadora em Portugal, publicou recentemente recomendações
sobre a prevenção e o combate à violência contra as mulheres, raparigas
e meninas refugiadas em movimento, que passam nomeadamente pela
integração sistemática e transversal da dimensão de género nas políticas
de asilo(2), pela implementação de uma resposta humanitária sensível ao
género, facultando, para o efeito, uma checklist (EWL, 2016, pp. 10-11), e
pela implementação dos chamados cinco P da Convenção de Istambul
(3)
,
por
forma a garantir que todos os aspetos de uma política global para acabar
com todas as formas de violência masculina estão incluídos são analisados
e implementados.
Porque não existe intervenção sem reflexão e para que se possa agir em
conformidade, torna-se imperioso debater, conhecer e partilhar experiên-
cias. Este foi o ponto de partida para a conferência internacional Mulheres
Refugiadas, em Trânsito entre Discriminações Múltiplas
(4)
, organizada pela
Associação Mulheres sem Fronteiras, Faces de Eva – CICS.NOVA, Fundação
Friedrich Ebert e Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres,
no passado dia 14 de outubro de 2016, na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Elena Fiddian-Qasmiyeh, geógrafa do University College London,
salientou a relevância das interseções entre género e religião nas represen-
tações das migrações forçadas. Lora Pappa, vencedora do Prémio Norte-Sul
2015 do Conselho da Europa e fundadora da ONG grega METAdrasi, denun
-
ciou, entre outras situações, a existência de crianças e mulheres abusadas
sexualmente por cinco euros, nos centros de acolhimento gregos.
Pierrette Pape, do EWL, e Teresa Tito de Morais, do Conselho Português
para os Refugiados, abordaram, no segundo painel, a situação das mulheres,
raparigas e meninas refugiadas na Europa e em Portugal.
Behshid Najafi e Bibana Lopera, refugiadas do Irão e da Colômbia,
respetivamente, ambas residentes na Alemanha, partilharam as suas
2. Em seis áreas: pessoal envolvido, entrevistas, centros de acolhimento, mecanismos institucionais,
campanhas de consciencialização pública e situação específica de menores – meninas e raparigas
desacompanhadas.
3. Parceria, prevenção, prestação de serviços, acusação (em inglês, prossecution) e proteção.
4. Cf. programa da conferência em: http://facesdeeva.fcsh.unl.pt/?page_id=513
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experiências e exigências em conversa com Shahd Wadi, ativista e inves-
tigadora em estudos feministas, ela mesma palestiniana a viver no exílio.
Neste terceiro painel, as participantes reforçaram a necessidade de escutar
as necessidades das mulheres refugiadas. Por fim, Gabi Dobusch, depu-
tada ao Parlamento Regional de Hamburgo, Ana Gomes, deputada portu-
guesa ao Parlamento Europeu, e Mary Honeyball, deputada britânica ao
Parlamento Europeu, abordaram as respostas políticas e legislativas a nível
local e europeu.
As vozes partilhadas na conferência realçaram um ponto de partida em
comum: os movimentos migratórios e as deslocações forçadas, de pessoas
refugiadas, não são processos neutros ao género. Neste sentido, as políticas e
a legislação relativas ao asilo e aos direitos de pessoas migrantes e refugiadas,
as respostas humanitárias, as políticas de acolhimento, têm de ser sensíveis
ao género, respeitando a diversidade intrínseca dos grupos e não encerrando
estes mesmos grupos em categorias homogéneas (refugiadas/os, mulheres,
homens, muçulmanos/as, heterossexuais, etc.). Se abordamos o asilo ou
o processo migratório como neutros ao género, estamos a perpetuar desi-
gualdades e a manter um véu sobre as experiências concretas de mulheres
e homens, meninas e meninos, raparigas e rapazes, pessoas refugiadas ou
migrantes – não se pode tratar de modo igual o que é diferente.
Com este ponto de partida em comum, realça-se a necessidade de uma
abordagem feminista às políticas de asilo e de acolhimento, abordagem esta
que tem de prestar atenção à interseção entre deslocamentos de massa e
marcas identitárias (género, religião, orientação sexual, idade, entre outras),
assim como à interseção entre privilégios e opressões (patriarcado, racismo,
islamofobia, homofobia); tem ainda de prestar atenção às representações
que cada sociedade constrói sobre estes fluxos para analisar e compreender
o seu impacto nas respostas de acolhimento e nas representações sobre
as pessoas refugiadas. Prestar atenção a todas estas interseções implica
também dar atenção ao modo como as pessoas refugiadas experienciam
essas representações e se mobilizam em cada contexto. Numa perspetiva
feminista temos, também, o desafio de questionar e buscar as origens do
problema que se cataloga como “a crise de refugiados”, questionar as ori-
gens dos conflitos militares e políticos que afetam os países e as pessoas.
Esta perspetiva tem implicações na definição das políticas de acolhimento
e ouvem-se múltiplas vozes a reforçar a urgência: há que desenvolver uma
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abordagem política e de empoderamento das pessoas refugiadas, que não
se limite e vá para além da assistência humanitária.
Esta urgência de um questionamento sobre as origens do problema é
confirmada pelo panorama atual, com vários países a enfrentar conflitos
permanentes e estruturais, que não se resolvem ou se reacendem, e com
a persistência de campos de refugiados de longa duração. Alerta-se: as
políticas securitárias criam um ambiente social de medo face à catalogada
“ameaça” de pessoas refugiadas; omitem e fazem esquecer que estas são
as vítimas da guerra e não criminosos ou causas do problema. A resposta
da Europa não pode passar pela construção de muros ou arame farpado,
mas pela construção de mais Europa, refletida na defesa e no reforço dos
direitos humanos.
Numa perspetiva feminista temos de pensar e questionar o papel das
organizações não governamentais (ONG) neste contexto. Lembra-se que
estas organizações estiveram e estão na linha da frente no confronto dos
problemas vividos pelas pessoas refugiadas, em trânsito e nas zonas ou
campos de acolhimento, tendo de tomar decisões complexas e resolver
urgências quotidianas para ajudar as pessoas – mas sem esquecer o papel
dos Estados. Lora Pappa partilhou o dilema vivido na METAdrasi face à
opção de abandonar a ajuda humanitária ao campo de Idomeni, uma vez que
se deparavam com a omissão do Estado grego e os problemas se tornavam
irresolúveis. Defende-se: é responsabilidade das ONG saber decidir quando
devem pressionar o Estado para este assumir as suas responsabilidades de
construir políticas mais eficazes e solidárias.
Focando a atenção na ação da sociedade civil e no desafio de construir
respostas solidárias no acolhimento, apontam-se prioridades:
segurança, proteção e garantia de não deportação;
condições dignas de instalação e residência;
direitos básicos, nomeadamente em cuidados de saúde e na proteção contra
todas as formas de violência;
cursos de língua do país de acolhimento;
permissão de trabalho para assegurar o direito a obter um rendimento;
ações de desenvolvimento de competências e habilitações;
oportunidades para a integração em comunidades locais numa perspetiva
de cidadania plena.
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Vozes em uníssono lembram: a intervenção tem de ser pensada a
médio e a longo prazo com vista à autonomia da pessoa na sua dignidade;
a abordagem exige troca numa relação de igualdade, que obriga a ir para
além da perspetiva simplista da integração e a pensar em construir um
caminho de dois sentidos: a coexistência. Importa, então, perguntar: onde
estão as vozes das mulheres, raparigas, meninas, na organização das res-
postas de intervenção? Há que imaginar e construir respostas solidárias,
que reconheçam os desafios e as vulnerabilidades das pessoas refugiadas,
ao mesmo tempo que reconhecem a sua capacidade de agir e afirmar as
suas identidades. Para responder às suas necessidades, importa ouvir, sem
preconceitos, e criar respostas em igualdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EWL – European Women’s Lobby. (2016). From Conflict to Peace? #womensvoices Rec-
ommendations on preventing & combating violence against refugee women & girls
on the move. Brussels: EWL publication.
EWL – European Women’s Lobby. (2007). Asylum Is Not Gender Neutral! Protecting
women seeking asylum. The need for gender guidelines to implement the EU quali-
fication directive and the asylum procedures directive – a practical advocacy guide.
Brussels: EWL publication.
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Full-text available
Throughout history, women have been facing several situations of disregard for basic human rights. In times where entire populations are forced to leave their homes and countries to achieve protection and a minimum condition for survival, as in the case of armed conflicts and political crises, gender relations become even more evident, as women are easy targets of physical and psychological aggression. In these times of greater scarcity of basic resources, they are responsible for caring for the most vulnerable families, the elderly and children. The countries of origin of the refugees - Syria, Iraq, Venezuela, among others – also face problems like inequality and patriarchalism. Refugees are sometimes subjected to sexual violence and, in order to protect themselves, are also forced to marry as children, for instance. These women and girls are not generally seen as human beings but as objects of exchange and weapons of war. It is necessary for international authorities to guarantee protection, shelter and care for refugee women without being required in return for such needed assistance.
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