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Violência Urbana em Caracas e no Rio de Janeiro: Respostas Locais e Europeias

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IfP-EW: Grupo de Análise de Temas de Juventude, Identidade e
Segurança
VIOLÊNCIA URBANA EM
CARACAS E NO RIO DE
JANEIRO: RESPOSTAS LOCAIS E
EUROPEIAS
Susanne Gratius e Marcelo Valença
Dezembro de 2011
Iniciativa patrocinada pela União Europeia
Sobre a IfP-EW
A Iniciativa para a Construção da Paz Análise para Alertapido e Respostas (IfP-EW) é um
consórcio liderado pelo Alerta Internacional e patrocinado pela Comissão Europeia. Baseia-se
nos conhecimentos de 10 especialistas, com escritórios em países da UE e em países afetados
por conflitos. A iniciativa tem por objetivo desenvolver e impulsionar o conhecimento e a expertise
internacional na área de prevenção de conflitos e construção da paz, no objetivo de assegurar a
todas as partes interessadas, inclusive às instituições da UE, o acesso a análises locais
consistentes e independentes, assim como a dados e informações que possam melhor embasar
a formulação de políticas e a tomada de decisões públicas.
A produção deste documento recebeu patrocínio da União Europeia. Seu teor é de exclusiva
responsabilidade da IfP-EW/Adelphi Research e não reflete, necessariamente, as posições da
UE. Para maiores informações, visite http://www.ifp-ew.eu.
Sobre a FRIDE
A FRIDE é um instituto de pesquisa, situado em Madri, que tem por objetivo apresentar as
melhores e mais inovadoras análises sobre o papel da Europa no cenário internacional. Busca
abrir novos caminhos em seus interesses de pesquisa centrais paz e segurança, direitos
humanos, promoção da democracia, e desenvolvimento e ajuda humanitária e influenciar o
debate no âmbito de instituições governamentais e não-governamentais, por meio de análises
rigorosas, assentadas nos valores de justiça, igualdade e democracia. A FRIDE objetiva
apresentar ideias diferentes e inovadoras a respeito do papel europeu nas relações
internacionais. Como proeminente instituto de pesquisa europeu, goza de independência política
e conta com a diversidade de visões e a sólida formação intelectual de um quadro de
pesquisadores internacionais. Para maiores informações, visite http://www.fride.org.
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total ou parcial, por qualquer meio ou processo eletrônico, mecânico, xerográfico, reprográfico,
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as informações possíveis sobre a fonte do material.
PERFIS DOS AUTORES
Susanne Gratius ingressou na FRIDE, em Madri, em 2005, como Pesquisadora Sênior,
especialista em relações UE-América Latina. Anteriormente, foi pesquisadora do Instituto Alemão
de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), de Berlim, e do Instituto de Estudos Ibero-
americanos (IIK; atualmente, GIGA), de Hamburgo. Até 1999, atuou como Coordenadora no
Instituto de Relações Europeias e Latino-Americanas (IRELA), em Madri. É Doutora em Ciências
Políticas pela Universidade de Hamburgo e pela Universidade Complutense de Madri. Suas áreas
de pesquisa são: relações UE-América Latina; democracia; integração; e segurança; com foco
em Cuba, Venezuela, Brasil e países emergentes.
Marcelo M. Valença1 é professor colaborador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e bolsista de Pós-Doutorado da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). É Doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 2010). Suas áreas de pesquisa são: Estudos
Críticos em Segurança; Estudos de Paz; Direito Internacional; e Política Exterior Brasileira.
1 Autor principal do Capítulo 3.
SUMÁRIO EXECUTIVO
Caracas e Rio de Janeiro são conhecidos exemplos do problema da violência urbana. Embora as
respostas locais sejam diversas, a reforma policial é bastante comum, medida empreendida pelas
autoridades de ambas as cidades. Se as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), no Rio de
Janeiro, demonstram mudança em direção a políticas de alerta antecipado e de prevenção de
conflitos; a Polícia Nacional Bolivariana (PNB), por outro lado, opera em apenas um distrito de
Caracas e se encontra ainda em estágio inicial. Taxas de homicídio decrescentes e pesquisas de
opinião pública favoráveis, no Rio de Janeiro, evidenciam que as UPPs são consideradas a mais
bem-sucedida iniciativa de segurança pública das últimas décadas no combate e na prevenção
da violência urbana. Alarmantes taxas de homicídio em Caracas, em contraste, comprovam que as
respostas governamentais venezuelanas à violência urbana ainda não tiveram êxito. Este relatório
compara essas duas experiências de policiamento comunitário e identifica possibilidades de
cooperação na área de segurança pública. As conclusões apresentam recomendações à União
Europeia e propostas para o fortalecimento da cooperação trilateral em matéria de combate à
violência urbana, por meio de estratégias de alerta antecipado e de prevenção de conflitos.
PRINCIPAIS RECOMENDAÇÕES À UE
Em nível regional (comparativo):
Avaliar as possibilidades, e as limitações, de cooperação trilateral em matéria de
segurança pública e violência urbana entre Caracas e Rio de Janeiro, sob os auspícios da
União Europeia;
Fortalecer o intercâmbio de respostas locais à violência urbana, baseadas nos conceitos
de alerta antecipado e prevenção de conflitos, no âmbito do programa URB-AL (em
particular, no âmbito da rede n.º 13, sobre segurança pública);
Aperfeiçoar o intercâmbio de experiências de alguns Estados-membros da UE (em
particular, Espanha, Itália e França) com Brasil e Venezuela, na área de violência urbana
e policiamento comunitário, inclusive no referente a estratégias de alerta antecipado.
Em nível bilateral (Brasil/Rio de Janeiro):
Oferecer apoio financeiro e logístico para treinamentos e para a abordagem de longo
prazo característica do programa comunitário das UPPs, no Rio de Janeiro, incluindo
estratégias de alerta antecipado;
Incrementar a cooperação bilateral em matéria de segurança pública entre o Brasil e a
UE (em temas como tráfico de drogas, crime organizado e policiamento) no âmbito do
recente Plano de Ação da Parceria Estratégica;
Reativar projetos da UE em matéria de desenvolvimento social nas favelas do Rio de
Janeiro;
Avaliar a possibilidade de levar a outras cidades latino-americanas a experiência das
UPPs (no âmbito do URB-AL).
Em nível bilateral (Venezuela/Caracas):
Incluir questões de segurança na agenda bilateral de diálogo e cooperação com o
Governo da Venezuela;
Redesenhar o Documento de Estratégia Nacional (“Country Strategy Paper”, CSP, por
sua sigla em inglês) de modo a conferir maior ênfase à análise das causas e
consequências da violência urbana;
Incrementar o financiamento a ONGs relacionadas a questões de segurança pública,
juventude e violência urbana em Caracas;
Insistir na participação da UE em reformas policiais implementadas por autoridades
centrais ou locais em Caracas, abrangendo estratégias de alerta antecipado;
Promover o diálogo entre governos e ONGs em matéria de segurança pública e violência
urbana, para a identificação de soluções comuns.
AGRADECIMENTOS
A autora estende seus agradecimentos àqueles que contribuíram com a elaboração deste
relatório, inclusive os interlocutores no Rio de Janeiro e em Caracas. Francine Jácome e seu
estudo sobre violência, insegurança e polarização política merecem agradecimento especial;2
esse estudo constituiu a base principal para a presente análise sobre violência urbana em
Caracas. Interpretações, assim com erros e omissões, são de exclusiva responsabilidade da
autora deste relatório.
2 Francine come (2011). Violencia, inseguridad y polarización política en Venezuela. IfP-EW: Caracas. Disponível em:
http://www.ifp-ew.eu/pdf/201111IfPEWFRIDEViolenciaInseguridadEnVenezuela.pdf
SUMÁRIO:
1. Introdução
2. Violência em Caracas
2.1 A situação
2.2 Respostas locais
2.2.1 O(s) governo(s)
2.2.2 ONGs e sociedade civil
2.3 Projetos da UE
3. (In)segurança no Rio de Janeiro
3.1 A situação
3.2 Respostas locais
3.2.1 O Governo do Rio de Janeiro
3.2.2 Viva Rio e as respostas da sociedade civil
3.3 O papel limitado da UE
4. Cooperação trilateral em matéria de violência urbana
4.1 Lições de Caracas e do Rio
4.2 Cooperação trilateral e recomendações à UE
SIGLAS E ABREVIATURAS:
CSP Documento de Estratégia Nacional (“Country Strategy Paper”)
CONAREPOL Comissão Nacional para a Reforma Policial
SEAE Serviço Europeu para a Ação Externa
IEDDH Instrumento Europeu para a Democracia e os Direitos Humanos
UE União Europeia
GPAE Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais
INCOSEC Instituto de Investigações de Convivência e Segurança Cidadã
ISP Instituto de Segurança Pública
ONG Organização Não-Governamental
APD Ajuda Pública ao Desenvolvimento
OVP Observatório Venezuelano de Prisões
PM Polícia Militar (Brasil); Polícia Metropolitana (Venezuela)
POP Policiamento Orientado para a resolução de Problemas (“Problem-Oriented
Policing”)
PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
PROVEA Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos
UPP Unidade de Polícia Pacificadora
WOLA Escritório de Washington para América Latina
1. Introdução
Em diversos países, processos de urbanização desiguais e, em alguns casos, caóticos, levaram a
taxas de homicídio crescentes, sequestros, roubos, assaltos e crime organizado. A violência
urbana abrange uma série de problemas específicos, como o desenvolvimento de grupos
criminosos ou gangues de jovens em favelas ou áreas urbanas empobrecidas das cidades, onde
há pouca ou nenhuma presença do Estado. Em tais áreas urbanas, dominadas por grupos
armados e pela violência estrutural,3 o Estado perdeu a autoridade sobre o uso legítimo da força
e, consequentemente, a capacidade de alerta antecipado, de prevenção de conflitos e de
resposta eficaz à violência. Essas zonas de conflito são frequentemente afetadas pela violência
física e dominadas por estruturas criminosas autoritárias. Ageografia da violência” gera um
círculo vicioso de constante medo e insegurança, que corrói a cidadania, a democracia e o
desenvolvimento. Homens jovens, entre 18 e 24 anos, são os principais perpetradores da ação
criminosa, mas também suas principais vítimas.
Desigualdade social, fragilidade institucional, circulação de armas e existência de gangues
relacionadas ao tráfico de drogas conformam um quadro explosivo na América Latina. Apesar da
inexistência de conflitos entre os Estados da região, permanece uma das mais violentas do
mundo. As taxas de homicídio e de sequestros são particularmente altas nos centros urbanos
latino-americanos. À luz do passado autoritário e da herança militarista dos países da América
Latina, as respostas mais comuns à violência urbana têm sido o fortalecimento da segurança
pública (por meios militares) e o endurecimento da legislação penal. Respostas integradas,
abrangendo estratégias de alerta antecipado e de prevenção de conflitos, capazes de abordar as
raízes sociais e criminais do problema, têm sido a exceção, não a regra.
Rio de Janeiro e Caracas são conhecidos exemplos de violência urbana e insegurança pública.
As respostas locais são variadas, mas a reforma policial (UPPs, no Rio de Janeiro; PNB, em
Caracas) é uma estratégia comumente adotada pelas autoridades locais. Políticas e estratégias
de alerta antecipado e de prevenção de conflitos estão entre os principais objetivos das reformas
na área de segurança pública no Rio Janeiro, e poderão também desempenhar papel significativo
na reforma policial em Caracas, que se encontra ainda em estágio inicial.
À parte o engajamento de alguns Estados-membros da UE em matéria de reforma policial na
América Latina, a comunidade doadora internacional, inclusive a UE, não tem participação
significativa em questões de violência urbana e segurança pública na região. Todavia, a (limitada)
ajuda ao desenvolvimento europeia tem contribuído para enfrentar as raízes políticas e
socioeconômicas da violência, em particular nas favelas do Rio de Janeiro e nas áreas urbanas
mais empobrecidas de Caracas.
Esta publicação baseia-se na literatura especializada, em depoimentos locais e nos resultados do
seminário “Diálogo sobre violência urbana no Rio de Janeiro e em Caracas: perspectivas,
alternativas e contribuições da UE”, que teve lugar no Rio de Janeiro, no período de 30 de junho
a 1º de julho, e foi co-organizado por FLACSO-Brasil e FRIDE, sob os auspícios da União
Europeia.4
3 De acordo com Johann Galtung, “violência estrutural” refere-se a um processo enraizado na estrutura de uma sociedade e
baseada na desigualdade de mudanças de condições de vida. Ver J. Galtung (1969). ‘Violence, peace and peace research’,
Journal of Peace Research, vol. 6, nº 3, p.171.
4 Para maiores informações, ver: http://www.ifp-ew.eu/resources/1106flasco.pdf
Estatísticas e dados sobre políticas referentes à (in)segurança pública em Caracas baseiam-se
em depoimentos locais e no supracitado estudo de Francine Jácome. À parte as entrevistas com
“stakeholders” locais conduzidas por Susanne Gratius, as estatísticas e informações sobre caso
do Rio de Janeiro foram levantadas por Marcelo Valença, professor colaborador e bolsista recém-
doutor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
2. Violência em Caracas
2.1. A situação
Desde 1989, as taxas de homicídio venezuelanas cresceram constantemente. Os protestos
sociais contra as políticas de ajuste macroeconômico do então Presidente Carlos Andrés Pérez,
no contexto do chamado Caracazo, marcaram o início de um círculo vicioso de insegurança
pública, desigualdade social e polarização política. O declínio democrático e a
desinstitucionalização datam também de 1989. Dez anos mais tarde, o ex-oficial militar Hugo
Chávez assumiria a presidência e daria início a um processo de concentração de poder. Em razão
da insuficiência de respostas, a violência urbana em Caracas atingiu recordes históricos em seu
período de governo. De acordo com pesquisas de opinião recentes,5 90 por cento dos
venezuelanos apontam a violência como sua principal preocupação.
Embora a insegurança pública tenha longo histórico na capital venezuelana, os dados atuais
refletem a crescente gravidade do problema.6 Se, no início dos anos 1990, a taxa de homicídios
em Caracas estava abaixo de 365 vítimas por ano, conforme dados do INCOSEC; em 2008, essa
taxa atingiu a cifra de 2.565 homicídios anuais.7 Com um índice de 130 homicídios por cada 100
mil habitantes (quatro vezes mais alto que o do Rio de Janeiro), Caracas tornou-se uma das
cidades mais perigosas do mundo.8 De acordo com dados oficiais, divulgados peladia local,9
nos primeiros oito meses de 2011 ocorreram mais de duas mil mortes por arma de fogo na
capital venezuelana. Nove de cada dez vítimas foram jovens (entre 15 e 25 anos de idade),
provenientes das camadas mais pobres da sociedade.
A fragilidade institucional e uma taxa de impunidade de 93 por cento dos crimes cometidos
contribuem para a conformação de uma espiral de insegurança urbana. As prisões venezuelanas
estão entre as mais violentas da América Latina.10 A ocorrência de revoltas violentas na prisão de
El Rodeo, nos arredores de Caracas, em junho de 2011, revelou a necessidade urgente de se
empreender reforma do sistema prisional, pela qual clamam, há muito tempo, a Anistia
Internacional e ONGs locais.11 Outro problema relacionado é o sistema judiciário venezuelano
lento, disfuncional e politizado.
5 F. Jácome (2011). Op. cit.
6 Para maiores detalhes, ver R. Briceño-León (2007). Violencia, ciudadanía y miedo en Caracas’. Foro Internacional, 3
(Julho-Setembro), México, D.F., pp. 551-576.
7 INCOSEC (2011). ‘La Seguridad es nuestra Misión’. Acesso em: 3 de dezembro de 2011. Disponível em:
http://incosec.sumospace.com .
8 Alguns observadores argumentam inclusive que Caracas seria a quarta cidade mais perigosa do mundo. Ver M. Castro.
‘Caracas es la capital más violenta del mundo‘, El Nacional, Caracas, 14 de janeiro de 2011.
9 M. Isoliett Iglesias e D. Ramírez Miranda. ‘En Libertador ocurrieron 79% de los homicidios de Caracas’, El Universal,
Caracas, 14 de setembro de 2011.
10 Em 2004, o Governo declarou situação de emergência nas prisões nacionais.
11 ‘Deadly clashes highlight need for urgent prison reform in Venezuela’, Anistia Internacional, 22 de junho de 2011.
Disponível em: http://www.amnesty.org/en/news-and-updates/deadly-clashes-highlight-need-urgent-prison-reform-
venezuela-2011-06-22; OVP (2009). Situación carcelaria en Venezuela. Informe 2009. Caracas.
De acordo com informações de ONGs, em Caracas12 um de cada dois cidadãos reside em
favelas (no Rio de Janeiro, a proporção é de um terço). A situação da segurança pública
constitui-se em grave problema em algumas áreas urbanas, como Petare, no estado de Miranda
(administrado por partidos de oposição), e Antímano, Catia, 23 de Enero, La Pastora e El Valle,
todas no distrito de Libertador (dominado por chavistas). Conforme dados da imprensa local, 79
por cento dos homicídios em Caracas ocorrem no distrito de Libertador, o maior da cidade.13
Algumas das áreas nas quais a presença do Estado é tradicionalmente baixa são administradas
por gangues de criminosos ou por grupos paramilitares, como ocorre em Piedrita, no distrito de
23 de Enero.
(Fonte: http://es.wikipedia.org/wiki/Archivo:Distrito_metropolitano_de_caracas2.svg)
A violência em Caracas resulta de três principais fatores:14
Estado frágil e ineficiente (em nível nacional e local), incapaz de mediar ou canalizar
conflitos sociais;
Governo, por muito tempo, sem vontade política para responder à violência, em conjunto
com uma sociedade civil sem capacidade efetiva de reação;
Alto nível de polarização política15 no Governo Chávez (de 1999 à atualidade).
Duas grandes teorias têm buscado explicar a insegurança pública em Caracas: (i) a visão
governamental, que interpreta as raízes sociais da violência como vinculadas à pobreza e à
desigualdade (que contrasta com a substancial redução da pobreza no país desde 1999); e (ii) a
visão da sociedade civil, centrada em aspectos de desinstitucionalização, impunidade, “cultura de
violência” e nível crescente de polarização política (visão à qual se opõe o governo).16 Essas
perspectivas divergentes evidenciam a falta de consenso entre governo e sociedade civil, o que
contribui para o aumento dos níveis de violência.
2.2. Respostas locais
12 Caracas é dividida em cinco distritos, por tamanho: Libertador (2,6 milhões de habitantes), Sucre, Baruta, El Hatillo e
Chacao. Cada um deles é dividido em áreas menores, chamadas de parroquias (22, no caso de Libertador).
13 M. Isoliett Iglesias e D. Ramírez Miranda (2011). Op. cit.
14 S. Gratius (2011). The UE’s Potential and Limits for Early Warning in Bolivia, Colombia and Venezuela. Comparative
case study of Bolivia, Colombia and Venezuela. IfP-EW: Bruxelas. Disponível em: http://www.ifp-
ew.eu/pdf/201111IfPEWUEPotentialLimitsEWBolColVenez.pdf
15 International Crisis Group (2011). ‘Violencia política en Venezuela’, Informe sobre América Latina 38. Bogotá.
16 F. Jácome (2011). Op. Cit.
A questão da segurança pública é significativamente politizada na Venezuela. Dados oficiais não
são disponibilizados desde 2005 e relatos de representantes de ONGs que, tendo divulgado
dados oficiais sobre a questão, sofreram intimidação e ameaças. Ademais, a mídia que outrora
assumira importante papel de diplomacia pública em matéria de violência foi censurada (o
Governo Chávez, para evitar publicidade negativa, proibiu a publicação de imagens sobre
violência) e ameaçada.
2.2.1. O(s) governo(s)
A julgar por recentes pesquisas de opinião e outros dados estasticos, que evidenciam taxas de
homicídio crescentes,17 as respostas das autoridades centrais venezuelanas têm sido ineficazes.
Motivações políticas estão por trás de atitudes ambíguas para com a criminalidade, que há
tempos conta com a tolerância de autoridades locais, como parte do projeto político do
Presidente Chávez de redistribuição da riqueza dos ricos para os pobres. Nesse sentido, a
criação, com apoio cubano, das ditas “Missões” (nas áreas de educação, saúde, moradia e
alimentação, por exemplo) tem contribuído para a melhoria das condições sociais na Venezuela.
Contudo, ainda não se registra impacto notável em termos de redução das taxas de criminalidade.
Outras razões que explicam a violência urbana são a fragmentação institucional e a falta de
coordenação entre os diferentes veis de governança na capital venezuelana (a Área
Metropolitana, os distritos e asparroquias”). Caracas é o coração da divisão pró e anti-Chávez no
país; a cidade tem, de fato, dois governos. O Prefeito eleito, Antonio Ledezma, foi enfraquecido
pela designação (por Hugo Chávez) de Jacqueline Farías como a autoridade máxima do distrito
capital. O equilíbrio de poder pende claramente para o governo central, que detém a capacidade
política e orçamentária para implementar ou vetar qualquer reforma na área de segurança
pública.
Uma reforma que se faz premente é a do sistema prisional, particularmente em Caracas. O
governo central designou uma Comissão Especial (que contou com 52 especialistas cubanos),
em 2004, para empreender estudo sobre a situação do sistema carcerário. Em 2008, o Superior
Conselho Penitenciário lançou, entre outras melhorias, a Orquestra Sinfônica (nas prisões).
Contudo, não foram implementados os planos de melhoria das condições carcerárias nem os de
construção (em 2010) de nove novos presídios. Ainda, não foram aprovadas reformas judiciais
para superar o problema das altas taxas de impunidade.
A polícia de Caracas caracterizada pela falta de coordenação e de pessoal, corrupta e
repressiva é parte do problema. Pode ser atribuída à polícia a responsabilidade por um de cada
cinco crimes na Venezuela. De acordo com relatório da Procuradoria-Geral, de 2008, a polícia
executou mais de sete mil pessoas no período entre 2000 a 2007 e foram registradas mais de
300 violações de direitos humanos cometidas pelas forças armadas ou pelo aparato de
segurança nacional.18 Entre as forças de segurança latino-americanas, a venezuelana foi a
menos bem avaliada por seus cidadãos.19 Um dos principais problemas é a descentralizão da
segurança pública: conforme dados do grupo local de direitos humanos PROVEA, na Venezuela
coexistem 141 unidades de polícia e outras 10 estão sendo criadas atualmente.
17 Sessenta e sete por cento dos cidadãos informaram não terem denunciado a ocorrência de crimes, por acreditarem que
as autoridades não fazem nada contra a violência. INCOSEC (2011). Estudio Violencia Interpersonal y Percepción de la
Situación de Seguridad Ciudadana en Caracas 2010. Caracas.
18 F. Jácome (2011). Op. cit.
19 Latinobarómetro (2011). ‘La Democracia en América Latina’. Acesso em: 3 de dezembro de 2011. Disponível em:
http://www.latinobarometro.org .
O governo central ignorou por muito tempo esses problemas e, para alguns analistas, reagiu
tarde demais. Primeiramente, propostas de reforma policial foram formuladas em 2006 pela
comissão especial CONAREPOL, criada especialmente para esse fim. Em 2008, o governo
central aprovou nova lei policial, cujo objetivo seria integrar as diferentes unidades de polícia em
apenas um sistema (designando-se um Conselho Geral de Polícia), que deveria promover os
direitos humanos e a prevenção de conflitos. Em 2009, o Presidente Chávez criou o Conselho
Nacional de Prevenção e Segurança Cidadã e anunciou programa integrado de prevenção e
segurança. Este último foi levado a cabo pelo Ministro de Justiça e Políticas Domésticas
(“Ministro del Poder Popular para las Relaciones Interiores y Justicia”), Tarek El Aissami, defensor
da reforma policial.20
A Polícia Nacional Bolivariana (PNB) é composta de três mil policiais, baseados principalmente
em Catia, no Distrito de Libertador, uma das áreas mais populosas da capital e que conta com
altas taxas de criminalidade. Esses oficiais integram a Polícia Metropolitana (PM), que se
caracteriza por altos índices de corrupção e de emprego da violência. A principal diferença entre
as duas são os salários mais altos e os cursos de treinamento em policiamento comunitário
recebidos pela PNB, que também conta com algum treinamento em matéria de direitos humanos.
Para este fim, e de modo a melhorar o padrão das investigações criminais, o governo
venezuelano inaugurou a Universidade Nacional Experimental de Segurança (UNES), em
Caracas, em 2010.
Paralelamente, o governo Chávez delegou algumas competências de segurança pública aos
Conselhos Comunitários, criados pela Revolução Bolivariana, para expandir o grau de apropriação
local e de empoderamento em áreas empobrecidas da capital e de outras grandes cidades do
país.
Além das medidas tomadas pelo governo central, as autoridades locais do estado de Miranda
que é governado pela oposição e integra o distrito capital também adotaram políticas para
aperfeiçoar competências policiais em matéria de prevenção e resolução de conflitos, tais como
treinamento comunitário especial ou a criação de um braço policial específico para políticas de
gênero. Contudo, de acordo com depoimentos, policiais e membros de comunidades locais
reclamam da falta de recursos e de capacidades para a implementação de novas reformas na
área de segurança.
também outras críticas às iniciativas do governo central (e de Jacqueline Farías) julgadas
insuficientes, mal-coordenadas e focalizadas no curto prazo à falta de uma estratégia
abrangente para o combate à violência em todas as regiões de Caracas. As mesmas críticas
ressaltam que, apesar de algumas melhorias, prepondera ainda a repressão, em detrimento da
implementação de práticas de alerta rápido e de prevenção de conflitos. Ademais, não existe
estratégia de promoção de uma cultura de não-violência nos distritos mais perigosos de Caracas;
não se verifica, tampouco, estratégia integrada de reforma do sistema judiciário, que possa
melhorar as condições nas prisões ou garantir a efetiva investigação de crimes perpetrados.
Cortes orçamentários da ordem de 32,5 por cento, em 2011, reduziram ainda mais o alcance das
respostas governamentais.21 A maior parte dos recursos foi direcionada à consolidação da PNB e
dos Conselhos Comunitários, cuja eficiência está ainda por comprovar.22 Ademais, alguns
20 Conselho Geral de Polícia (2011). Gobernanza y gestión de la policía: Avances del nuevo modelo policial venezolano.
Caracas
21 F. Jácome (2011). Op. cit.
22 Ibid.
observadores criticam a identificação ideológica desses modelos com o projeto bolivariano do
Presidente, que tem o apoio de apenas uma parcela da população de Caracas.
Os altos níveis de violência em todos os distritos da capital, em conjunto com a falta de respostas
governamentais, levaram à privatização da segurança: estima-se em 700 mil o número de
agentes de segurança privados, o equivalente ao dobro do número de policiais lotados em
Caracas. Essa situação contribui, também, para uma espiral de resolução violenta de conflitos. A
falta de respostas governamentais tem sido suprida pelos agentes privados e, em parte,
compensada pelo aumento de ONGs relacionadas a questões de segurança cidadã,
criminalidade e direitos humanos.
2.2.2. ONGs e sociedade civil
A crescente taxa de homicídios em Caracas faz parte de um processo de polarização política
entre governo e oposição. A falta de diálogo entre os dois lados dificulta a construção de
soluções comuns para a melhoria da segurança pública. Diferentemente da situação no Rio de
Janeiro, em Caracas não há coordenação entre sociedade civil e governo.
Com poucas exceções, as respostas governamentais e as respostas da sociedade civil à violência
urbana se dão por canais separados. A maior parte das ONGs menores, focalizadas em questões
de direitos humanos e segurança pública, é vista pelo governo central venezuelano como ameaça
ou como parte da oposição. Repressão e ameaças a alguns representantes de ONGs complicam
ainda mais a relação entre atores civis e agentes governamentais.
A maioria das ONGs que trabalham com direitos humanos e queses relacionadas à vioncia23
têm escritórios em Caracas e restringem suas atividades à capital venezuelana. Embora algumas
dessas organizações tenham participado do recente processo de reforma policial, a maior parte
delas concentra suas atividades no apoio a vítimas de violência; na divulgação de dados,
informações e relatórios sobre criminalidade; na educação em matéria de direitos humanos; em
debates públicos sobre a violência urbana e suas possíveis soluções; e em ações judiciais
referentes a violações de direitos humanos. Em razão dao divulgão de dados oficiais sobre
homicídios e outros crimes, as organizações da sociedade civil e a mídia, em particular,
desempenham também importante papel de diplomacia pública e de promoção de debates sobre
a violência urbana.
Além de ameaças e discriminação, algumas organizações não-governamentais e da sociedade
civil enfrentam graves limitações financeiras e logísticas, agravadas por restrições legais
impostas pelo governo central da Venezuela.24 Ao continuar a desempenhar importante papel de
denúncia pública e pressão por respostas governamentais à violência urbana, essas organizações
são essenciais para a efetiva implementação de políticas de prevenção de conflitos e de alerta
antecipado. A continuidade de suas atividades depende largamente de financiamento externo.
Tendências da violência urbana e da prevenção de conflitos:
A recente reforma policial e outras respostas governamentais à violência urbana em Caracas
tiveram resultados limitados. Taxas de homicídio crescentes na capital, apesar das melhorias
sociais verificadas, demonstram a necessidade de as autoridades locais adotarem novas medidas
23 Para lista de ONGs especializadas em questões de segurança pública, ver F. Jácome (2011).
24 Para maiores informações sobre as restrições ao recebimento de financiamento externo impostas pela Lei para a defesa
da soberania política e a autodeterminação nacional, ver: http://gaceta-oficial-venezuela.vlex.com.ve/vid/traspaso-
presupuestarios-vivienda-habitat-37904321?ix_resultado=1.0&query%5Bq%5D=6.013#
de segurança pública e renovarem o diálogo com organizações da sociedade civil, em matéria de
abordagens para reformas na área de segurança, orientadas para estratégias de alerta
antecipado e de prevenção de conflitos.
2.3. Projetos da UE
Os projetos da UE em matéria de direitos humanos e segurança pública giram em torno de
políticas de apoio a ONGs e a autoridades locais. No âmbito do Instrumento Europeu para a
Democracia e os Direitos Humanos (IEDDH), assim como outros instrumentos, a Delegação da
UE em Caracas financia diversos projetos de ONGs locais, relacionados a questões de
segurança pública, direitos humanos, justiça e prisões. Essas iniciativas à parte, alguns Estados-
membros da UE (Reino Unido, Alemanha e Espanha, entre outros) oferecem também apoio a
projetos de treinamento policial e a outros projetos de menor porte, na área de segurança
pública.
Diversas organizações de direitos humanos, inclusive a PROVEA, receberam recursos da UE para
projetos relacionados a vítimas de violações de direitos humanos ou à divulgação de informações
sobre a situação política na Venezuela. No passado, o Observatório Venezuelano de Prisões
(OVP) recebeu recursos da UE para elaboração de seus relatórios anuais e para assistência a
presos. Embora não tenha contribuído para projeto específico voltado para questões de violência
urbana em Caracas, a Delegação da UE na capital financiou projeto não-governamental sobre
cidadania e direitos humanos, direcionado às populações jovens de três distritos da capital
venezuelana (Antímano; La Vega; e Sucre, em Libertador). Outro projeto com importante
participação de ONGs situadas em Caracas lida com o problema da moradia em áreas
empobrecidas da cidade.
No âmbito da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), canalizada pelo governo, não foram
contempladas questões de direitos humanos e de segurança pública. Acresce que a área de
segurança pública não consta do Documento de Estratégia Nacional (CSP, por sua sigla em
inglês). Apesar de diversas tentativas da UE de oferta de apoio logístico e financeiro para a
reforma policial em Caracas, não foram elaborados ou implementados, nesse contexto, projetos
oficiais em matéria de segurança pública ou relacionados ao problema específico da violência
urbana. Dadas a complicada situação política e a relutância do governo em aceitar ajuda e/ou
recursos externos direcionados à área de segurança pública, a UE tem desempenhado papel
limitado nesse campo. O único projeto (na área de segurança e com participação da UE)
aprovado pelo Governo da Venezuela (mas ainda não implementado) é o DROGASTOP,
direcionado à prevenção e ao combate às drogas ilícitas. A UE, contudo, teria vontade política
para fazer mais, caso houvesse maior receptividade no âmbito dos governos central e local
venezuelanos.
3. (In)segurança no Rio de Janeiro
3.1. A situação
O Rio de Janeiro é tradicionalmente considerado um dos estados mais violentos do Brasil. No
final da década de 1990, a região metropolitana do Rio figurava entre as ts mais violentas do
país.25 As taxas de homicídio rondavam a cifra de sete mil e quinhentas mortes por ano mais de
25 Ranking baseado no número de homicídios e crimes violentos. Com relação à violência contra indivíduos na faixa etária de
15-24 anos, o Rio passou do terceiro maior índice ao vigésimo, entre os 27 estados do Brasil.
um terço delas na faixa etária de 15-24 anos. Os crimes violentos mais comuns eram o
homicídio, o roubo e os autos de resistência (mortes resultantes de confrontos com a polícia). As
grandes áreas empobrecidas constituem-se, atualmente, de mais de mil favelas, seiscentas das
quais microfavelas, situadas nos morros de praticamente todos os bairros do Rio de Janeiro.
Todas elas caracterizam-se pela falta de infraestrutura básica, pelo isolamento e pela ausência
de processos decisórios locais.26
A existência de organizões criminais constitui grave problema de segurança pública no Rio de
Janeiro, particularmente em razão de sua influência em favelas e nas regiões mais pobres da
cidade.27 A região oeste do Rio de Janeiro, onde as estruturas institucionais são particularmente
fracas, é historicamente dominada por traficantes de drogas e/ou grupos paramilitares (as
chamadasmicias”). O maior grupo criminoso, o Comando Vermelho, atua em diversas favelas,
entre elas o Complexo do Alemão, a Mangueira, o Jacarezinho e a Cidade de Deus.
A situação começou a mudar em meados da década de 2000, época em que as taxas de
homicídio e de crimes violentos começaram a cair. Essa mudança se deveu a grandes
investimentos em segurança pública, especialmente a partir da criação das Delegacias Legais,
postos policiais dotados de infraestrutura tecnológica e de novas políticas de detenção. em
2006, as taxas de criminalidade reduziram expressivamente e, dois anos mais tarde, o Rio de
Janeiro passaria da terceira para a quinta posição entre as cidades mais violentas do país. A
violência juvenil também caiu, com o Rio passando da terceira (na década de 1990) para a
vigésima posição em termos da taxa de homicídios na faixa etária de 15-24 anos.28 Em 2010, a
taxa de homicídios do Rio caiu para 1.628 por ano, ou 27 homicídios por cada 100 mil
habitantes.29
Especialistas na área de segurança pública e representantes da mídia apontam que três fatores
principais possibilitaram a queda nas taxas de homicídio e de criminalidade no Rio. O primeiro
refere-se às políticas de segurança pública implementadas pelo Governador Sérgio Cabral Filho
(2007-; exerce atualmente seu segundo mandato); o segundo diz respeito aos preparativos da
cidade para receber a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016; e o terceiro
trataria de certa manipulação de dados oficiais com intuito de aumentar valores imobiliários e
investimentos na cidade. Acresce que por vezes são conflitantes os dados pertinentes de
relatórios governamentais e de ONGs.
26 A. Morse (2011). ‘Pacifying and Reincorporating Rio de Janeiro’s Favelas’, in Tackling Urban Violence in Latin America:
Reversing Exclusion through Smart Policing and Social Investment. WOLA: Washington, DC.
27 Atualmente, há três grandes grupos em atividade no Rio: Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos,
cada qual com controle sobre algumas áreas da cidade.
28 O Globo (2011). ‘UPPs reduziram homicídios em 38 bairros. Acesso em: 27 de novembro de 2011. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/rio/UPP-reduziram-homicidios-em-38-bairros-3331252. Para maiores detalhes sobre taxas de
homicídios, ver ‘Mapa da Violência 2011’, disponível em: http://www.sangari.com/mapadaviolencia/#completo .
29 Em razão da negligência das autoridades de segurança do Rio de Janeiro em matéria de fornecimento de estatísticas e
da dificuldade em se obter fontes confiáveis de dados, foram utilizados neste relatório dados das delegacias de polícia e das
Secretarias de Saúde e de Justiça do estado do Rio de Janeiro.
(Fonte: http://espiritismoemdebate.com.br/paginas_do_site/enderecos/rio.html)
3.2. Respostas locais
3.2.1. O Governo do Rio de Janeiro
À semelhança do caso de Caracas, as soluções governamentais ao problema da segurança
pública no Rio de Janeiro estão focalizadas na polícia e, em menor medida, em melhorias sociais.
Ao longo de décadas, durante as quais as taxas de homicídio atingiam níveis sem precedentes,
as autoridades locais enfrentavam a violência urbana por meio de estratégias reativas e
repressivas, conforme o modelo de identificação e eliminação de problemas pontuais
(“troubleshooter model”). Nesse período, o combate à violência levou ao confronto entre o Estado
(representado por uma força policial repressiva) e cidadãos (moradores de favelas). Até o início
da década de 2000, poticos locais investiram tempo e dinheiro em políticas de urbanização de
áreas consideradas violentas, como estratégia de combate às organizações criminais, maso
obtiveram êxito.
Em anos recentes, tem-se verificado uma reorientação no sentido de políticas preventivas e de
policiamento comunitário, que ora ocupam posição de destaque no atual debate sobre segurança
pública no Rio de Janeiro. As novas políticas públicas, mais do que refletir uma nova estratégia,
evidenciam uma mudança de percepção na administração, passando do combate às favelas à
provisão de segurança e à integração cidadã. A substituição de modelos anteriores, baseados na
guerra contra o crime, faz parte de uma tendência política mais ampla em curso no Brasil, que
busca auniversalização dos direitos humanos, por meio da inclusão social dos setores mais
pobres da população e do fortalecimento do Estado. Essas políticas foram implementadas pelo
Governo Lula (2003-2010) e pelo Governo de sua sucessora na Presidência, Dilma Rousseff
(2011-).
No que tange à reforma policial, as autoridades locais deram início a esse processo em 2000,
com a criação do Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), baseado na
experiência do programa “Cessar Fogo” de Boston,30 que objetivava eliminar o homicídio entre
jovens, inspirado por sua vez no modelo anglo-saxão de policiamento orientado para a resolução
de problemas (“problem-oriented policing”, POP). A ideia central da iniciativa era desarticular o
tráfico de drogas e a violência armada mediante a ocupação territorial de áreas urbanas
dominadas por facções criminosas. O projeto teve início na maior favela do Rio, o Complexo de
Alemão. De acordo com entrevistados locais, a iniciativa do GPAE acabou sendo
descompensada; a falta de treinamento, a corrupção e uma visão de curto prazo foram apontadas
como os principais obstáculos ao êxito da iniciativa.
Com base na experiência do GPAE, o atual Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio
Cabral Filho, e seu Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, desenvolveram um
programa de segurança pública que buscava o fortalecimento da presença estatal em áreas
anteriormente controladas por facções criminosas organizadas. Em 2008, estabeleceram as
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Desde então, e contando com o apoio do Prefeito do
Rio de Janeiro, Eduardo Paes, 19 UPPs foram estabelecidas em favelas e comunidades
empobrecidas da cidade, com alcance populacional aproximado de 280 mil habitantes.31 As
UPPs são compostas de 3.300 novos recrutas (supostamente não contaminados pela
corrupção). A principal diferença das UPPs em relação a outras unidades policiais é justamente a
formação desses novos recrutas, que participam de curtos programas de treinamento em trmas
de direitos humanos e trabalho comunitário, além de receberem maiores salários (como incentivo
e “vacina” contra a corrupção). O governo local investirá 15 milhões de reais32 até 2016 para o
treinamento de 60 mil novos oficiais de polícia. Complementarmente, como estratégia social, o
governo local lançou as UPPs sociais, em 2010, direcionadas ao mapeamento e à coordenação
da provisão de serviços sociais (pelo governo e por ONGs) nas favelas. As UPPs sociais foram
implementadas, até o momento, em 17 favelas da cidade.
Essa iniciativa foi posteriormente incorporada pelo governo federal, servindo de base para o
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), cujo objetivo é prevenir a
violência urbana e coordenar as políticas dos diferentes níveis do Governo. Em dezembro de
2011, o Rio de Janeiro era o estado brasileiro com maior índice de participação no PRONASCI.
Dentre outras iniciativas, o PRONASCI financia parcialmente o programa das UPPs.33 O projeto
mais recente, Rio Economia Solidária, lançado em dezembro de 2010, recebeu do PRONASCI
oito milhões de reais para investimentos de economia solidária em favelas com UPPs.34 A
Presidente Dilma Rousseff, apesar de afirmar que uma de suas prioridades eleitorais era a
questão da segurança pública, anunciou recentemente que, apesar de autorizado pelo orçamento
federal, não investiria o montante integral do valor destinado a projetos do PRONASCI. De um
total de 2,1 bilhões de reais, apenas 1,25 bilhão seria desembolsado em projetos novos ou em
andamento. Tais cortes orçamentários poderão afetar os resultados de iniciativas atuais e futuras.
30 U.S. Department of Justice (2001). Reducing Gun Violence: The Boston Gun Project’s operation ceasefire. National
Institute of Justice: Boston.
31 Para a lista completa de UPPs, com datas de estabelecimento, ver http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=261
32 Aproximadamente US$ 8 milhões, em novembro de 2011.
33 Pronasci (2007). ‘Territórios de Paz’. Acesso em: 26 de novembro de 2011. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJ0FE4DE4EITEMID2243A2C2C46845AC8F1305685DD784D8PTBRNN.ht
m
34 Para maiores detalhes, ver:
http://portal.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJA4C659C5ITEMID387C84DCC7E5446C97C2CE92DC93E6FFPTBRNN.h
tm
Com o objetivo de retomar áreas dominadas por facções criminosas, as UPPs utilizam uma
estratégia conjunta de manutenção da ordem pública e implementação de políticas sociais. Na
esteira de intervenções militares que contavam com a participação do Batalhão de Operações
Especiais (BOPE), UPPs foram instaladas nas favelas pacificadas para impedir o retorno do
tráfico de drogas e atividades ilícitas. Sua atuação se por meio de ações intensificadas de
policiamento, caracterizadas principalmente pelo policiamento comunitário, abrangendo inclusive
educação infantil e provisão de serviços variados, com o objetivo geral de transformação da
‘historicamente conflituosa relação polícia-comunidade’.35 Um bom exemplo disso é a Rocinha
uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, localizada entre os bairros de classe alta de São
Conrado e da Gávea , ocupada em novembro de 2011. Ao divulgar o projeto de ocupação com
10 dias de antecedência, as autoridades policiais buscavam evitar um confronto direto com
grupos criminosos, e conseguiram prender alguns membros desses grupos durante sua fuga,
sem disparar um tiro sequer. De acordo com as autoridades locais, a estratégia em curso é
baseada em três pontos: (i) proteger da violência os cidadãos das favelas (mediante a presença
permanente da UPP, em cooperação estreita com os cidadãos); (ii) impulsionar programas
sociais e de melhoria infraestrutural (estratégia que teve êxito em São Paulo);36 e (iii) integrar,
gradualmente, a favela à cidade (através de investimentos privados).
Dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) demonstram que as taxas de crimes
violentos caíram expressivamente na cidade. Parte desse êxito é atribuída às UPPs, consideradas
a política de segurança mais bem sucedida das últimascadas no combate ao crime no Rio de
Janeiro. Entre 2008 e 2010, as taxas de crimes violentos caíram em torno de 14 por cento.37 Os
dados disponíveis referentes a diferentes UPPs, no entanto, não são uniformes e não
correspondem a períodos idênticos, já que as UPPs foram implementadas gradualmente ao longo
do período 2008-2011. Verifica-se, também, variação nas estatísticas coletadas em diferentes
regiões da cidade. Em números gerais, contudo, constata-se que a taxa de homicídios caiu entre
50 e 80 por cento nas áreas que contam com a presença de UPPs.38 O êxito da iniciativa gerou o
debate atual sobre a possibilidade de se criar uma lei das UPPs, de modo a consolidá-las como
“missões de paz locais” permanentes.
Apesar do êxito generalizado das UPPs em termos de redução das taxas de homicídios e de
crimes violentos, existem acusações de ações violentas perpetradas pelas forças policiais de
ocupação, como assédio sexual a moradoras, subornos e corrupção. A esse respeito, há o
compromisso da polícia e das autoridades locais no sentido de investigar a veracidade dessas
acusações e expulsar da corporação qualquer policial envolvido em atividades criminosas. Vale
ressaltar, por outro lado, que se o índice de crimes violentos caiu em áreas ocupadas por UPPs,
em outras áreas aumentaram as taxas de crimes menores. Especialistas argumentam que as
UPPs criaram um “cinturão de segurança” ao redor das áreas abrangidas que, com efeito, levou à
migração de criminosos a outras regiões do estado, especialmente a cidades próximas, como
35 A. Morse (2011). ‘Pacifying and Reincorporating Rio de Janeiro’s Favelas’, in Tackling Urban Violence in Latin America:
Reversing Exclusion through Smart Policing and Social Investment. WOLA: Washington, DC, p.4.
36 L. Tedesco (2009). ‘Urban Violence: A Challenge to Institutional Strengthening: The Case of Latin America’, FRIDE,
Documento de Trabalho 78. Madri, p.11.
37 Rede Brasil Atual (2011). Quase três anos depois, UPPs no Rio seguem como obra em progresso’. Acesso em: 23 de
novembro de 2011. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidades/2011/08/unidades-de-policia-
pacificadora-no-rj-uma-obra-em-progresso .
38 O Globo (2011). ‘UPPs reduziram homicídios em 38 bairros’. Acesso em: 27 de novembro de 2011. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/rio/UPP-reduziram-homicidios-em-38-bairros-3331252
Macaé.39 Ademais, muitos oficiais lotados em UPPs fizeram parte de unidades (repressivas e
militares) da Polícia Militar (PM). Um claro fator limitador é o fato de que os cursos de
treinamento especial para UPPs são restritos a um período máximo de uma semana e, em alguns
casos, a 24 horas. Alguns críticos ressaltam não existir estratégia de segurança coerente no Rio
de Janeiro, mas apenas operações de curto prazo em favelas próximas às áreas mais ricas da
cidade. Insistem, ademais, na necessidade de continuar a aumentar o investimento público em
infraestrutura básica em todas as favelas da cidade, além da oferta de cursos e de treinamento
para os jovens moradores dessas áreas urbanas. Tais iniciativas requereriam substancial aumento
no número de UPPs e de UPPs sociais.
A retomada do monopólio estatal do uso legítimo da violência ocupa o cerne da recente política
governamental de segurança pública no Rio de Janeiro. Ao invés de estimular um círculo vicioso
de combate ao crime por meios militares e o consequente aumento da violência (em particular,
devido às recompensas monetárias oferecidas pelo “êxito” na luta contra o crime), as iniciativas
no Rio têm-se focalizado na eliminação da violência. Nesse contexto, as UPPs funcionam como
missões de paz permanentes, situadas nas principais favelas do Rio de Janeiro. O próximo passo
será a promoção de investimentos públicos e privados nas favelas. Parte dessa estratégia são o
turismo na favela e a criação de “bancos comunitários” com moeda própria para a circulação local
(como ocorre na Cidade de Deus).
Apesar das críticas, as recentes políticas públicas de segurança, focalizadas na prevenção da
violência e no fortalecimento do Estado, têm sido avaliadas positivamente (83 por cento dos
residentes de favelas com UPPs acreditam que a segurança em suas comunidades melhorou)40
e têm refletido a vontade política das autoridades locais de reduzir os níveis de violência urbana.
Nesse sentido, as UPPs constituem uma resposta híbrida, que congrega aspectos de mano
dura”, de pacificação, de prevenção de conflitos e de investimento social. Entretanto, o
treinamento para UPPs (em matéria de direitos humanos e desafios sociais) tem sido insuficiente
e deveria ser aperfeiçoado, incluindo estratégias de alerta antecipado. Esforço tal poderia contar
com o apoio logístico e, eventualmente, com o apoio financeiro da União Europeia, que
contribui ativamente com programas sociais em favelas do Rio de Janeiro, em cooperação com
ONGs locais, mas não tem focalizado questões de reforma policial.
3.2.2. Viva Rio e as respostas da sociedade civil
Apesar de algumas divergências com relação a estatísticas de taxas de homicídio e a projetos
sociais, as respostas locais governamentais e de ONGs coadunam-se estreitamente no Rio de
Janeiro. Exemplo disso é o Viva Rio, a mais destacada ONG em matéria de vioncia urbana na
região metropolitana do Rio de Janeiro. Um de seus principais projetos é uma campanha para o
controle de armas; outros projetos a incluem educação infanto-juvenil e a descriminalização das
drogas, a qual se debate atualmente no Brasil.
O Viva Rio monitora de perto o atual processo de instalão de UPPs nas principais favelas da
cidade. A organização conta com a participação de ex-policiais e ex-militares com olhar crítico e
com conhecimento dos êxitos e das limitações das recentes reformas e operações policiais nas
favelas.
39 Campanha Informativa da Violência Epidêmica (2011). ‘Macaé terá UPP. Não existe prova firme da “migração” do crime’.
Acesso em: 21 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.ipclfg.com.br/campanha-informativa-da-violencia-
epidemica/macae-tera-upp-nao-existe-prova-firme-da-“migracao”-do-crime
40 A. Morse (2011). ‘Pacifying and Reincorporating Rio de Janeiro’s Favelas’, in Tackling Urban Violence in Latin America:
Reversing Exclusion through Smart Policing and Social Investment. WOLA: Washington, DC, p. 5.
De acordo com dados do Instituto Pereira Passos, vinculado ao governo e responsável pelas
UPPs Sociais,41 há uma miríade de ONGs (aproximadamente 200) atuando nas favelas da
cidade. Alguns dos projetos mais relevantes de ONGs em favelas são o AfroReggae, VivaRio,
VivaFavela e Favela é Isso Aí, os quais mantêm projetos nas áreas de direitos humanos,
educação, oportunidades econômicas, acesso ao sistema judiciário e serviços de saúde, entre
outros.
Embora as relações entre instituições governamentais e entidades da sociedade civil não sejam
conflitantes e a questão da segurança pública seja bem menos politizada que em Caracas ,
existe certa competição entre as duas partes quanto as respostas à vioncia urbana. De acordo
com críticas do lado do governo, qualquer tentativa oficial de coordenação de projetos
independentes é considerada uma interferência em assuntos da sociedade civil. Contudo, as
relações entre governo e sociedade civil são próximas e ambos compartilham quanto a
necessidade de implementação de políticas de prevenção de conflitos para combater a violência
urbana.
Tendências da violência urbana e da prevenção de conflitos:
Graças à instalação de novas UPPs em algumas favelas e a melhorias socioeconômicas, as taxas
de homicídio e os níveis de violência estão em queda no Rio de Janeiro. Autoridades locais e
ONGs compartilham da vontade política e de ideias para o combate à violência urbana, por meio
de políticas de prevenção de conflitos e de integração das favelas à cidade.
3.3. O papel limitado da UE
A Delegação da UE em Brasília conta com ampla gama de projetos no Brasil, desenvolvidos pela
Comissão Europeia, pelo Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE) e por Estados-membros da
UE. Entretanto, as áreas de segurança pública e violência urbana não foram identificadas como
prioridades para a ajuda ao desenvolvimento. De acordo com o Documento de Estratégia
Nacional (“Country Strategy Paper”, CSP) Brasil (2007-2013),42 a ajuda ao desenvolvimento
concentra-se no intercâmbio de conhecimento em projetos ambientais.43
No período de 2002-2006, apenas três projetos relacionados à melhoria de condições de vida
em favelas foram implementados na área metropolitana do Rio de Janeiro. Os principais desafios
enfrentados foram a corrupção, o uso ilegítimo de recursos públicos,44 o acesso restrito de
cidadãos ao sistema judiciário e graves violações de direitos humanos e abuso de poder por parte
das forças de segurança pública. Conforme o Documento de Estratégia Nacional,
45aqueles
projetos direcionaram-se principalmente à provisão de serviços sociais básicos […] e à promoção
de atividades geradoras de renda’.
41 Para maiores informações, ver: http://www.uppsocial.com.br.
42 Comissão Europeia (2007). ‘Brazil Country Strategy Paper’ [Documento de Estratégia Nacional]. Acesso em: 17 de
novembro de 2011. Disponível em: http://eeas.europa.eu/brazil/csp/07_13_en.pdf
43 Outro documento importante é o Plano de Ação Conjunta da Parceria Estratégica, espécie de carta de intenção
elaborada por ocasião da II Reunião de Cúpula UE-Brasil, em 2008. Nele estão expressos objetivos e diretrizes para o
desenvolvimento de sólida cooperação entre as Partes. O documento corrobora também o teor do Documento de Estratégia
Nacional (“Country Strategy Paper”). A versão em português do documento está disponível em:
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/seges/brasil_municipios/plano_acao.pdf
44 O Brasil ocupou, em 2010, a 69ª posição, entre 175 países, de acordo com o ranking da Transparência Internacional.
Para maiores informações, ver: http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/cpi/2010/results
45 Comissão Europeia (2007). ‘Brazil Country Strategy Paper’ [Documento de Estratégia Nacional]. Acesso em: 17 de
novembro de 2011. Disponível em: http://eeas.europa.eu/brazil/csp/07_13_en.pdf
Em síntese, o CSP enfatiza as demandas sociais das favelas, mas não tem, por si, foco na
questão da violência urbana. Pode-se inferir que o desenvolvimento social tenha impacto na
redução dos níveis de violência, mas não consta haver estratégia explícita nesse sentido.
Corrobora esse argumento estudo que analisa 275 projetos desenvolvidos pela UE e por seus
Estados-membros no Brasil, desde 2002.46 Apenas a Espanha desenvolveu projetos relativos às
relações entre desenvolvimento e segurança pública principalmente nas regiões Norte e
Centro-Oeste do país, em áreas com populações indígenas , mas nenhum no Rio de Janeiro.
Mais recentemente, por ocasião da V Reunião de Cúpula Brasil-UE, em Bruxelas, em outubro de
2011, a UE e o Brasil decidiram fortalecer o diálogo em matéria de segurança.47 As partes
concordaram em buscar aperfeiçoar as técnicas e estratégias de combate ao crime organizado,
realizar intercâmbio de boas práticas em matéria de aplicação da lei e fortalecer a cooperação
bilateral em questões legais e policiais. Nesse sentido, a experiência das UPPs poderia constituir
ponto de partida para o aumento da participação da UE no combate à violência urbana no Rio de
Janeiro. Existe necessidade urgente de melhorar o processo de treinamento das UPPs, seja por
meio do apoio à implementação de políticas governamentais ou mediante licitações específicas
para ONGs. Ademais, embora a UE não tenha participação significativa no atual processo de
melhoria da segurança pública no Rio de Janeiro, algumas soluções locais para a violência
urbana poderiam ser aproveitadas em outros países (como a Venezuela) em que a UE tem, ou
deveria ter, participação mais proeminente em matéria de prevenção de conflitos e de alerta
antecipado.
4. Cooperação Trilateral em
matéria de Violência Urbana
4.1. Lições de Caracas e do Rio de Janeiro
Atualmente, a taxa de homicídios de Caracas é quatro vezes maior que a do Rio de Janeiro. As
estatísticas de atividades criminais refletem tendências opostas em cada uma das duas cidades:
enquanto a segurança pública melhora regularmente no Rio de Janeiro, a violência urbana
aumenta constantemente em Caracas. Apesar de críticas pontuais e do ainda limitado impacto
das reformas na área de segurança pública, o caso do Rio de Janeiro apresenta algumas lições
para Caracas:
Primeiramente, a reforma policial pode ser exitosa se estratégias de repressão ao crime
forem conjugadas com policiamento comunitário nas áreas mais empobrecidas da
cidade;
Em segundo lugar, o caso das UPPs inclusive as UPPs sociais comprova a
necessidade de se combinar e coordenar reformas na área de segurança pública com
programas (públicos e privados) sociais e de infraestrutura;
Em terceiro lugar, o diálogo e a cooperação entre governos locais e ONGs contribuem
para a maior eficácia das repostas locais à violência urbana.
46 O documento contém lista de projetos desenvolvidos no Brasil pela UE, Alemanha, Portugal, Espanha e França. Os
projetos de cada país estão listados no idioma de origem, exceto no caso da Alemanha, cujos projetos foram escritos em
português. Para maiores informações, ver:
http://eeas.europa.eu/delegations/brazil/documents/projects/memberstatecooperation_en.pdf
Além dos projetos desenvolvidos desde 2002, o documento não apresenta detalhes suficientes para uma melhor
compreensão da natureza dessas iniciativas.
47 Conselho da UE (2011). ‘V UE-Brazil Summit, Joint Statement, Brussels, 4 October 2011’. Acesso em: 27 de novembro
de 2011. Disponível em: http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_Data/docs/pressdata/EN/foraff/124878.pdf
Apesar das continuadas altas taxas de homicídios, algumas lições positivas também podem ser
extraídas do caso de Caracas. À diferença do Rio de Janeiro onde os habitantes de favelas
sofrem historicamente com um processo enraizado de discriminação e de exclusão , em
Caracas, estratégias de empoderamento local, inclusão política e políticas sociais (clientelistas)
empreendidas pelo movimento chavista alteraram o caráter de suas áreas mais empobrecidas.
Seus habitantes não estão mais à margem da sociedade, tendo-se tornado atores políticos e
sociais em favor da causa chavista. Mesmo a oposição política tem como foco as camadas
pobres de Caracas, identificas por ambos os campos do espectro político como grupo-chave no
processo eleitoral.
Dado o foco social do projeto político do Presidente Chávez, a reforma policial em Caracas teve
início pela região mais violenta e empobrecida da capital (Catia). Em contraste, observadores
locais criticam as operações policiais (inclusive as UPPs) no Rio de Janeiro, que estariam
centradas em áreas urbanas predominantemente de classe média (e de atividade turística), ao
passo que as regiões mais empobrecidas da cidade permaneceriam desassistidas.
Em ambas as cidades, as respostas governamentais à violência concentram-se em políticas de
curto prazo, focadas na área de segurança. Esforços menores são empreendidos em torno de
medidas estruturais, como a reforma do sistema judiciário, do sistema prisional ou do sistema
educacional.48 No que tange à educação, as UPPs sociais no Rio de Janeiro e as “missões” nas
regiões mais empobrecidas de Caracas49 refletem a vontade política de enfrentar as raízes
sociais do problema. Se, no caso do Rio de Janeiro, programas sociais constituem-se em parte da
política de segurança, em Caracas, essas vertentes seguem por canais separados, não havendo
estratégia abrangente e integrada de combate à violência urbana, seja em nível central ou na
esfera local.
Em Caracas e no Rio de Janeiro, a “violência institucional”, derivada da existência de dois
sistemas paralelos (um para ricos, outro para pobres), os altos níveis de impunidade, a corrupção,
a discriminação, a dificuldade de acesso ao sistema judiciário e os sistemas prisionais
disfuncionais, permeados por estruturas criminais, constituem fatores estruturais da violência
urbana. Nem o Rio de Janeiro nem Caracas progrediram significativamente em questões de
reformas judiciais, educacionais ou carcerárias, fundamentais para enfrentar as causas da
violência urbana.50 Caracas tem protelado essas reformas e o governo venezuelano não tem
demonstrado vontade política para implementá-las. No Rio de Janeiro, por outro lado, as
autoridades locais têm reconhecido essa necessidade. Porém, maiores avanços são limitados
pela corrupção disseminada e por outras restrições institucionais.
A circulação de armas não-registradas (de 9 a 15 milhões, no caso de Caracas) constitui um
problema em ambas as cidades, o que dificulta a adoção de estratégia eficaz e de longo prazo
contra a violência urbana. No Brasil, não teve êxito a iniciativa (do Governo Lula) de proibir armas
de fogo no país por meio de referendo realizado em 2005. Não houve iniciativa similar na
Venezuela, apesar de o desarmamento e o fortalecimento da segurança pública constarem entre
48 Para entendimentos mais aprofundados em questões de aplicação da lei, segurança e estratégias integradas de combate
à violência urbana, ver: V. Felbab-Brown (2011). Bringing the State to the Slum: Confronting Organized Crime and Urban
Violence in Latin America: Lessons for Law Enforcement and Policymakers. Brookings Institute, dezembro.
49 As “missões” foram criadas pelo Governo Chávez com substancial apoio cubano para enfrentar as necessidades
sociais da população marginalizada. As mais importantes são “Barrio Adentro (área médica) e “Mercal (provisão de
alimentos subsidiados para os pobres). Essas missões têm por objetivo aumentar a presença do governo em regiões da
cidade com pouca ou nenhuma presença do Estado.
50 Apesar das 18 iniciativas de reforma do código penal, o sistema prisional venezuelano permanece altamente disfuncional.
as principais demandas da oposição política.51 Reformas abrangentes na área de segurança, que
incluam os sistemas policial, judiciário e penal, não foram empreendidas em nenhuma das duas
cidades em análise.
Contudo, a queda nas taxas de homicídio no Rio de Janeiro confirma ser mais positiva a
estratégia de segurança pública adotada por essa cidade. O foco na prevenção de conflitos e na
construção comunitária da paz representa uma nova e bem-vinda mudança com relação ao
enfoque de políticas tradicionais de segurança pública. A visível redução das taxas de
criminalidade (conforme dados oficiais e de ONGs) comprova o êxito da estratégia de segurança
pública adotada para as principais favelas da cidade. Apesar das restrições de recursos e de
treinamento das UPPs, essas unidades constituem-se em um mecanismo útil para a redução do
crime e do tráfico de drogas. A cooperação entre governo local e ONGs pode ser vantajosa e
constituir um primeiro passo no sentido de um consenso político generalizado sobre como
integrar as favelas à cidade e eliminar os grupos criminosos. Em particular, a vertente social das
UPPS, os grandes investimentos públicos e privados e a provisão de infraestrutura social
deveriam ser fortalecidos.
Ao contrário do caso do Rio, as taxas de criminalidade em Caracas são as mais altas
historicamente, apesar das melhorias sociais citadas pelo governo. Esses dados confirmam a
hipótese, defendida por organizações da sociedade civil, de que a violência urbana não se origina
dos altos níveis de pobreza e desigualdade, mas de uma gama de fatores que conduz à
disseminação generalizada de uma “cultura de violência”. Assim, a violência urbana representa
uma grave ameaça tanto à democracia quanto ao desenvolvimento.
4.2. Cooperação Trilateral e Recomendações à UE
De acordo com o Escritório de Washington para América Latina (WOLA, por sua sigla em
inglês),52policiamento inteligente e investimento social são as melhores respostas à violência
urbana. Ambas essas soluções foram adotadas, com índices de sucesso diferentes, pelas
autoridades locais em Caracas e no Rio de Janeiro. No Rio, as UPPs e os programas de
investimentos nas favelas são estratégias-chave; em Caracas, a polícia bolivariana e as missões
sociais nas regiões mais empobrecidas constituem as principais respostas à violência urbana na
Venezuela.
As semelhanças entre as estratégias de combate à violência urbana nas duas capitais podem
servir de base para o intercâmbio de experiências em matéria de policiamento comunitário (UPPs
e PNB) e melhorias sociais (UPPs sociais e “missões”). Em ambos os casos, a experiência e o
apoio financeiro europeus poderiam ensejar iniciativas de cooperação trilateral que
beneficiassem todas as partes envolvidas.
Como aponta Laura Tedesco, ‘[a] chave para resolver o problema da violência urbana é a
reintegração dos jovens, por meio do fortalecimento institucional, da construção de consensos e
do aumento da destinação de recursos para educação, treinamento, prevenção e segurança’.53
Nesse sentido, torna-se fundamental uma abordagem como a socioeconômica da UE nos
termos de uma estratégia de promoção da democracia, da cidadania e do desenvolvimento. Vale
lembrar, nesse ponto, que a UE e seus Estados-membros têm ampla experiência em matéria de
51 Unidad (2011). ‘Para vivir y progresar en paz’. Acesso em: 27 de novembro de 2011. Disponível em:
http://www.unidadvenezuela.org
52 A. Morse (2011). Op. cit.
53 L. Tedesco (2009). ‘Urban Violence: A Challenge to Institutional Strengthening: The Case of Latin America’, FRIDE,
Documento de Trabalho 78, Madri, p.14.
policiamento comunitário (como o policiamento orientado para a resolução de problemas, “POP”,
britânico) e de políticas sociais.
O programa regional URB-AL, da União Europeia, destinado ao intercâmbio de experiências e à
organização de redes de conhecimento entre comunidades urbanas locais latino-americanas,
apresenta ampla gama de oportunidades de aprofundamento da cooperação trilateral. A rede de
segurança cidadã é a mais recente das 13 redes já estabelecidas no contexto da URB-AL.
Nesse âmbito, a UE poderia incentivar o dlogo sobre violência urbana e políticas preventivas
com autoridades locais no Rio de Janeiro e em Caracas. Além da URB-AL, seria importante
estimular abordagem mais aprofundada de soluções locais, em nível municipal, na cooperação
bilateral entre Brasil e Venezuela, a qual abrangesse a coordenação em matéria de soluções ao
problema da violência urbana entre as autoridades locais e as entidades não-governamentais das
duas capitais.
Recomendações à UE
Em nível regional (comparativo):
Avaliar as possibilidades, e as limitações, de cooperação trilateral em matéria de
segurança pública e violência urbana entre Caracas e Rio de Janeiro, sob os auspícios da
União Europeia;
Fortalecer o intercâmbio de respostas locais à violência urbana, baseadas nos conceitos
de alerta rápido e prevenção de conflitos, no âmbito do programa URB-AL (em particular,
no âmbito da rede n.º 13, sobre segurança pública);
Aperfeiçoar o intercâmbio de experiências de alguns Estados-membros da UE (em
particular, Espanha, Itália e França) com Brasil e Venezuela, na área de violência urbana
e policiamento comunitário, inclusive no referente a estratégias de alerta antecipado.
Em nível bilateral (Brasil/Rio de Janeiro):
Oferecer apoio financeiro e logístico para treinamentos e para a abordagem de longo
prazo característica do programa comunitário das UPPs, no Rio de Janeiro, ali abrangidas
estratégias de alerta rápido;
Incrementar a cooperação bilateral em matéria de segurança pública entre o Brasil e a
UE (em temas como tráfico de drogas, crime organizado e policiamento) no âmbito do
recente Plano de Ação da Parceria Estratégica;
Reativar projetos da UE em matéria de desenvolvimento social nas favelas do Rio de
Janeiro;
Avaliar a possibilidade de levar a outras cidades latino-americanas a experiência das
UPPs (no âmbito do URB-AL).
Em nível bilateral (Venezuela/Caracas):
Incluir questões de segurança na agenda bilateral de diálogo e cooperação com o
Governo da Venezuela;
Redesenhar o Documento de Estratégia Nacional (“Country Strategy Paper”, CSP, por
sua sigla em inglês) de modo a conferir maior ênfase à análise das causas e
consequências da violência urbana;
Incrementar o financiamento a ONGs relacionadas a questões de segurança pública,
juventude e violência urbana em Caracas;
Insistir na participação da UE em reformas policiais implementadas por autoridades
centrais ou locais em Caracas, abrangendo estratégias de alerta rápido;
Promover o diálogo entre governos e ONGs em matéria de segurança pública e violência
urbana, para a identificação de soluções comuns.
c/o International Alert
Rua Belliard, 205
B-1040, Bruxelas
ifp-ew@international-alert.org
www.ifp-ew.eu
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