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Ciênc. Educ., Bauru, v. 23, n. 3, p. 707-722, 2017
1 Universidade Federal Pernambuco (UFPE), Caruaru, PE, Brasil.
Orcid: <http://orcid.org/0000-0001-9682-8889>. E-mail: <joaoratistenorio@gmail.com>.
Diversos modos de pensar o conceito de substância
química na história da ciência e sua visão relacional
Many ways of thinking the concept of chemical substance
in science history and its relational view
João Roberto Ratis Tenório da Silva1
Resumo: O conceito de substância é considerado importante, pois serve de base para a aprendizagem
de outros conteúdos. Em seu desenvolvimento histórico, encontram-se formas de falar relacionadas
com modos de pensar, os quais foram organizados em cinco zonas de um perl conceitual: generalista,
essencialista (utilitarista/pragmática), substancialista, racionalista e relacional. Concepções da zona rela-
cional são pouco discutidas em sala de aula. A discussão da visão relacional é importante, pois permite
que alunos tenham consciência de certos comportamentos das substâncias. Assim, o objetivo deste artigo
foi apresentar um breve relato do desenvolvimento histórico do conceito de substância química, contem-
plando as cinco zonas do perl conceitual, destacando as concepções da zona relacional. Apontam-se
diretrizes sobre a necessidade da ampla discussão deste conceito em sala de aula, além da necessidade de
pesquisas sobre métodos de ensino que promovam tais discussões, levando em consideração, além da
visão relacional, as ideias das demais zonas do perl conceitual.
Palavras-chave: Ensino de química. Substância química. Conceito.
Abstract: The concept of substance is considered important, because it is the basis for learning other
content. In its historical development, we nd ways of speaking related to ways of thinking, which are
organized into ve zones of a conceptual prole: generalist, essentialist (utilitarist/pragmatic), substantia-
list, rationalist and relational. Concepts of the relational zone are rarely discussed in the classroom. The
relational view discussion is important because it allows students to become aware of certain behaviors
of substances. This article aims to provide a brief account of the historical development of the concept
of substance, covering ve zones of the conceptual prole, highlighting the concepts of the relational
zone. It points not only to the need for extensive discussion of this concept in classroom but also to the
need for research on teaching methods that promote these discussions, taking into account both, the
relational view and the ideas of other zones of the conceptual prole.
Keywords: Chemistry teaching. Chemical substance. Concept.
doi: https://doi.org/10.1590/1516-731320170030011
Silva, J. R. R. T.
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Introdução
O conceito de substância é considerado um dos mais importantes na Química, sendo
a sua compreensão importante para a estruturação de diversos outros conceitos, como o de
elemento, mistura e reações químicas (OLIVEIRA, 1995; SILVEIRA, 2003; SILVA; AMARAL,
2013). Ao longo da história, é possível identicar diversas formas de falar este conceito, as quais
estão associadas com diferentes modos de pensar, demonstrando que sua evolução se deu a
partir da passagem por vários tipos de concepções. Esses diversos modos de pensar podem
emergir em diversos contextos atuais, no discurso de alunos e professores de Química, visto a
proximidade de concepções informais/alternativas com ideias cientícas que já foram válidas em
algum período histórico (POZO; CRESPO, 1998). Na literatura é possível encontrar diversos
levantamentos de concepções informais/alternativas do conceito de substância, tais como os
encontrados em Araújo, Silva e Tunes (1994), Johnson (2000, 2002) e Vogelezang (1987), entre
outros. Essas concepções, quando organizadas a partir de compromissos epistemológicos,
ontológicos e axiológicos, podem constituir zonas de um perl conceitual. A teoria do perl
conceitual (MORTIMER; EL-HANI, 2014) explica a possibilidade de um único sujeito pensar
um conceito de vários modos diferentes, usando formas de falar (associadas aos modos de pen-
sar) em contextos especícos, possuindo um perl conceitual que lhe é próprio, construído ao
longo da vida por meio de suas diferentes vivências e experiências. Dessa forma, considera-se
que um sujeito pode apresentar diversas concepções sobre o conceito de substância, desde as
mais simples e intuitivas às mais complexas, e usá-las de acordo com o sentido que ele atribui
em determinados contextos ou situações. O perl conceitual de substância, proposto por Silva
e Amaral (2013), apresenta cinco zonas: generalista, essencialista, substancialista, racionalista e
relacional. Abaixo, as cinco zonas são apresentadas brevemente, com uma proposta de refor-
mulação na zona essencialista, segundo os compromissos epistemológicos destacados por Silva
e Amaral (2013), passando a se chamar zona utilitarista/pragmática.
Zona Generalista
Esta zona está relacionada com uma perspectiva generalista, em que são visualizadas
totalidades em detrimento das partes, ou são buscados princípios universais para a compreensão
de todas as coisas. Com relação ao conceito de substância, essa zona diz respeito às ideias em
que qualquer objeto é tratado como substância, sendo a compreensão sobre os materiais pau-
tada a partir de generalidades ou princípios gerais. Formas de falar relacionadas a essa zona são
comuns em situações do cotidiano, em que, geralmente, qualquer material pode ser classicado
como uma substância ou compreendido a partir de uma substância única à qual está associado.
Dessa forma, em contextos do senso comum, é possível observar pessoas que consideram
misturas como detergente, leite ou água mineral como substâncias, independentemente desses
materiais serem formados por diversos componentes químicos.
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Zona Utilitarista/Pragmática
Nessa zona, a compreensão de substância está associada à aplicação ou utilidade que
ela pode ter, principalmente para os seres humanos. Ela inclui concepções em que o sujeito
compreende as substâncias a partir de atributos que são importantes para a manutenção da
vida, ou que têm utilidade prática podendo gerar benefícios ou malefícios. Assim, em algumas
situações, pessoas ressaltam a importância e inuência das mais diversas substâncias, encontra-
das nos materiais ou produtos naturais, para a saúde. Por exemplo, recomenda-se a ingestão de
alimentos que contêm proteína, tais como leite, queijo e demais alimentos de origem animal,
por causa do benefício das proteínas na manutenção do corpo e como fonte de energia para
atividades diárias, quando carboidratos e lipídios são insucientes. Também é comum reco-
mendar o uso de medicamentos, produtos toterápicos ou suplementos alimentares para suprir
necessidades do organismo, por exemplo, ao falar “você precisa de ferro para car forte!”. A
menção ao ferro, neste caso, não necessariamente implica na visualização de uma substância,
no sentido químico, mas está associada ao benefício de algum produto ou material em uma
situação especíca. Outra forma de falar, também associada a essa zona, é a justicativa para
ingestão de determinados tipos de alimentos, que contêm nutrientes importantes para a saúde,
porque tais alimentos são substanciais ou apresentam “substância” (ou “sustança”, no sentido
que são fortes e fornecem energia).
Zona substancialista
Nessa zona, o sujeito começa a expressar ideias cientícas sobre o conceito de substância
química, tendo noção da existência de diferentes compostos, classicações e propriedades. Porém,
nas formas de falar, observa-se que há uma tendência em considerar que as propriedades físicas
e químicas das substâncias também se manifestam em seus constituintes (átomos e moléculas).
É um modo de pensar encontrado disperso na linguagem química, sendo possível identicar
na fala de professores, alunos e em livros de Química. A ideia substancializada do conceito de
calor (AMARAL; MORTIMER, 2001) e de energia (SIMÕES NETO, 2016) são exemplos de
como esse modo de pensar é usado na linguagem química, quando frases do tipo “a energia é
transferida” ou “calor é cedido para o ambiente” são usadas em sala de aula ou livros didáticos.
Mortimer (1997) arma que livros didáticos de Bioquímica, por exemplo, explicam de forma
substancialista que energia é liberada quando uma ligação P-O é quebrada numa molécula de
ATP. Além disso, essa zona também é encontrada em denições para o conceito de molécula,
encontradas em handbooks e dicionários, quando armam que a molécula se trata da “menor
quantidade unitária de matéria que pode existir por si mesma e que retém todas as propriedades
da substância original” (MORTIMER, 1997, p. 203). Essa denição é substancialista no sentido
em que as moléculas não retêm todas as propriedades da substância original. As propriedades
são relativas às substâncias e não aos seus constituintes individuais (átomos e/ou moléculas).
Porém, devido a essa presença em contextos cientícos, Mortimer (1997, p. 203) considera
que “é uma zona importante do perl para a própria ciência, uma vez que seu uso automático
e quase inconsciente na linguagem química pode produzir confusão, levando os químicos e,
principalmente, os estudantes de química, a cometerem erros”.
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Zona Racionalista
Nessa zona, segundo Silva e Amaral (2013), encontram-se concepções mais próximas
daquelas trabalhadas no contexto cientíco. Geralmente, são ideias cientícas construídas a
partir do século XVII, fazendo parte do que se pode chamar de Química Clássica. Essa zona
apresenta dois modos de pensar, associados a formas de falar:
- Visão macroscópica: o sujeito compreende a existência das diversas substâncias a partir
da identicação de propriedades físicas e químicas, que se manifestam macroscopicamente. Essas
propriedades têm a função de identicar as substâncias, sendo próprias a elas. Por exemplo, a
substância água é caracterizada por ter a temperatura de ebulição de 100ºC; ou as substâncias
metálicas são caracterizadas por apresentarem brilho, maleabilidade e dureza;
- Visão microscópica: além da identicação e caracterização das substâncias a partir de
suas propriedades, há consciência sobre as diversas classicações (substâncias simples, composta,
orgânica, inorgânica, etc) a partir do conhecimento da composição dos materiais e das substâncias
que os compõem. Assim, o sujeito tem o conhecimento de que o ar atmosférico, por exemplo,
é composto por diversas substâncias gasosas simples e compostas; ou da diferenciação de
substâncias orgânicas e inorgânicas pela presença de carbono e hidrogênio em certas moléculas.
Zona Relacional
De acordo com Silva e Amaral (2013), nessa zona o conceito de substância é consi-
derado como um modelo teórico para explicação do comportamento da matéria, sendo sua
existência no mundo real considerada como um mito (OLIVEIRA, 1995). Assim, a ideia da
existência de substâncias com 100% de pureza, com propriedades físico-químicas bem denidas
é considerada como uma aproximação teórica. Em um sistema, as moléculas de uma substância
estão em constante interação com outras espécies no meio e com as vizinhanças, havendo uma
constante troca energética (SILVA; AMARAL, 2013). Além disso, algumas de suas propriedades
são relacionais (MORTIMER, 1997) e não bem denidas e constantes, tais como ponto de
ebulição, acidez e basicidade e comportamento redox.
Acredita-se que uma análise da visão relacional do conceito de substância química pode
contribuir para uma compreensão ampla deste conceito, visto que tal discussão não é explícita
em livros didáticos de Química, inclusive aqueles de nível superior. Tal problema acaba por
fazer com que o sujeito não tenha consciência de que as propriedades das substâncias e seu
comportamento no ambiente são resultados de jogos relacionais entre as substâncias presentes
em um sistema e suas vizinhanças, acabando por reforçar, dentro da sala de aula, ideias que são
do senso comum, não adequadas dentro de um contexto cientíco.
Não é a intenção deste artigo armar que a visão relacional é “mais correta” do que as
outras, visto o valor pragmático que cada modo de pensar o conceito de substância apresenta
em determinados contextos (MORTIMER; EL-HANI, 2014). Porém, enfatiza-se a importância
de uma ampla discussão da visão relacional em cursos de nível superior de Química, princi-
palmente as licenciaturas, visto que futuros professores devem ter consciência das nuances do
conceito de substância para não reforçar concepções informais/alternativas, como se observa
na literatura (DINIZ JUNIOR; SILVA; AMARAL, 2015).
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Diante do exposto acima, o objetivo deste artigo é apresentar um breve relato do
desenvolvimento histórico do conceito de substância, a partir de fontes da história da Ciência,
contemplando as cinco zonas do perl conceitual de substância apresentadas acima, destacan-
do como tal desenvolvimento culminou na ideia de uma substância que, no mundo real, não
apresenta um comportamento padrão (com todas as propriedades bem denidas, por exemplo)
dentro da visão relacional.
É importante destacar que, mesmo levantando a necessidade de uma discussão sobre
a visão relacional, os químicos usam, na maior parte das suas práticas, formas de falar que
consideram as substâncias “puras” e com propriedades bem denidas. Pode-se observar a
presença desses tipos de modos de pensar a partir de formas de falar presentes nos próprios
livros didáticos de Química. Um exemplo disso está na apresentação do diagrama de fases da
água em Atkins e Jones (2012, p. 340) em que os autores destacam a temperatura de ebulição da
água em 100ºC, sendo essa característica em função de uma pureza de 100% da substância. A
justicativa disso se dá por ser parte da cultura dos químicos considerar que diversas substâncias
são puras, facilitando a interpretação de alguns processos, demonstrando o valor pragmático
desse tipo de modo de pensar. O problema que se levanta nesse contexto é que nem toda si-
tuação no âmbito da Química permite tais considerações, sendo necessária uma reexão sobre
a visão relacional das substâncias para interpretação de alguns processos e fenômenos, sendo
essa a justicativa do presente artigo.
Diferentes modos de pensar o conceito
de substância química na história
Os diversos modos de pensar o conceito de substância química serão apresentados
nos subitens a seguir, tomando como referência períodos históricos em que determinados tipos
de concepções, referentes às zonas do perl conceitual de substância, tiveram sua origem. No
levantamento histórico apresentado, será possível observar que um determinado modo de pensar
teve sua gênese em um dado momento histórico e suas ideias atravessaram longos períodos,
estando presentes, inclusive, em diversos contextos atuais. Assim, as ideias das diferentes zonas
do perl conceitual coexistiram em diversos momentos na história da ciência e convivem ainda
hoje em diversos contextos (MORTIMER; EL-HANI, 2014).
Concepções generalistas
Pode-se considerar que as primeiras noções sobre o conceito de substância tiveram
sua gênese na Filosoa a partir de especulações sobre a origem do Universo, que zeram surgir
concepções acerca da natureza da matéria. Segundo Partington (1989), no contexto grego, as
primeiras noções de substância tiveram origem na Escola Jônica. Os jônicos, ao especularem
sobre a origem do Universo, conceberam princípios, os quais deram origem a todas as coisas
no Universo. Para Tales de Mileto (639-546 a.C.), por exemplo, esse princípio permanente era
a água, razão pela qual armava que a terra utuava sobre ela. Para Anaximandro (610 - 547
a.C.), o aiperon era a substância que dava origem a todas as coisas. Anaxímenes (611-545 a.C.)
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concordava com a ideia de Anaximandro, porém, para ele, o aiperon era o “ar”, o qual considerava
como a substância primária. Mais à frente, Empédocles (490-435 a.C) introduziu a ideia dos
quatro elementos – água, terra, ar e fogo (PARTINGTON, 1989). Esses princípios materiais
eram entidades que estariam na composição de todos os corpos materiais que, segundo Aris-
tóteles (384 a.C.-322 a.C.), poderiam sofrer transmutação, sendo suas qualidades primárias o
quente, frio, úmido e seco (ARISTÓTELES, 1995).
Dessa forma, Aristóteles (1996, p. 142-143) se referiu à substância como Essência ou
Ser (do grego ousia), atribuindo-lhe as seguintes características: (a) corpos simples, do que são
exemplo a terra, o fogo, a água e similares; e, em geral, os corpos e as coisas deles compostas,
animais e divinas, incluindo as partes destes. Todas essas coisas são chamadas substâncias por-
que não são predicadas de nenhum sujeito, embora tudo mais seja predicado delas; (b) aquilo
que, estando presente em tais coisas, que não são predicadas de um sujeito, é a causa de seu
ser, como por exemplo, no animal a alma é a causa de seu ser; (c) todas as partes presentes
nas coisas que são denidoras e indicadoras de sua individualidade, e cuja supressão do todo,
como por exemplo, segundo alguns, o plano. Alguns pensam que o número, em geral, também
seja dessa natureza, sob o fundamento de que se ele fosse suprimido, nada existiria, sendo ele
o que determina tudo; (d) a essência, cuja fórmula é a denição, também é chamada substância
de cada coisa particular. Diante dessas características, pode-se sintetizar alguns atributos das
substâncias apontados por Aristóteles:
- Imutável;
- Representa algo absoluto;
- Representa o Ser, ou seja, a individualidade de cada corpo;
- A existência das coisas depende da existência desta substância, ou seja, as coisas
existem em função da substância;
- Não é predicada de nenhum sujeito, ou seja, é elementar (neste ponto percebe-se
como os conceitos de elemento e substância se confundiam, não existindo uma diferença clara
entre os dois);
- Pode ser material ou imaterial, porém sempre representando a essência de um corpo
maior.
A ideia generalista, neste contexto, é concebida a partir da busca e da percepção de algo
que pudesse ser considerado como um princípio geral, comum a todas as coisas presentes na
Natureza. A ideia de que a água, fogo, terra e ar, sendo considerados corpos simples e materiais,
estarem presentes em toda natureza, sugere que tais modos de pensar possuam uma característica
generalista, estando presentes também em outros contextos e períodos históricos. O alquimista
Paracelso - Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541) - pensou
na existência de corpos os quais representavam princípios que estavam presentes nos corpos
e explicavam alguns fenômenos, como a queima de materiais. Estes princípios eram o sal, o
enxofre e o mercúrio. Segundo ele, o sal era o princípio da xação e incombustibilidade, o mer-
cúrio era o princípio da fusibilidade e volatilidade e o enxofre o princípio da inameabilidade
(PARTINGTON, 1989). Ainda segundo Paracelso, essas três substâncias juntas formavam a
tria prima, e o sal, o enxofre e o mercúrio representavam o corpo a alma e o espírito, respecti-
vamente (GOLDFARB, 2001). A ideia dos princípios (mercúrio-enxofre) também é atribuída
ao alquimista árabe Jabir ibn Hayyan (721 d.C.-815 d.C.) (OKI, 2002). Segundo suas ideias,
nessa teoria, todos os corpos seriam formados em diferentes proporções por dois princípios:
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o enxofre, portador da propriedade combustibilidade, e o princípio mercúrio, carregador da
“metalicidade”.
Concepções utilitaristas/pragmáticas
Nas primeiras grandes civilizações, não se conhecia muito sobre a matéria, mas havia
um grande interesse no uso de materiais para usufruto das comunidades que se formavam. Na
Idade Antiga (4000 a.C.~500 d.C.), ainda que a relação com os materiais tivesse predominan-
temente esse caráter pragmático, a manipulação de materiais possibilitou que, ao longo dos
anos, um grande número de substâncias químicas fosse conhecido, tais como, óxidos de cobre,
ferro e zinco; alumínio, sulfatos de cobre e ferro; sultos de arsênico e mercúrio e produtos
vegetais e animais. Assim, pode-se ressaltar que apesar de haver uma motivação pautada pelo
uso e aplicação de produtos em atividades humanas, as técnicas desenvolvidas para manipulação
foram despertando no ser humano a curiosidade em saber mais a respeito da natureza da matéria
(PARTINGTON, 1989). Nesse sentido, verica-se que uma visão mais utilitarista da matéria
não excluiu a possibilidade de busca por uma compreensão mais aprofundada da sua natureza.
Os metais, em geral, eram amplamente utilizados por esses povos para a fabricação
de diversos artefatos. A extração de substâncias era considerada uma tarefa sagrada (GOLD-
FARB, 2001), por isso a manipulação desses metais era feita em um contexto de misticismo e
religiosidade.
Ideias utilitaristas/pragmáticas também aparecem na Idade Média e na Alquimia como
um todo. Nessa época, percebe-se a tendência em considerar que alguns objetos são responsá-
veis pela manutenção da vida na Natureza. Acreditava-se, por exemplo, que os metais tinham
a capacidade de gerar e manter a vida (LEICESTER, 1967; PARTINGTON, 1989). Pode-se
observar o reexo dessas ideias nas tentativas dos alquimistas em obter a matéria morta para,
a partir dela, gerar vida. Neste processo o material “morto” deveria perder a maior parte de
suas propriedades metálicas, se tornar preto e depois passar por um processo de clareamento
até chegar à cor dourada (LEICESTER, 1967). A Pedra Filosofal adiantava esse processo de
transmutação e toda a história da Alquimia (não só no Ocidente) tinha como um dos objetivos
principais a busca desse poderoso material e do Elixir da Longa Vida, o qual, como o nome
propõe, oferecia vida eterna a quem o usasse (GOLDFARB, 2001; LEICESTER, 1967; PAR-
TINGTON, 1989, entre outros). É interessante apontar que o aprofundamento no conhecimento
da matéria a partir do seu uso ou aplicação faz emergir a ideia de propriedade para determi-
nados tipos de materiais, o que pode representar uma aproximação de um pensamento mais
sistematizado sobre as relações entre a composição, ou componentes presentes em materiais
e suas propriedades. Algumas substâncias se tornam importantes devido às propriedades que
apresentam em determinadas situações e contextos.
Concepções substancialistas
Formas de falar relacionadas ao modo de pensar substancialista se encontram dispersas
na linguagem química atual, sendo também encontradas em alguns períodos e contextos his-
tóricos. Segundo Bachelard (1996), o substancialismo se relaciona à explicação monótona das
propriedades pela substância. Assim, se atribui às substâncias qualidades diversas, estando tais
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qualidades presentes no interior das próprias substâncias. Isso, segundo Oliveira (1995), fazia
com que os alquimistas tentassem “abrir” as substâncias, na perspectiva de alcançar e desvendar
qualidades ocultas.
Bachelard (1996) apresenta o exemplo do alquimista David Macbride, em sua obra Essais
d’experiences (1766), em que o autor procura provar, por meio de experimentos de decomposição de
substâncias de origem animal e vegetal, que o ar xo (conhecido atualmente como gás carbônico)
é o princípio de coesão e de unidade substancial dessas substâncias. Assim, Macbride considera
que o ar xo é uma espécie de vínculo entre as substâncias, fazendo com que elas quem coesas.
Dessa forma, se teria acesso, também, à qualidade de xação do ar xo que lhe era atribuída.
Segundo Bachelard (1996), outro exemplo de tentativas de abrir as substâncias a m
de ter acesso à qualidade interior é encontrado nos trabalhos de Jean Le Pelletier, em sua obra
V Alkaest ou le dissolvam universel de Van Helmont. Révélé dans plusieurs traités qui en découvrent le secret,
publicada no ano de 1704. Neste livro, Le Pelletier considerava o metal mercúrio muito bem
fechado, sendo suas qualidades internas (ou ocultas) de difícil acesso, assim como o enxofre.
Dessa forma, era necessário buscar uma chave para abrir tais substâncias. No mesmo século,
Joachim Poleman, em seu livro Nouvelle lumière de Médecine du mistere du souffre des philosophes (1721),
armava que apenas o azeite teria poder de dissolver naturalmente o enxofre e revirá-lo de
dentro para fora e que isso foi possível com o cobre, sendo possível liberar a “alma” do metal
(BACHELARD, 1996).
Mortimer (1997), ao propor um perl conceitual para molécula, também identicou
uma zona substancialista, quando o sujeito considera que fenômenos macroscópicos, tais como
dilatar, fundir e ferver - ocorrem no interior das substâncias, ou seja, com os seus constituin-
tes (átomos e moléculas). O autor apresenta alguns exemplos encontrados na Idade Média,
como, por exemplo, o de Joseph Scaliger (1484-1558) que, ao interpretar as ideias losócas
de Anáxagoras e Aristóteles sobre a composição da matéria, inferiu que maciez e aspereza são
propriedades dos corpos presentes no minima (constituinte da matéria). Além disso, segundo
Mortimer (1997), ele distinguia entre propriedades da matéria que dependiam dos minima, tais
como maciez e aspereza, e outras que dependeriam da forma como os minima eram unidos,
como a densidade, por exemplo. Esse tipo de concepção também é encontrado no pensamento
de Lemery (1645-1715), em sua obra Cours de chymie, publicado no século XVII. Sendo um dos
mais populares livros de química na época, usava a teoria corpuscular de Descartes, que ar-
mava que as propriedades da substância dependiam da forma de suas partículas. Além disso,
Lemery atribuía as propriedades dos ácidos à forma pontiaguda de suas partículas constituintes
(MORTIMER, 1997).
Concepções racionalistas
Robert Boyle (1627-1691), no século XVII, acreditava na teoria atômica e considerava
que as combinações químicas se faziam entre partículas elementares, a partir de anidades quí-
micas. No século XVIII, a ideia da existência de substâncias elementares continuava perdendo
força no contexto cientíco. Os métodos de laboratório passaram por vários avanços nesta
época e a Química estava se separando da Alquimia com base no pensamento empírico.
Os estudos acerca dos gases contribuíram para as primeiras denições sobre o conceito
de substância, agora, de fato, podendo ser chamada de substância química. Experimentos rea-
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lizados por Stephen Hales (1677-1761), por exemplo, sobre a determinação da quantidade de
gases que se podia extrair de uma substância pelo calor (LEICESTER, 1967; PARTINGTON,
1989), contribuíram para o rompimento das ideias losócas, pois se mostrava que o ar não
era uma substância elementar, mas sim uma mistura formada por diversos outros gases. Joseph
Black (1728-1799) também realizou experimentos importantes, como a determinação do calor
latente, reconhecendo, assim, que as substâncias possuíam capacidades diferentes de calor ou
um calor especíco (SILVA, 2011). Com seus experimentos, ele determinou a existência de
um “ar” que estaria presente no carbonato básico de magnésio: o ar xo. Este é o mesmo “ar
silvestre” encontrado anteriormente por van Helmont (PARTINGTON, 1989) sendo chama-
do posteriormente de gás carbônico. Os experimentos realizados por Cavendish (1731-1810),
Scheele (1742-1786) e Priestley (1733-1804) também foram relevantes nos estudos dos gases e
determinação de propriedades de diversas substâncias. Cavendish publicou em 1766 um estudo
sobre as propriedades do ar inamável (hoje, conhecido como hidrogênio) e o ar xo (PAR-
TINGTON, 1989). Carl Wihelm Scheele determinou que o ar era composto por dois uidos,
diferentes um do outro. Estes foram chamados de Foul air e Fire air, que mais adiante foram
nomeados de nitrogênio e oxigênio, respectivamente (PARTINGTON, 1989). Já Priestley isolou
e caracterizou um grande número de gases, não se comparando a nenhum de seus contemporâ-
neos. Gorri e Filho (2009) relatam que Priestley identicou e estudou as propriedades de doze
diferentes tipos de “ares”, que mais à frente foram identicados como: oxigênio, nitrogênio,
óxido nítrico, dióxido de nitrogênio, óxido nitroso, dióxido de carbono, hidrogênio, monóxido
de carbono, dióxido de enxofre, cloreto de hidrogênio, amônia e tetrauoreto de silício.
Ainda no século XVIII, observa-se as contribuições dos trabalhos de Antoine Lavoisier
(1743-1794). Segundo Paolloni (1980), Lavoisier completou os trabalhos de Black, Priestley e
Cavendish, elaborando uma denição operativa de elemento e, consequentemente, também
de substância química. Lavoisier conhecia os trabalhos de Hales, portanto sabia que algumas
substâncias químicas podiam conter gases e desprendê-los (LEICESTER, 1967). Ele também
conhecia os trabalhos de todos os seus antecessores e isto fez com que visse a possibilidade
de que os gases poderiam se combinar com outros compostos ou se desprenderem a partir de
reações químicas. Em 1778, Lavoisier publicou um trabalho no qual dizia que o ar era composto
por dois uidos (semelhante ao trabalho de Scheele, publicado em 1777), um que combinava
com os metais e outro o qual chamou de “metíco”. Em dezembro de 1774 Lavoisier já pensava
que o ar se combinava com os metais durante o processo de calcinação (PARTINGTON, 1989).
Os experimentos de Lavoisier só vieram reforçar a ideia de que o ar não era uma substância em
si, mas formada a partir de diversos compostos. Isso culminou com as denições formais de
elemento e substância que se encontram hoje em livros didáticos de Química. Lavoisier (1789)
criticava a teoria losóca dos quatro elementos, fazendo com que ele mesmo fornecesse uma
denição para o conceito de elemento químico. Assim, o químico francês arma que elemento
(ou princípio) é o último termo no qual se possa analisar. Aquelas substâncias que ainda não
pode decompor por nenhum meio, são elementos. Logo, como se demonstrava empiricamente
na época, o ar e a água não poderiam ser substâncias elementares.
Na classicação de Lavoisier (1789), na natureza existem os corpos elementares ou
substâncias simples, as quais não se podem mais decompor, logo são consideradas elementos.
Percebe-se que a substância química é considerada como algo manipulável. As concepções de
Lavoisier apresentam uma a ideia de substância simples como sinônimo de elemento químico. A
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partir dessa noção, várias propriedades dos elementos que são conhecidas hoje, tais como tempe-
raturas de fusão e ebulição, foram identicadas a partir da manipulação das substâncias simples.
Essa relação entre substância simples e elemento sofreu uma reestruturação no nal do século
XIX com os estudos de Dmitri Ivanovich Mendeleev (1834-1907), o qual, em suas pesquisas,
atribuía ao átomo o status de elemento químico (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992).
No século XX, o conceito ganha uma forma abstrata, em que a existência concreta
das substâncias é relativizada. Essa relativização se dá pelo fato de que na natureza não exis-
tem substâncias na sua forma pura, sendo a pureza alcançada a partir de diversos processos de
puricação aplicados em laboratórios e na síntese de novos materiais, como os nanotubos de
carbono e outros materiais nanométricos. Assim, o que se manipula e o que está disponível na
natureza são misturas. O conceito de substância se torna um modelo apenas aplicável dentro
do contexto cientíco, mas que não explica o comportamento dos materiais no mundo real. A
água, por exemplo, com temperatura de ebulição de 100ºC só é possível ser identicada se uma
amostra tiver 100% pura e o sistema se apresentar sob uma pressão de 1 atm, não traduzindo
um comportamento real da substância água encontrada na Natureza. É nesse contexto que a
visão relacional começa a ser estruturada.
O conceito de substância química no século XX: visão relacional
Segundo Silva e Amaral (2013), a ideia da substância relacional se dá a partir da con-
cepção de que na natureza não se encontram substâncias isoladas que não interajam com o seu
meio. A interação dos materiais com o ambiente faz com que a matéria nunca seja a mesma,
mas se apresente em constante transformação, alcançando certos momentos de estabilidade,
se comportando como um constante devir (BACHELARD, 1984). Este devir se dá através das
trocas energéticas entre a matéria e o ambiente, fazendo com que as moléculas das substâncias
constantemente mudem sua forma e a substância em si apresente algumas propriedades que
dependam dessas interações com o ambiente. Tal noção faz com que se perceba a estreita
relação entre a matéria e a energia.
Relação entre matéria e energia
Brody e Brody (2006) armam que, a partir dos estudos no campo da radioatividade,
vários fenômenos começaram a ser explicados, tomando por bases os conceitos de fusão e ssão
nuclear. Segundo os autores, a descoberta de Becquerel da emanação espontânea de energia
de materiais radioativos, em 1896, forneceu a primeira pista para a imensa energia do Sol (a
partir da fusão de núcleos de hidrogênio para formação de núcleos de hélio). Porém, somente
10 anos depois quando Einstein apresentou sua fórmula “E = mc2” é que se compreendeu a
relação entre matéria e energia (BRODY; BRODY, 2006).
Hawking (2001) arma que massa e energia são equivalentes, conforme a equação de
Einstein. Entre as consequências da interpretação desta fórmula estava a percepção de que “se
o núcleo de um átomo de urânio se ssionar em dois núcleos com massa ligeiramente menor,
uma tremenda quantidade de energia será liberada” (HAWKING, 2001, p. 12). Segundo o físico
inglês, a energia liberada é referente à diferença da massa total do núcleo e a soma das massas
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individuais de cada próton e nêutron. Essa energia mantém o núcleo unido e pode ser calculada
pela relação de Einstein: energia de ligação nuclear = Δmc2, em que Δm é a diferença entre a
massa do núcleo e a soma das massas individuais dos prótons e nêutrons.
Considerando-se a relação estreita entre matéria e energia, é possível ver a substância
química como algo que está sempre variando, sem apresentar uma entidade molecular estável
e xa. Um exemplo disso são as conformações de algumas moléculas orgânicas. Moléculas
orgânicas com grupos ligados apenas por ligações sigma (σ) podem sofrer rotações em torno
do eixo da ligação, dando origem aos vários confôrmeros (SOLOMONS; FRYHLE, 2005).
Cada confôrmero representa a mesma molécula, porém com uma estrutura diferente. Fazendo
a análise conformacional do butano, por exemplo, observam-se sete conformações (Figura
1). O gráco abaixo mostra a relação entre a energia potencial da molécula e o ângulo diedro
das diferentes conformações. De acordo com a Figura 1, a conformação mais estável, ou seja,
encontrada com maior frequência na substância butano, é a de número IV (estrelada-anti),
devido a sua baixa energia.
Figura 1. Análise conformacional do butano
I – Eclipsada; II – Estrelada-gauche; III – Eclipsada; IV – Estrelada-anti; V – Eclipsada; VI – Estrelada-gauche;
VII – Eclipsada.
Fonte: elaborada pelo autor.
Na Figura 1, é possível observar diferenças de energia potencial entre uma conformação
e outra. Essa energia é considerada uma barreira de rotação, pois é a energia necessária para a
molécula passar de uma conformação à outra. Assim, considerando um sistema com a subs-
tância butano, pode-se dizer que durante a maior parte do tempo as moléculas se apresentarão
na conformação IV (estrelada-anti), sendo esta a de mais baixa energia (mais estável). Porém,
todas as moléculas estarão se alternando entre todas as conformações.
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Com isso, pode-se armar que a disposição e conformação das moléculas de uma
substância estão se alternando devido a fatores energéticos. Isso terá uma inuência direta na
representação das substâncias. Ao se pensar na substância água, por exemplo, dentro da visão
clássica, representa-se por várias moléculas “H2O”, em sua forma trigonal, estática e sem inte-
ragir com o meio. Na visão relacional acerca das substâncias químicas, vê-se a substância água
formada por moléculas que estão se auto ionizando constantemente e com seus movimentos
rotacionais e vibracionais. É neste sentido que Bachelard (1984) arma que a substância é como
o devir, o qual se apresenta como uma espécie de diálogo entre a matéria e a energia. Segundo
o autor, as trocas energéticas determinam modicações materiais e as modicações materiais
condicionam trocas energéticas.
As propriedades relacionais
As substâncias químicas, a partir do século XX, também começam a ser compreen-
didas a partir de observação de algumas propriedades relacionais. Segundo Mortimer (1997),
a aplicação da mecânica quântica à química resulta num conceito não-clássico de molécula,
podendo-se dizer a mesma coisa em relação ao conceito de substância química. Diante disso, o
autor destaca a natureza relacional de muitas propriedades químicas, que “nos obriga a pensar
essas propriedades como resultantes das interações entre moléculas e não como dependentes
unicamente da composição e da geometria característica de cada molécula” (MORTIMER,
1997, p. 201). Ou seja, diante dessa ótica, analisa-se as propriedades das substâncias químicas
como dependentes das relações entre as substâncias entre si, a natureza das espécies químicas
envolvidas e o meio em que ela está inserida. Oliveira (1995, p. 09), por exemplo, arma que “a
acidez de um ácido só tem sentido químico se mencionamos o solvente. Não existem ácidos por
si, mas algo é ácido em relação a alguma outra coisa”. Isso implica dizer que o ácido clorídrico,
por exemplo, só apresenta sua característica ácida em solução aquosa, mas não em sua forma
gasosa (cloreto de hidrogênio). Outro exemplo é quando se analisa o poder oxidante e redutor
dos elementos químicos. Só se pode falar no zinco com a propriedade redutora se ele interagir
com outra espécie química de natureza oxidante, como o cobre (em sua forma iônica), por
exemplo. Essa interação resulta na reação química representada pela equação Zn(s) + Cu2+(aq)
→ Zn2+(aq) + Cu(s). Já diante do lítio, que pode atuar como agente redutor em determinadas
situações, o zinco, em sua forma iônica, irá se comportar como oxidante. A espécie química
com a qual o zinco irá reagir determinará a propriedade oxidante ou redutora do metal. Nesse
caso, algumas propriedades relacionais vão depender não só do meio, mas também da própria
natureza das substâncias. Assim, Oliveira (1995) coloca que, de modo geral, pode-se dizer
que a substância não é nada em si mesma e que as características que lhes são atribuídas se
constituem em produto de um jogo relacional. Ou seja, a substância não é, mas ela se torna
(constantemente está se tornando). E algumas propriedades não pertencem às substâncias, mas
emergem a partir deste jogo relacional.
Quando se fala que substâncias puras possuem temperatura de ebulição bem denida,
por exemplo, se faz uma aproximação, visto que essa propriedade, bem denida, só é alcançada
em determinadas condições de pressão. Em diferentes partes do globo terrestre, um recipiente
com água, no seu maior grau possível de pureza, irá apresentar diferentes temperaturas de ebu-
lição, por causa das variações de pressão que dependem da altitude do lugar em que a água irá
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ferver. Ou seja, neste caso, são as condições do ambiente que irão determinar a emergência da
propriedade. Por convenção, adotou-se a pressão de 1 atm (760 mmHg) como condição padrão
para determinação das propriedades físicas, como a temperatura de ebulição.
Oliveira (1995) levanta outras propriedades que, na visão clássica da Química, são
consideradas como bem denidas, porém devem ser consideradas como relacionais:
- Eletronegatividade: segundo o autor, “a eletronegatividade não existe por si mesma
enquanto propriedade elementar, mas é produzida na relação entre os átomos dos elementos
quando estes se ligam” (p. 10);
- Valência: considerada, comumente na sala de aula e nos livros didáticos, como uma
propriedade elementar das substâncias, mas que, na verdade, dependerá das relações entre
átomos e/ou moléculas de diferentes espécies químicas.
Na Química Orgânica também é possível observar a existência de propriedades relacio-
nais. Na estereoquímica, por exemplo, pode-se ter uma mesma substância formada por moléculas
enantiômeras, as quais não são superponíveis uma na outra. Com base nesta informação, pode-
ríamos dizer que os enantiômeros são compostos diferentes. Porém, Solomons e Fryhle (2005,
p. 195) armam que os enantiômeros apresentam algumas propriedades semelhantes, tais como
temperaturas de fusão e ebulição idênticos, índice de refração e solubilidade em solventes comuns.
Contudo, tais comportamentos e propriedades semelhantes entre enantiômeros não são uma regra.
Um exemplo disso são as diferentes velocidades de reação que enantiômeros apresentam, resul-
tando em diferentes dinâmicas de reação, sobretudo quando se passa num organismo vivo. Em
meados do século XX, no Brasil, houve problemas causados pelo enantiômero (S) da Talidomida,
fazendo com que bebês nascessem com má formação dos membros superiores e inferiores. Este
problema se deu a partir do uso da Talidomida (sendo vendida uma mistura racêmica dos enan-
tiômeros R e S) consumida com ns analgésicos. Enquanto a propriedade analgésica é atribuída
ao enantiômero R, não se sabia que o enantiômero S era capaz de causar má formação de bebês
durante a gestação (COELHO, 2001). Ou seja, os enantiômeros R e S da Talidomida apresentam
diferentes dinâmicas de reação no meio vivo, frente às especicidades dessas espécies químicas.
Por m, Mortimer (1997) ratica a ideia de propriedades relacionais mostrando que
várias propriedades que comumente são consideradas como elementares e bem denidas, na
verdade, emergem no jogo relacional citado por Oliveira (1995), tais como: acidez e basicidade,
comportamento redox e efeitos de solventes em reações. Essas propriedades dependem da
interação entre moléculas e não unicamente da estrutura de uma espécie isolada. Por exemplo,
os ácidos sulfúrico e clorídrico podem se comportar como bases quando em presença de po-
derosos doadores de prótons, como os superácidos. Nesses últimos, ácidos fracos como HF e
SbF5 podem se transformar num ácido muito mais forte apenas sendo misturados. Também a
energia de processos químicos só pode ser entendida em termos relacionais, pois depende da
quebra e da formação de ligações (MORTIMER, 1997).
Considerações nais
A discussão apresentada mostra como o conceito de substância apresenta diversos
modos de pensar, os quais emergiram a partir de várias formas de falar ao longo da história da
Ciência. A evolução do conhecimento de substância não obedece uma linearidade, sendo possível
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observar modos de pensar diferentes coexistindo em um mesmo período e contexto histórico.
Os diversos modos de pensar emergiram de forma simultânea em várias épocas e coexistem
hoje, estando dispersos entre concepções informais/alternativas e cientícas discutidas em sala
de aula, como apontam Silva e Amaral (2013).
Além disso, não se pode armar que houve a predominância de alguns modos de pen-
sar em determinados períodos históricos. Dessa forma, foi possível observar que concepções
generalistas, por exemplo, estiveram dispersas em várias épocas do desenvolvimento histórico,
além de serem encontradas na atualidade, principalmente em contextos e situações do senso
comum, como outros modos de pensar (SILVA; AMARAL, 2013).
Admitir tal convívio entre modos de pensar, signica compreender que a visão relacional
do conceito de substância química, objeto de estudo deste artigo, não possui uma supremacia
em relação às outras concepções que são encontradas nas outras zonas do perl conceitual
de substância. Diante de determinadas situações e contextos, algumas ideias terão um valor
pragmático maior do que a visão relacional e, diante disso, nem sempre será necessário admitir,
por exemplo, que algumas propriedades das substâncias são relacionais. Quando se analisa o
aumento da eletronegatividade ou a geometria da molécula da água, é necessário considerar a
substância e suas moléculas constituintes como entes isolados de qualquer interferência, para
que se possa determinar certos parâmetros de comportamento e deni-los como padrão. Em
determinadas situações, principalmente no Ensino Médio, para ns de cálculo estequiométricos,
considera-se que todas as substâncias envolvidas apresentam pureza de 100%, mesmo que a
situação trate de uma reação que ocorre na natureza, onde não se encontram substâncias puras
isoladas. Ou seja, o que vai valer é o valor pragmático que cada sujeito irá atribuir aos modos
de pensar em determinadas situações (MORTIMER; EL-HANI, 2014).
Isso não signica que se deve considerar um pensamento relativista ao se analisar o
uso de modos de pensar um conceito cientíco, caindo na falácia do “tudo vale”. Ao contrário,
advoga-se que é necessário que o sujeito tenha consciência do uso desses diversos modos de
pensar para que os utilize em contextos e situações adequadas. Dessa forma, raticamos a im-
portância, apontada no início deste artigo, de que a visão relacional do conceito de substância
seja discutida em cursos de nível superior de Química, principalmente nas licenciaturas, as quais
preparam professores que irão atuar diretamente no Ensino Médio. A falta da discussão dos
diversos modos de pensar o conceito de substância, incluindo a visão relacional, pode fazer com
que o sujeito, sem ter consciência da pluralidade de concepções, faça uso de determinadas ideias
em contextos inadequados, gerando problemas de aprendizagem. O aluno, por exemplo, por
falta da discussão sobre a visão relacional, pode imaginar que a substância água, em sua forma
pura, é encontrada na natureza, sendo esta uma concepção informal/alternativa comumente
encontrada entre alunos do Ensino Médio (JOHNSON, 2000, 2002).
Métodos de ensino baseados na teoria do perl conceitual (MORTIMER; EL-HANI,
2014), que permitam que o aluno tenha consciência dos diversos modos de pensar, ainda são
escassos na literatura e na prática escolar. Diante disso, enfatiza-se a importância do desenvol-
vimento de pesquisas que busquem modos que permitam com que o aluno de Química, em
qualquer nível de ensino, possa ter consciência da heterogeneidade de pensamento de alguns
conceitos, aplicando cada modo de pensar em contextos adequados.
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Artigo recebido em 27/08/2016. Aceito em 09/01/2017.
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